Crônicas

Lasanha

E a lasanha deu certo. Sim, confesso que por um momento eu duvidei que o resultado final ficaria bom. Minha filha decidiu fazer sua receita a partir de outra receita. Explico. Começou com o pedido dela para fazer lasanha. Cantei de felicidade. Concordei que ela deveria fazer diferente da que a avó faz, claro. E fui em busca da receita. Ela leu e disse que queria fazer do jeito dela. Engoli em seco e perguntei do que se tratava. Não queria presunto. Tudo bem. Nem pimenta do reino. Me espantei. Ponderei que tirar tempero não dava. Era essencial para dar sabor. Ela estava irredutível e ai apelei: perguntei se já tinha provado. Disse que não. Peguei um pouco e pus na mão. Arregalou os olhos azuis como se tivesse visto o diabo em pessoa. Acalmei-a e já ia capitular – ela era a chef – mas para meu espanto ela concordou em manter desde que não provasse a pimenta do reino. Concordei em silêncio para não perturbar o equilíbrio cósmico que decidira a favor do sabor. Fui seu assistente. Abri lata de tomate pelado, lavei coisas e indiquei onde achar talheres. Ela temperou a carne moída, picou cebola e alho, …

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Contos

ENQUANTO ISSO

O tempo está sujeito a chuvas e trovoadas, o horizonte parece mais distante e inatingível como o daquelas tardes à beira do mar, quando se faz planos inúteis para o futuro. Uma garota brinca com seu cachorro na rua onde poucos carros passam. Corre uma ambulância com a sirene ligada, e eu jogo fora, mais uma vez, outro poema que escrevi sem pensar. A história é escrita diariamente por um robô, tantos fatos iguais se repetem até que fiquemos fartos. Caem os heróis de ontem, e hoje não conseguimos fabricar um novo — não tiramos ninguém de real valor do meio dessa gente de pele mole, olhos opacos e nervos flácidos. Minha memória tenta resistir, mas já conhece seu tempo de validade, e eu luto à exaustão para permanecer. Sei que só ela sobrará quando eu não estiver mais aqui. Vejo presidentes passando na rua, vejo também os opositores, e a proximidade entre todos eles me espanta. Vejo um bloco de Carnaval vestido de falsa alegria, os foliões tocam bumbo e corneta e gritam frases estridentes, mas as vozes não têm vibrato nem metal e não alcançam além dos próprios ouvidos. Ouço sobre o suicídio coletivo das baleias no Mar …

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Crônicas

O hambúrguer e o pós-estruturalismo publicitário

Lavava o banheiro num sábado à tarde ouvindo um quilométrico solo do Zakk Wylde quando uma propaganda em volume absurdo atravessou a música anunciando a inauguração da mais nova hamburgueria da cidade, naquela noite, com diversas atrações e um precinho supimpa. Toda vez que isso acontece me culpo por não pagar uns míseros reais para matarem os anúncios do aplicativo. O susto faz qualquer pessoa prestar atenção naquela porcaria por alguns segundos, malditos publicitários. O Zakk e os outros membros do Black Label Society provavelmente não se importam com a intromissão porque a plataforma deve depositar uns centavos na conta da banda de quando em vez. Eu, no entanto, continuo aproveitando a versão grátis até a curta paciência consumir as barreiras da minha verve mão de vaca. Mais tarde abri o Instagram e lá estava um conterrâneo metido a influencer fazendo o maior merchan da hamburgueria. Ele mostrava os diversos molhos e opções de lanches a perder de vista, um espaço arejado e confortável, perfeito para passar algumas horas aproveitando o bom da vida com os amigos, vez ou outra, com promoções e música ao vivo. A cidade crescia, o mundo mudava, a gastronomia davaum salto a outro patamar. Incrível …

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Crônicas

Como vejo o mundo!

