Crônicas

Empolgação mata

Os primeiros duzentos metros foram tranquilos, com exceção do tênis apertado e da provável gestação de uma bolha no calcanhar. Também apareceu a taquicardia, a omissão do fôlego e o arranhar dos joelhos, mas estava tudo bem. Só depois, talvez na casa dos trezentos, brotou-me a desconfortável memória muscular de uma distensão na virilha.

A caminhada até lá foi uma tentação. Afinal, por qual motivo haveria tantas barraquinhas de cachorro-quente, sorveterias e pastelarias no entorno da pista de atletismo? Aquela pastelaria, aliás, vendia uma inesquecível coxinha recheada de frango com catupiry. Entendi a prerrogativa comercial quando notei as várias pessoas com corpos atléticos e suados abocanhando lanches gordurentos após o treino. A cena é inclusive ofensiva para os mais roliços, que, digamos, salivam desmedidamente.

O primeiro puxão chegou mais ou menos nos seiscentos metros, mas o peguei como um toque de ansiedade. O ritmo das passadas vinha diminuindo enquanto assaduras ensaiavam um tango argentino no entremeio das minhas coxas. O corpo inteiro arquejava clamando por meio metro de sombra, descanso e água. A ansiedade costumava chegar aos cutucões, então brinquei com o perigo achando se tratar de outro caso ansiolítico.

Na terceira ou quarta pontada corei de vergonha porque revelaria o meu despreparo. Não corri nem bem duas voltas e me era difícil aceitar a derrota, embora os músculos exauridos comprimissem qualquer hipótese de perfazer os doze contornos. Sempre achei o aquecimento uma perda de tempo e talvez, por conta de mais essa decepção, devesse reconsiderar. De repente uma vertigem relegou toda compostura ao solo e desde então não lembro muita coisa.

Despertei no hospital sem saber qual moléstia me afligira. Os sentidos um tanto medrosos se embaralhavam entre as dores no corpo e a respiração espinhosa. Entretanto, nada me foi tão forte quanto o estranho, mas agradável, gosto daquela coxinha recheada que me abria o apetite. Acabei aceitando uma sopa fria. A maratona, enfim, se terminava com uma espécie de medalha, uma notável condecoração implantada ao resto dos meus dias. Coisa para poucos, imagino. E pensar que o relógio de corrida parcelado em dez vezes no cartão nem havia ainda cruzado a caixa de correio.


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Alexandre Leidens

Alexandre Leidens é um cronista nascido em Gaurama/RS radicado no Paraná, leitor compulsivo, cínico e pessimista. Retrata os meandros do cotidiano com o desdém tragicômico dos velhos ranzinzas. Também trabalha com coisas sérias, mas gosta mesmo é da reclamação e da fofoca. Hipócrita assumido, rouba livros sempre que possível e sem culpa. Adepto do chope gelado e da conversa fiada, só gosta do verão quando vai à praia. Escreve quinzenalmente para o site Crônicas Cariocas.

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