Crônica de Sexta

  • Aos sonhos, afinal

    Acordou mal. A noite foi ruim. Um sonho, o único que ele lembra, foi o responsável pelo seu estado atual.

    Um sonho ruim onde a dúvida se tornava certeza. Nada mais dela na sua vida, nada mais com ela ou sobre ela. Nada mais.

    Passou o dia angustiado com a mera lembrança do sonho. Piorou quando recordou que à luz da psicanálise o sonho pode ser a manifestação de desejos inconscientes. Pode, no condicional, mas por conta do estado de angústia em que se encontrava tornou-se certeza.

    Desejo é sempre ligado a algo que se quer, lembrou ele ao longo do dia. O sonho revelador seria isso então, um desejo?

    Mas por que sua mente lhe pregara essa peça? Por que desejar o que não nos faz bem?

    Desejar ela longe de si, seria o desejo oculto guardado no fundo de seu inconsciente que nas horas silenciosas da madrugada emergia suave mas decidido? Mas por que essa certeza de não a ter mais seria de fato algo ruim?

    Talvez precisasse assumir para si mesmo que nada mais de bom haveria de vir dela, ou melhor da relação com ela. Projetar uma reconciliação era fantasia. A distância talvez seja melhor do que a proximidade?

    Sonhar com a certeza, disse para si mesmo, não era de todo ruim. Melhor que viver na dúvida.

    A certeza ruim dói uma vez, ou duas. A dúvida imobiliza eternamente.

    Afinal, disse para si quando voltou para casa, o sonho não teria trazido o desejo de algo ruim mas sim da mudança necessária. Adiada por razões várias, da falta de coragem à esperança fútil. Mudança necessária? E, quem sabe, mesmo bem vinda?

    Sim, definitivamente.

    Nada mais de buscar a mensagem dela que nunca virá, a atenção que ele não recebe mais dela. Livre, afinal. Liberto por vontade própria. Livre para dar outro rumo à sua vida.

    Naquela noite deitou-se ansioso, reconciliado. Que venham os sonhos, afinal.

  • Cobra no ventilador

    Juro, mas deu cobra no ventilador da minha avó. Mas esse negócio aconteceu lá em Minas, terra da sua avó? Que Minas que nada, isso foi com minha outra avó e aconteceu no Rio de Janeiro, lá no Recreio dos Bandeirantes.

    Ah, que é isso? No Recreio? Zona Oeste do Rio, selvagem desse jeito? Como é possível? Porque naquele tempo era tudo mato não era como hoje, um bairro urbanizado. Era uma casa aqui, outra acolá, a da minha avó, mais outra lá longe e por ai até aonde a vista alcançava.

    Nossa parece estória passada na roça. Mas na minha infância, a roça era o Recreio. Tá bom e o negócio da cobra. Sim, foi minha avó quem descobriu. A cobra estava enrocada no motor de um ventilador pequeno de plástico, azulzinho, acho que a marca era Faet.

    Sim eu lembro, pequeno e tinha um motor forte.

    Esse mesmo. Bom a cobra estava dentro do ventilador. Exato e o ventilador estava na sala. Pera aí, na sala? Como foi que a cobra entrou lá? Não lembrei de perguntar a ela.

    Muito engraçadinho. Continua.

    Bom ai foi um drama. Minha avó pescou o ventilador com uma vassoura e pôs do lado de fora da casa. Aquela tensão no ar, eu e outras crianças de olhos arregalados esperando o desfecho da situação e minha avó com aquela expressão de alguém corroída pela dúvida. Por que?

    Porque a única solução que ela via para resolver o problema era tacar fogo no ventilador. Ai matava a cobra. E minha avó perdia o ventilador. Sério? Sua avó estava em dúvida por que ia perder o ventilador?

    Sério. Minha avó tinha muito respeito pelo dinheiro que meu avô ganhava, eram outros tempos lá nos loucos anos 70 do século XX. Sei, claro, mas e aí?

    Ai aconteceu o inacreditável.

    A cobra saiu do ventilador? Não, surgiu um sorveteiro. Sorveteiro?

    É, um cara com um isopor no ombro cheio de sorvete. Isso era comum. Surgiu do nada? Isso mesmo, do nada. O cara apareceu no portão vendendo sorvete. Minha avó gritou que não queria nada porque tinha uma cobra no ventilador. E o cara?

    Como se fosse a coisa mais natural da face Terra ter uma cobra no ventilador ele nem discutiu nem perguntou nada. Mas disse que se minha avó quisesse ele pegava a cobra sem estragar o ventilador.

    Sua avó topou na hora, pelo visto.

    Claro. Prendeu o Nero, o primeiro pastor alemão que ela teve, e deixou o cara entrar. Ai foi um momento de raro sangue frio. O sujeito pegou um alicate e com ele bateu de leve na carcaça do ventilador. E aí?

    A cobra foi espiar o que era e ele num gesto rápido apertou a cabeça dela. Ponto final. No duro? No duro. O cara puxou o corpo morto da cobra, que minha avó mandou queimar e incensar a casa por fora para espantar as outras cobras.

    E o sorveteiro? Vendeu o isopor inteiro para a minha avó. Olha com todo respeito isso está parecendo conto de realismo fantástico. Por que?

    Como é que surge do nada um sorveteiro naquela roça que era o Recreio naquela época? Você não acha isso possível? Ah bem sei lá, é estranho. Depois, que fim levou o sorveteiro. Foi embora, ora.

    E quem deu a idéia de usar a cobra para defumar a casa da sua avó por fora? Acho que foi o sorveteiro. Ah é? Sei tô achando que esse sorveteiro era outra coisa. O que por exemplo?

    Ah não sei, uma entidade, um orixá, um anjo da guarda, um protetor espiritual.

    Posso te falar uma coisa? Pode. Larga do copo ou me diz o que você anda bebendo porque também quero viajar.

    Xau.

