Cães e Condomínio

  • Ataques de pitbulls

    Incidentes envolvendo pitbulls têm provocado comoção nacional e acirrado debates nas redes, nos porcões pets e até no Congresso. As vítimas — algumas fatais — incluem desde crianças de colo a idosos e, em alguns casos, os próprios donos. O episódio mais recente aconteceu na Cidade Ocidental, em Goiás. Stefane Xavier da Silva, 31 anos, foi atacada e morta pelo próprio cão dentro de casa. Segundo a Polícia Civil, ela estava acompanhada da esposa e do filho de apenas quatro meses.

    Outro caso emblemático, que simbolizou o auge da preocupação, foi o da escritora Roseana Murray, de 73 anos. Ela caminhava em Saquarema (RJ) quando foi brutalmente atacada por três pitbulls. Perdeu o braço direito e teve ferimentos graves, mas sobreviveu graças a um atendimento intensivo.

    Uma escalada de ataques

    Em São Lourenço da Mata (PE), um bebê de três meses morreu após um pitbull invadir a casa da cuidadora e atacá-lo no colo da babá. Em Ribeirão Pires (SP), um pedreiro de 52 anos foi morto pelo cão da casa onde trabalhava. Dias antes, em São Paulo, duas crianças de 11 e 12 anos ficaram feridas ao serem surpreendidas por pitbulls em um parquinho público.

    Os dados preocupam

    Segundo o Ministério da Saúde, 53 pessoas morreram em 2023 vítimas de ataques de cães — um aumento de 33% em relação a 2022. Entre 2021 e 2023, foram 126 mortes registradas. No mesmo ano, 1.430 pessoas precisaram de atendimento médico após ataques. É o maior número em décadas.

    Embora qualquer cão possa morder, a raça pitbull aparece com frequência nos casos mais graves. Em 2024, 13 ataques envolvendo pitbulls resultaram em seis mortes, segundo levantamento da CNN. Só no estado de São Paulo, a maioria das fatalidades em 2023 envolveu raças consideradas de grande porte e força.

    Entre leis, focinheiras e polêmicas

    Diante do cenário, alguns estados impuseram regras mais rígidas. No Rio de Janeiro, pitbulls, filas, dobermans e rottweilers são classificados como “animais ferozes”. Eles só podem circular em locais públicos com focinheira, guia curta e sob condução de um adulto. O descumprimento pode resultar em multa, apreensão do animal e até perda da guarda.

    São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná, Mato Grosso e Minas Gerais seguem caminhos semelhantes, exigindo uso de equipamentos de segurança e penalizando condutas negligentes.

    No plano federal, o Projeto de Lei 1265/2024, apelidado de “Lei Murray”, propõe proibir a criação, comercialização e importação de pitbulls no Brasil. Também sugere a castração obrigatória dos exemplares já existentes.

    Para o autor do projeto, deputado Gilberto Nascimento (PSD-SP), é preciso impedir a “proliferação de sub-raças com genes de violência”. A afirmação, polêmica, encontra apoio em parte da opinião pública, especialmente após tragédias com crianças.

    O verdadeiro foco: responsabilidade

    Não se trata de julgar uma raça. O pitbull — já injustamente estigmatizado — não é, por natureza, o vilão. O alerta vai além: é sobre a responsabilidade de quem convive com cães de grande porte e potência. A adoção desses cães não pode se basear apenas em boa intenção ou no impulso de “resgatar”. É preciso preparo. Regras claras. Compromisso diário com a educação do animal.

    Talvez seja a hora de pensar em algo semelhante a uma habilitação, um processo que avalie se o humano tem estrutura emocional, rotina estável e entendimento suficiente para lidar com cães dessa natureza.

    Cães não nascem perigosos

    O comportamento agressivo não vem da raça, mas do ambiente e da forma como o cão é conduzido. Cães que crescem em meio ao desequilíbrio aprendem a se defender com os recursos que têm — e, às vezes, atacam. Por isso, mais do que leis, precisamos de consciência. Mais do que amar, precisamos observar, compreender e educar com responsabilidade.

    Há ainda os que adotam cães potentes como quem escolhe um carro de luxo: para chamar atenção. Confundem força com status, e afeto com aplauso. É a vaidade disfarçada de carinho — o cão vira vitrine, não companhia. Mas um animal não é troféu nem extensão do ego. Quem se exibe com um cão forte, mas ignora suas necessidades básicas, brinca de roleta russa com a segurança alheia. Amar um cão não é colocá-lo numa selfie; é sustentá-lo na correria do dia a dia, no silêncio dos treinos, na coerência dos limites É pedir ajuda, se for necessário. Vaidade, nesse caso, é imprudência com coleira de grife.

    E, como dizemos no Treinamento Invisível: “Treinar um cão é fácil, mas antes de tudo, é preciso transformar a si mesmo.”

  • Cães em Condomínio: o yorkshire valentão e o dogue alemão de terapia

    No condomínio recém-inaugurado, nada demais acontecia. No início, poucos moradores, poucos problemas e quase nenhuma discussão. Sobravam vagas na garagem, a academia vivia vazia, e o silêncio era quebrado apenas pelos latidos persistentes do único cão cuja existência era de conhecimento geral: Nietzsche, um yorkshire valentão da vizinha do 304.

