crônica de sábado

  • Boa pergunta

    As galinhas (raízes, autênticas) botavam o ovo e cacarejavam. Umas mais que as outras.

    Saíam pelo quintal em alto e bom som espalhando o feito.

    Passavam em meio às colegas solteiras, aos galos jovens e imponentes e ao preferido — aquele com quem, há poucos dias, haviam ciscado lado a lado, enquanto ele a cortejava disfarçadamente.

    Quanto à galinha choca e seus pintinhos, ela era evitada ou ignorada.

    Enfim. Cacarejava e desfilava, indo de um lado a outro.

    Comunicar era o objetivo.

    Essas eram as que tinham casa, comida, vida mansa.

    Alguém sabe porquê? Eu não!

    E lembro-me também das galinhas que escondiam-se em pequenas moitas de plantas, matos, folhas secas de canaviais ou qualquer canto que pudesse servir de esconderijo, para fazer os ninhos e botar seus ovos.

    Ahhh! E a alegria do menino ou menina ao achar esse ninho e correr para contar a todos? Por uns momentos eles se tornavam importantes, iam à frente mostrar o achado, aí o pai, a mãe ou o adulto se abaixava e “solenemente” analisava os ovos. Que poderiam ser comidos ou deixados para chocar e dali a alguns dias aumentar o numero de galináceos em nosso quintal.

    A poedeira oculta, que em silencio se afastava, botava seu ovo e voltava discretamente, sem um cacarejo, não era conhecida, nem exibida, nao tinha melhor ração e nem cuidado extra. Na mesa, a cesta de ovos sempre cheia…

    Pois então, “do nada” me veio essa lembrança, e não busquem o seu significado.

    Ela existe apenas na memória dos recordadores e a ela se dá o nome de memória afetiva.

    B’ora comer uns ovos?


  • Dica de milhões

    Algumas coisas que acontecem no meu dia a dia são tão estapafúrdias que me levam a patinar na velha dúvida: falo ou calo? 

    Minha primeira opção, nessas ocasiões, é calar, sobretudo quando aquilo que pretendo dizer é óbvio e deveria dispensar apresentações. Por outro lado, se, mesmo sendo óbvio, a outra parte insiste em ignorar os limites da razoável convivência, entendo que o irmão de raça carece de uma interpelação. 

    Refiro-me aqui, mais exatamente, ao inferno que se tornou a espera em qualquer recepção, consultório, fila, transporte público, restaurante ou praia com o advento do celular sem o uso e fone.

    Não bastasse ter que disputar o espelho dos banheiros públicos e academias pelo desesperado self da humanidade, agora o coleguinha da cadeira ao lado oferece, independente de hora, local e ocasião, um vasto repertório de vídeos (entrevistas, orações, piadas, podcast) no mais alto volume.

    A primeira coisa que me pergunto, nessas situações, é se a pessoa tem ciência de que não está meditando sozinha nas montanhas do Nepal.

    Não sei se por carma ou azar, na última quinta-feira, o espaço, equivocadamente, chamado de coletivo, foi cenário de mais um desastroso encontro meu com um exemplar dos tempos modernos. 

    Eu estava numa recepção de consultório aguardando minha consulta quando, sem aviso prévio, uma criatura saca seu celular do bolso e decide ouvir, em fartos decibéis, vídeos do TikTok. Diante da falta de noção do querido, optei por usar a linguagem simbólica dos gestos. Olhei para a apostila que estava em minhas mãos (sim, eu estava estudando), depois para ele, para o celular dele e novamente voltei a atenção para a apostila. Vi que ele notou minha desaprovação, mas seguiu incólume. Foi nessa hora que decidi utilizar uma estratégia aprendida com uma amiga umbandista. Segundo ela, nessas horas, o melhor é usar a maldita intolerância religiosa das pessoas a nosso favor. Colocar um ponto de Exu para tocar e ver as pessoas se afastarem feito cupim na presença da luz. Assim fiz: “Auê Exu, ninguém pode comigo. Eu posso com tudo. Lá na encruzilhada, ele é seu Exu.”

    Como num passe de mágica, o respeitável senhor foi catar seu destino e a recepção voltou a ser um espaço habitável.

    O que essa situação corriqueira denuncia é o crescente sucateamento do espaço público em prol da soberania dos mimados e narcisistas e o envenenamento do coletivo pela necessidade de uniformização das escolhas, preferências e crenças.

    Ainda bem que existem pontos de Exu para nos proteger.


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