Falou e Disse

  • A frase morreu?

    Alguém já disse que acabou a era das grandes frases. Escrever bem, hoje, é sinônimo de escrever simples. Em nome da comunicação sacrifica-se o torneado fraseológico, que antes era perseguido com volúpia narcísica.

    Cada autor parecia ver na frase retumbante uma ampliação gráfica do próprio ego.

    Atualmente as virtudes mais requisitadas são a simplicidade e a transparência. Vários motivos podem explicar isso, entre os quais o dinamismo da vida moderna e o pragmatismo de uma sociedade de resultados.

    Estamos mais atentos aos fins do que aos meios. Não há tempo para se perder horas a fio pensando na melhor maneira de expressar um juízo, um conceito, um sentimento. 

    Outra razão para o desprestígio da frase estaria na influência da linguística textual. Esse ramo da linguística valoriza o texto, vale dizer, o conjunto ordenado e coeso de palavras, frases e parágrafos. O que conta nessa organização solidária, em que os componentes têm praticamente o mesmo valor, é o papel do conjunto.

    Ou seja: a ênfase desloca-se da frase isolada para o “texto” como uma unidade comunicativa completa. Ele é então visto como algo mais do que a soma das frases. Possui propriedades que não podem ser explicadas apenas pela análise frasal.

    Entre essas propriedades estão a coerência (não contradição), a coesão (unidade dos componentes, promovida por conectivos e termos de referência), a situacionalidade (adequação dos elementos à situação comunicativa) e a informatividade (suficiência de informações).

    Nessa perspectiva, a “frase” é vista tão só como uma unidade que contribui para a construção do sentido global do texto, a macroestrutura. A análise da frase isolada, sem considerar seu papel no tecido textual, oferece uma compreensão limitada do significado e da função da linguagem em uso.

    Ao colocar a ênfase no “texto”, a linguística textual busca compreender como as diversas unidades se organizam e interagem para criar um todo significativo, considerando fatores contextuais, cognitivos e comunicativos que transcendem o nível frasal.

    Isso tende a apagar o brilho da frase, que chama a atenção para si. Muitas vezes um escritor medíocre tentava superar sua irrelevância com uma frase de efeito, que ali se encaixava como pepita no cascalho. O escritor tinha consciência disso e compunha seu texto de modo a valorizar esse fragmento luminoso, deixando o resto no escuro.   

    A frase perdeu status porque nos tornamos menos retóricos. Ninguém tem mais paciência com preciosismo ou verbosidade.

    Isso por um lado é bom, mas por outro tem gerado certo empobrecimento linguístico. No jornal, por exemplo, a linguagem de grande parte dos cronistas e articulistas está ficando homogênea, despersonalizada. Percebe-se neles a preocupação com a digestão fácil do texto, o que às vezes redunda em pobreza semântica. Poucos têm uma marca verdadeiramente pessoal de estilo.

    Talvez a morte da frase tenha a ver com isso.

  • O oposto da hipérbole

    Sempre que pergunto em classe qual o oposto da hipérbole, a turma responde que é o eufemismo. Não me deparei com esse equívoco apenas em sala de aula – também o constatei em portais de língua portuguesa. 

    A verdade é que o contrário da hipérbole não é o eufemismo. Essas figuras não podem se contrapor, uma vez que se situam em áreas diferentes. A hipérbole diz respeito ao “pathos” (paixão), enquanto que o eufemismo está ligado ao “ethos” (caráter).

    Quem produz uma hipérbole o faz abalado por forte impressão emocional. Exagera para comover ou suscitar empatia: “estou morto de fome”, “ele tem uma vontade de ferro” (hipérbole metafórica), “daria a minha vida por você”.

    Um conhecido exemplo de hipérbole aparece neste quarteto de Augusto dos Anjos:

            “No tempo de meu pai, sob estes galhos,
    Como uma vela fúnebre de cera,
    Chorei bilhões de vezes com a canseira
    De inexorabilíssimos trabalhos.”

    Os versos constam do soneto “Debaixo do tamarindo”, em que o poeta confessa o seu amor pela árvore que ensombrava a casa-grande do engenho onde nasceu. Revelam o desespero diante da morte e a esperança de continuidade pela fusão com o organismo vegetal (lê-se no final do poema: “Abraçada com a própria Eternidade/ A minha sombra há de ficar aqui!”).

