Poema de MIlton Rezende

  • Poema #24: RETORNO AO FINAL

    “meu Deus, porque me abandonaste?
    se sabias que eu não era Deus,
    se sabias que eu era fraco”

    Drummond

    protagonista
    de minha vida pregressa
    hoje sou coadjuvante
    de ruinas.

    nas águas do rio
    fiz algumas tentativas
    mas acabei afogando
    na correnteza.

    mudei de fase:
    virei pescador
    de sonhos frustrados
    à beira dos barrancos.

    galopei como quem
    sonha por estradas
    poeirentas de Minas
    Gerais, sozinho.

    empinei pipas e
    papagaios em céus
    nevoentos de minha
    infância distante.

    virei (ou tentei virar)
    compositor de vanguarda
    e fiz parcerias utópicas
    com célebres defuntos.

    amante de belezas glacias
    as mulheres passaram
    por minha vida como
    barcos à vela naufragados.

    fui poeta das condolências
    em velórios de interior
    quando o defunto era
    o que menos importava.

    candidatei a representante
    do povo, mas não tinha
    propostas viáveis no bolso
    da algibeira rota e furada.

    Da Essencialidade da Água

  • Poema #22: AZ-2

    .

    Vozes inaudíveis
    golpeiam meu silêncio
    de bicho entocado.

    Sou perseguido por fantasmas
    (desdobramentos de mim)
    e os apascento
    em precária unidade.

    Sei da existência sem vida
    e dos hálitos fétidos da morte
    que povoam a noite dos túmulos.

    Meu corpo é um mapa
    onde se cruzam
    os mais diversos caminhos
    da imaginação fantástica.

    Tenho todos os demônios
    empalhados no quarto
    e cada dia escolho um
    para sustentar os pesadelos.

    E sobre os meus despojos
    carcomidos pelo tempo
    e pelas mortes diárias
    que impus a mim mesmo,
    nascerá uma flor infernal
    para devorar todos os homens.

    O Acaso das Manhãs

  • Poema #21: Eu Queria Fazer um Poema pra Você

    Numa ocasião em que eu estava
    (como das outras vezes) prestes
    a me naufragar no abismo do delírio,
    houve um sorriso de dentes postiços.

    Mas eu já não queria mais cair
    na cilada do amor fugaz e preferia
    estar quieto e fugir para longe do
    alcance de uma outra decepção.

    Então eu me internei num hospício
    e amarrei as minhas mãos ao pé
    de uma árvore frutífera de onde
    eu poderia escavar o chão de barro.

    Ao fim do terceiro dia de psicopatia
    veio a diretora dizer que eu deveria
    partir para um lugar que não sabia
    e me deram um endereço e o contato.

    Era um lugar acolhedor e distante
    coberto de grama e cerca de arame
    mas quando fui atravessar a ponte
    um cão vampiro me atacou de noite.

    Sobrevivi como alguém que se esqueceu
    da longa noite passada e caminha como
    se o dia estivesse amanhecendo de novo,
    apesar do rastro de sangue e a boca seca.

    Havia uma casa deserta e eu pensei em
    largar tudo o que eu não nunca tive e
    vir morar aqui no meio dos bichos que
    comunicam-se através de sinais e apitos.

    Lembro de uma escada pintada de verde
    e uma mulher bonita que veio me atender
    com as mãos estendidas e um sorriso
    encorajador para que eu dissesse tudo.

    Não havia o que contar além do fato
    de eu ter andado ausente e perdido
    e que, nesse período, eu havia criado
    enredos irreais para me manter vivo.

    Tudo era então uma simples questão
    de fechar os olhos para os pássaros e viver
    tranquilo como os homens banidos de si
    e que se refugiam no labirinto do amor.

    Ai que delícia que é poder acordar e dizer
    que estou vivo, mesmo não tendo nada
    ao redor a não ser o microfone em que
    digo isso e acompanhar o seu eco no abismo.

    O Jardim Simultâneo

  • Poema #20 – CONFIDENCIAL

    Nada consta.
    Consta que seja um nada
    em face a uma constância
    de extremos inarredáveis.
    Enfim
    um nada consta sobre
    outro consta um nada
    — A vida incerta do homem —
    Nas folhas gastas do mundo
    não consta nada em
    detrimento desse nome.
    Um simples nome em meio
    a tantos outros no arquivo
    de uma gaveta metálica.

