Poema #19

  • Poema #19 – CAMADAS DE ÁGUA

    .

    “o peixe sabe de tudo e nada”
    autoria desconhecida, século XIII

    tenho dois meses
    para morrer
    o ódio
    me circunscreve
    como camadas
    de água que vem
    inundando tudo,
    desde as primeiras células
    aos últimos fios de cabelo
    e são águas salobras, escuras
    de quando faço a descida
    da ponte para beber
    desta água, o líquido, mas ai,
    tem gosto de peixes putrefatos
    peixes analógicos e peixes digitais.

    “São voltas da vida, voltas da vida”,
    como dizia o enfermo Valdemar
    em seu leito de morte e honradez.

    lembro de ser abominado pelo meu próprio sangue,
    por ser alcoolizado e desistente (“mas eu não sei
    por que me sinto assim, vem de repente
    um anjo triste perto de mim”). Ah, que merda!
    e algumas e diversas era esse o meu mote
    para a distração em histórias em quadrinhos
    e as primeiras letras e composições em cadernos.

    sessenta anos, soa o sino em meu tímpano.

    meu prazo e o peso desta incongruência
    dobra-me o pé direito na sandália surrada
    “Casa da Eternidade”, que em hebraico se escreve,
    bet kevarot, mas já não sou digno de cheirar o ar,
    a água límpida, o pensamento puro, inoxidável.

    deverei ficar circunscrito a este cemitério de angu,
    atolado até os joelhos junto com as fezes dos porcos
    que se procuravam alimentar para o sacrifício final,
    num circo fúnebre onde seriam então recheados
    com “pêlo de gato, pêlo de um aleijado, chocalho
    de cascavel, pés de rã, orelhas de sapo, dentes
    de cão e garras de coelho”, para o cardápio da
    criança ingênua pensando que ao sair da escola, ah,

    e ele pensava, defeituoso e ingênuo das Gerais
    “chegando em casa vou pegar uma jantinha”.
    o controle 44 era uma tecla onde soava uma música
    em todos os dias (July 28th) e era singela como as
    lembranças que não puderam ser nesta (sic) encarnação:
    “lembrei de nós, do que ficou, se ficou não vai ter final”.

    mas antes há de vir o controle 72, do aniquilamento,
    da vida quando se torna um fardo pestilento, e eu bato
    a cabeça no travesseiro como uma lagartixa inútil, de olhos
    arregalados e o estômago e o cérebro entupido de remédios
    num quadro consolidado e sem volta, assim como do meu pai.

    “São voltas da vida, voltas da vida”,
    como dizia o enfermo Valdemar
    em seu leito de morte e honradez.

    queria ter a grandeza e a percepção da vida num leito de hospital
    para morrer fazendo este balanço isento de que tudo. “são voltas da vida,
    voltas da vida”, e no dia seguinte o Sr. Valdemar já não acordava mais.
    que venha esta noite, em mim também, ó morte, como num plenilúnio
    será que, depois disso, a vida deixará de dar as suas voltas? acho que não.
    o que eu tenho hoje são resíduos, resquícios de ressaca e sequelas
    “sofrendo com as calças e tudo” como o parente eunuco já dizia,

    e o que quer que isso tenha significado para ele de pés em perpendicular.
    durante toda aquela noite de veneno e cobra eu implorava o advento da morte
    para, ao menos, dentro dos dois meses subsequentes, eu pudesse acordar,
    invariavelmente menor, com um resto de vida e uns versos de circunstância
    como esses de agora e me faço então um urso plausível, criando forças para criar
    em meio a esse caos de tantas dores e os músculos retesados repuxando no braço
    como fosse me virar do avesso, o que faz com que a minha cabeça não consiga
    pensar mais e eu lanço tudo no livro das horas, antes de fechar a brochura contábil.

    “A Solidão Clandestina” foi demais e única companhia, amigo, falecido antes de mim.
    “O Himalaia de um Vaso” era alto demais para eu escalar, falecido conterrâneo, e então
    eu caía de borco com a cara no meio do barro, palhaço, cheio de livros e dentes partidos.

    Se ao menos eu tivesse tido, o quanto antes, a droga de um buril e punhais amolados.

    Da Essencialidade da Água

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