    A referência ao pranto “bilhões de vezes” chorado e aos “inexorabilíssimos” trabalhos busca traduzir a intensidade de uma Dor que transcende a esfera pessoal. Não é apenas o sofrimento de um indivíduo, mas de toda a espécie humana, com a qual o eu poético se identifica.

    No eufemismo, atenuamos um conteúdo desagradável com a intenção de não ferir nem chocar. O que anima esse propósito é a ética, o recato, por vezes a conveniência social. Podemos dizer de alguém muito feio, por exemplo, que “seus traços não são harmoniosos”. Ou, de uma pessoa estúpida, que ela “não tem um cérebro brilhante”. O eufemismo preserva o conteúdo e suaviza a forma.

    O seu oposto é o disfemismo, que consiste no uso de expressões deselegantes, grosseiras ou chulas. Na versão disfêmica, o muito feio passa a “horrendo”, “um parto”, “um frankenstein”. O pouco inteligente é chamado de “anta”, “burro”, “quadrúpede”. O disfemismo é uma intensificação pejorativa e visa agredir ou chocar.  

    Numa de suas crônicas, Adriano Silva critica os que nada fazem sem escutar a opinião alheia e são capazes de perder o dia caso não recebam um sorriso de aprovação. Ele diz invejar os indivíduos autossuficientes, que “resolvem suas inseguranças (…) sem expor o traseiro nu na janela”. Essa referência ao “traseiro nu” é uma imagem disfêmica; por meio dela o autor critica os que costumam expor aos outros a sua intimidade.

    Qual é então oposto da hipérbole? É a hipossemia, que se caracteriza pela diminuição do conteúdo significativo das palavras. Ela ocorre, por exemplo, quando alguém afirma ter sentido “uma dorzinha” que o levou ao a passar três dias no hospital; quando a mãe ameaça dar “umas palmadas” no filho (em vez de uma surra); ou quando o ricaço diz que deu “um pulo” na Europa para saber as novidades.

    Vejam que nesses casos, ao contrário do que ocorre no eufemismo, não existe o propósito de suavizar um conteúdo desagradável. O emissor minimiza o sentido para reduzir a dimensão do que faz, e não para evitar agredir quem quer que seja. O que determina as escolhas é menos o decoro do que o afeto, a emoção.

  • Um escorrego de morfologia

    A frase abaixo foi retirada de uma matéria da IstoÉ sobre um medicamento contra a impotência:    

    “Por ser ingerido diariamente, não é preciso calcular quando ter relação (os outros remédios exigem um tempo para fazer efeito).”

    Li críticas de professores de português à flexão do verbo “ter” nessa passagem. Dizem que a forma correta é “tiver”, pois ele estaria empregado no futuro do subjuntivo. Um dos que defendem esse ponto de vista escreve: “Este (o futuro do subjuntivo) participa de orações iniciadas pela conjunção ‘se’ (condição hipotética futura) ou pela conjunção ‘quando’ (tempo hipotético futuro).”

    A explicação seria correta se o vocábulo “quando” naquele contexto fosse mesmo conjunção. Ou seja: se a oração iniciada por ele se classificasse como adverbial temporal. Não é isso que ocorre.

    Vejamos por quê. O autor da matéria se refere a um medicamento que, ao contrário de outros com o mesmo fim, pode ser usado todos os dias. Essa frequência traz uma vantagem ao usuário: não precisar calcular o momento adequado para ter relação. Tal vantagem não existe em drogas similares, que “exigem um tempo para fazer efeito” e, consequentemente, determinam que os usuários escolham a melhor ocasião de tomá-las.  

    Assim, a palavra “quando” naquela frase não é conjunção, mas advérbio. Introduz oração objetiva direta, na qual exerce função sintática. Considerar a oração indicada pelo “quando” como temporal deixaria sem complemento o verbo “calcular” e sem sentido a frase (calcular o quê?). De fato, o autor não quis dizer que se precisa calcular “alguma coisa” no momento de ter relação; esse momento (ou seja, o “quando”) é o próprio objeto do cálculo.

    Nesse tipo de construção a oração objetiva se diz justaposta, pois é introduzida por um termo que, ao contrário da conjunção, exerce função sintática. Além de “quando”, podem aparecer outros advérbios ou locução correspondente. Por exemplo:

    — “não é preciso calcular como ter relação” (modo)

    — “não é preciso calcular onde ter relação” (lugar)

    — “não é preciso calcular quanto ter relação” (intensidade)

    — “não é preciso calcular por que ter relação” (causa)

    O infinitivo, nesse caso, constitui o verbo principal de uma locução com auxiliar modal implícito (poder ou dever): “não é preciso calcular quando (se pode ou deve) ter relação”.

