Carnaval

  • A falta que faz

    Falta-nos um Nobel. A tão cobiçada e destacada honraria máxima de que ainda carecemos. Nós, o país mais exuberante. O país do samba, do Carnaval, do futebol. Temos de tudo um pouco e fazemos de tudo um pouco. O Brasil é um mundo particular que ninguém jamais decifrou completamente. Além disso, como sabemos, Deus é brasileiro. Só o resto do mundo ainda não percebeu. A Academia Sueca, então, nem se fala, parece querer constantemente desviar da terra de Deus. E nós continuamos sem um Nobel.

    Conquistamos cinco copas. Somos os maiores da história do futebol. Não interessa se estamos numa fase ruim ou se a Argentina nos humilhou na última partida, as cinco taças são nossas, ainda que uma delas tenha sido roubada. Isso, de fato, pouco importa. O mundo esteve literalmente aos nossos pés em 58, 62, 70, 94 e 2002. E, vamos combinar, a única coisa mais bonita do que as cinco estrelas na nossa camisa é imaginá-la com seis. A Olimpíada, que por muito tempo foi o nosso Calcanhar de Aquiles, conquistamos logo duas em sequência para mostrar quem é que manda. A primeira, por acaso, foi aqui no Brasil. Um capricho dos Deuses do futebol. Agora também voltamos a ter o melhor jogador do mundo. Tudo nos conformes. Do 7 a 1 nem lembramos direito, foi um vacilo momentâneo.

    Mudemos o foco por um instante. O Brasil tem as maravilhas da natureza. Me desculpem os europeus, os americanos do norte e o baixo clero dos países do médio oriente. Nós temos o Pampa, o Cerrado e o Pantanal. Nós temos a Amazônia e o litoral mais bonito do mundo. Nós temos as Cataratas do Iguaçu e o Cristo Redentor. Nós temos os Lençóis Maranhenses, o Monte Roraima e a Chapada Diamantina. Nós temos o Delta do Parnaíba, as Piscinas de Maragogi e a Gruta do Lago Azul. Nós também temos as cidades históricas de Porto Seguro, Ouro Preto e São Miguel das Missões. Salvador, São João del-Rei e Morretes. Petrópolis, Olinda e Manaus. E muito, muito mais. Não fosse a inflação um tanto descontrolada e o preço caloroso da gasolina, estou certo de que a população do país inteiro visitaria todas essas cidades. O turismo é claramente um dos nossos pontos fortes, mas é sempre bom ficar atento com carteiras, celulares e afins.

    Além dos conhecidos festejos carnavalescos de início de ano, invejados silenciosamente pelos países mais introvertidos, por assim dizer, temos também o Festival de Parintins e a Semana Farroupilha. Cada um com uma música, uma comida, uma história própria. Nós somos o país do forró, do baião e da bossa nova. Do xote, do frevo e do maracatu. E, apesar de estarmos novamente com um ex-presidente preso, no geral, somos boa gente.

    Agora temos um Oscar para chamar de nosso. Quem diria, hein? Até um Oscar conquistamos, numa festa digna de final de copa, com transmissão simultânea em várias capitais. Somos realmente bons na comemoração das nossas conquistas. Quem não lembra das cambalhotas do Vampeta na rampa do Palácio do Planalto?

    De fato, não sei de onde tiramos coragem para viver assim, tão bem, tão plenamente, sem um prêmio Nobel. Até me envergonho um pouco quando penso nisso durante as caminhadas matutinas. Talvez, se tivéssemos um Nobel, poderíamos tentar evitar o provável colapso financeiro dos próximos anos, sobretudo na Previdência. Talvez, se tivéssemos um Nobel, teríamos evitado o mensalão, o petrolão, os mandos e desmandos na pandemia, o desmatamento na Amazônia, os dólares na cueca, as fraudes no INSS. Pois é. A falta que faz.

    O curioso é que o prêmio Ig Nobel não nos falta. Aliás, até nos sobra. Temos oito. E Nobel que é bom, nada! Deus, que, sendo brasileiro, tem piedade de nós, desprovidos de Nobel, também perdoa, por certa conjuntura divina, a Academia Sueca, que não pousa os olhos sobre nós, os brasileiros, seus tão estimados conterrâneos. E Deus sabe o que faz. A Academia Sueca, por sua vez…

    E olha que nem estou falando das injustiças. Ao que tudo indica, Oswaldo Cruz deveria ter sido o primeiro laureado em terras tupiniquins. Não foi, entretanto. Também esqueceram do Carlos Chagas e do César Lattes. É desolador. Mal posso imaginar como seria avultado nosso orgulho patriótico com um prêmio Nobel. Só de pensar já fico alvoroçado. Não que precisemos de avultamentos dessa natureza, óbvio, e nem precisamos provar nada para ninguém. Mas, particularmente, não entendo como, na literatura, Guimarães Rosa não recebeu tal distinção. Nem ele nem a Lygia, a Clarice, o Cony e o Jorge Amado. É realmente constrangedor, Academia Sueca. Mas deixemos os traumas para outra hora.