  • Da glória ao fracasso

    Impressionam-me os casos, muito noticiados pela mídia, de pessoas que eram famosas, endinheiradas, e depois perderam tudo. Geralmente são artistas ou ases do esporte. Sabe-se que o sucesso é fugaz, mas há uma diferença entre sair dos holofotes e mergulhar na escuridão do anonimato ou nos confins da miséria.  

    Recentemente se noticiou o caso de Mário Gomes, que teve a mansão leiloada para pagar dívidas trabalhistas. Desconsolado, o ator revelou que estava por enquanto na casa de uma filha e não tinha ideia de onde ia morar – talvez “embaixo de uma ponte”!  

    Há muitos outros casos. Entre eles está, por exemplo, o de Regininha Poltergeist; depois da fama nos anos 1990, ela perdeu  o que havia conquistado e chegou a morar num posto de gasolina. Outro é o do ator César Macedo, que atuou na “Escolinha do Professor Raimundo” e, fora da TV, enfrentou muitas dificuldades financeiras. Veio a morar nas ruas depois que a esposa morreu.

    E quem não se lembra do ator Rubens Sabino, que fez o papel de Neguinho  no filme “Cidade de Deus”? Depois de abandonar a carreira, ele chegou a viver na Cracolândia, em São Paulo, por cerca de quatro anos.

    Muitos perdem seus bens e ficam mesmo sem ter onde morar. Caso não sejam amparados por um algum parente generoso, têm que apelar para a generosidade dos transeuntes. Na melhor das hipóteses, passam a vender cachorros-quentes, bombons ou água para sobreviver.   

    Se a ambição maior deles é galgar a escada da fama, o que os faz descê-la de forma assim melancólica? A explicação comum, e um tanto óbvia, é que não pensam no futuro. Deslumbrados com os aplausos e paparicos dos fãs, esquecem que essas manifestações passam e com elas o dinheiro que lhes permite o conforto de uma boa vida.

    Alguém já disse que, a ter e perder, é preferível nunca ter tido. A memória dos bons tempos dói mais do que a tristeza por eles nunca terem chegado. Enfim, não se perde o que não se teve.

    Outros atribuem a derrocada à fatalidade, que escolhe algumas pessoas para nelas imprimir negativamente a sua marca. Mas fatalidade não é destino. Para que nele se transforme, é preciso que a vítima de algum modo aceite o que lhe é infligido, ou vá ao seu encontro.   

    Talvez os que descem do chamado “pedestal da glória” façam isso por não se julgarem aptos a lá estar. Talvez procurem a obscuridade por não se acharem merecedores de ficar sob a luz. Nesse caso não é o descuido com o futuro que os leva a tal situação, mas algum tipo de prisão ligada ao passado.   

    Há quem ache que não faz jus ao sucesso que a vida lhe concedeu. Por alguma obscura falha interior, considera injusto o que alcançou na arte, na profissão ou mesmo nas relações sociais. Trata então de “reparar o engano”, infligindo-se um fracasso que compensa o que por equívoco lhe teria sido dado. A alma humana tem desses mistérios.

    Essa tese psicológica não se aplica a todos os casos e pode ser contestada. Mas não deixa de nos fazer pensar. Só ela explica que chegue ao declínio alguém que tanto lutou para alcançar o apogeu.

  • Retorno às névoas perfumadas

    Chegou antes da hora marcada. Uns minutinhos somente mas tempo suficiente para se acomodar no café. Escolheu uma mesa na parte externa que dava para o jardim interno da ala elegante do shopping. E ficou ali.

    Marcou o encontro com uma amiga de anos e escolheu aquele lugar para agradar a ela e, sendo sincero, também a si mesmo. A atmosfera do ambiente fazia seu senso estético se manifestar contente. A idéia do encontro era marcar o fim de dois anos de isolamento forçado. Eles não estavam desatualizados a respeito dos respectivos assuntos particulares e comuns. A internet ajudara bastante a manter as conversas constantes. Porém, faltava a proximidade física.

    Os dois encaravam aquele encontro como sua celebração pós pandemia. A volta ao mundo real. Mas o que ela não sabia é que para ele havia um algo a mais por trás daquele encontro. Sem alarde e em segredo ele decidira começar naquele dia um ritual íntimo que ele chamara de retorno às névoas perfumadas.

    Das ausências provocadas pela pandemia em sua vida uma das mais significativas foi a falta de aspirar perfumes. Conversar com as pessoas, manter um contato mínimo, pôde ser contornado com as webconferences. Mas sentir aquele aroma agradável especial, sem chance.

    Não perfume do vidro mas sim aquele cheiro perfumado que sobe das pessoas. Esse é insubstituível. Fica gravado na memória para sempre.

    E sua predileção era pelas fragrâncias que envolviam as mulheres. Sentia uma falta imensa de encontrar alguma mulher perfumada.

    Logo que tomou coragem para sair de casa, tentara um paliativo que era circular pela rua ou pelo shopping e passar pelas pessoas que emanassem nuvens perfumadas. Não dera certo.

    Tinha que entrar em contato com as mulheres para sentir de perto o perfume feminino. A química entre fragrância e a pele de cada pessoa era única, ensinava o senso comum e ele assinava embaixo com todas as letras. Sabia que não precisaria de muito para satisfazer seu olfato. O aperto de mão seria suficiente para trazer para perto de si a nuvem de aroma perfumado. Aspiraria profundamente arquivando na memória o cheiro suave e envolvente daquela névoa deliciosa.

    Aos poucos fora formulando em sua cabeça a idéia desse ritual íntimo. Não via maldade nem inconveniência em sua busca. Era um movimento puramente estético e sensorial, dizia para si.

    Nada abusivo ou ofensivo.

    Não se considerava invasivo, nem tarado ou pervertido. Apenas um apreciador desse aspecto sensorial do mundo feminino. Outra forma de justificar o que iria dar início naquele dia.

