Sábado

  • Matando o tempo

    “Tempo, tempo, tempo, tempo, és um dos deuses mais lindos”.
    (Caetano Veloso, Oração ao Tempo)

    Quando criança, eu observava fascinado as mutações do tempo. Não me refiro ao tempo como período dos acontecimentos, medido pelo relógio, mas como condição meteorológica. Enquadrava-se o tempo no rol dos enigmas além de nossa compreensão, assim como o infinito ou o mistério da vida. As alterações do tempo, imaginava eu, dependiam dos humores dos deuses, a quem cabia a incumbência de reger a dança dos ventos, o ribombar dos trovões e o movimento das nuvens. Determinavam as divindades se o tempo seria chuvoso, ensolarado, frio, quente. E nós, humildemente, acatávamos. Quando inspiradas, brindavam-nos elas com um deslumbrante arco-íris, que só podia mesmo ser obra celestial.

    O comportamento errático do tempo era intrigante.  Fazia calor em épocas em que a disposição do planeta levaria a crer que deveria fazer frio. Passavam-se, sabe-se lá por que cargas d’água, meses sem chover, reduzindo ameaçadoramente o nível das represas e colocando em xeque a presteza das torneiras de jorrar o precioso líquido o tempo todo e sob qualquer tempo. Nossa capacidade de interferir nos propósitos das nuvens que, teimosas, recusavam-se a colaborar, era nula. Para superar os contratempos do tempo, só mesmo rezando pela intercessão de São Pedro. Restava abastecer-nos com trajes e acessórios apropriados como capas, guarda-chuvas, botas, casacos, cobertores das mais variadas espessuras, para nos precaver dos desígnios do tempo.

    Apesar de tais oscilações, havia certa regularidade nas intermitências do tempo que nos trazia uma sensação de alívio. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a umidade do ar nunca seria tão baixa quanto a do deserto do Saara e a temperatura jamais cairia a ponto de a água virar gelo. As tênues variações que vinham ocorrendo sequer nos fizeram perceber que, de repente, na “cidade da garoa” parou de garoar.

    Hoje, quando escuto falar em ‘mudanças climáticas’, sinto um arrepio na espinha. Como assim mudanças climáticas? Quer dizer que o tempo vai deixar de obedecer às determinações divinas conforme vinha ocorrendo desde os tempos de Adão e Eva? O que mais vai mudar? Não teremos mais primaveras e outonos? O céu vai também deixar de ser azul?  Os raios do sol deixarão de brilhar pelas manhãs?

    Quando os telejornais passaram a incluir, além de tediosos boletins meteorológicos diários, eventos climáticos catastróficos com temperaturas extremas nunca vistas, tufões devastadores, secas, incêndios e enchentes cada vez maiores, nossa reação era dar os ombros e dizer “o tempo ficou doido”, ajustando o ar condicionado para adequar artificialmente as condições climáticas dentro de casa. E assim íamos tocando a vida, sem nos preocupar quem era o responsável pelas anomalias do tempo ‘lá fora’.

    Não sei para você, caro leitor, mas para mim soa terrivelmente assustador que a interferência do homem no planeta tenha chegado a tal ponto que até o perene e ‘atemporal’ tempo está sendo afetado. Sim, pois o que está ocorrendo no clima não é fruto de praga divina, mas resultado de uma criminosa ação humana. Criminosa, sim. Pois o ato de agredir o meio-ambiente que abriga a vida no planeta deveria ser considerado tão delituoso quanto o de atentar contra o lar, onde residimos com nossa família.

    As condições para a formação da vida estão sendo alteradas obscenamente pelo homem e ninguém se importa. Nossa civilização doentia aceita com naturalidade a agressão impune à natureza. E os infratores são até exaltados por muitos como desbravadores e promotores do progresso.

    Sim, meu amigo, devo pesarosamente informar-lhe: o tempo está mudando. E isso não quer dizer que vai ficar nublado. Mas não se preocupe. A coisa vai ficar ainda pior. Há outras ‘mudancinhas’ em curso enquanto você lê esse texto. Os mares estão sendo infestados de plásticos, os rios envenenados por mercúrio, as florestas devastadas, o ar tornando-se irrespirável, as fontes de água potável estão rapidamente se esgotando e em poucos anos, a maior parte da população mundial não terá como saciar suas necessidades pelo líquido vital.

    O mundo tal qual estávamos acostumados não existe mais. E a maior parte da população está pouco se lixando. Ninguém abre mão sequer da conveniência do saquinho de plástico do supermercado, confiando que, como por milagre, o mesmo ‘progresso’ que gerou essa situação consiga salvar o tempo. A tempo.

    Resta perguntar a nossos filhos se eles concordam com o ‘admirável tempo novo’ que estamos lhes deixando.

  • Falo, logo existo!

    Ponha-se no seu lugar…

    Quantas de nós já ouviu essa frase imperativa sair da boca de castradores natos? 

    Parece óbvio apontar que a ordenança expressa a ideia de que às mulheres caberia um lugar de imobilidade e aceitação silenciosa do destino forjado pelos colonizadores de almas femininas. Insisto em esclarecer o evidente porque eles são mestres em produzir cortinas de fumaça, em tornar natural o absurdo.

    Ponha-se no seu lugar…

    A frase dita à Ministra Marina Silva nos revela dados que não podemos ignorar: muitos homens, e um considerável número de mulheres, acredita que o feminino é um lugar de contenção, silenciamento e submissão. Um buraco fundo cavado no desértico universo masculino, onde atiram-se os corpos rebeldes. Quem és tu que ousas mover-se? 

    A coleira social se presentifica em situações naturalizadas no cotidiano. Seja nas regras de etiqueta e conduta da mulher elegante, na maternidade santificada, na violência física, social e psicológica diária que instaura o medo, a vulnerabilidade e o muro das impossibilidades.

    A mordaça coletiva, a camisa de força tecida ao longo dos séculos pelo machismo estrutural nos ameaça o tempo inteiro. O status, a classe social, a beleza, o poder econômico, o intelecto, nada disso nos salva das armadilhas, achaques e ataques promovidos na minúcia de cada segundo.  

    Somente o amparo feito de identificação e consciência de gênero é capaz de nos proteger de tamanha brutalidade.

    São sutis as formas de controle e desestruturação da resistência feminina: fomento da competição entre as mulheres, valorização do amor romântico como missão primordial da existência, a fragilidade/inferioridade como ferramenta de sedução e conquista. 

    Ponha-se no seu lugar de MULHER e observe as peças que formam a engrenagem que nos tritura a todas nós. 

    Ser mulher é um destino que não se escapa, se impõe. O mundo está cada vez mais hostil e ameaçador com cada uma de nós.  Percebem? 

    Quando dizem que nós, mulheres, falamos demais, entendo que esse é o manejo feito para enfraquecer aquela que talvez seja a nossa arma mais poderosa. A voz, a denúncia, o grito, a escrita, a carta, o bilhete, a canção.

    Falemos de tudo! Falemos pela boca, pelos cotovelos, pelos dedos, pelos olhos. Façamos barulho! Muito barulho. 

    E, ao ouvir uma voz fraca a pedir ajuda, tenhamos a força de ser eco.

    Eles, os tolos, acham que habitamos um lugar estreito e abafado. Coitados, ainda não descobriram que, juntas, somos um Território. De mãos dadas desenhamos as fronteiras. Nossa voz é um canhão a mirar os invasores.

