Ignácio de Loyola Brandão

  • Do outro lado da rua

    Havia um motorhome do outro lado da rua. Foi na terça-feira. Quando abriu a janela do quarto, logo às seis da manhã, ainda antes de fazer o café e tirar o pijama, o avisou ali, como se tivesse passado a noite naquele tranquilo e pacato lugar. Uma certa névoa o revestia, pois o dia ainda era uma penumbra, esfregou os olhos instintivamente, buscando entender se aquela imagem não era o resquício tardio de um sonho indigesto. O motorhome estava lá, de fato. Portas e cortinas fechadas. Bem na frente da sua janela, encobrindo o belo jardim do vizinho que sempre embelezava as suas manhãs solitárias.

    O café havia acabado. Teve de fazer um chá de camomila, preparado às pressas, com pouco açúcar. O chá lhe traz à lembrança o velho Doutor Ignácio, responsável pelo orfanato onde cresceu. Ele afirmava ter nome de santo: IGnácio de Loyola! Com ênfase no G. Invocava-o toda vez que pedia atenção e também quando aplicava corretivos naqueles meninos fracos, frívolos e indolentes. Doutor IGnácio de Loyola tomava chás de camomila bem açucarados todos os dias. Para relaxar os nervos, ele dizia, muito chá de camomila. Nas mãos havia marcas dos inúmeros processos educativos pelos quais teve de passar. Eram outros tempos, enfim.

    Em uma incursão suicida, um grupo, do qual não fez parte, conseguiu invadir o quarto do Doutor IGnácio de Loyola. Ali descobriram que, na verdade, se chamava Inácio (sem G) Mariano Ramos. Descobriram também que não era doutor nem coisa alguma, pois fora expulso do Seminário ao se declarar apaixonado pelo clérigo, Diretor Geral da instituição. A sua única afinidade com um santo era o nome. Ou nem isso, aliás. Muitos não acreditaram nesse detalhe porque se baseava numa suposta notícia achada nos diários do Doutor IGnácio de Loyola.

    Por fim, acabou virando IGnácio de Loyola: o santo do paulouco. Os garotos não perdoavam. Coisa da idade, talvez. O orfanato se tornou um verdadeiro tormento, a cada pouco se ouvia algum interno gritar – O santo do paulouco! –, para desespero do Doutor IGnácio de Loyola, que pedia mais um e mais outro chá de camomila para relaxar os nervos, para relaxar os nervos. Outros tempos, com muito açúcar, outros tempos.

    Não importa que fim levou. O Doutor IGnácio de Loyola, com G grande, o santo do paulouco, que gostava dum chá de camomila açucarado e que deixou marcas nas mãos muitos meninos do orfanato. Outros tempos, outros tempos. Hoje são todos adultos. Nunca mais encontrou os antigos colegas. Mudou-se para longe, começou uma nova vida e nela seguiu com angústias e alegrias, como qualquer um.

    Lembrava do tal Doutor ao cair da noite, quando voltava do mercado, para onde foi logo após o trabalho, trazendo na sacola um café fresco. O motorhome ainda estava lá. No mesmo lugar. E até a névoa parecia ter voltado. A casa do vizinho continuava fechada. Traumas são sempre traumas, no fim das contas. Jamais se animou a ler os livros do Ignácio de Loyola Brandão só por conta de sua graça. Ainda que fossem pessoas distintas e, importa frisar, com nomes diferentes, pois aquele se chamava Inácio Mariano Ramos. Do autor, enfim, nunca leu um resumo, nem mesmo uma orelha de livro. Suas orações também desviavam o santo homônimo, com o devido respeito. Aos poucos foi se aproximando de São Drogo, afinal. O santo de sua preferência.

    Na manhã seguinte, repetiu o gesto ao abrir a janela e o motorhome continuava lá. Isso seguiu por mais alguns dias. O vizinho, no entanto, deixou de aparecer. Não o via saindo ou chegando, abrindo ou fechando as janelas e portas. Tudo ali parecia um bocado escuro e sem vida. Foi na terça-feira que algo ocorreu. Ao abrir a janela, logo às seis da manhã, ainda antes de fazer o café e tirar o pijama, o avisou ali, como se tivesse passado a noite naquele tranquilo e pacato lugar. Uma certa névoa o revestia, pois o dia ainda era uma penumbra, esfregou os olhos instintivamente, buscando entender se aquela imagem não era o resquício tardio de um sonho indigesto. O motorhome continuava lá, de fato. Mas dessa vez a sua janela estava aberta, ele escorado no volante, mirando-o inclinado, sem se virar completamente. Parecia ter esperado aquela troca de olhares uma vida toda. Os segundos eternos e agonizantes, inertes e desesperados. Virou-se devagar, deu partida no motor e saiu, deixando para trás um jardim escuro, repleto de flores secas e a casa do vizinho, em chamas.

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