Quem gosta de viver com a sombra dos outros é o cacau, cultivado em regiões com temperaturas superiores a 21ºC. O clima frio ainda prejudica a qualidade das sementes, por isso o plantio é recomendado em regiões mais úmidas e quentes. Como o cacaueiro necessita de arborização para ficar protegido dos raios solares, seu brilho e sua vida dependem muito da sombra que o protege. Viver dessa forma ou por vezes no escuro, não deveria ser motivo de desistência, apenas uma condição a ser atendida, como outras tantas necessárias para nossa subsistência. Folheando meu novo livro, descobri que além da Fontana Di Trevi, existem outras três fontes em Roma: Fontaine dei Quattro Fiumi, Fontana di Nettuno e Fontana del Moro, todas adornadas com esculturas. Ainda não tive o prazer de conhecê-las pessoalmente, porém, nenhum amigo ou outros tantos que já fizeram uma viagem a Roma, me descreveram a existência das fontes com riqueza de detalhes. O livro se chama “Como Vejo o Mundo”, escrito por Gilberto Henrique Buchmann, escritor, graduado em letras, funcionário público federal, notável viajante internacional. O Giba ilustra diversos lugares espetaculares visitados por ele, durante sua jornada de viagens internacionais independentes. Em sua infância alguns quiseram imaginar …

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Crônicas

Caminhos da Jordânia

A Jordânia é quase toda um deserto de areia e pedras, mas definitivamente vale a pena visitá-la, em especial Petra. Por enquanto, coloque o país na sua lista de destinos a fundo perdido, já que as coisas por lá andam complicadas. Os conflitos da região são milenares e periódicos, assim como as tréguas. Espere uma oportunidade e acredite: é possível. No entanto, se você tiver que esperar até ficar velho demais, desista de Petra. Uma visita básica, sem explorar todos os monumentos significa andar a pé uns dez quilômetros, sob sol escaldante se for verão. Eu andei cerca de doze e acabei recorrendo a uma carroça puxada por um pobre cavalo. A pena que senti de mim superou a que senti dele, então deixei culpa e a empatia para depois. Em alguns trechos você também pode optar por carrinhos elétricos, camelos ou burricos, mas aviso: se escolher os simpáticos animais sua roupa vai se lembrar do cheiro por muito tempo, quiçá precisará livrar-se dela para sempre. A volta de Petra para Amã foi de carro, um serviço excelente e confortável, em uma van com apenas três passageiros cujo simpático motorista mal sabia duas dúzias de palavras em inglês. Na estrada …

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Crônicas

Ao mestre com carinho

Dia 15 de outubro sempre foi uma data importante para as crianças, momento de demonstrar o carinho por seus mestres. Para alguns a escolha é simples, pois com pouca imaginação podem comprar um presente convencional que certamente agradará. Não foi o caso de Lucas, não. Naquele ano, queria muito homenagear seu professor preferido, o de biologia. Um homem apaixonado pela profissão e que tinha uma vida bastante solitária depois da morte da esposa. Por esse motivo, o menino queria que o presente fosse algo que pudesse preencher esse vazio. Depois de muito queimar as pestanas, teve uma ideia inusitada, certo de que ninguém na sala o superaria no quesito surpresa. Sabendo da predileção do mestre pelos répteis, começou a pesquisar como poderia presenteá-lo com um espécime que fosse adaptável ao ambiente doméstico. Inicialmente pensou em um jacaré, pois já tinha ouvido falar de pessoas que criam crocodilianos em tanques na residência. Como não sabia se ele teria espaço para um réptil desse porte, descartou a ideia. Fez então uma lista de requisitos que o rep-pet deveria atender: não fazer barulho, não atacar, não defecar grandes quantidades, não precisar ser alimentado, não destruir móveis, não comer roupas ou livros e, por …

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Crônicas

Panqueca

Pai vamos fazer panqueca? A pergunta-convite me acendeu os olhos de alegria! Chequei se tinha tudo que ela precisava. Sim, nada faltava. Peguei um avental para cada um e fomos à cozinha. Estava radiante, afinal cozinharia com uma de minhas filhas. Prometi ser seu assistente. Abri o livro com a receita, ela se inclinou sobre a página, concentrada. Separou os ingredientes, testou os ovos (Não sabe como faz? Põe na água, se boiar joga fora). Se enrolou um pouco com aquela estória de colher de café, de sobremesa e de sopa. Mas quando começou a operação percebi que estava diante de alguém de padrão muito elevado. A farinha foi medida no copo medidor com uma precisão de deixar qualquer câmera de trânsito, daquelas que flagram os infratores, no chinelo. E os ovos? Nem na próxima encarnação serei capaz de quebra-los com aquela eficiência. Nem um caquinho da casca caiu no liquidificador. Depois de misturar a massa – o que é mesmo homogênea, papai? – chegou a vez de aquecer a frigideira. De primeira, ligou o fogão com uma intimidade de chef de cozinha. E veio o toque especial: com um gesto quase diáfano estendeu uma camada fina de massa na …