    Enganos como o acima referido mostram o perigo de classificar vocábulos ou orações sem atentar para o sentido da frase. Resultam de um hábito por vezes comum no aprendizado da língua, que é o de decorar classes de palavras. Quem faz isto parece esquecer que elas se definem de acordo com o contexto.

  • A esquecida

    Cerca de quatro anos pós a morte do marido, D. Zulmira começou a esquecer as coisas. Não sabia onde guardara roupas, sapatos ou utensílios da casa. Letícia, a filha caçula, chegou a alertar a irmã:

              – E se ela deixar de tomar os remédios para pressão?

              – Precisamos ficar atentas. Pode ter um acidente vascular cerebral… – respondeu Soraia, que já pensava na possibilidade de contratarem uma cuidadora.  

              Aos lapsos de memória, acrescentavam-se a tristeza e a apatia. D. Zulmira passava horas numa poltrona da sala, o olhar perdido. Recusava até que ligassem a televisão. Não lhe empolgavam mais as novelas nem os programas gastronômicos, dos quais chegara a copiar receitas para agradar o marido. Valfredo era um gourmet, e a mulher vez por outra lhe preparava comidas diferentes.   

                Para ver se distraía a mãe, Soraia propôs que se mostrasse a ela fotos da família. Sobretudo aquelas em que aparecia com Valfredo, para lembrar-lhe o tempo que passara ao lado do marido. Eram muito bem casados, e certamente as imagens da vida em comum concorreriam para reavivar-lhe a memória e deixá-la mais animada.      

               Assim foi feito. Letícia tirou da gaveta do velho guarda-roupa a caixa em que dormiam, já um pouco amareladas, fotografias da família. Havia muitas dos dois juntos, algumas tiradas quando as filhas ainda nem tinham nascido. O casal aparecia em festas juninas, risonhos, ou enlaçados em bailes de Carnaval. A garota fez uma seleção das que melhor traduziam o convívio amoroso dos dois.

             Numa tarde em que D. Zulmira seguia a rotina de nada fazer e ficar olhando para o tempo, Letícia sentou-se junto dela e começou a mostrar as fotos. Tinha feito uma seleção cronológica, apresentando primeiro as do tempo em que namoravam. Depois vinham as do período em que eram noivos, e por fim as de casados.   

            D. Zulmira olhou de início sem curiosidade, as imagens pareciam não impressioná-la. Mas a partir de certo momento seus olhos começaram a brilhar, e o rosto adquiriu uma expressão intrigada. Olhou para a filha como se não entendesse o que via. Letícia também não compreendeu essa reação, e muito menos quando a mãe lhe fez a pergunta:

            – Quem é essa que está com seu pai?

            – Quê?! Quem poderia ser, mãe? É a senhora!

            – Não sou eu! Tire esses retratos daqui!

            A garota não sabia o que fazer. Chamou Soraia e lhe explicou o que estava acontecendo. A outra ficou surpresa. Não era ela?! Pediu à irmã que recolhesse as fotos e as levasse para a gaveta do guarda-roupa. Antes que Letícia fizesse isso, a mãe pediu para vê-las de novo. Como se quisesse se certificar.  

             – Não sou eu! Seu pai está com outra. Agora fiquei sabendo que ele tinha uma amante…    

            As duas se olhavam, perplexas. D. Zulmira até então esquecia objetos ou nomes de pessoas. Agora parecia não se lembrar do próprio rosto. No dia seguinte, enquanto tomavam café, viram a mãe se dirigir à sala com uma tesoura. Assustaram-se e ficaram imaginando qual seria o seu propósito.    

            Depois de se sentar na poltrona onde costumava passar o dia, D. Zulmira falou:

             – Vão buscar aqueles retratos.

             – Para que a senhora quer? – assustou-se Letícia.  

             – Você vai ver. Quero os retratos aqui.  

             A moça obedeceu e pouco depois voltou com a caixa. Antes de entregá-la, pediu: 

              – Não vá, por favor, fazer nenhuma besteira.   

               D. Zulmira abriu-a e começou retirar as fotos. Olhava-as uma por uma e confirmava:    

               – Não sou eu. Não tenho esse cabelo, nunca usei essas roupas nem esses brincos.  