    Honestamente não tinha pretensão alguma em se envolver com ninguém. Bastava para seu prazer captar aquele aroma particular. O arrebatamento do encontro do perfume com suas narinas seria sem igual.

    Depois de muito pensar e pesar decidira passar a ação. Agora estava ali, prestes ao primeiro encontro de retomada do prazer sensorial provocado pelo perfume de uma mulher.

    Selecionara com cuidado quem seria sua primeira convidada e optara por uma amiga de longa data e apurado senso estético. Ela era um dos melhores exemplos de química perfeita entre perfume e pessoa. Não conhecia ninguém que combinasse tão bem com a fragrância daquele perfume de nome exótico.

    Portanto, para abrir os trabalhos seria com ela.

    Seus pensamentos foram interrompidos com a visão de sua amiga chegando. Ela caminhava devagar e sorridente. Ele se levantou sorrindo, aspirou o ar profundamente e pensou: seja bem vinda névoa perfumada.

    Crônica escrita originalmente em 5 de outubro de 2022

  • O cronista em caça

    O cronista é um caçador, não o homem que sai com sua espingarda a fim de conseguir algo para comer ou por pura diversão pela morte. É um animal eternamente faminto e em constante situação de caça. A todo momento, está em busca da sua próxima vítima, que alimentará a si e aos outros.

    Ser esse caçador é consequência de ser cronista.

    Onde estiver, estará em caçada. Não importa a situação, o momento ou o lugar. Qualquer um pode ser propício, todos são capazes de lhe oferecer uma nova presa. Ele sabe disso, está sempre à espreita. Diante de um alvo que se mostre, não titubeia; na primeira oportunidade, irá agir.

    Por onde passa, segue perseguindo algo, que os outros não veem e ele, talvez, ainda não saiba ao certo. Não sai de casa necessariamente com o intuito de executar o apresamento subsequente. Entretanto, para onde vá ou onde se encontre, o gênio de cronista está agindo dentro dele.

    Não é caçador apenas por escolha ou por aptidão adquirida, mas por uma condição intrínseca, ínsita ao seu próprio ser cronista. Ela garante o sucesso na localização do alvo de cada empreitada, seja mensal, semanal ou diária; por obrigação ou puro deleite.

    O predicado disso está na procura constante, mas também, por vezes, não deliberada. Está no instinto e nos olhos que só podem ser encontrados em indivíduos dessa espécie. Possui um olhar particular, olhar de caçador, olhar de cronista, essencial para produzir novas presas. Ele não enxerga como os demais. Seus olhos de rapina são capazes de transformar o mais insignificante elemento em uma preia útil.

    Esconder-se ou se esgueirar são desnecessários. Para o bote, precisa de ouvidos vigilantes, visão precisa e argúcia em seu faro. Todos muito bem treinados e experimentados. Assim como os seus gadanhos, que, se não forem cultivados e afiados cotidianamente pelo predador, tornam-se ineficazes no assalto.

    Essa fera não distingue suas vítimas. Qualquer um pode vir a ser o próximo. Tudo lhe interessa, desde o gesto mais inocente à hecatombe mundial, do último acontecimento político ao café que coa todas as manhãs. Não há nada que não esteja passível de se converter no seu mais recente abate.

    Mal tendo digerido o último, já se lança à procura do seguinte. Seu ímpeto jamais cessa, precisa estar sempre em caça. E ele estará.

  • Do anonimato e outras não-percepções modernas

    Em meio a muitos, me diluo. Entre tantos, sou menos que um. Passo despercebido aos olhares. Percebo que alguns olhos passam por mim. Eu noto esses olhares discretos. Olhos que não me registram em sua retina. Não focam em mim porque não me percebem. Minha imagem sumirá da lembrança deles antes que percebam. Lembrança efêmera, tão consistente quanto a névoa diáfana que sobe do cubo de gelo.

    Nenhum registro, nem o da minha voz. O que eu disse não foi escutado. Se fui ouvido, minhas palavras não ficaram na memória. E se algo permaneceu gravado, será atribuído a outra pessoa aparentemente mais presente.

    Os atos que fiz não deixaram rastros. Nenhuma pegada. Nada será atribuído a mim mesmo tendo feito algo. Minhas realizações não ecoarão na eternidade. Ou serão creditadas a outros. Sou capaz de ir antes, vasculhar e retornar acompanhado sem que percebam que lá estive. Completamente despercebido exploro sem ser notado. Vejo, sem ser visto. Nada de especial, perfeitamente mimetizado na paisagem.

    Mas estou ali. Estive ali. Ocupei espaço, me movimentei. Mesmo ignorado.

    Anônimo, eu sou.

  • Maria Lattes

    Eu tenho uma amiga que é Maria Lattes. Não, ela não é parente do Cesar Lattes, físico e prêmio Nobel ainda não reconhecido, e que dá nome ao serviço do CNPq que registra a vida acadêmica e profissional de pesquisadores e estudantes. Não sabe o que é CNPq? Pesquisa, vai, porque a estória que vou contar é outra.

    Como eu dizia, tenho uma amiga que é Maria Lattes. Não existe Maria Gasolina? Maria Chuteira? Então, ela é Maria Lattes. Só sai com alguém depois de checar o Lattes da criatura. Juro.

    O motivo faz sentido. Se tem um Lattes robusto é com certeza um homem inteligente, argumenta. Tem assunto, sabe dialogar, não é um bugre. Ou arú, como dizem no Pará, que é a mesma coisa que ignorante mas expresso com menos letras. E tambem uma espécie de sapo.

    Desisti de lembrar a ela que doutorado não é garantia de a criatura ser agradável. Ela sempre rebate e diz que ao menos é uma boa nota de corte social.

    Mas as vezes essa fissura no Lattes cria situações embaraçosas.

    Teve uma ocasião em que ela desmarcou o encontro porque o Lattes do cara era anêmico, palavras dela. Perguntei porque ela tinha marcado sem antes ver o bendito Lattes. Embaraçada ela me estendeu o celular com a foto do cidadão. O cara tinha bom fisico e sorriso confiante, pouco cabelo na cabeça é verdade, mas com mestrado em química em universidade europeia.