    Como dizia, Deus é brasileiro e nos ensinou a não desistir. Então, ainda guardo uma fagulha de esperança de que, em 2025, o Brasil seja finalmente contemplado com um prêmio Nobel. O pesquisador Miguel Nicolelis é sempre um ótimo candidato. Há também outros grandes nomes da ciência no país, como Marcelo Labruna, Fernando Cunha e Carlos Barrios. Alô, Academia Sueca, chegou a nossa vez, não?

    Caso nenhuma dessas opções esteja à altura de tal distinção, tenho certeza de que temos ainda muitos candidatos ao Nobel de economia, visto que as livrarias estão empanturradas de publicações contendo infalíveis dicas para o leitor sair do salário mínimo diretamente para o bilhão em meses, às vezes em semanas, quiçá em horas. Dependendo, claro, de pormenores insignificantes. As cartas estão dadas, Academia Sueca.

    Por fim, com um Nobel poderemos deixar o ostracismo e nos tornar uma potência mundial. Num futuro não muito distante, lembraremos aos risos do tempo em que sustentávamos a síndrome de vira-lata. Abandonaremos, enfim, esse vice-campeonato moral para nos tornarmos golden retrievers, do alto da sua elegância despreocupada. No entanto, para isso, ainda nos falta um Nobel.

  • Nesse Carnaval vou me fantasiar de Eunice Paiva

    O Carnaval tem raízes em festividades pagãs, como as Saturnálias romanas, nas quais os papéis sociais eram temporariamente invertidos e as pessoas se entregavam a banquetes, bebidas e celebrações sem restrições.

    Celebrado em inúmeros países até os dias de hoje, cada local tem uma maneira própria de celebração, misturando influências históricas, folclóricas e contemporâneas. O Carnaval de Oruro, na Bolívia, por exemplo, tem forte influência indígena e religiosa e a “Diablada” é a dança mais emblemática, representando a luta entre o bem e o mal. Em Cádiz, na Espanha, a festividade se destaca pela sátira das “comparsas” e “chirigotas”, que apresentam canções e paródias sobre política e cultura.

    Já no Brasil, a “folia” (palavra que significa loucura, diversão frenética) de Carnaval é essencialmente um evento que une pessoas de diferentes classes sociais, promovendo um senso de comunidade e pertencimento. Ao som do samba, do frevo e maracatu, é um espaço de manifestação artística e política, onde a alegria também pode servir para questionar e criticar livremente a sociedade.

    O tradicional uso de máscaras e fantasias simboliza essa liberdade, ajudando as pessoas a se sentirem mais à vontade portanto uma identidade diferente por alguns dias.

    Por isso mesmo, escolhi para esse ano me fantasiar (mesmo que só espiritualmente) de Eunice Paiva.

    Caracterizações de Fernanda Torres no figurino vermelho de bolinhas que ficou emblemático em Tapas e Beijos, fantasias da estatueta do Globo de Ouro, e outras criações humorísticas em torna das frases que ela pronunciou nas recentes entrevistas viraram febre de brasilidade nesse Carnaval de 2025.

    Compartilho da alegria, torcida e expectativa a respeito da premiação do Oscar nesse domingo e da força que uma manifestação de rua tão genuína pode trazer para recuperar o orgulho do cinema brasileiro, com o humor e criatividade típicos de nosso povo. Mas… escolhi me fantasiar de Eunice Paiva. Acho que a euforia do prêmio não pode ofuscar a importância da tragédia vivida pela família Paiva, reportada com tanta maestria e delicadeza por Walter Salles em Ainda Estou Aqui. Não pode deixar de homenagear a resiliência, coragem e dignidade com que essa mulher tratou o esfacelamento de tudo aquilo que lhe trazia segurança, alegria e conforto.

    Por isso mesmo, nesse Carnaval, ao ler os noticiários nada promissores em relação ao extremismo que está se configurando ao redor do mundo, vou posar de Eunice Paiva e dizer… Sorriam!

  • Carnavais

    Admiro o carnaval.

    A espera, o frenesi, os preparos do corpo — regimes, bronzeamentos, fortalecimentos. A rotina dos exercícios e treinos; a dedicação da passista em horas e horas de ensaios; o tratamento e implante de cabelos, cílios e o que mais puderem. A entrega do ritmista, a criatividade dos sambistas, as costureiras e suas fábricas de fantasias e adereços. Tudo isso compõe esse evento grandioso.