               Pegou então a tesoura e começou a cortá-las para delas extrair “a outra” que ocupava o seu lugar. As filhas tentaram detê-la, mas logo viram que seria impossível. A mãe tinha uma expressão raivosa e pareia capaz de agredir quem procurasse impedi-la.  

              D. Zulmira colocava as partes cortadas numa mesinha contígua à sua poltrona. Com o tempo, era grande o número de recortes que a mostravam em situações diversas, vestindo diferentes roupas e com variadas expressões fisionômicas – ora risonha, ora atenta, ora plácida, olhando para alguém que não se conseguia ver. Nas caixas restaram as fotos mutiladas, em que também não se sabia quem Valfredo fitava ou tinha nos braços.  

             Terminada a obra, ela fechou o recipiente e deu um suspiro, como se tivesse passado por algo muito incômodo e enfim sossegasse.

             Letícia apontou para os recortes em cima da mesa e perguntou:   

             – O que a gente faz com eles?  

             – Pode esconder ou dar fim. Para mim tanto faz.

  • Para melhor agradecer

    Tenho lido críticas por parte de estudiosos da língua ao uso de “Gratidão” no lugar de “Obrigado”. Alegam que esse é um caso de pedantismo e não deve substituir a forma clássica com que nos acostumamos a reconhecer um favor. “Gratidão”, de fato, soa um tanto pomposo. É como se, com a escolha do substantivo, o favorecido quisesse enfatizar o sentimento e não simplesmente mostrar que dele está imbuído.

           – Já que você não pôde ir para o almoço, vim aqui lhe trazer uns sanduíches.   

           – Gratidão.

    Vejam que o beneficiário, ou beneficiária, não se limitou a mostrar-se agradecido(a). Evocou o que no ser humano é uma manifestação de grandeza de alma. Escolhendo o substantivo, leva o receptor a preencher todo um contexto elíptico (“Diante do favor que me fez, demonstro-lhe minha…”). Convenhamos em que isso torna o diálogo um tanto solene e pouco natural.   

    Risque-se então “Gratidão”, estou de acordo. Mas por que usar necessariamente “Obrigado”, e não “Grato”?  Este é sintético, franco, e não sugere nenhum prévio compromisso da parte do favorecido.

    No “Obrigado”, como se sabe, o contemplado “se obriga” ao dever da retribuição. Confessa-se compelido a retribuir o favor mesmo que não esteja sendo sincero. Fala mais por um dever social do que por um impulso espontâneo, que traduza o reconhecimento pelo benefício recebido.

    As coisas que fazemos por obrigação nem sempre são prazerosas. Quem já não ouviu de alguém a justificativa de que “fez porque foi obrigado”, ou seja, de que agiu de determinada maneira porque não tinha alternativa? Por que transferir essa possibilidade ao domínio das gentilezas e dos favores?

    Se “me obrigo” diante de alguém, tenho-o como credor ou juiz – tipos sociais que não nos acostumamos a ver com simpatia. O primeiro nos cobra, o segundo nos julga, e ninguém se sente à vontade quando submetido a tais injunções. 

    Sei que a sociedade se rege por obrigações de uns para com os outros. Mas não fica bem estendê-las ao domínio das reações espontâneas e afetuosas, como as que experimentamos diante de quem nos presta um favor ou concede uma graça. 

    Não vou deixar de dizer “Obrigado”, que já é um clichê e cujo esvaziamento semântico vem se estendendo ao plano morfológico. Tanto é assim que o vêm empregando tanto homens quanto mulheres (para desespero dos adeptos da linguagem neutra, que escolheriam “Obrigade”).

    Mas confesso que prefiro mesmo “Grato”, que não comporta nenhum dever retributivo e tem o mesmo étimo de “Gratidão”. Além do mais, sendo um adjetivo, enfatiza o estado do beneficiário e não a substanciosa grandeza do sentimento. Sem falar que ganha da concorrente pela extensão. Os manuais de estilo, como se sabe, recomendam o uso de palavras curtas, e por esse critério o dissílabo “Grato” é preferível ao polissilábico “Obrigado”.