    O Acaso das Manhãs

  • Poema #17 – CORPO

    foi preciso
    que eu fosse
    envelhecendo
    para entender
    (em parte) o
    erotismo tardio
    nos poemas de
    Drummond.

    é que precisamos
    ir perdendo para
    poder reconquistar.
    é preciso ir morrendo
    pra aprender a gostar
    da vida e tentar
    (quando não é mais possível)
    usufruir da beleza da água

    que acabou de passar.

    Da Essencialidade da Água

  • Poema #15 – EUTANÁSIA

    .

    Sob uma chuva de outubro
    o germe penetrou
    no solo árido de mim,
    onde as emoções se resguardavam.

    Mas o sol e o raciocínio
    dos meses subsequentes
    atrofiaram o germe ávido
    que havia trazido o amor.

    E foram tantos os desencontros
    do clima naquele ano
    que a meteorologia afetiva
    justifica-se culpando a ambos.

    Agora, numa sala de espera
    contígua à do esquecimento,
    resta-nos como única saída
    a eutanásia cúmplice
    do que restou do sonho.

    O Acaso das Manhãs

  • #14 – A LUA ESCURA

    .

    sabe,
    há um momento
    em que a lua
    fica escura.

    é quando,
    a escuridão maior
    vinda dos montes
    cobre a Rua Fácil.

    e tudo,
    vira um só quadro
    negro, uma lousa
    fria que antecede
    a morte.

    Da Essencialidade da Água

  • #13 – PROGRAMA NOTURNO

    No silêncio sepulcral desta noite
    abro a janela
    e recebo a visita do demônio.
    Juntos travamos um pequeno diálogo
    acerca da destruição do mundo.

    Depois percorremos os cemitérios
    e os ninhos dos pássaros agourentos,
    respiramos o hálito da morte
    e compactuamos da miséria dos homens.

    A noite era fria e indiferente
    aos nossos propósitos de celebração.
    Com dedos trêmulos cavamos o altar
    de nosso macabro ritual.

    Antes, porém do sacrifício final
    fomos resgatar a memória dos corpos
    e garantir a permanência dos zumbis
    sobre a face andrajosa do planeta.

    Abrimos um caixão e uma brisa vaporosa,
    que era ao mesmo tempo fúnebre e sensual,
    despertou nossos instintos de espécie
    e pouco depois e para sempre estava
    consumado o ato lascivo e sagrado.

    Chegamos depois ao altar fatídico,
    e sob asquerosos protestos de ódio
    à vida social e fútil dos vivos,
    pegamos os punhais do sacrifício
    e nos entregamos ao suplício eterno.

    O Acaso das Manhãs

  • #10 – TECNO-POEMA

    .

    – Fala o poeta de vanguarda:
    A estrutura do verso
    está invertida
    em meu caleidoscópio.
    Preciso de uma máquina
    rápida e perfeita para
    fazer uma circuncisão mental:
    “Quero que a estrofe
    gravada ao jeito
    do vídeo cassete
    saia nítida,
    sem um defeito”.

    – Fala a crítica especializada:
    A infraestrutura do verso
    está evoluída
    em meu laboratório.
    Preciso de um computador
    rarefeito e sem defeito
    para efeito de análise poética:
    “O crítico é um digitador,
    digita tão completamente
    que chega a digitar a dor,
    a dor que sua mãe sente”.

    – Fala o homem pensante:
    A superestrutura dos acima
    está equivocada
    em minha concepção histórica.
    Preciso de uma filosofia
    autêntica e própria agora
    para escrever um poema-amostra:
    “A sombra projetada de um homem
    exclui o mecanismo da repetição alheia,
    pois a condição intrínseca dele mesmo
    exige que seu poema se faça de ideias
    e despreze a vida enquanto justificativa
    para o erro de se caminhar junto ao tempo”.

    – Fala um observador imparcial:
    Poesia significa
    abrir caminho para o abismo
    e pedir que nos devolvam
    o nosso sonho antiatômico.

    O Acaso das Manhãs

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