No condomínio recém-inaugurado, nada demais acontecia. No início, poucos moradores, poucos problemas e quase nenhuma discussão. Sobravam vagas na garagem, a academia vivia vazia, e o silêncio era quebrado apenas pelos latidos persistentes do único cão cuja existência era de conhecimento geral: Nietzsche, um yorkshire valentão da vizinha do 304.
Nietzsche era pequeno, barulhento e absolutamente convicto de que era um rottweiler. Sua coragem era inversamente proporcional ao seu tamanho. Latia com energia e uma certa arrogância canina para qualquer coisa que se movesse — ou deixasse de se mover. No começo, ninguém se importava. Os moradores até achavam graça. Diziam que seus latidos eram pontuais e, de certa forma, até simpáticos. “Um toque de vida num condomínio muito parado”, comentou o postulante a namorido da “mãe-de-pet solo” do Nietzsche. Quando alguém se queixava, outros o defendiam com entusiasmo: “Cachorro late mesmo.” “Ah, ele só tá fazendo o trabalho dele.”
Nietzsche, no entanto, era sistemático. Latia sempre que o elevador chegava no andar. Latia para passos no corredor, para o funk do vizinho do 202, para o som da “tchibum” quando alguém pulava na piscina. Latia até para o próprio rabo, num looping acústico irritantemente frequente.
Até que tudo mudou com a chegada de novos moradores: uma família com um dogue alemão, mansinho, equilibrado, cão de apoio emocional de uma criança atípica com menos de doze anos. Os moradores mais antigos não gostaram quando viram o “monstrão”. A vizinha do 304, inclusive, foi a primeira a reclamar: “Como pode um cão desse tamanho? Ninguém precisa tolerar esse absurdo.”
A tolerância evaporou. Vieram os olhares atravessados, os cochichos nos corredores e, como era de se esperar, os comentários no grupo de WhatsApp.
O grupo, aliás, nasceu como “Vizinhança Unida” — nome otimista e pacificador. Após alguns episódios, virou “Moradores em Ação”. Uma minoria mais participativa saiu em defesa do dogue alemão e, por tabela, contra o yorkshire. O humor oscilava conforme o nome do grupo. Um dos mais aclamados foi: “Cachorro não é gente.” Agora sim, um nome que refletia bem o clima entre os vizinhos.
As indiretas ganharam corpo. Bilhetes começaram a surgir no quadro de avisos, em caligrafias diferentes, mas com mensagens parecidas: “Silêncio é um direito de todos”, “Tem lei pra isso, sabia?”, “Esse cachorro parece um cavalo”, “Amamos cães, mas preferimos silêncio.”
O síndico, sujeito sem muita vocação para a diplomacia, resolveu intervir. Chamou os donos dos cães para uma conversa. Com a vizinha do 304, tentou manter a calma ao expor as queixas dos condôminos: sugeriu horários mais estratégicos para os passeios com o doguinho, mencionou o uso de tapetes higiênicos e chegou a citar a convenção do condomínio. Mas ela, astuta, munida do Código Civil e da Constituição Federal rebateu cada argumento apresentado, com firmeza e embasamento. O síndico perdeu a paciência quando ouviu, com a mais serena convicção:
— Meu filho só late de alegria.
Nesse instante, ele deu razão ao vizinho do dogue terapêutico, que apenas tentava manter unida uma família que cuidava de uma criança especial.
Foi então que surgiu uma ideia. A moradora do 204, que observava por trás da cortina de vidro na varanda, comentou no grupo:
— E se chamássemos um adestrador? Mas um de verdade, desses que entendem também de gente?
E ele veio. Alto, calmo, voz serena que amoleceu até o síndico. E, com objetividade, esclareceu:
— Antes de condenar um cão, é preciso ouvir e entender sua relação com as pessoas.
Conversou com todos. Sentou-se com a vizinha do 304, que confessou, com os olhos marejados, que desde a pandemia Nietzsche se tornara sua única companhia.
O adestrador ensinou técnicas simples, eficazes. Propôs uma atividade inusitada: o “Dia do Silêncio Consciente”. Um domingo inteiro em que todos se comprometeram a minimizar ruídos, inclusive o som dos próprios julgamentos. Para surpresa geral, Nietzsche latiu bem menos nesse dia.
Aos poucos, os latidos diminuíram. Mas o curioso foi o que aconteceu com os moradores: passaram a se cumprimentar, sorrir no elevador, trocar receitas. “Harmonia Entre as Espécies” virou o novo nome do grupo no Whatsapp.
Nietzsche, o valentão, virou mascote do prédio. O dogue alemão, antes temido, tornou-se querido entre os adolescentes. A criança atípica do 302 começou a interagir, ainda que timidamente, com os demais. Ganhou até um desenho feito por um vizinho artista: dois cães — um grande, outro pequeno — dividindo o mesmo osso em paz.
O treinador seguiu, enfim, para uma nova missão, em outro condomínio, com um sorriso tranquilo e uma ideia na cabeça:
— A mente dos cães é simples. A das pessoas, nem tanto. Mas com paciência, sensibilidade e respeito, todo mundo pode aprender a conviver. Incluindo os yorkshires e os cães gigantes.
No fim, os conflitos não eram sobre latidos. Nem sobre o tamanho dos cães. Eram sobre convivência, intolerância e o difícil exercício de viver em comunidade. Como bem escreveu Nietzsche — o filósofo, não o cachorro —, “aquele que luta com monstros deve tomar cuidado para não se tornar um deles”.
E talvez fosse justamente isso: enquanto todos apontavam para o cão alheio, esqueciam de encarar o próprio reflexo nos espelhos do elevador. Entre cães, humanos e suas frágeis ideias de silêncio, superioridade e ordem, sempre há espaço para um pouco mais de empatia, escuta e camaradagem, especialmente entre vizinhos.