    Nietzsche era pequeno, barulhento e absolutamente convicto de que era um rottweiler. Sua coragem era inversamente proporcional ao seu tamanho. Latia com energia e uma certa arrogância canina para qualquer coisa que se movesse — ou deixasse de se mover. No começo, ninguém se importava. Os moradores até achavam graça. Diziam que seus latidos eram pontuais e, de certa forma, até simpáticos. “Um toque de vida num condomínio muito parado”, comentou o postulante a namorido da “mãe-de-pet solo” do Nietzsche. Quando alguém se queixava, outros o defendiam com entusiasmo: “Cachorro late mesmo.” “Ah, ele só tá fazendo o trabalho dele.”

    Nietzsche, no entanto, era sistemático. Latia sempre que o elevador chegava no andar. Latia para passos no corredor, para o funk do vizinho do 202, para o som da “tchibum” quando alguém pulava na piscina. Latia até para o próprio rabo, num looping acústico irritantemente frequente.

    Até que tudo mudou com a chegada de novos moradores: uma família com um dogue alemão, mansinho, equilibrado, cão de apoio emocional de uma criança atípica com menos de doze anos. Os moradores mais antigos não gostaram quando viram o “monstrão”. A vizinha do 304, inclusive, foi a primeira a reclamar: “Como pode um cão desse tamanho? Ninguém precisa tolerar esse absurdo.”

    A tolerância evaporou. Vieram os olhares atravessados, os cochichos nos corredores e, como era de se esperar, os comentários no grupo de WhatsApp.

    O grupo, aliás, nasceu como “Vizinhança Unida” — nome otimista e pacificador. Após alguns episódios, virou “Moradores em Ação”. Uma minoria mais participativa saiu em defesa do dogue alemão e, por tabela, contra o yorkshire. O humor oscilava conforme o nome do grupo. Um dos mais aclamados foi: “Cachorro não é gente.” Agora sim, um nome que refletia bem o clima entre os vizinhos.

    As indiretas ganharam corpo. Bilhetes começaram a surgir no quadro de avisos, em caligrafias diferentes, mas com mensagens parecidas: “Silêncio é um direito de todos”, “Tem lei pra isso, sabia?”, “Esse cachorro parece um cavalo”, “Amamos cães, mas preferimos silêncio.

    O síndico, sujeito sem muita vocação para a diplomacia, resolveu intervir. Chamou os donos dos cães para uma conversa. Com a vizinha do 304, tentou manter a calma ao expor as queixas dos condôminos: sugeriu horários mais estratégicos para os passeios com o doguinho, mencionou o uso de tapetes higiênicos e chegou a citar a convenção do condomínio. Mas ela, astuta, munida do Código Civil e da Constituição Federal rebateu cada argumento apresentado, com firmeza e embasamento. O síndico perdeu a paciência quando ouviu, com a mais serena convicção:

    — Meu filho só late de alegria.

    Nesse instante, ele deu razão ao vizinho do dogue terapêutico, que apenas tentava manter unida uma família que cuidava de uma criança especial.

    Foi então que surgiu uma ideia. A moradora do 204, que observava por trás da cortina de vidro na varanda, comentou no grupo:

    — E se chamássemos um adestrador? Mas um de verdade, desses que entendem também de gente?

    E ele veio. Alto, calmo, voz serena que amoleceu até o síndico. E, com objetividade, esclareceu:

    — Antes de condenar um cão, é preciso ouvir e entender sua relação com as pessoas.

    Conversou com todos. Sentou-se com a vizinha do 304, que confessou, com os olhos marejados, que desde a pandemia Nietzsche se tornara sua única companhia.

    O adestrador ensinou técnicas simples, eficazes. Propôs uma atividade inusitada: o “Dia do Silêncio Consciente”. Um domingo inteiro em que todos se comprometeram a minimizar ruídos, inclusive o som dos próprios julgamentos. Para surpresa geral, Nietzsche latiu bem menos nesse dia.

    Aos poucos, os latidos diminuíram. Mas o curioso foi o que aconteceu com os moradores: passaram a se cumprimentar, sorrir no elevador, trocar receitas. “Harmonia Entre as Espécies” virou o novo nome do grupo no Whatsapp.

    Nietzsche, o valentão, virou mascote do prédio. O dogue alemão, antes temido, tornou-se querido entre os adolescentes. A criança atípica do 302 começou a interagir, ainda que timidamente, com os demais. Ganhou até um desenho feito por um vizinho artista: dois cães — um grande, outro pequeno — dividindo o mesmo osso em paz.

    O treinador seguiu, enfim, para uma nova missão, em outro condomínio, com um sorriso tranquilo e uma ideia na cabeça:

    — A mente dos cães é simples. A das pessoas, nem tanto. Mas com paciência, sensibilidade e respeito, todo mundo pode aprender a conviver. Incluindo os yorkshires e os cães gigantes.

    No fim, os conflitos não eram sobre latidos. Nem sobre o tamanho dos cães. Eram sobre convivência, intolerância e o difícil exercício de viver em comunidade. Como bem escreveu Nietzsche — o filósofo, não o cachorro —, “aquele que luta com monstros deve tomar cuidado para não se tornar um deles”.

    E talvez fosse justamente isso: enquanto todos apontavam para o cão alheio, esqueciam de encarar o próprio reflexo nos espelhos do elevador. Entre cães, humanos e suas frágeis ideias de silêncio, superioridade e ordem, sempre há espaço para um pouco mais de empatia, escuta e camaradagem, especialmente entre vizinhos.

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