    Ponha-se no seu lugar de MULHER e bata suas lindas asas. Voe alto e para onde quiser!

  • Quando foi mesmo?

    Minha mente vive de espantos e porquês. Até hoje, na sétima década da minha vida, me declaro aprendiz.

    Faço perguntas e me vejo em busca de respostas que nem sabia procurar. E nesse apego às dúvidas e incertezas passo dias pensando, lendo, comparando e pesquisando sobre o que eu desconheço, ou o que me intriga.

    Não tenho predileção por temas… o que tenho, de verdade, são perguntas: como, quando, por quê. E vou além, porque além de observar, eu busco exemplos, comprovações mesmo!

    Gosto dos números, pois eles me orientam em tudo. Até para saber se a igreja está mais cheia que o normal. Sei que temos cento e vinte lugares (já contei) e, assim que entro no recinto, minha calculadora mental dispara e anota que, aproximadamente, estamos com mais um terço de pessoas. 

    Por que eu faço isso? Não sei…

    Ainda em relação a essa predileção percebo que vejo a vida baseada em números, datas, estações. “Tal ano, minha irmã começou a costurar; em 1900 e bolinha, foi o batizado da minha primeira filha; no ano em que passava determinado filme, decidi deixar de ser dona de casa e ir trabalhar. No verão seguinte constatei que não tinha qualificação e resolvi estudar. Formei-me em julho do ano em que houve tal evento.”

    Ao falar do “quando” eu abstraio o porquê…

    Como se as datas preenchessem os motivos, os sentimentos, as razões e emoções do que ocorria em minha vida.

    Constato, então, que conversar comigo é um exercício complicado.

    Qual foi a conclusão a que isso me levou? Primeiro, que o axioma “Só sei que nada sei” faz todo sentido. E que datas devem interessar ao coletivo, ao mundo, aos eventos grandiosos, aos historiadores, aos cientistas, talvez. Nesse contexto o tempo cronológico significa segurança, verdade, esperança, e também temores e incertezas.

    Para nós, meros mortais, não faz diferença saber nem em que ano nascemos! Para que? Acaso existe uma data que determine quando deixaremos de viver? Ou de ainda nos surpreender, ou de passarmos a gostar de inverno, ou parar de detestar frutos do mar?

    Acredito que a busca pelo que há de bom e belo faz parte do ser humano de forma intrínseca e intuitiva, em qualquer época e data da vida.

    As lembranças, sensações, propósitos e realizações devem ser arquivadas em nossas mentes, não por datas exatas, mas pelo valor das palavras, dos atos e emoções vividas.

    Essa deve ser a nossa meta, como seres humanos.

    Afinal, a jornada chamada vida, não acontece de forma exata e linear e nisso está o seu encanto.

    Qualquer que seja a data!

  • Parece que foi ontem

    Hoje o universo escolheu tirar o dia para me cutucar. Já pela manhã, enquanto caminhava no play, quase pisei num boneco de plástico atirado pela varanda por alguma criança entediada de cimento.

    Não era um boneco qualquer, o danado era idêntico ao que eu tinha no consultório. Protagonista de tantas brincadeiras cheias de simbolismos e significados. O outrora soldado valente, agora, jazia ali como representante lúdico de tudo que acaba.

    As lembranças feitas de fragmentos de ontens afivelaram um cinto apertado na minha garganta.

    Quanta saudade de mim…

    Horas mais tarde, procurando a carteira de vacinação na gaveta de documentos, achei a foto de uma moça jovem, bonita e sorridente que teimava em dizer que era eu. Como pode? Só não insisti na contestação porque temos sobrancelhas muito parecidas. Que saudade de nós…

    O sol já se despia quando liguei o rádio do carro e senti a última cutucada do universo através da voz inesquecível de Belchior: “Falaremos para a vida: vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil. Meu coração é como um vidro ou um beijo de novela.”

    Ah, que saudade de mim. Daquela que fui em tempos idos e partiu em tempos vindos.

    Envelhecer carece de um adestramento das memórias. Caso contrário, elas não cessam de latir, morder, atacar o hoje com seus dentes afiados, suas unhas cortantes. 

    O desafio é grande, porque o passado é soberbo, se julga insuperável. Desdenha dos colegas de conjugação.

    Ai que saudade de mim…

  • Camaleão

    Todo mundo conhece ou já conviveu com um camaleão: aquele bicho que parece, mas não é! Pois, então: eles convivem em seu ambiente, se tornam seus “amigos”, sabem dos seus sonhos e expectativas, e se chamam colegas, colaboradores, equipes, parceiros, confidentes e afins.

    Tome cuidado! Nem sempre o que parece é, pode haver um camaleão oculto aí, bem perto de você.

    Pessoas que agem como se fossem o que não são: eficientes, profundo saber, indispensáveis. Muito próximos, prestativos, camaradas. Podem ser vistos como inocentes, ou distraídos, assim como os conhecidos disseminadores de informações extra-oficiais, os famosos “rádios-peões”.

    No entanto, são muito mais perigosos, pois frequentam os espaços dos chefes e líderes, onde passam a conhecer as pessoas, os processos, as minúcias do que acontece ao seu redor. Os seus alvos podem estar ali.

    Trazem consigo uma característica peculiar, inerente e indefensável: são falsos. São invejosos, pois acham que pertencer a determinados estratos sociais farão deles algo maior do que são.

    Nascem assim ou, sem perceber, vão criando camadas até se tornarem o que são?

    Sua maior habilidade? Ser puxa-saco, bajulador. Eu, você e todo mundo conhece alguém assim, já que ele pode estar nos mais variados lugares, em diversas camadas da sociedade. Podem estar no seu trabalho, na igreja, no grupo de pais ou na sala de aula. Agem “inocentemente” servis, declaradamente devotos, mas na realidade, são baba-ovos.

    Usam frases de efeito, discorrem sobre o que ouviram falar, na leitura da manchete e não no conteúdo. Estão sempre prontos a colaborar, trabalhar nos finais de semana, substituir, elogiar e inflar o ego dos superiores.

    Só encenação.

    Parecem diligentes, capazes, interessados, mas o objetivo é colher informações aqui e ali. Seu intuito é saber da vida e dos pontos fracos dos colegas. Não para ajudar, e sim para tirar proveito no momento oportuno.

    E, então, conquistam aquilo que sempre desejaram: o Pequeno Superpoder, com títulos variados: assessores, “braço-direito”, vice, e por aí vai. O conteúdo é raso como um pires, mas a pose é de eficiência.

    Tornam-se a segurança do chefe: cuidam da sua agenda, do cafezinho, elogiam e não cansam de surpreendê-lo positivamente. Adoram quando ele viaja e, mesmo sem serem substitutos oficiais, passam a dominar o ambiente. Com isso vão se mantendo e moldando a sua forma de ser de acordo com o que pretendem auferir.

    Podem até subir na vida, mas só alcançam o rodapé. No máximo, o primeiro degrau. E dali não passam. Exceto se forem da área política. Ali podem galgar muitos degraus. A única forma de lidar com esses indivíduos é com franqueza, sem temores! Ignorar ou tirar a máscara.

    Será que vale a pena?