    Ela admitiu que marcou por puro entusiasmo inicial. Mas no exame do Lattes, dançou. Ela descobriu que ele estava há um ano sem publicar artigo. Preguiça intelectual é inconcebível, disse-me ela e completou o veto me informando que o cara declarou que na juventude tinha sido remador do Vasco. Ela bufou e, ao descartá-lo disse, Lattes anêmico e eu sou rubro-negra? Sem chance desse arú encostar em mim!

  • Para melhor agradecer

    Tenho lido críticas por parte de estudiosos da língua ao uso de “Gratidão” no lugar de “Obrigado”. Alegam que esse é um caso de pedantismo e não deve substituir a forma clássica com que nos acostumamos a reconhecer um favor. “Gratidão”, de fato, soa um tanto pomposo. É como se, com a escolha do substantivo, o favorecido quisesse enfatizar o sentimento e não simplesmente mostrar que dele está imbuído.

           – Já que você não pôde ir para o almoço, vim aqui lhe trazer uns sanduíches.   

           – Gratidão.

    Vejam que o beneficiário, ou beneficiária, não se limitou a mostrar-se agradecido(a). Evocou o que no ser humano é uma manifestação de grandeza de alma. Escolhendo o substantivo, leva o receptor a preencher todo um contexto elíptico (“Diante do favor que me fez, demonstro-lhe minha…”). Convenhamos em que isso torna o diálogo um tanto solene e pouco natural.   

    Risque-se então “Gratidão”, estou de acordo. Mas por que usar necessariamente “Obrigado”, e não “Grato”?  Este é sintético, franco, e não sugere nenhum prévio compromisso da parte do favorecido.

    No “Obrigado”, como se sabe, o contemplado “se obriga” ao dever da retribuição. Confessa-se compelido a retribuir o favor mesmo que não esteja sendo sincero. Fala mais por um dever social do que por um impulso espontâneo, que traduza o reconhecimento pelo benefício recebido.

    As coisas que fazemos por obrigação nem sempre são prazerosas. Quem já não ouviu de alguém a justificativa de que “fez porque foi obrigado”, ou seja, de que agiu de determinada maneira porque não tinha alternativa? Por que transferir essa possibilidade ao domínio das gentilezas e dos favores?

    Se “me obrigo” diante de alguém, tenho-o como credor ou juiz – tipos sociais que não nos acostumamos a ver com simpatia. O primeiro nos cobra, o segundo nos julga, e ninguém se sente à vontade quando submetido a tais injunções. 

    Sei que a sociedade se rege por obrigações de uns para com os outros. Mas não fica bem estendê-las ao domínio das reações espontâneas e afetuosas, como as que experimentamos diante de quem nos presta um favor ou concede uma graça. 

    Não vou deixar de dizer “Obrigado”, que já é um clichê e cujo esvaziamento semântico vem se estendendo ao plano morfológico. Tanto é assim que o vêm empregando tanto homens quanto mulheres (para desespero dos adeptos da linguagem neutra, que escolheriam “Obrigade”).

    Mas confesso que prefiro mesmo “Grato”, que não comporta nenhum dever retributivo e tem o mesmo étimo de “Gratidão”. Além do mais, sendo um adjetivo, enfatiza o estado do beneficiário e não a substanciosa grandeza do sentimento. Sem falar que ganha da concorrente pela extensão. Os manuais de estilo, como se sabe, recomendam o uso de palavras curtas, e por esse critério o dissílabo “Grato” é preferível ao polissilábico “Obrigado”.

  • Considerações de véspera sobre a véspera

    Véspera. Do latim vesperae. A tarde, ao cerrar da noite. Poeticamente, ao encerrar um ciclo solar. Dos pequenos, claro.

    Deriva também de Vésper, a estrela que não é estrela, visível a olho nu quando a tarde cai.

    Véspera é o território preferencial da ansiedade. Quando estamos a poucos passos ou horas daquilo que desejamos. Ou não desejamos mas é inevitável que venha até nós.

    Dizem por aí que a arte reside em controlar a ansiedade da véspera. Papo. Eu já tentei inúmeras vezes em mais de cinquenta anos de existência. Nesse tempo todo jamais – ou quase jamais – tive sucesso. Perco o sono que é uma beleza.

    Achei seis dicas para domar a ansiedade, reunidas pela BBC, British Broadcasting Corporation, fundada em 1922. As dicas da centenária BBC são:

    Monitore os seus pensamentos.

    Faça atividades físicas e pratique meditação.

    Encontre um propósito – nem que seja cuidar de seu animal de estimação.

    Veja o lado bom da vida (por mais que isso seja desafiador)

    Viva no presente.

    Busque terapia – na sexta posição e, a meu ver, como último recurso se os demais falharem. Ainda não cheguei aqui mas é bom ter a lista à mão. Se bem que umas linhas acima eu admito que perco o sono por ansiedade. É, acho que já é o caso de terapia. Mas vejo isso depois de malhar na academia.

    Voltando.

    Há sucessos que só duram até a véspera, como o reinado daquele rei destronado em batalha no dia seguinte. Ricardo III que teve insônia – olha mais um!!! – na noite anterior ao combate e foi assombrado por fantasmas daqueles que morreram por sua culpa. Ao menos é o que está na peça de Shakespeare que já se sabe é historicamente imprecisa. Um detalhe que não ofusca sua beleza dramática.

    Seguindo.

    Véspera da decisão daquele jogo em que o craque de um time foi para a farra e o outro foi atender ao chamado de um menino que acordou na emergência infantil do hospital chamando pelo seu ídolo. Foi na zona sul do Rio de Janeiro, no século passado, o craque prometeu ao garoto o título. E no dia seguinte, com gol de barriga cumpriu a promessa.