  • Vida e tempo

    Outrora as pessoas morriam mais cedo e nem assim deixavam de fazer as obras que poderiam notabilizá-las. Parece que a consciência da brevidade da vida levava-as a intensificar seu trabalho. Era como se, intuitivamente, soubessem que não tinham tempo a perder. Ameaçadas por um número maior de doenças sem cura, não podiam se dar ao luxo de adiar projetos e sonhos. Nossos poetas românticos, por exemplo, deixavam este mundo na flor da idade, ceifados pela sífilis ou pela tuberculose, mas as suas obras pareciam consumadas. Eram o melhor que eles poderiam fazer.  

    Hoje é diferente. Graças aos avanços da medicina e da farmacologia, nossa média de vida aumentou. Não podemos nos queixar de falta de tempo. Quem antes tinha quarenta ou cinquenta anos se considerava um velho. Hoje o indivíduo com sessenta sente-se disposto a recomeçar a vida. Supõe que ainda terá muito caminho pela frente.

    Antigamente o desafio era viver mais. Hoje, é viver melhor. Fala-se muito em qualidade e não em quantidade de vida. Uma vida longa, mas deficiente, não parece valer a pena. Isso nos remete à velha questão: o ideal é viver pouco, mas com intensidade, ou viver muito porém de forma rotineira e insípida?

    Muitos alegam que viver da primeira forma é melhor, mas o que desejam mesmo é permanecer vivos (mesmo que isso implique enfrentar os contratempos da velhice). Há um consenso segundo o qual quem vive muito triunfa sobre os que morrem mais cedo. A longevidade aparece como um troféu que confere ao indivíduo admiração e prestígio, e só os incompetentes e desleixados se deixam colher precocemente pela morte.

    Para ganhar esse troféu é preciso se submeter a um tipo de corrida diferente, no qual ganha quem chega por último. Diante disso, é melhor não se apressar. Certamente a melhor fórmula para obter esse prêmio é viver com moderação, evitando o estresse e outros males que nos impulsionam a uma existência trepidante. São grandes os malefícios que essa trepidação traz ao nosso organismo.  

    Viver devagar, no entanto, é um enorme desafio num mundo em que se exalta a excelência e o acúmulo de realizações. Como botar um freio na rotina se somos permanentemente convocados à competição e, em vista disso, a nossa agenda está sempre cheia? Quem tenta frear o ritmo não raro se sente excluído. Ao buscar se desprender das amarras que o vinculam à engrenagem do dia a dia, é tomado pelo tédio e a insatisfação. Conheço gente que, embora se queixe do excesso de trabalho, não suporta os domingos e feriados. Acha que neles falta alguma coisa.   

    O fato é que, mesmo com as cobranças do mundo moderno, hoje vivemos mais. Isso não significa que vivamos melhor nem que o maior tempo de que dispomos nos leve a realizações significativas. Todos temos momentos em que as coisas de fato acontecem, e outros em que nos limitamos a “tocar” biologicamente a vida. Ninguém garante que, se vivesse mais de 24 anos, Castro Alves teria feito poemas superiores aos que fez. Viver mais também não deixa de ser um problema; implica um desafio maior para a conquista e a manutenção da felicidade.

  • Terrores infantis

    Penso que as mais intensas lembranças da infância são marcadas pelo que dá medo. Existem as de aniversário, viagens, reuniões em família, e todas constituem um repertório gratificante que nos faz ter saudades do tempo em que éramos guris. Mas elas não se imprimem na memória com a força dos eventos que nos deixavam o coração em sobressalto.  

    Grande parte deles está ligada aos “fantasmas” da noite e aos tipos conhecidos como “doidos”. Qual a criança que não chegou a tremer sob os lençóis com medo da visão de algum ente sobrenatural? Podia ser a imagem de alguém que morreu ou de uma dessas personagens que povoam as histórias contadas em filmes, gibis ou por pessoas próximas.

    Eu ouvia das empregadas histórias de crianças perseguidas por entidades monstruosas que vinham puni-las em razão de algum malfeito. Essa espécie de pedagogia do horror maltratava como um castigo, e de noite eu me encolhia sob as cobertas com medo de encarar a escuridão. Sentia os pingos de suor escorrerem pela barriga, mas não me atrevia a remover o lençol e ficar exposto às tenebrosas visões. Podia ser a de um vampiro, uma mula decapitada ou uma tal de La Condessa, que saía de noite do túmulo para perseguir crianças desobedientes.  

    Já os “doidos” eram fantasmas concretos, que povoavam as ruas e não precisavam do escuro para nos assustar. Geralmente se tratava de pessoas feias e malvestidas, que associavam a bizarrice da figura a um considerável acervo pornográfico. Os nomes feios, diga-se a bem da justiça, vinham como resposta às provocações que faziam a elas.  