  • Espelho, espelho meu

    Ontem foi dia de conhecer um exemplar da nova humanidade. Estava almoçando com meu filho, num restaurante da zona sul, depois de um exame em que fui acompanhá-lo (ação corriqueira para mães das proles de antigamente) quando ele me interpelou: “Aquilo ali é um bebê reborn?” 

    Discretamente, acompanhei seu olhar e me deparei com uma moça aconchegando o bebê em seu colo enquanto andava para lá e para cá. O movimento era parecido com o ninar das mães/cuidadoras de crianças feitas de poros, mas com algumas diferenças, talvez, inalcançáveis para quem não vivencia a corda bamba da maternidade feita de cheiro de fralda suja e beijo babado:

    1. o balançar do colo não tinha aquela apreensão inerente ao ato de ninar um bebê: é sono? Fome? Dor? Gases?

    2.  A tranquilidade de quem não corre o risco de levar uma golfada.

    3.  A paz absoluta dos que não precisam ter medo de errar, de não perceber ou intervir a tempo, de falhar.

    4. A solidão de um olhar que não encontra testemunho de afeto.

    Tudo sob controle, milimetricamente previsível, controlável. Por alguns instantes, admirei a maternidade reduzida a sua função de cuidados mecânicos. Mas, em poucos segundos, o sorriso esvaziou, senti falta da temperatura, do cheiro, da gargalhada, do choro feito de lágrimas, das mãozinhas puxando o cabelo. 

    Voltei para o meu filho e respondi: “Com certeza é um reborn. Não há dúvidas.” 

    Quando coloquei no teto do quarto um papel de parede cheio de estrelas, achei lindo, mas sabia que não eram estrelas. 

    Por mais que digam que, para toda mãe, os filhos serão sempre crianças, desejamos que cresçam. E essa é a graça, ver o amor ganhar contornos, a intimidade desenhar nuances, a relação se reinventar no tempo.

    As rosas de plástico enfeitam a casa, mas não perfumam.

  • O VALOR DA ÁGUA

    Nossa sociedade mantém uma relação “profana” de usurpação com os recursos da Natureza. A água e outros bens naturais são vistos apenas como matéria-prima que possibilita o bem-estar do ser humano. As ciências, nas bases em que evoluíram, sancionam essa extorsiva apropriação.

    Todavia, o real valor da água vai bem além da função que lhe destina o utilitarismo materialista do homem civilizado. Reduzi-la a essa condição é espezinhar outros modos de se relacionar com o bem, associados a diferentes formas de valor. Como elemento ecológico, por exemplo, a água desempenha papel fundamental no equilíbrio dos ecossistemas. É dotada também de inestimável valor histórico, social, cultural, estético e simbólico.

    Muito mais do que nos utilizarmos da água, somos água. A água é 70% de nossa constituição. Essa representação significa que observador e coisa observada são um só e sujeito confunde-se com objeto. Nossa dependência desse elemento vital provém do momento em que fomos concebidos. Mais do que isso, a própria vida no planeta Terra originou-se em seu interior. E até hoje conserva traços dessa conexão primitiva. O contato com a água, além de proporcionar reconhecidas virtudes terapêuticas, resgata ao corpo uma prazerosa sensação de harmonia.

    Em função dessa condição de essencialidade, a água tem sido objeto de ritos sagrados e devoção em todas as épocas por todas as grandes culturas e religiões, associada à fonte da vida, à purificação, à regeneração, à proteção contra o mal e outras qualidades mágicas.

    Ao fazer da água objeto de estudo das ciências físicas, biológicas e sociais, o caminho é o de dessacralizá-la, coisificá-la, arrancá-la de sua condição sublime. Não nos cabe extrair da água sua divindade, e sim irrigar os áridos campos científicos com um pouco da energia vital de que aquele precioso líquido é dotado.

    Degradada a fonte da vida degradou-se também a vida. Mas não foi a água que mudou. É bem verdade que está ela carregada de substâncias cada vez de pior espécie. Porém, em sua essência, continua ela tão H20 como sempre foi. Apesar de bem menos cristalina e mais mal cheirosa, continua ela a correr líquida, solta e indomável, indiferente às reflexões humanas a seu respeito. Tampouco mudou o homem, pelo menos no que concerne a suas necessidades fisiológicas relacionadas com o bem em questão.

    Os conceitos científicos é que parece não estar se adequando mais. Não se pode fazer a água se sujeitar a modelos concebidos para abrigá-la. Ao sair de suas sólidas bases e entrar nesse campo, digamos, mais fluido, as ciências também revelam suas deficiências e fragilidades metodológicas. Efetuar uma análise desse bem de qualidades tão invulgares, e primordiais coloca as ciências diante de um colossal desafio que as obrigará reavaliar alguns de seus fundamentos.

    Deve-se considerar que a água possui também um inestimável valor, cultural, religioso e histórico associada ao nascimento de importantes civilizações (inclusive a nossa, que teve como marco inicial o nascimento da Mesopotâmia, entre o Tigre e o Eufrates), que surgiram às margens dos rios ou à beira do mar. Sob a água, outras teriam sucumbido como Atlântida.

    Em todas as culturas e religiões, ela aparece como símbolo marcante. Nas tradições judaica e cristã, a água simboliza, em primeiro lugar, a origem da criação. Contendo o elemento de regeneração corporal e espiritual, as chuvas e o orvalho trariam consigo a fecundidade e manifestariam a benevolência divina e os rios seriam agentes da fertilização.

    As águas de rios sagrados como o Ganges (para os hindus) e o Jordão (para os hebreus e cristãos) teriam o poder de “lavar” a alma de quem nelas se banhasse. Do batismo a ablução, teria o poder de purificar os homens dos pecados e impurezas.

    O Corão designa a água que vem dos céus como um dos signos divinos. No Novo Testamento, aparece com destaque nas palavras de Cristo: “Quem beber a água que eu lhe darei, nunca mais terá sede, pois a água que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna” (João 4:14).

    Representa a sabedoria taoísta, porque não tem contestações. É livre e desimpedida, corre segundo o declive do terreno: “A água não se detém nem de dia nem de noite” diz Lao-Tsé. Para o I Ching, o oráculo milenar da cultura chinesa, “a água flui ininterruptamente, e chega à sua meta” (hexagrama 29), servindo de modelo de conduta para o homem: preencher todas as depressões antes de seguir adiante.

    Para diversas tribos indígenas, as águas acolhem espíritos e divindades. Para ela são entregues pelos umbandistas as oferendas dirigidas a Iemanjá. Personifica também qualidades encantadas, constituindo-se em morada de ninfos e deuses.

    Possui a água significado mítico e psicológico, integrando o imaginário coletivo, associada a aventuras rumo ao misterioso ou jornadas a um novo mundo. As águas profundas representam o impenetrável inconsciente ou o reino obscuro do desconhecido.

    Sendo ela que permite a vida, é vista também como bênção, elemento sagrado, que teria o poder de curar, purificar e rejuvenescer.

    Em função dessa importância simbólica, a conservação da água em bom estado tem um valor que em muito transcende as necessidades relacionadas com o seu uso. Sua deterioração coloca sob ameaça a própria integridade da vida social e cultural. A poluição é o câncer da água. Todos vêem na água como que o elemento vital primordial: a fonte da vida, que deve ser preservada.

