Berlin

  • Berlin

    Cada vez que assisto a uma tentativa de calar as vozes dissidentes me lembro de Berlin: foi lá que me deparei com as reais consequências de um regime político onde falta liberdade.

    Percebi que a política é problema de todos e que, de uma forma ou de outra, é preciso participar (o que pode ser algo pequeno como votar conscientemente ou fazer parte da associação de bairro).

    É importante defender com unhas e dentes a liberdade de expressão, desde que não se caia na armadilha de dar liberdade completa a quem quer tirar a liberdade dos outros. O assunto é polêmico, os limites são tênues, há paradoxos envolvidos. Já me horrorizei muito mais quando via um político contrariar hoje o que havia dito ontem. Pode ser oportunismo, mas reconheço que esse é o tipo de coisa que supera conflitos: se todos se mantiverem firmes em pontos de vista imutáveis acabaremos indo às vias de fato com frequência e com maiores prejuízos para os envolvidos. Se é voz do povo que os políticos não são confiáveis, deveria também ser dito que são necessários.

    Mas voltemos a Berlin, uma das minhas cidades preferidas.

    Na primeira vez que fui a Berlin o muro ainda existia. Como estrangeira tive permissão para visitar a zona oriental, proibida aos alemães ocidentais. A paranoia era completa e amigos me aconselharam a não levar comigo escritos que não fossem de fácil compreensão porque poderiam ser interpretados como mensagens cifradas. Mesmo duvidando segui a recomendação e pude constatar, pouco tempo depois, que eles tinham razão: no aeroporto de Moscou vi retirarem da mala de um turista objeto por objeto, com ênfase nos papéis, incluídos aí meros cartões postais ou folhas soltas com anotações de números de telefone.

    A ligação entre os dois lados de Berlin se fazia em um local chamado Checkpoint Charlie.

    Na zona ocidental, os edifícios eram encostados na fronteira, mas na oriental foi criada uma larga faixa de terra de ninguém, desértica para facilitar a visão dos guardas nas torres que vigiavam dia e noite quem tentasse fugir. Como se não bastasse, retiraram os moradores dos prédios no entorno do muro, que permaneciam vazios e abandonados.

    Próximo ao Checkpoint Charlie (do lado ocidental, é claro) havia um pequeno museu onde se podiam ver os mais diversos estratagemas usados pelas pessoas para fugir da zona oriental, alguns bem-sucedidos, outros não. O museu existe até hoje e, apesar de não ser grande nem bonito, é imperdível.

    Berlin era habitada dos dois lados pelo mesmo povo, mas vivendo em condições bem diferentes. Na zona comunista os museus se mostravam lindos e bem cuidados, no entanto aquelas ruas tristes e vazias, os edifícios residenciais mal conservados, as lojas com mercadorias pouco atraentes, de vitrines horrendas ou mesmo sem vitrine alguma, eram deprimentes. As pessoas não vivem só de cultura e ciência, as pessoas também gostam de se cercar do que é belo.

    Berlin oriental ficou com a parte mais importante da cidade e era considerada a joia do bloco comunista, o local onde os altos membros do partido gostavam de passar férias.

    Contudo era desolada e até comprar água mineral para uma turista sedenta requeria paciência. As ruas do ocidente, ao contrário, apesar das construções mais modestas, eram cheias de vida, havia música e artistas performáticos, cafés ao ar livre, gente passeando.

    Se Berlin me ensinou que o comunismo é falido, também me lembrou porque foi arrasada: o combate a uma ditadura de direita radical que, com seus discursos de ódio e glória patriótica, arrebatou o povo alemão.

    Quando voltei a Berlin, anos depois, a cidade estava recém reunificada, eufórica, vendendo pedaços do muro como lembrança. O Checkpoint Charlie e a zona de ninguém continuavam lá, mas agora eram passagens abertas, passava-se à vontade de um lado a outro. Os alemães ocidentais já tinham matado a curiosidade e pouco cruzavam a antiga fronteira por ali, porém os orientais faziam compras desenfreadamente no lado ocidental.

    Havia um movimento em massa de pessoas voltando a pé para o lado oriental carregadas de embrulhos grandes que pareciam ser eletrodomésticos e artigos para a casa.

    Os prédios próximos ao muro derrubado começavam a ser de novo habitados, mas permaneciam em estado precário. Berlin ocidental continuava uma festa, enquanto o lado oriental continuava sisudo. Os alemães estavam naquele momento em lua de mel uns com os outros, ainda não haviam começado as desavenças que se seguiram até que as duas Alemanhas se ajustassem.

    Voltando pela terceira vez encontrei Berlin parecendo um canteiro de obras, a maior concentração de gruas por metro quadrado que já vi. Tive imensa dificuldade de localizar o Checkpoint Charlie: o entorno estava irreconhecível, a zona de ninguém completamente modificada. O museu, antes facilmente detectado, passava completamente despercebido no meio das ruas. O progresso na integração das duas Alemanhas era visível embora houvesse muita discussão. Livre e democrática. Até pequenos detalhes, como qual design de bonequinhos prevaleceria nos semáforos luminosos da cidade, se o oriental ou o ocidental, estavam sendo debatidos.

    Recentemente revisitei Berlin. Floresceu, continua cumprindo sua vocação para a vanguarda. No local do muro foi construído um lindo memorial. Ficou para trás a época em que vários alemães, para espanto meu, se desculparam comigo (?!) pela guerra, mesmo alguns que nem eram nascidos quando ela começou, e em que muitos lamentavam os compatriotas atrás da cortina de ferro. Tomara que as novas gerações se lembrem de aprender com o passado. Lá e cá. O assunto é sério.

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