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Contos

VISITA AOS MUTANTES

Retornarei ao planeta Terra daqui a dois ou três mil anos A guerra será uma vaga lembrança do tempo em que todos éramos bárbaros. Saudarei os mutantes que aqui permaneceram e direi a eles: “Vim desde o terceiro milênio para vê-los e conhecer a vida que levam hoje. Gozam todos de boa saúde? Encontraram o que buscavam? A paz, a felicidade, a fartura?” (Naquela época os homens criaram armas nucleares de grande potência para arrasar cidades e aniquilar inimigos, destruir lavouras de alimentos e os bichos que se movimentavam na superfície da terra e dentro dos rios. Foi o que aconteceu na Era das Trevas, quando os humanos inventaram um ser à sua imagem e semelhança e se dedicaram a matar em nome dele.) Intuo que os mutantes não compreenderão sobre o que falo. Sei que me olharão com espanto e voltarão em silêncio ao que faziam antes da minha chegada. Entrarão novamente na caverna para adorar a imagem de seu deus, que é uma nuvem alaranjada em forma de cogumelo.

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Crônicas

A razão da crônica

Escrevo esta crônica pensando na razão de escrevê-la! Por que escrever uma crônica? De que me serve a crônica? Mas qual seria a razão de todas as crônicas? Dizem que a crônica é metida a besta porque ora é prosa, ora é poesia, ora é ensaio, ora não é nada… Dizem os estudiosos que a crônica é o testemunho de um tempo, o registro dos homens e seus conflitos. Dizem ainda que a crônica é o texto do dia, da linguagem do dia, das questões do dia… Muitos concordam que a crônica está intimamente ligada ao calendário, aos fatos corriqueiros… Mas, se for assim, a crônica nasce inevitavelmente velha, fadada ao nada, ao ostracismo. Como um número, um dia um mês, um ano… No entanto, creio que a crônica é muito mais que o dia! Ela é uma voz, ou melhor, as vozes de todos os cronistas que, atentos ao mundo e aos outros, escrevem sobre o amor e a tristeza, sobre os sucessos e os fracassos, sobre a vida e a morte, o trânsito, a rua cheia e a rua vazia, o beijo dos namorados, os encontros e os desencontros, os sabores e os dissabores, o que é eterno …

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Crônicas

O tamanho de seu ressentimento!

O ressentimento nasce dentro da culpa que o indivíduo criou, em detrimento de algo que alguém pretensiosamente provocou para chegar em sua condição atual inaceitável. O mais difícil é entender porque isso não passa. A versão provável desse drama é a de que essa queixa se mantém porque ele terá que assumir que foi ele quem fracassou em algum momento, e não os outros que provocaram o problema. A pintora Maud Lewis, foi retratada no filme “Maudie”, que narra sua vida de artista em Nova Scotia no Canadá, passada com muito sofrimento até sua morte aos 67 anos. Ela vivia com a tia que a tratava como inválida, não deixava Maud sair, era muito grosseira e a escravizava nos serviços domésticos. Maud então vê a oportunidade de se livrar dessa tia, quando encontra um anúncio em uma loja, para contratação de doméstica, e se candidatou para assumir os serviços a um homem rude, de poucos recursos, que veio a ser seu marido. A artista se manteve pobre em grande parte de sua existência, e permaneceu em uma pequena casa ao lado do esposo. Ela foi uma excelente pintora, porém, sua condição de saúde reduziu a mobilidade de suas mãos, que eram o principal instrumento nas pinturas. Sua mãe Agnes foi quem influenciou …

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