    *Texto adaptado da minha tese “O VALOR ECONÔMICO DA ÁGUA”, escrito em 2002, como tese de Mestrado para o PROCAM – Programa de Ciência Ambiental da USP.

  • Crônica do Dia Seguinte

    Se tem um dia que eu gosto, eu gosto mais ainda do dia anterior e do dia seguinte. Sim, porque há um encanto que mora nas bordas dos acontecimentos, ali nos minutos antes do salto e no respiro depois do mergulho.

    Se é festa, o dia anterior é puro movimento: últimos arranjos, conferência de listas, compras apressadas, almoço engolido às pressas porque o tempo urge, marcar salão de beleza, verificar as roupas das crianças, fazer as checagens finais. É uma pressa que não cansa. Ao contrário, é uma urgência boa, que dá energia, como se a vida pulsasse mais forte nas vésperas.

    Se é prova de faculdade, o dia anterior é biblioteca com as amigas, dicas dos sabidões da turma, coração disparado. É como se o corpo se preparasse para o salto, tomado por uma expectativa nervosa e cheia de adrenalina.

    Se é cirurgia, consulta, visita ao salão, ou o que quer que seja o evento, o dia anterior é sempre um lugar à parte. Um lugar suspenso, fora da rotina. É o dia da expectativa.

    E o dia seguinte?

    Ah… melhor que o dia anterior, só o dia seguinte. Quando tudo já aconteceu e a gente pode enfim respirar.

    É quando o corpo agradece e a mente repassa, satisfeita, tudo que deu certo ou tudo que ensinou. É quando percebemos que valeu a pena ter chamado aquela cozinheira, que as meninas estavam lindas, que a prova foi menos cruel do que o esperado, que na próxima consulta a gente já sabe: nada de marcar outro compromisso no mesmo dia.

    O dia anterior e o dia seguinte de uma festa são, pra mim, o que há de melhor. Adoro!

    E se tiver visitas de fora então? Aí sim fica melhor ainda;  a casa se enche de outra energia, outro tipo de urgência, mais calorosa, mais humana. Coisas pequenas ganham importância: o colchão inflável, o café coado com capricho, o tempo esticado em conversas no quintal.

    Estranho… essa sensação sempre me pareceu tão íntima que nunca comentei com ninguém.

    Será que é coisa só minha? Ou será que todos, em silêncio, também têm esse carinho pelos dias que cercam os grandes dias?

    Talvez sejamos todos assim: amantes dos intervalos. Porque é neles que a vida acontece devagar. No antes, mora a esperança. No depois, o entendimento. 

    E o durante… ah, esse a gente quase nunca percebe enquanto vive. Porque é o que faz  pulsar o coração.

  • Para quem é colo, amparo e parceria

    Domingo é o Dia das Mães. Por mais que saibamos a influência do comércio na criação e manutenção da data, seguimos envolvidos na programação do evento: o que dar de presente, o que escrever no cartão? Flores? Onde será o almoço? Qual vai ser o menu?

    Embora a mídia queira nos convencer de que tudo é lindo, sabemos que, para muitos, esse dia vem embrulhado de vazios, lembranças e saudades. Para outros, tristeza, mágoa ou rancor. De um jeito ou de outro, somos atravessados por esse calendário socioafetivo. Não é possível passar ileso ou distraído. Somos convocados a lidar com nossos afetos.

    Tem quem prefira esvaziar a importância do evento, argumentando: Dia das Mães é todo dia. Em parte, concordo. Mas não vejo problema em escolhermos uma data certinha para focarmos, mais atentamente, nos mimos de amor.

    Creio ser uma ótima opção para resgatarmos abraços que se perderam na correria dos dias, olhares que não se cruzaram tempo suficiente para trocarem sorrisos, frases esquecidas no “depois eu te falo”. A eleição de um momento específico de celebração não nos impede de desafiar a urgência da vida para demonstrar o amor que sentimos.

    Sempre é tempo de cantar o que vibra em nós.

    O Dia das Mães é domingo, mas hoje quando meu filho me surpreendeu com um pão com ovo e café feito por ele, para meu lanche da tarde, senti o conforto inestimável de ser amada nos detalhes do cotidiano. Mas adoro a ideia de que domingo tem mais!

    Que possamos todos nos apropriar desse dia para dedicar atenção e carinho àqueles que são colo, amparo e parceria em nossas vidas, independente do cargo ou função que ocupem.

    Celebre os seus!

  • As mulheres da nossa vida

    Eu tive avós. Na minha infância, eles eram a autoridade máxima da família. Austeros, respeitados e, por vezes, até temidos. Se filhos e noras já os tratavam assim, imagine nós: aquela penca de irmãos, primos, afilhados e agregados?

    A figura moderna dos avós é bem diferente. São os que mimam os netos, presenteiam em qualquer data, levam ao shopping, pagam terapeutas e se colocam quase como amiguinhos das crianças. Mas esses também já começam a se tornar raridade. Estão, como os antigos, em extinção.

    Ainda bem. Sou avó de dez netos. Sim, quase uma dúzia. Altos ou nem tanto, fofos ou nem tanto, achegados ou apenas educados. Cada um a seu modo. Fazem parte de mim, filhos dos meus filhos.

    Nesse pensar lento e silencioso, no tempo necessário para que as ideias se acomodem, compreendi o que tem me causado certa estranheza: são os ecos das realidades. As dos tempos atuais e as de que me recordo. E elas não pedem comparações, tampouco julgamentos. Apenas ecoam.

    Houve o tempo em que, embora  sem entender, obedecíamos. Porque o que diziam pais, mães, avós, nos dirigiam… Éramos crianças, mas sabíamos que aquelas palavras, o tom da voz, até o silêncio entre as frases, era amor. E um dia fariam sentido.

    O tempo se encarregaria disso. E tudo se tornaria claro em beleza, verdade e permanência daquilo que nos foi ensinado.

    O mesmo não  podemos afirmar sobre as novas gerações. Basta olharmos as redes sociais, onde a procura de aprovação a qualquer custo geram amor e ódios instantâneos.

    O mundo virtual substituiu as conversas e trocas de ideias. Um emoji “vale mais que mil palavras”. As certezas são instantâneas e as verdades absolutas.

    Personalidades construídas sobre alicerces frágeis não se sustentam, pois uma opinião contrária é capaz de provocar revoltas, rupturas ou até a perda do sentido da vida.

    Mas a memória leve de uma risada, de uma presença silenciosa, de um afeto firme e sem alarde sempre há de nos dar  a convicção de sermos pessoas fortes, capazes de enfrentar a vida e mudar de rumo quando necessário, sem nos perder.

    É o Dia das Mães…e escrevi sobre avós, famílias e valores… Sobre aprendizados e escolhas… sobre força e alicerces… sobre amor…

    Será mesmo que não falei das mães?

    Feliz Dia das Mães!

  • A Dama e o Vagabundo

    Minha porção mulher, que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é a que me faz viver (Gilberto Gil, Super-Homem)

    A humanidade vem sendo regida há milhões de anos pelo macho da espécie. Chegou a hora de reconhecer: não deu certo! Como genuíno representante do sexo masculino, declaro peremptoriamente que entrego os pontos. Desisto! Nós, homens, já fizemos burradas suficientes. De minha parte, anuncio que passo o bastão às mulheres a quem humildemente me submeto, elegendo-as para cargos de comando e alçando-as a todas as atividades que envolvam exercício de poder. Pior do que está não vai ficar. Sei que não serei acompanhado por outros da minha estirpe pois conheço bem o tipinho que encarno: viril, orgulhoso, não dá o braço a torcer.