    No século XVII o pintor, arquiteto e artesão espanhol Alonso Cano fez uma obra em madeira intitulada “Véspera” que está na catedral de Granada, Espanha.

    O bem humorado Adoniran Barbosa tem um samba chamado “Véspera de Natal”. Termina em comédia pastelão com direito a ação do corpo de bombeiros

    “Véspera” é o nome do terceiro livro da escritora mineira Carla Madeira. Não li mas espiei uma resenha e acho que deve ser uma obra bem interessante. Vou em busca.

    Todo esse papo aleatório porque hoje, sexta-feira, 23 de setembro, é véspera. Mais uma de muitas, dirão.

    Mas para mim, a mais importante das vésperas. Quando o sábado chegar será festa. Contemplarei o momento e o viverei na boa companhia das estrelas da minha vida. Andaremos pelo mundo, plenos de alegria e em busca de diversão tendo aos ouvidos “Ode à alegria”, de Beethoven. Ao cair da noite, estaremos juntos, cansados e felizes.

    Agora, na véspera, tentarei inutilmente ao longo do dia domar a ansiedade. E a noite, só me restará achar o sono.

  • Considerações heterodoxas sobre a mulher ideal

    O mito da mulher perfeita foi criado pelos trovadores. Como a sociedade feudal era extremamente machista, e lá a figura feminina não decidia nada (a não ser, por exemplo, com que plantas aromáticas iria lavar os pés do marido), era necessário compensar essa inferioridade dando a ela contornos ideais. Nas cantigas, a mulher não é a escrava do cotidiano — é a senhora, ou a “mia senhor”. Esse tipo de culto se limitava ao plano da arte, claro; no dia a dia, a discriminação continuava a mesma.

    Do trovadorismo a imagem da mulher ideal passou ao Romantismo, que lhe acrescentou traços de santidade e morbidez. Em vez de “senhora”, ela virou santa, diva, anjo. Além de adquirir esse aspecto espiritualizado, apresentava-se pálida, clorótica, enfermiça. Freud a considerou uma representação da morte.

    Imagem da morte ou não, o fato é que os homens a perseguem. Como não a encontram, pensam que ela não existe. Engano. A mulher ideal existe, sim. Só não a encontramos porque, no momento em que a achamos, ela se torna real. Daí…

    É possível conhecer a mulher ideal mesmo que ela, acercando-se de você, não fale nada. Ou melhor: sobretudo se não falar nada, pois falando ela pode quebrar o encanto. Dirá coisas prosaicas como “nasceu uma espinha no meu rosto”, “ontem vomitei aquela buchada” ou “sou fã de Michel Teló”.

    Existe a teoria de que não achamos a mulher ideal porque, sendo o mundo muito grande, ela pode estar a milhares de quilômetros de onde vivemos. É possível que alguém more no Brasil e sua mulher ideal esteja, por exemplo, no Kuwait, namorando um sheik ou coisa parecida. A maioria dos homens tem que se contentar com a mulher viável, possível, ao alcance da mão (e de outras partes do corpo, é claro). Felizes são aqueles que nascem onde sua mulher ideal se encontra. Mas dizem que, quando isso acontece, alguma circunstância a faz mudar de lugar.

    Que características procuramos na mulher ideal? Compreensão infinita, tolerância absoluta, beleza perene. Ela deve ser irrepreensível, não repreensiva, e estar sempre pronta para o amor mesmo que tenha passado o dia à beira do fogão ou limpando o cocô das crianças.  

    Existe um teste simples para você saber se a mulher com quem se pretende casar é mesmo a ideal (embora haja algum paradoxo nisso; ninguém se casa com a mulher ideal. Ela existe para ser objeto de uma grande paixão). O teste é: não compareça a um compromisso combinado, saia com amigos em vez de sair com ela, esqueça quando ela aniversaria, diga que a sua mãe (e não ela) é a pessoa mais importante para você. Se ela quiser matá-lo depois de ouvir coisas como essas, é porque não se trata da mulher ideal. Se apenas botar uma cara feia, aproveite, pois você não vai encontrar outra que reaja de forma tão branda.

    A mulher ideal, como todos os mitos, foi criada para se constituir em referência. Lembra outro mito, o da “mulher fatal”, devoradora de corações, com quem a maioria das outras mulheres gostaria de se confundir. Não a rejeitemos, pois a função dos mitos é tornar suportável a realidade. Como, afinal de contas, se contentar com a mulher possível sem imaginar que em algum lugar do mundo se encarna aquela miragem? E que ela só não chegou até nós por um capricho da sorte?

  • Jogo contra jogo

    Era para ser xadrez. Um jogo elegante e íntimo. Como se as mentes por instantes se vaporizassem se entrelaçando no espaço entre os dois.

    Peças brancas e pretas, com dois reis impávidos e duas rainhas poderosas. Ao redor seus respectivos exércitos prontos para matar e morrer. Sem contudo faltar a admiração mútua, parte integrante da relação dos dois. Elegante.

    Mas de uma hora para outra vira pôquer. As rainhas e os reis permanecem mas as cores foram alteradas.

    Onde antes havia um par de monarcas agora existem quatro pares. As peças se transmutaram quase em sua totalidade em números, a exceção de mais uma figura humana.

    As três dimensões do xadrez foram trocadas pela bidimensionalidade do carteado.

    A tensão e o raciocínio do jogo aumentaram nos dois motivados pela competição. Antes havia observação e tentativa de entender as jogadas do outro. Agora instalou-se outra forma de raciocínio ditado pela sorte.

    Cada ação do passado, as cartas que se vão, ganha mais intensidade no presente como forma de prever o futuro. A capacidade de memorizar os descartes é fundamental para tentar prever o que ainda está por vir. Incontrolável. A sorte tomou lugar da ação consciente.

    Quase que instantaneamente vem a necessidade de camuflar suas intenções. É preciso mascarar quem é você. E o que antes era para ser um ballet suave a dois se torna a meticulosa arte de dissimular. Sai o passo sincronizado e entra o blefe.