    Tenho vivas as lembranças de alguns desses tipos. Um deles era Leôncio, que costumava ficar sob uma marquise numa das ruas mais famosas da cidade. Ele pedia dinheiro aos passantes e descompunha sem cerimônia os que negavam. “Filho da p…” era das expressões mais leves. Como já o conheciam, ninguém o denunciava. Sua agressividade ficava mesmo no plano das palavras, pois nunca se soube que tivesse feito mal a ninguém.

    Certa vez eu passava pela rua com a minha mãe e o vi dirigir-se a nós. Risonho, desdentado, estendeu a mão me pedindo “um troco” (era assim que ele falava). Na inocência dos meus oito anos, larguei a mão que me segurava e desandei a correr. Depois dessa experiência, evitei de uma vez por todas passar por aquela rua.

    Mas a pior experiência foi com “Baleia”, como era conhecida uma mulher que costumava no fim da tarde passar pela rua onde morávamos. Nada provocava mais a sua ira do que a menção ao cetáceo com que inventaram de apelida-la. Justamente por isso os meninos insistiam na cruel designação, o que a fazia correr atrás deles enquanto aguentasse. Nunca pegou nenhum, e duvido que quisesse mesmo fazer isso.

    Certa vez, ao voltar de uma padaria perto de casa, percebi com o coração aos pulos que ela vinha na minha direção e que iríamos cruzar um com o outro. Mudei de calçada e ela fez o mesmo, atribuindo o meu gesto a uma tentativa de fugir por tê-la em algum momento provocado. Enquanto se aproximava, vociferou com uma voz rouquenha e arquejante: 

     – Diga “Baleia” agora! Diga, se tiver coragem! 

    Corri em pânico para casa e lá cheguei “branco”, conforme disse  minha mãe. Deram-me um copo d´água e buscaram me acalmar enquanto eu tentava explicar o que tinha acontecido.

    Houve outros além de “Baleia” e Leôncio, mas esses dois foram os que mais me impressionaram. Hoje vejo que não eram tão maus assim. A explicitude de suas figuras fazia com que nós de antemão os identificássemos e nos preveníssemos. Ao longo da vida eu me depararia com outros mais perigosos, que sob o disfarce da normalidade nos surpreendem neste mundo hostil e nervoso em que estamos confinados.  

  • O real motivo

    A função da publicidade não é apenas vender. É despertar em nós recônditos impulsos, criando necessidades até então inexistentes ou, pelo menos, ignoradas. O comercial age um pouco como a droga, que o indivíduo propenso ao vício despreza enquanto não conhece. Depois de tê-la experimentado, não consegue mais viver sem ela.

    A publicidade também faz registros curiosos e sintomáticos da vida moderna, funcionando como documento antropológico ou retrato psicológico da sociedade atual. Nesses casos, tem muito pouco de invenção. Em vez de se antecipar à realidade, como obra de ficção que é, capta o que está nela disperso.

    Me lembro, a propósito, de um comercial sobre uma marca de carro exibido há algum tempo na TV. Um pai, depois outro e mais outro levam seus filhos ao colégio. Os meninos vão ansiosos, preocupados. Pedem aos velhos que não parem o automóvel na entrada da escola, onde como é natural se agrupa muita gente. Os pais não entendem, desconfiam de que alguma coisa está errada. Supõem então que os filhos temem o julgamento dos colegas por estarem naqueles carros feios, ultrapassados.  

    Não havia nessa mensagem publicitária nada de novo. O comportamento dos garotos ainda é muito comum nos dias que correm. E não só quanto ao carro. Já ouvi de alguns pais que seus filhos se envergonham da casa, da roupa, do computador superado que têm em casa.

    O problema é que, ao documentar esse tipo de reação, o comercial praticamente o endossava. Apresentava como legítimo o ressentimento dos meninos. Mas quem era o verdadeiro culpado por tal ressentimento?     

    Subliminarmente, a peça publicitária dava a entender que o motivo da vergonha dos filhos não eram os automóveis. O motivo eram os pais, que não tinham dinheiro ou discernimento para comprar coisa melhor. Os pais é que os garotos, encolhidos naquelas “carroças” fora de moda, gostariam de esconder dos colegas.