    Tenho um argumento infalível para convencer meus iguais. Já que você, ô marmanjo, não tem brio suficiente para admitir sua incompetência, pense nos seus filhos e netos. Se você os ama, dê-lhes ao menos a oportunidade de terem um futuro nesse mundo em frangalhos que sua gestão infeliz produziu.   

    Não imagino, por exemplo, que alguma mulher faria a insanidade de lançar bombas em cidades, assassinar adversários em massa, promover chacinas e genocídios, cultuar armas e perpetrar outras bárbaras atrocidades a seus semelhantes. As exceções que me recordo são as mulheres-bomba, que agiram a mando de… homens.

    Ou viramos a mesa ou o dito “homem” – por extensão, a raça humana, aí incluídas não apenas as mulheres mas as inúmeras categorias sexuais intermediárias emergentes – estará em poucas dezenas de anos extinto do planeta.

    O mundo como hoje conhecemos, vulnerável a vírus letais, ameaça nuclear, tragédia social, apocalipse ambiental, foi uma construção masculina, tem a face grotesca e brutal do inepto bicho-homem. Ou colocamo-lo sob nova administração, ou dito cujo já era.

    Trata-se de uma constatação lógica e me admira que a grande maioria dos indivíduos (especialmente aqueles que se orgulham mais do seu pênis do que do seu cérebro) não tenha ainda chegado a essa conclusão tão evidente.

    Não, não estou me rendendo às teses feministas. A pauta da sociedade igualitária não me fascina. Homem e mulher são seres biológica e psicologicamente distintos. O homem prima pela força física, pela razão, pela lógica. Já o chamado “sexo frágil” (que piada!) distingue-se pela formosura, pela sensibilidade, pela intuição, pela resiliência. Por ter o atributo da força, o gostosão impõe-se à delicada mulher que se submete a seu algoz que usa da bestial violência para ditar suas regras. 200 mil anos de civilização não foram suficientes para revogar a lei do tacape.

    O capitalismo adaptou-se perfeitamente ao patriarcado e definiu o papel de cada gênero no sistema. Ao homem, ‘chefe’ da prole, cabe negociar suas habilidades no mercado de trabalho e com a grana obtida, sustentar os gastos domésticos. A mulher fica em casa lavando louça, limpando a privada e cuidando das crianças, trabalhos ‘inferiores’ sem remuneração, não monetizados pelo mercado. Que sistema hipócrita! Gratifica apenas as atividades que interessam ao capital, exercidas pelo membro empoderado do casal. A fêmea desempenha a incumbência ‘acessória’ de amamentar o bebê e manter estruturado o lar, sendo dependente financeiramente do varão folgado que se embebeda e farreia nos botequins. Sejamos honestos: isso é uma deslavada exploração de mão-de-obra.

    A natureza concedeu à mulher uma função muito mais nobre e, para que ela a exerça com louvor, não precisa ocupar o espaço do homem. Se pleitear isso, estará admitindo que os valores masculinos são superiores. O que é preciso é que seja reconhecida a importância do seu papel, muito mais imprescindível que o do provedor financeiro.

    A mulher para brilhar não tem que ser cientista, filósofa, soldada, enxadrista, jogar futebol, lutar muay thay. Deixe os homens se sobressaírem nessas áreas. As damas têm habilidades muito mais indispensáveis na preservação do equilíbrio social do que as dos vagabundos, inclusive a principal de todas: gerar a vida.

    Por isso, caro amigo e cara amiga, está na hora de corrigir o rumo e mudar as regras do jogo. A começar por redefinir quem deve dar as cartas.

  • Essa superestranha

    Há poucos dias estava em busca de alguma série ou filme que tivesse como locação a Turquia. Viajo para lá em junho e queria me ambientar antes da partida. Adoro passar pelos lugares e ter o prazer infantil de apontar e dizer: olha ali! Lembra daquela cena? Nessa busca inglória, me deparei com uma novela turca cujo nome, por si só, já me fez dar uma risadinha debochada — A sonhadora. Pensei em desistir, mas acabei deixando de lado as minhas críticas ferinas. “Que coisa brega, deve ser igual à Sabrina, aquela revista tosca da minha adolescência”, “mais uma história de mocinha apaixonada” e apertei o play para o primeiro episódio. 

    Como imaginei, era tudo muito ruim, quase péssimo. Interpretações exageradas, furos de continuidade, diálogos e cenas sem consistência lógica, um sururu sem fim. Para não ser injusta, os protagonistas Can e Sanem embelezavam a tela sempre que apareciam; os cenários coloridos e as paisagens também eram lindos. Mas nada além disso. 

    O esperado era que eu desistisse de perder tempo com aquela besteira sem atrativos intelectuais que eu pudesse exibir para os amigos, mas não! Mesmo achando tudo muito esdrúxulo, questionando o mau gosto e a minha sanidade mental, acolhi inteiramente meu desejo e assumi: quero!

    Que me julguem. Essa também sou eu.

    Resumo da história: fiquei viciada nessa comédia romântica, perdi várias noites de sono para assistir os 160 capítulos da Sonhadora, me afeiçoei aos personagens, reencontrei lembranças minhas, senti brotar inspirações para um novo livro.

    Foram dias intensos. Aguardava ansiosa pela hora de estar no sofá e continuar a aventura de flanar pela trama, dar risadas, lágrimas, suspiros junto com eles.

    A história foi seguindo o caminho do fim. Eu fui seguindo o caminho de mim. Encontrando placas, avisos sobre a imprevisibilidade da existência e os milhões de fragmentos possíveis e inesperados que compõem esse vir a ser que me habita. De quebra, ainda pesquei algumas conclusões sobre quem efetivamente sou até então.

    O amor romântico é uma praga que me cativa inteira; a graça de viver flutua fora da caixa do padronizado; as coisas bobas da paixão me fazem rir com sincronia entre os lábios e a alma. 

    Foi maravilhoso rever essa estranha-familiar que aparece quando tudo some e só restam nós duas: eu e essa menina enamorada pelo poder da paixão na sua raiz mais clichê. Não julguem. O indicado, apropriado, o certo a se fazer numa escolha é circunstancial. Aceitem. Às vezes, o melhor que desejamos não é tão apreciável assim pelos outros. E daí?

    Nada é mais divertido do que ser o que se é, a despeito do que se pretendia ser para atender às demandas sociais.

    Obs: acabo de apertar o play para assistir o primeiro capítulo novamente. Estou viciada nessa alegria. Aceito sugestões de outras novelas e séries. Não precisa ser nada profundo, nobre, intelectualizado, culturalmente valorizado. Basta que seja leve, doce e despretensioso. Bom demais não precisar pensar, avaliar, entender, julgar, criticar, analisar. Só ser, sentir e viver.

  • Toda verdade é ato

    Ao tomar ciência da morte do Papa Francisco, um lamento silencioso me abraçou forte. Não frequento igrejas ou missas nem o conhecia pessoalmente, mas senti o pesar que a partida de um amigo distante e querido inaugura.