    Vou falar… admiro mesmo! Mais do que isso: fico perplexa.

    O carnaval me causa espanto… ou será que sou eu a própria estranheza?

    Como assim, não ser apaixonada por essa festa impressionante?

    Ignorar essa extraordinária celebração?

    Não, isso não deve ser normal!

    Volto no tempo, na minha meninice. Quem sabe lá eu tenha me encantado com uma serpentina ou com um brilho de purpurina no rosto… talvez uma sapatilha dourada, um saquinho de confete.

    Vasculho minhas lembranças, tento encontrar um sinal, uma pista… talvez o barulho de um tambor, o gemido de uma cuíca, a luz e o brilho daquele que é considerado “o maior espetáculo da terra.”

    Que besteira! Fui criança de cidade do interior, onde os bailes de carnaval eram exclusividade dos associados. Ainda assim, talvez tenha me assustado com a irreverência de um palhaço ou com algum moleque de máscara horripilante, saída dos gibis de terror.

    Por acaso, alguma mãe de coleguinha me terá convidado para um matinê ou bailinho vespertino?

    Carnaval. Essa festa tão linda, tão sonora, tão colorida, um evento grandioso, hipnotizante e inesquecível!

    Desisto. Procuro e não encontro — nem no passado longínquo, nem em lembranças esparsas e menos ainda nesta fase da vida — nada, nenhum sinal que justifique minha total incapacidade de ser tocada pela grandiosidade dessa festa.

    Ainda assim, desejo àqueles que aguardam o ano todo pelo “Grito de carnaval” que aproveitem a época, mas lembrem-se: ano que vem tem mais!

  • MARCHINHA

    “O teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata, mulata, eu quero o teu amor” (Lamartine Babo, Irmãos Valença)

    A marchinha de Carnaval faz parte da história da música brasileira e, por mais surpreendente que pareça, é mais antiga que o samba. Quando Donga registrou sua composição “Pelo Telefone”, oficialmente considerado o primeiro samba da história, a marchinha “Ô Abre Alas” (de 1899), de autoria da maestrina Chiquinha Gonzaga, já contava com 17 anos de idade!

    A partir de 1920, o ritmo reinou absoluto no Carnaval por quatro décadas. Apenas a partir da década de 1960 foi destituído nos desfiles das escolas de samba pelo samba-enredo. Mais recentemente, perdeu espaço também nos blocos de rua para o axé e canções descartáveis que mal duram até a próxima estação.

    Permanece, todavia, com suas letras insolentes, divertidas e de fácil memorização, na lembrança de todos. Traduz o espírito brincalhão do nosso povo. “A marchinha é um gênero marcado pela crônica de época e pela malícia”, diz o musicólogo Ricardo Cravo Albin, autor do famoso dicionário musical que leva seu nome.

    Devido a suas características desaforadas, as marchinhas passaram a ser alvo da intolerância decorrente da onda do politicamente correto que tem assolado nossa cultura. Outrora consideradas ingênuas, agora vêm sendo banidas do repertório de diversos blocos carnavalescos para não ferir o brio de grupos que se sentem oprimidos.

    Rodrigo Faour, pesquisador da MPB, desaprova: “Sou contra o patrulhamento excessivo em cima das músicas de carnaval. Elas são um patrimônio brasileiro, não podemos botar uma carga tão pesada em cima delas. Existem palavras que não são aceitas hoje, mas, na época, eram faladas de maneira não pejorativa”. O renomado antropólogo Roberto DaMatta acrescenta não ter sentido os organizadores dos blocos alegarem que as músicas são discriminatórias: “A maneira de pensar era diferente”.

    Algumas mais recentes trazem conotação sexual e de fato são um tanto preconceituosas, como é o caso de “Cabeleira do Zezé”, “Maria Sapatão” e “A Pipa do Vovô”, disseminadas por Chacrinha e Sílvio Santos.

    O problema é que a perseguição extravasou esse nicho de apresentadores televisivos capciosos e respingou em compositores tradicionais como Haroldo Lobo, Braguinha, Ary Barroso e Noel Rosa, nomes emblemáticos da cultura nacional, alcançados pelo crivo jacobinista destinado a expurgar da arte de qualquer ranço de irreverência, numa cruzada moralizadora semelhante à dos tempos do AI-5.

    Sob acusação de racismo, foram alvos centenas de canções que se referiam a ‘mulata’, palavra presumidamente derivada de ‘mula’. Essa interpretação depreciativa não é consensual, havendo uma corrente que sustenta que o vocábulo deriva do árabe ‘mowallad’ (filho de pai árabe com mãe de outra etnia).