    A verdade passou a ser rara. Duvidar tornou-se regra.

    As palavras se tornaram cartas que são posicionadas cuidadosamente de forma a manipular as reações da outra pessoa.

    Cada descarte, uma reação. Cada reação, um blefe, um engano.

    A intensidade da troca de cartas do jogo afasta da lembrança os movimentos suaves das peças deslizando no tabuleiro. Sem perceber, os dois se distanciam.

    O tempo apagou os rastros do caminho que eles percorreram entre o tabuleiro de xadrez e a mesa de pôquer. O caminho de volta, se perdeu. Onde um dia foram duas pessoas próximas e íntimas agora são somente mais duas pessoas. Sem nada de especial, nem nada que os identifique. Mais dois na multidão.

  • O CACHORRO ENCADERNADO

    Tenho uma relação antiga com o livro. E feliz. Eu acredito que ninguém é obrigado a ler tudo. O básico de cada um é o resultado de suas predileções e inclinações. Momentâneas ou não, ditadas por tantas coisas que reúnem um pouco de tudo que se chama você. Mutante por natureza, esponja que absorve e que despeja os excessos pelo caminho.

    O olhar muda com o tempo porque é forjado por nossa maturidade. Não ter idade para ler alguém é uma verdade, mesmo que incomode nossa vaidade intelectual. Acontece. As vezes você retorna ao livro mais adiante na sua vida. As vezes ele desaparece pelo caminho.

    Nossa estante de livros, a metafórica quero dizer, não é melhor nem pior do que a dos outros. São nossas escolhas, sem competir com ninguém.

    Na adolescência uns amigos se tornaram fãs do J.R.R. Tolkien e sua saga “O Senhor dos Anéis”.

    Eu descobrira Garcia Marques a partir de “Cem anos de solidão”. Nossos caminhos literários não se cruzavam.

    Eles insistiam em me dizer que eu não sabia o que estava perdendo por não conhecer a Terra Média. Lá em Macondo eu balançava minha rede e suspirava.

    Influências externas podem te empurrar na direção de uma estante. Ou te afastar dela. Mas o que dizer dos estalos que nos chegam de repente? Sabe quando nosso olhar examina a obra e uma voz baixinha nos diz “acho que vou experimentar esse ai”…

    Ser leitor é muito bom.

    Houve uma época da minha vida em que levava, por baixo, uma hora e meia de casa ao trabalho. E para voltar também, não tinha refresco.

    Pegava duas conduções e na primeira, a de uma hora, eu conseguia viajar sentado. Como sempre pegava o ônibus no ponto final, tanto na ida quanto na volta, era tranquilo. E para ocupar o tempo, eu lia.

    Foram mais de seis meses nesse trajeto até mudar de casa. Nesse tempo, Guimarães Rosa me fez companhia. Li “Grande Sertão: Veredas” nessas duas horas diárias de viagem. Lembro até o que eu fiz no dia em que Riobaldo uivou de tristeza. Interrompi a leitura, completamente afogado pelas emoções do jagunço e lancei um olhar perdido na cidade à minha volta. Sertão bruto me cercava. E Riobaldo uivava.

  • Videomakers ou a arte de surpreender seu pai (mais uma vez)

    Minha competente editora me manda um recado por escrito: tu precisas fazer um vídeo promocional do teu livro para jogarmos no Tik Tok. Ela é gaúcha, do Alegrete, e com gente da fronteira não se brinca. Se ela disse “tu precisas” é porque nem quero pensar o que pode me acontecer se não o fizer.

    Me aprumei decidido a cumprir a tarefa. Peguei o celular, olhei para ele e ele para mim. E nada. Fiz uma careta pensativa imaginando como fazer o vídeo. Ante o vasto deserto de idéias que se apossou do meu ser admiti para mim mesmo: sou analfabeto em fazer vídeo ou selfie.

    Quando seguro a câmera tenho a firmeza de uma gelatina e transformo qualquer depoimento em noticiário de terremoto. Não rola química entre nós dois.

    Mencionei o pedido para minhas filhas que riram de mim. Diante da chacota juvenil, não pensei duas vezes. Convoquei as duas para a tarefa. Já que ficam tirando onda com a minha cara dizendo que papai é um dinossauro agora quero ver. Sabidas!

    Bom, me surpreendi. Sem perder tempo já foram posicionando a cadeira onde me sentaria, trouxeram luz, ajustaram o ângulo para tirar o reflexo nos meus óculos. O texto do vídeo era meu mas elas corrigiram e, quando derrapei e quis fazer de novo foram autoritárias: nada disso, precisa ser natural, pai!

    Obediente, não insisti. Ainda gravamos imagens sem fala para o pessoal da edição ter material. E pronto. Recolheram tudo e se foram tratar de suas vidas cada uma em seu quarto.

    Eu fiquei mais uns minutinhos na sala, livro na mão, suspirante. Mudo.

  • A cinta

    Trinta anos de casamento, Nicanor pensou em fazer uma surpresa à mulher:

    – Que tal a gente voltar ao motel em que dormimos juntos pela primeira vez?

    – Motel?! Que ideia!

    – Por que não? Vai ser gostoso relembrar a sensação daquele encontro.

    Tanto insistiu, que Matilde terminou concordando. Meio a contragosto, é certo, mas não custava satisfazer esse capricho do marido, que ainda veio com outro:

    – Você podia vestir aquela cinta vermelha… Lembra?

    A mulher aparentemente fez que não ouviu.  

    E numa noite de sábado (tal como da primeira vez), inventaram uma mentira para os dois filhos adolescentes e se mandaram para o motel. O letreiro não era mais o mesmo (Nicanor teve a sensação de piscava menos), e uma parte fora reconstruída. Mas dava para reavivar antigas sensações. 