    A exploração excessiva da mídia, a monetarização advinda do uso selvagem da notícia do seu falecimento, a pequenez do mundo, tornou ainda mais evidente a grandeza rara desse homem que escreveu com atitudes o brado de uma ética de humanização do viver.  

    Seu maior legado talvez seja a mensagem cifrada em todas as suas ações: o amor genuíno, curandeiro de todo o mal, só floresce do respeito e da empatia entre os seres.

    Ele se foi, mas uma fração da sua eternidade ficou em mim.

    O bem reverbera!

    O Amor é colo que acolhe sem mimar.

    A verdade dos afetos e dos intentos vive nos gestos. O Papa Francisco escolheu ser sepultado na Basílica de Santa Maria de Maggiore em Roma, quebrando a tradição centenária de sepultamento na Basílica de São Pedro.

    Quantas coisas são ditas com esse ato…

  • Almas

    Almas rasas, almas profundas. Almas quietas, almas inquietas. Almas glutonas. Ou seriam corpos glutões? Almas machucadas, doídas, que não são percebidas. Almas irmãs, almas curiosas, almas altruístas.

    Olhar, esquadrinhar, perscrutar…

    É desonesto? É como espiar pelo buraco da fechadura? É pretensioso?

    Não sei… mas não consigo evitar. Meu olhar atravessa os corpos, vasculha os gestos, decifra os silêncios. Cada passo que vejo guarda uma história, cada olhar desviado esconde um receio. Há almas que se mostram sem perceber, e há outras que se escondem, mas não o suficiente.

    Ah, meus amigos…

    Como eu gostaria de ser uma alma bebê…

    Só assim eu deixaria de ver. De perceber. De saber.

    Uma alma inocente não veria malícias, subterfúgios, intenções. Não distinguiria as sombras dos sorrisos, as hesitações dos fingimentos. Viveria sem o peso da consciência, sem essa insuportável necessidade de compreender o que deveria passar despercebido.

    Quisera eu ter a inocência de estar desnuda e não perceber…

    Mas não! Prefiro estar oculta a estar desnuda…

    Afinal, para quê saber das fragilidades, da inocência, da malícia?

    Por quê? Para quê? Essa é a pergunta que atormenta a MINHA ALMA…

    E ainda assim, eu continuo olhando.

  • Ela morreu

    Sentada à mesa de um restaurante, aguardando uma amiga para o almoço de celebração da nossa amizade, chegou aos meus ouvidos uma frase, com efeito de fogos de artifício, dita por uma voz feminina, provavelmente da mesa ao lado:

    — Eu confiava nela. 

    No momento que decodifiquei o som e o sentido se fez claro, fui tomada por uma tristeza absoluta e uma identificação imediata com a enganada da vez. 

    Sem que nos conhecêssemos ou tivéssemos intimidade, experimentei, por osmose, a dor causada pelo corte profundo da decepção. O sangrar hemorrágico de um fim que se impõe mesmo diante do perdão. Toda falsidade ou traição fere a eternidade do sentimento, a ingenuidade da confiança. Sem isso, ela é outra coisa. Perde o viço, a raridade, o estado nato de berço. Mas tem quem não se importe, quem acredite que uma vez ferida, ela, a confiança, feito lagartixa, se regenera. Quanto engano! 

    Seu ferimento tem dor profunda, pulsante e incurável. Sua cicatriz é feita de queloide. Impossível retornar ao conforto inicial de sentir-se em casa diante do outro. Esse é o maior luto. A certeza de que não se volta ao estado natural de ingenuidade. Impressionante que as pessoas não se deem conta do que perdem com o fim da fé em si. 

    Eu confiava nela. Que triste! 

  • O que perdemos com o Wi-Fi

    A tecnologia nos trouxe muitas coisas. Mas o que ela levou embora? Creio que a pergunta poderia ser: as crianças ainda brincam? Acredito que brincam bem menos do que eu, meus irmãos e amigos! Os tempos mudaram.

    Ninguém mais fica na rua, na frente de casa. As famílias não têm tantos filhos. E com isso perdeu-se também o maravilhoso programa de irmos à casa da vó, onde os primos se encontravam e saíam esbaforidos para aproveitar o tempo e brincar.

    Passar anel, esconde-esconde, amarelinha, rolimã, pique, queimada, cabra-cega, “adivinha o que é?”, pular corda, cabo de guerra, telefone sem fio, cantiga de roda…

    Essas eram as brincadeiras antigas, normais e lícitas. Existiam também as perigosas: subir em árvores, descer de rolimã, guerra de sementes de mamona, roubar frutas nos quintais alheios, soltar espoletas…

    Quanta coisa existia em nosso mundo infantil! E os insetos? Será que as crianças conhecem os louva-a-deus, cigarras, esperanças, joaninhas, vaga-lumes?

    Os perigos eram conhecidos: não andar descalço para não entrar espinho no pé ou pisar em cacos de vidro; não subir no telhado para pegar a rabiola da pandorga; não sair sem avisar a mãe…

    A tecnologia mudou a vida dos adultos e a das crianças também.  Estimulou o aprendizado, os jogos lúdicos aumentaram a atenção e o foco, desenhos e filmes facilitaram o interesse por outros idiomas. Quem já não ouviu delas : Tem Wi-Fi?

    Em todos os tempos existirão brincadeiras inocentes e perigosas. Algumas desconhecidas… Na sala de casa, um celular e um frasco de desodorante podem ser fatais.

    Crianças são crianças.

  • Para Su e todas nós

    Essa semana uma amiga viveu uma situação bastante traumática e corriqueira no universo das mulheres: foi intimidada verbalmente por um colega de trabalho e ameaçada de agressão física durante seu expediente. Notem: um homem de quase 2 metros de altura levantou a mão na direção de uma mulher de 1,60 metros enquanto lhe ofendia aos gritos.

    Não vou citar o motivo do desentendimento porque me parece óbvio que nenhuma situação justificaria esse tipo de violência e covardia. Mas, se você se perguntou “o que ela fez para ele partir para cima dela?”, sugiro que você faça uma análise profunda sobre o nível de entranhamento da misoginia em seu comportamento.

    Fato é que ninguém interveio na cena nem a protegeu.

    O chefe da seção considerou justo ouvir todas as partes, como quem busca razão para perdoar o absurdo. Para agravar o desamparo, aproveitou para repreendê-la por ter usado uma palavra de baixo calão na discussão com o sujeito. Dando provas que os homens sempre se apoiam, defendem e blindam uns aos outros, validou a máxima: a mulher é sempre culpada.

    As colegas de trabalho preferiram não se meter, vai que apanham também… E minha amiga ficou ali, sozinha, vulnerável a todo tipo de manobra permitida por uma sociedade machista, misógina e escrota.

    Por que será que nós, mulheres, não nos unimos, apoiamos, protegemos umas às outras? Não formamos grupos, clãs, clubes que nos fortaleçam e amparem. Estamos constantemente julgando quem engordou, quantas celulites cada uma de nós tem, quem é mais brega ou rejeitada.

    Penso que a ideia do amor romântico, produto que só nós, mulheres, compramos, faz parte de um megaprojeto separatista. Afinal, competimos entre nós para sermos as mais bonitas, desejadas. Nos vestimos para suplantar as outras, nos medimos e criticamos em relação àquelas que julgamos sensacionais. Dificilmente oferecemos um abraço genuíno, uma guarida provisória, sem críticas, julgamentos ou comparações.