    Seja como for, é lícito extirpar da linguagem um termo popularizado, sabendo-se que seu reiterado uso coloquial consagrou uma nova conotação sem qualquer vínculo com a raiz etimológica hipoteticamente espúria?

    O cronista Ruy Castro assim se manifesta: “Das dezenas de marchas que falam da ‘mulata’, muitas foram compostas por Assis Valente, Wilson Baptista, Haroldo Lobo, Zé e Zilda, Haroldo Barbosa, Monsueto etc. etc., e lançadas por cantores como Orlando Silva, Sílvio Caldas, Aracy de Almeida, Carmen Costa, Cyro Monteiro, Moreira da Silva, Jorge Veiga, Ângela Maria etc. etc. Todos mulatos. E não viam nenhum problema nisso.”

    Nem o insuspeito Caetano Veloso escapou de constar no Index Prohibitorum por referir-se em sua música “Tropicália” aos “olhos verdes da mulata”.

    Mas a principal vítima da cruzada foi a consagrada “O Teu Cabelo Não Nega”, a mais famosa composição de Lamartine Babo, eleita pela Revista Veja a terceira maior marchinha de todos os tempos.

    Além do uso da condenada palavra ‘mulata’, os atentos patrulheiros revisionistas se fixaram no verso “mas como a cor não pega” (em que ‘pega’ teria o sentido de transmitir a ‘maldição’ da cor negra). O jornalista Tárik de Souza, um dos maiores estudiosos da nossa música, rebate alegando que o ‘pega’ em questão mais possivelmente significaria ‘importa’, o que conferiria ao verso uma acepção antirracista, ao contrário do que propalam seus críticos. De fato, não parece razoável supor que, com seu fino humor, Lamartine externasse receio de ser ‘contaminado’ pela cor da mulata que tanto exaltava.

    Um país tão pobre de referências culturais não pode se dar ao luxo de submeter seus ídolos consagrados a práticas inquisitoriais, sob o discutível pretexto de reparar eventuais injustiças históricas.

    “A volta da censura, mesmo que por razões consideradas nobres, é algo assustador. O carnaval tem sempre um sentido anárquico e caricatural”, arremata Tárik.

    (Adaptado do original MARCHA À RÉ, publicado em fevereiro de 2021)

  • Sobre não saber

    Chegou a hora de escolher o esmalte a ser usado amanhã para o ensaio técnico da minha escola de samba, a verde e branco, Imperatriz Leopoldinense. Parece uma questão tosca, sem relevância social, mas para mim não é. Imagino, inclusive, que para vocês, leitores, seja uma situação desprezível, o que não diminui o poder de impacto da maldita dúvida no meu dia: verde-claro com glitter ou verde-bandeira? Postei a questão no grupo de amigas do zapp. “Escolha qualquer um”, disse uma amiga. “Quem vai ver sua unha no meio da multidão?”, argumentou outra querida. “Não perca tempo com isso. O importante é estar lá”, falou a mais objetiva. 

    Enquanto isso, na minha cabeça, batucava a dúvida: o claro divertido ou o escuro classudo?

    As manifestações no grupo não pararam por aí. Mais amigos queriam resolver o meu problema, cessar a minha angústia: “No casamento do meu filho, fiquei na dúvida entre branco e nude e acabei usando o rosa.” “Pior sou eu, não posso usar nenhum esmalte porque estou com unheiro.” “Eu nem esmalto mais a unha, tenho alergia. Larguei pra lá.”

    De fato, não posso elevar a minha dúvida à categoria de catástrofe ou considerá-la um problema real diante de tantas coisas sérias no mundo: fome, guerras, violência. Acontece que, para uma coisa nos atormentar, ela não precisa de aval ou relevância social. Porém, somos mestres em julgar a dimensão e profundidade dos problemas dos outros, usando a régua das dores existenciais para medir e validar a angústia de cada um.

    À parte as boas intenções, quem me ajudou mesmo foi a única que não apresentou soluções nem exemplos pessoais sobre o tema. Apenas lançou: 

    — Posso ajudar de alguma forma?

    Tanta empatia implícita nessa pergunta…

    Escolhi o verde-claro. Acho que já o queria desde o início. Mas a conclusão mais importante foi perceber que a dor da escolha mora na dificuldade de perder. Se escolhemos A, perdemos B e vice-versa.

    Resolvi o impasse quando mudei o enfoque. Não era qual eu deixaria de usar, mas qual eu não abriria mão de ter.

Botão Voltar ao topo

Adblock detectado

Desative para continuar