    Pediram um quarto com o mesmo número daquele em que dormiram da primeira vez. O marido achava que isso daria sorte. Depois de passar pela portaria, ele estacionou na garagem que havia ao lado. Era muito escura, certamente para preservar a identidade dos frequentadores.

    Mal entraram no quarto, Matilde fez um ar de quem não gostou:

    – Hum… O cheiro. Isso está com cara de que há tempos não passa por uma boa faxina.  

    Dirigiu-se ao banheiro e voltou de lá com uma expressão escandalizada:

    – Venha ver, Nico!  

    Puxou o marido até o local.

    – Está vendo? Parece até que tem limo.

    – Não é tanto assim, Matilde. Você exagera.

    – E o vaso sanitário? Está precisando de uma boa bucha.  

    Após uma breve pausa, deliberou:  

    – Vamos ligar para a portaria e pedir uma vassoura com detergente.     

    – Esqueça o banheiro – ponderou o marido. – Vamos voltar para o quarto.

    Tentando fazê-la entrar no clima, ele perguntou sobre o que lhe pedira:  

    – Trouxe a cinta?

    – Não. O Dr. Amoedo disse que eu devia evitar qualquer tipo de roupa que prejudicasse a circulação. Por causa das varizes. Acabei jogando no armário da despensa.

    – Tudo bem, dispensamos a cinta. O importante é que você… se sinta bem.

    Esperou que a mulher sorrisse do jogo de palavras, mas ela pareceu nem perceber. Depois de olhar atentamente a cama, Matilde exclamou com um novo ar de protesto:      

    – Me deitar aqui!? Deus me livre. Veja o colchão.  

    – Não é tão ruim. E você, que é calorenta, pode ficar perto do ar-condicionado.

    – Se é que eles costumam limpar o filtro…

    Estavam nesse impasse, quando o celular da mulher tocou. Era o filho mais velho:

    – Onde vocês estão?

    – A gente está num restaurante que seu pai queria muito conhecer.

    – Estou ligando por um motivo grave. Desconfio de que Isolda saiu para se encontrar com alguém. Pode ter ido a um motel.

    – Como?!   

    – Pois é. Ela tentou disfarçar, mas vi que levava aquela cinta, lembra? Aquela que você guarda como uma relíquia erótica dos tempos em que namorava o velho.

     Matilde mal esperou o filho terminar. Desligou e contou a conversa ao marido. Depois, preocupada, comentou:  

    – E se ela foi mesmo a um motel?

    – Tolice. Não se pode fazer nada. Só não gostei de ela ter levado a cinta.

    – Eu devia ter escondido melhor…   

    – Deixe. Ela é jovem.

    Vendo que estavam perdendo tempo ali, Nicanor teve uma ideia:    

    – Vamos embora? Ainda temos tempo de ir àquele restaurante.

  • Para sempre Urca

    Naquela tarde quente de verão ele desceu do táxi na avenida Portugal, um pouco depois da igreja de Nossa Senhora do Brasil. Parou na mureta de pedra de frente para o mar apreciando a vista da enseada de Botafogo, do Iate Clube até a curva em direção ao Aterro. Suspirou sorrindo e disse para si com o peito estufado do mais genuíno orgulho carioca: incomparável.

    Virou o rosto para dentro do bairro, olhou para as casas e prédios baixos e caminhou lentamente até achar o que procurava. Um dos prédios de três andares de arquitetura tradicional do bairro, charmosinho e típico da Urca. Sim tinha sido em frente a você, meu amigo de outros tempos, que eu sonhara com ela. Sentou-se de lado na mureta de maneira a ver tanto a enseada de Botafogo, com a estátua do Cristo Redentor no alto do Corcovado compondo o cartão postal, quanto aquele endereço tão presente em sua memória afetiva. Não tinha a menor idéia de quem morava ali nem como eram os apartamentos daquele pequeno edifício de três andares. Mas fora em frente a ele que fez alguns dos mais doces planos de sua vida. Planos jamais cumpridos.

    Uma gaivota passou fazendo barulho e ele a acompanhou com o olhar. Quanto tempo fazia mesmo? 15 anos? 20 anos? Talvez mais.

    Mas foi ali, naquela mureta de pedra, que ele fez planos com ela. Sorriam, riam e se beijavam enquanto escolhiam onde iriam morar ali. Na Urca.

    O ideal seria ali de frente para o mar. Mas a grana não daria. Teria de ser em uma das ruas menores, mais para dentro do bairro. Mas a Urca não é grande então tudo bem, riam felizes.

    Faziam a contabilidade dos filhos. Ela perguntava enigmática se ele preferira menino ou menina. Ele respondia apaixonado que tanto faz desde que fossem quatro. Ela ria alto, contente.

    Na época ela tinha dito que queria engrenar o mestrado e o doutorado de uma vez. Ele concordara dizendo que se desdobraria como pai. Imaginavam a rotina diária, a escola dos filhos, os passeios a dois e depois crescendo aos poucos até chegarem a seis. Os dias quentes, os dias frios, os dias mornos e os dias felizes. Todos passados ali, na Urca.

    Depois veio o depois com seu fim amargo. Poucas palavras tristes trocadas entre si. Olhares decepcionados, silêncios doloridos e suspiros amargos. E sua bela estória de amor tinha naufragado.

    Cada um tomou seu rumo. Nunca mais se viram. Ocasionalmente ouvia falar dela mas aos poucos, como não queria mais saber nada a respeito de sua antiga bem amada, o rastro foi sumindo até que simplesmente esqueceu dela. Ele imagina que ela também o esqueceu.

    Saiu do Rio, morou em outras cidades. Ainda mora longe mas naquela semana veio por compromissos profissionais. Um misto de reunião de negócios com lançamento de seu livro de contos. Sim, sorri para si mesmo, esse era um dos planos que fizeram naquela mureta de pedra. Ele tocaria em paralelo sua vontade de escrever para, quem sabe, se tornar uma sólida carreira de escritor. O tempo passou, vieram os livros mas a carreira de escritor ainda segue paralela à sua atividade principal. Menos mal, acaba dando um certo charme.