    Estou convencida de que essa luta inglória para ser “a tal” do pedaço, a poderosa do trabalho, a gostosona do reino nos enche de espinhos sem que nasçam pétalas. 

    Por sorte, minha amiga me ligou naquele dia horrível e juntas rogamos milhares de pragas naquele infeliz. Depois, rimos das nossas armas. Elas não são capazes de derrubar o inimigo, mas protegem a vítima da solidão imposta pela violência sofrida sem amparo e rede de apoio.

    Te amo, amiga! Esse infeliz há de ter um prejuízo financeiro grande, ou pior, vai ver seu time do coração perder a final do campeonato. De virada.

    O que mais seria capaz de afetar um homem?

    Voltamos a sorrir porque juntas somos mais. Juntas sabemos/podemos nos defender. Juntas somos nós!

  • Vamos tomar um café?

    — Um café? Sim, obrigada!
    — Toma um café comigo? Claro, vamos!
    — Aceita um cafezinho? Sim, aceito!

    Vejam só: em todas essas frases há um convite que vai além da xícara. Há cumplicidade, um gesto de carinho, quase um abraço em forma de aroma.

    Da história do café, lembro de uma narrativa antiga — um pastor de cabras africano, com a ajudinha de um monge, teria descoberto os efeitos revigorantes daquele grão escuro.

    Verdade? Talvez. Isso não importa. O que importa é o que ele representa: esse pequeno ritual que cabe numa xícara e aquece a alma.

    Tomar um café com alguém é mais do que saciar um gosto — é um tempo concedido, uma pausa generosa, um olhar que escuta. É o gesto de quem diz: “estou aqui com você”.

    O perfume do café pela manhã invadindo a casa é quase um sinal de que o mundo segue. É continuidade, é calor, é o anúncio de que mais um dia começou — e, com sorte, com afeto.

    Ainda que o café seja solitário, mesmo assim  ele faz companhia. É o cheiro que abraça. O gosto que desperta. O silêncio compartilhado com a gente mesma.

    O café da tarde tem seus rituais. Com a vizinha, com o parceiro, ou mesmo que você esteja só e com a cadeira vazia à sua frente, o valor de uma xícara é incontestável. Ele tem esse poder de reabastecer não só a energia do corpo, mas a ternura do coração.

    Ninguém convida um desafeto para um café. Isso diz muito. Café é símbolo de reconciliação, de recomeço, de partilha. Já esteve em cenas emblemáticas de filmes, já foi desculpa para uma boa conversa, já foi até poesia.

    Hoje, com o preço subindo mais do que o aroma na cozinha, na cafeteria ou no escritório, convidar alguém para um café virou quase um luxo afetivo. Mas vale cada centavo. Porque o café, mesmo caro, é a essência da cordialidade, do apreço e da simpatia. Por isso sempre vai ter o seu valor.

    Então, não se furte a um convite:
    Vamos tomar um café?

  • República Evangélica do Brasil

    Eles estão espalhados pelos mais afastados recônditos do país, onde pode faltar creche, farmácia, delegacia e agência do Banco do Brasil, mas nunca faltará uma igreja evangélica. Dentro de poucos anos, serão a maior religião do Brasil que, para decepção dos servos de Francisco, deixará de ser o maior país católico para contar com um dos mais numerosos rebanhos evangélicos do planeta. Na liderança, os EUA, terra do capitalismo, do consumismo, do individualismo e do protestantismo, com seus 160 milhões de adeptos. Entretanto, ao contrário do que ocorre aqui, na terra de tio Sam os evangélicos estão em baixa, sobretudo entre os jovens. Para compensar, conquistaram popularidade na América Latina e na África, onde estão em franca expansão.

    Mas em nenhum lugar do mundo o crescimento é tão vertiginoso como no Brasil. Há meio século, havia um deles a cada 50 brasileiros. Atualmente, um em cada 3. A retórica simplória que utilizam ajustou-se à nossa natureza crédula (chamados que são de ‘crentes’). Nos locais que se ressentem da presença do Estado como nas favelas e nos morros cariocas, áreas controladas pela bandidagem e pelas milícias, estenderam sua influência, convivendo harmonicamente com o tráfico e a contravenção.

    Os neopentecostais ganham espaço dando respostas concretas a problemas cotidianos do povão e uma pregação mais próxima à sua sofrida realidade, cujas razões não lhes interessa compreender. Através da ‘ideologia da prosperidade’, oferecem a promessa de rápida ascensão social, ainda nessa encarnação, que ninguém aguenta esperar a redenção post mortem no paraíso celestial. Tudo mediante uma módica contribuição mensal de 10% dos proventos, através da qual os missionários intermediam a intervenção de Jesus, com quem mantêm uma estreita relação de compadrio.

    Inspirado no american way of life, estimulam a cultura do empreendedorismo em que cada um é (ou julga ser) senhor de si mesmo, sem que o patrão lhes extraia a mais valia. Esse modelo se adequa à precarização da força de trabalho em que o indivíduo se desdobra 18 hs ao dia por uns trocados, na ilusão de que, com a bênção do pai celestial, virá a se tornar um Neymar.

    Mas se os espoliados fiéis penam sem sair do lugar, o mesmo não se pode dizer dos bispos. A apropriação dos dízimos mais as generosas isenções tributárias a que têm direito, possibilitou aos aspirantes a pastor exercer uma modalidade lucrativa de negócio. Investindo pouco e sem necessitar de grande preparo, a não ser um desempenho verborrágico convincente, puderam encontrar uma oportunidade de rápido enriquecimento. A ponto de alguns deles amealharem gigantescas fortunas, ostentando vidas de luxo, com bênção divina. Comportamento bem distante do ideal franciscano de opção preferencial pelos pobres, inspirado nas palavras do Mestre: “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mateus 19:24), versículo que os crentes gostariam de expurgar do Novo Testamento.

    A vida singela e despojada do homem de Nazaré que repelia os mercadores fariseus e se aproximava dos pecadores e marginalizados presta-se melhor, segundo avaliam, à de um esquerdopata. O deus que evocam assemelha-se mais a um agente financeiro que retribui as colaborações pecuniárias, não com a felicidade eterna, mas com polpudos retornos monetários e a perspectiva de um mundo de abundância material regado a grana e luxúria.

    Os evangélicos não se mobilizam em praticar ações sociais em prol da coletividade. Se alguém padece em condições aviltantes, a culpa não é do sistema, mas unicamente do indivíduo que falhou em seu empenho pessoal.

    O crescimento evangélico foi possibilitado pela permissiva facilidade com que são tratados pela legislação. Num país onde montar uma barraquinha de doces exige um mar de obrigações, abrir um templo requer um mero registro em cartório. E para habilitar-se pastor não há necessidade de graduação em teologia ou qualquer outra exigência. Enquanto na calvinista Europa, sua formação exige uma série de pré-requisitos, aqui qualquer charlatão pode exercer de imediato o ofício.

    Curiosamente, o primeiro governo de Lula, hoje acusado de perseguição, criou facilidades para a prática da religião, isentando as igrejas de uma série de responsabilidades estatutárias. Nesse período ocorreu uma explosão na quantidade de igrejas. Segundo o IBGE, o número de estabelecimentos religiosos no país em 2022 superou os de ensino e saúde juntos!

