— Pai, o professor baixou a nota da minha redação porque usei “mormente” em vez de “sobretudo”.
— Bem feito! Eu lhe disse para não sair desprotegido nesse tempo frio!
Levei esse diálogo para a classe porque um aluno tinha usado “mormente” numa redação. Foi nesta passagem: “As manifestações que tomaram conta do Brasil deviam interessar mormente aos excluídos.”
“Mormente” é o mesmo que “sobretudo”, de modo que o estudante não falhou quanto à semântica; apenas se mostrou um tanto pedante. A palavra que ele escolheu tem um ranço formal, bacharelesco, que afasta ou desorienta o leitor comum. Uma prova disso é a resposta que o pai deu ao filho.
O diálogo acima é uma anedota. Como geralmente ocorre nos textos de humor, o riso decorre de uma confusão de sentidos – no caso, a confusão que o pai faz entre dois homônimos: “sobretudo” é advérbio e também substantivo (neste caso, significa “casaco que serve de proteção contra o frio e a chuva”).
Mas não bastou isso para gerar a ambiguidade que levou ao efeito humorístico. A homonímia seria insuficiente caso não houvesse a polissemia do verbo “usar”, que significa tanto “empregar” quanto “vestir” (além de outros sentidos que o dicionário registra). Se o menino tivesse dito ao pai que o professor baixou a nota porque ele escrevera (e não “usara”) “mormente”, o pai não teria feito a confusão. Não lhe ocorreria considerar “mormente” um tipo de casaco, mas o velho continuaria ignorando o que esse vocábulo quer dizer.
Se alguma coisa a anedota ensina, é que é melhor evitar palavras “difíceis”, pouco usuais. Além do ar pernóstico que dão ao texto, elas deixam o leitor no ar ou o levam a deduzir sentidos absurdos, a partir de falsas aproximações. Isso em nada favorece a leitura.
Ao comentar a redação, perguntei à turma o que queria dizer “mormente”. Quase ninguém sabia. O autor da frase era então uma ave rara. Louvei seu hábito de consultar o dicionário, que é fundamental para ler e escrever bem; esse hábito o colocava à frente dos outros. Mas o adverti de que a boa erudição é a que não transparece de forma ostensiva. O primeiro dever de quem escreve é se comunicar, por isso o texto deve estar ao alcance de todos. Até de um pai que não sabe distinguir um advérbio de uma peça do vestuário.
Excelente crônica. Parabéns pelo retorno ao Crônicas Cariocas.