  • Em torno de “Conclave”

    Recentemente assisti a “Conclave”, um dos candidatos ao Oscar 2025. O filme trata da escolha de um novo papa por cardeais de várias partes do mundo, como é próprio desse tipo de pleito, e chama a atenção pelas disputas que existem entre eles. Nesses embates transparece a diversidade de posições dentro da Igreja (basicamente, entre os progressistas e os retrógrados), mas sobretudo ressalta-se um traço que é peculiar aos seres humanos – a busca pelo poder.

    O filme me fez pensar em Antonio Carlos Villaça. Para quem não sabe, Villaça era um dos maiores conhecedores do pensamento católico no Brasil e no mundo. Conhecia a fundo a obra de pensadores como Bernanos, Léon Bloy, Tomás de Aquino, Jacques Maritain. Em seus escritos pulsa o dilema vivenciado pela intelectualidade católica brasileira ao longo do século passado, a qual se dividia entre a participação política e o recolhimento à vida espiritual. Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção eram os maiores representantes de cada uma dessas posições.

    Villaça foi um ser fronteiriço, viveu na zona do quase – quase padre secular, quase frade dominicano, quase monge beneditino e, no fim, escritor convicto. Se jamais foi tocado pela Graça, foi no entanto bafejado pelo Estilo, que também é um dom conferido a poucos. A literatura permitiu-lhe ver sem preconceito ou sectarismo o que estava para além das ideias em confronto – os frágeis seres humanos, divididos entre a aspiração pelo transcendente e as tentações da carne.

    O mais importante livro de memórias de Villaça, “O nariz do morto”, é o relato do seu desencanto com a vida monástica. Ele entrara no mosteiro cheio de ideais, estimulado por uma visão piedosa e sobretudo estética do catolicismo, e lá se deparou com uma realidade tão prosaica, e por vezes mesquinha, quanto a do mundo leigo. Arengas, intrigas, ambições vorazes faziam da instituição monástica uma reedição do que existia no espaço mundano.

    Villaça revela isso com um desespero e uma pungência que angustiam, sobretudo porque transparece de suas palavras um ressentimento doloroso. Na página 131 de “O nariz do morto”, por exemplo, ele apresenta o saldo da sua frustrada incursão na vida religiosa: “Aprendera a ler, razoavelmente, nesse dicionário de absurdos que é a clausura monástica – morada do nada. Aprendi. Fiz o que no prostíbulo faz a desprevenida prostituta: aprendi o alfabeto da humana desgraça /…/ Sei com os ladrões e as prostitutas, os presos e os bêbados, qual é o itinerário do homem.”

    O livro me impressionou tanto, que o escolhi para tema da minha dissertação de Mestrado – “Travessia do mosteiro; considerações sobre a autobiografia em Antonio Carlos Villaça”. O trabalho teve como orientador o professor Anazildo Vasconcelos da Silva e foi defendido no início de 1983, na UFRJ. Da banca examinadora participaram, além do orientador, os professores Gilberto Mendonça Teles e Manuel Antônio de Castro. De Gilberto, recentemente falecido, tive o prazer de ouvir a indicação de que a monografia fosse publicada – o que ocorreu ainda quando eu estava no Rio, pela “Edições Tagore”.  

    Várias vezes conversei sobre o “O nariz do morto” com o seu autor, em fraternais encontros no hotel de Santa Teresa onde ele residia. As conversas tinham a franqueza de amigos e esclareciam determinados aspectos da narrativa. Por exemplo: o nariz era o pênis; e o morto era ele, Villaça, que perdeu trinta quilos durante o tempo em que ficou no mosteiro. Nessa fase de crise urinava continuamente, devido à ansiedade, e tanta água perdida afinou-lhe o perfil. Depois voltaria a ser o gordo cheio de bonomia que aprendemos a amar. O gordo generoso, de riso cavo, que fez do conhecimento dos homens um meio de se tornar bom.

    O aspecto de “Conclave” que mais me fez pensar no autor de “O nariz do morto” foi o da disputa pelo poder. Mais de uma vez ouvi dele como era intenso, nos ambientes que frequentou, o desejo de prevalecer sobre os outros e galgar posições de liderança. Muitos chegavam a usar para isso a humildade. Aparentando-se dotados dessa virtude essencialmente cristã, poderiam ser alvo de admiração e prestígio.