    Suspira, confere a hora e mira o horizonte na direção do Corcovado. Tenho de ir embora. As pessoas me esperam na livraria.

    Sentado ainda aciona pelo celular um táxi. O lançamento com noite de autógrafos será em Ipanema. O carro não demora a chegar e antes de embarcar ele lança um último olhar à paisagem completa. A enseada de Botafogo, aquele trecho da avenida Portugal e suspira. Esse é o seu lugar que nunca mais voltará, que foi uma possibilidade de felicidade que agora jaz no fundo de sua lembrança.

    Triste, se acomoda no carro que parte rumo a Ipanema. Mas pouco antes de passar pela ponte do Quadrado da Urca ele sorri para si mesmo e pensa: a lembrança nunca desparecerá da minha memória porque está eternamente gravada. Na mureta de pedra da Urca.

  • Moça de azul no metrô

    A moça estava de azul na plataforma da estação do metrô. Um vestido leve e elegante. Os sapatos bem cuidados, brilhavam até. Uma bolsa completava com elegância o quadro que tinha diante de mim.

    Próximo a ela, lá estava eu. Não tão próximo a ponto de aspirar seu perfume mas o suficiente para ver seu rosto em detalhes.

    A discrição séria em mim lutava freneticamente com a curiosidade romântica pelo direito de olhar a moça com intensidade para capturar suas expressões. Mas não era noite de romance, não para mim, e por isso a discrição venceu e me pus a espia-la ocasionalmente.

    Sua expressão mostrava alguma tensão. O que aconteceria naquela noite? Seria o primeiro encontro? Ou o mais importante?

    Capturei um suspiro leve. Ansiosa. Com o quê? Ou com quem? Ou com quem e com o quê? A incerteza do encontro, do que estava por acontecer. Mais um suspiro.

    Seria com um rapaz? Ou com uma moça? Pouco importava, a moça de azul no metrô estava concentrada em imaginar o que estava por vir.

    Decepção? Confirmação? Ousadia? Dela ou da outra pessoa? Ou seria um balde de água fria e ganharia nada além de um beijinho casto no rosto? Ah, dúvida…

    E veio o metrô. Entramos no mesmo vagão. Atrevido tentei por um instante captar seu perfume. Em vão. Nada senti, mas tenho certeza que devia ser uma fragrância suave, como seu olhar sonhador; e intensa, como sua esperança pelo encontro.

    Ela desceu duas estações antes do meu destino. Não olhei na direção dela. Virei o rosto para o outro lado. Para mim bastava o momento único que presenciei.

    Um último suspiro, agora meu, e fui para o cinema. Em companhia dos meus pensamentos e desejando tudo de bom à moça de azul do metrô.


  • Mirtes, a traça

    Fazia tempo que eu vinha notando, mas o prudente era fingir ignorância. Durante a época de aulas, tudo bem, foi possível manter-me indiferente. Mas não agora, que longos ócios me obrigam a horas no gabinete. Agora tenho de enfrentar Mirtes e a sua ronha, sua reima de tisanuro roaz.

    De noite sinto que me espreita por detrás de uma lombada. Às vezes, sutil, entre linhas ou nalgum subtítulo. Fora isso polvilha infólios e avaria vade-mécuns, Quando não, renitente, rói erra tas. E não gosta do passado, Mirtes. Também não quer o futuro. Com a mesma fome devora alfarrábios e ceifa a science fiction. Despreza tanto o nouveau roman, que nenhum bem lhe fez à garganta, quanto as irrupções de neo-realismo latino-americano, que devora a partir das epígrafes. Com uma espécie de deleite reacionário.

    Na estante ela prefere o primeiro andar – a família se distribui pelo resto; pois Mirtes é a família, todos com a mesma fome no focinho atávico. Mirtes se posta entre os livros de iniciação. Por algum motivo que não alcanço, detesta propedêutica; já fez em pedacinhos uma Introdução à Filosofia escrita por um grupo de estruturalistas. Também dilacerou, embora com menor sanha, um guia para o estudo e a compreensão da Semiótica. Não sei o que espere. Mirtes quer me privar de alimento e sentido, eis a verdade. Numa etapa em que não posso voltar atrás, quer me deixar num ermo sem rumo – a traça!

    Conforme já disse, ela não é única – é toda uma família. E o traço comum à grei é um dentinho ávido como uma broca, a perfurar como uma ideia fixa. A legião microscópica se dissemina por igual, no intuito bíblico de fazer o homem – seu tesouro de papel – voltar ao nada.

    Embora igualitária no seu afã destrutivo, Mirtes demonstra às vezes preferências incompreensíveis. Como entender, por exemplo, que ela tenha destruído o “Idade, sexo e tempo”, de Alceu, e preservado as “Lições de abismo” – do Corção? Pois fez. E o seu gosto pelo passado se confirmou um pavimento abaixo; ali arruinou dois livros de Leonardo Boff e poupou as Confissões de Santo Agostinho, estando um ao lado do outro. Também pulverizou o Ulisses moderno, de Joyce, recusando-se a descosturar o que Homero urdiu há milênios.

    Além de passadista, imprevisível. Com Descartes agiu sem método, iniciando a trituração ora pelos cantos, ora pelo meio das páginas. Diferente do que fez com Sartre, o velho bruxo, que preferiu atacar somente pelo âmago, inoculando-lhe por assim dizer a morte na alma.

    Ainda não sei contra quê ou contra quem trabalha Mirtes. Será tão-só inimiga do papel, suporte físico das ideias humanas? Também da disposição gráfica, combinação voluptuosa de tinta e talhe? Talvez dos dois
    e de alguma coisa mais.

    Importa é que Mirtes faz sempre a refeição completa, jantando no concreto o abstrato, no corpo a alma. Nos livros, o homem.


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