    A observação de tais pessoas leva o narrador a reflexões desalentadas, como a que segue: “O líder ama o poder, quer apenas o poder. O poder para nada, para se olhar nele, como num espelho monstruoso. O poder é o nada. O líder quer o nada – e, para isso, é capaz de tudo, de vender seus filhos vender o céu, o teto de estrelas e de nuvem, a própria vida.?” (p. 251)

    No filme, um exemplo extremo da ambição pelo poder é o Cardeal Tremblay; para tirar do páreo um dos concorrentes mais votados, ele não hesita em revelar um antigo caso amoroso do rival, de que resultara um filho. Com isso, vão por água abaixo as pretensões do Cardeal Adeyemi ao papado. Se assistisse à película, Villaça dirigiria a figuras como Tremblay a sua crítica e o seu ressentimento, pois de algum modo seriam responsáveis pelo ceticismo que faz o narrador hesitantemente duvidar: “Porque Deus parece… talvez… pressinto, desconfio, é esquisito, talvez, possivelmente, será que existe mesmo?” (p. 99)

    Tal ceticismo parece se reproduzir na crise vocacional do Cardeal Lawrence, magnificamente interpretado por Ralph Fiennes. Sendo o mais antigo na função cardinalícia, cabe-lhe conduzir o Conclave e tentar harmonizar as pretensões e as ideologias em conflito. Tal como Lawrence, o narrador de “O nariz do morto” considera que não há certezas. E endossaria de bom grado estas palavras do decano, que resumem de forma brilhante o desafio presente na crença religiosa: “Se há certeza, não há mistério. E, se não há mistério, não pode haver fé.”

  • Errata celeste

    Os que acreditam na influência dos astros em suas vidas devem ter ficado chateados com Parke Kunkle, professor de uma instituição americana. Segundo ele, “está errada a interpretação dos movimentos celestes usada pela astrologia para determinar os signos de acordo com a data do nascimento das pessoas”. Isso porque os mapas astrológicos, produzidos 3.000 anos atrás, estariam há muito defasados. Com a mudança no posicionamento do eixo da Terra, uma pessoa que se imaginava capricorniana, por exemplo, é na verdade de Sagitário. Um suposto taurino, como eu, pertence ao signo de Áries.  

    Sem querer ser presunçoso, confesso que no íntimo eu desconfiava disso. Sentia certo descompasso entre o meu modo de ser e o desenho do meu signo, que me colocava sob a égide de um touro (bicho grosso e intratável), quando em minha alma pasta um cordato carneirinho. Não exagero se disser que essa foi uma das razões para eu nunca ter dado muita importância aos astrólogos. Sempre confiei mais nos genes e na força das circunstâncias. 

    Imagino a confusão que esse quiproquó planetário está causando na cabeça daqueles que programam suas vidas conforme o alinhamento da Terra em relação às estrelas. Eles têm na cartografia celeste um roteiro que, revelando-se ou não acertado, lhes serve de guia. Alguns a primeira coisa que fazem, antes de sair da cama, é consultar o horóscopo para ver se devem ou não fechar um negócio, fazer uma viagem, iniciar um caso amoroso. De repente vem esse professor e os deixa sem chão, ou melhor, sem céu em que possam ver delineado seu mapa existencial.    

    Não deixa de ser estranho que pensemos que Marte, Vênus ou alguma daquelas constelações distantes tenham a ver com o emprego que devemos assumir, a roupa que devemos vestir ou a mulher com quem devemos nos casar. Crer nisso não tem fundamento, mas para muitas pessoas faz todo o sentido. O mecanismo pelo qual tais crenças lhes parecem coerentes é o mesmo que fundamenta as religiões; explica-se pelo desejo de fugir ao desamparo, à incerteza quanto ao futuro e, sobretudo, ao medo da morte.   

    Ninguém pense que a descoberta de Kunkle vai mudar a crença de quem depende dos astros para conseguir a paz interior. Desde quando se crê em alguém, ou em alguma coisa, com base em evidências racionais? A  razão serve de esteio para o que se conhece, e não para aquilo em que se acredita. O fermento da ciência é o saber; o da crença é a ilusão.

    No máximo os adeptos da astrologia farão um pequeno ajustamento em seus signos – há os que vão continuar lendo as previsões segundo o mapa antigo. Se mudou o lugar das constelações, endireite-se o eixo da Terra, corrija-se o Cosmo. O importante é que, ao acordar, eles possam iniciar o dia com a certeza de que farão as escolhas certas. E, sobretudo, de que alguma força transcendente os protege contra as armadilhas do Acaso.

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