    Se o PT foi condescendente com o crescimento vertiginoso dos evangélicos, foi Bolsonaro quem capitalizou com competência o apoio dessas igrejas angariando através de medidas populistas o apoio da classe, vindo a se tornar um ser ungido, enviado pelos deuses para salvar a nação do perigo ‘marxista’ e ‘ateu’. Conseguiu até difundir sua política armamentista e seu discurso raivoso recheado de palavras chulas num universo em que deveria prevalecer tolerância e amor ao próximo. E ainda colocou no STF um juiz ‘terrivelmente evangélico’ que acima dos preceitos jurídicos, julga pelo que reza a Bíblia.

    Mesmo sabendo que jamais terá apoio deles, Lula teme exercer maior fiscalização aos evangélicos e acabar com a farra de privilégios. Se os militares e os políticos medem palavras, os pastores soltam o verbo com a certeza de que não existe, sob o céu de Jeová, força capaz de refrear sua atuação.

    Conseguem assim emplacar o que lhes agrada. Ficam incomodados com a existência de homossexuais (direcionando-os à ‘cura gay’) e de banheiros unissex, mas não estão nem aí com os desvalidos famintos. Passam o pano para os estupradores Robinho e Daniel Alves (ambos evangélicos) mas amaldiçoam meninas que querem tirar de seu corpo o fruto de uma violência sexual.

    Contam com o suporte da poderosa Frente Parlamentar Evangélica. Não há no Congresso corporações de católicos, espíritas, muçulmanos, judeus, budistas, umbandistas ou ateus. Tampouco, existe ‘bancada verde’, ‘bancada indígena’ ou ‘‘bancada antirracista’.  Mas tem a ‘Bancada da Bíblia’ que, ao lado da ‘Bancada do Boi’ e a ‘Bancada da Bala’, formam a famigerada tríade BBB, unidas em prol do atraso.

    Dispõem também do controle de meios de radiodifusão, obtendo concessões públicas que deveriam promover assuntos de interesse de toda a coletividade. Recentemente, perceberam maior eficácia nas redes sociais onde conseguem com baixos custos obter comportamento bovino da massa de fiéis. Os pastores dispõem de milhões de seguidores repassando-lhes fake news.

    Os evangélicos enfiam goela abaixo seus princípios morais a todos os brasileiros e brasileiras inclusive aos que professam outros credos. Ao contrário das outras religiões, boicotaram medidas de combate à COVID porque obstavam as aglomerações (e consequentemente a receita financeira).

    Na Amazônia, mantêm boas relações com desmatadores e garimpeiros ilegais, quase todos evangélicos (a quem enxergam como ‘empreendedores’). Querem ‘catequizar’ na marra índios e quilombolas, levando-lhes ‘a palavra de Deus’. É conhecida a virulência com que atacam o candomblé e as religiões de matriz africana que associam ao diabo.

    Alinham-se a governos de direita que desprezam os princípios da democracia e os direitos humanos a que associam ao comunismo. 

    Se com 30% já conseguem manipular o país, imagine o que farão quando se tornarem maioria! Sua intenção é claramente implantar uma teocracia, a República Evangélica do Brasil. Converta-se voluntariamente antes que seja obrigado a fazê-lo.

  • A eterna mania de estar pronta para reagir

    Ontem foi dia de esperar a chuva torrencial prometida pela meteorologia. Não fui ao Pilates, imagina ter que voltar ensopada para casa às 8h da manhã. Lá pelas 11h, olhei o céu da minha varanda, dia claro. Só nuvens fofinhas a decorar a paisagem. Mas decidi não fazer a caminhada diária, vai que o tempo muda de repente e a danada da chuva me pega desprevenida. 

    À noite, teria o aniversário de uma amiga querida e depois um show. Por volta das 19h30, ouvi umas trovoadas, depois vinte minutos de chuva forte com pingos grossos e o receio de passar sufoco para chegar nos eventos ou sair de lá. Botei o pijama e aguardei com paciência o dilúvio. 

    Enquanto observava o asfalto secar, senti uma admiração profunda por todos que apostaram na sorte. Pelos amigos que foram encontrar a aniversariante e pelos desconhecidos que curtiram a noite dançando no show.

    A vida sempre ensina: palavras, promessas e previsões o vento leva. A realidade é feita da aposta no agora. 

    Será que amanhã vai chover? 

    Não importa!

  • Comunista

    Sou comunista! Antes que essa escandalosa revelação afaste os leitores de minha repugnante companhia (tal qual acontecia com os leprosos e lazarentos da Idade Média), apresso-me em oferecer alguns esclarecimentos para tentar aplacar a aversão de meus detratores.

    Aviso logo: não sou comunista tipo saudosista, na acepção estrita do termo, o autêntico comunista que se espelhava nos antigos regimes da URSS e da China. Dos tempos, em que para fazer jus ao título, o aspirante a comunista tinha que ralar, adquirindo uma sólida formação intelectual com base em leituras das obras clássicas de Engels, Gramsci, Rosa Luxemburgo, Adorno, Sartre, Marcuse e outros autores marxistas chiques que faziam furor entre a juventude rebelde dos anos 60. Pensadores esses cujos ensaios, vejo-me obrigado a confessar, como comunista de meia tigela que sou, conheço muito pouco.

    Nos círculos mais sofisticados da intelectualidade, era charmoso afirmar-se ‘de esquerda’, que significava ser esclarecido, em oposição aos burgueses alienados, presos a ultrapassados dogmas, desprezados por sua falta de conhecimento e de consciência social. Sim, caro leitor, houve uma época em que as pessoas cultas é que eram admiradas e valorizadas socialmente.

     Mas os ventos mudaram de direção. Nesses tempos de Inteligência Artificial e de bitcoins, quem é burro e rico é que tem prestígio. Naufragaram socialistas, emergiram socialites. Ser instruído perdeu o charme e o saber passou a ser mercadoria barata, acessível a um clique de mouse.

    No mundo atual, ganharam status os influencers que, com suas pregações vazias na internet, amealharam legiões de seguidores, que passaram a pautar sua visão de mundo não pelos grandes compêndios da literatura universal mas por curtas mensagens de WhatsApp. Assimilaram um entendimento estereotipado de como se comportam as coisas, que pode ser identificado pelo seu ideário: não acreditar na vacina, na ciência, nas escolas, no processo eleitoral, no STF, ser negacionista do clima, acreditar na balela da meritocracia, adotar a Bíblia como única fonte de informação confiável, ser avesso à cultura e às artes, não assistir a Globolixo, acusar os artistas de rapinarem dinheiro público pela Lei Rouanet e outros chavões que lhes foram impingidos pelos formadores de opinião.

    Caso não seja um desses pobres diabos cujo conhecimento (ou a ausência dele) foi homogeneizado pelas redes sociais, o leitor por certo tem algum parente ou algum (ex) amigo nessa condição. Trata-se de um padrão que certamente já foi identificado pelo leitor, a cujo comportamento bovino foi conferida a condição de ‘gado’. Perfeita descrição!

    Os mais extremados marcham pelas ruas pateticamente de verde amarelo, louvando o ‘mito’. Esses não têm mais jeito. Vivem uma realidade paralela, converteram-se ao terraplanismo, adotaram a religião neopentecostal rasa ou o ‘catolicismo’ medieval, rezam para pneus, pedem a intervenção de ETs etc. Alguns acamparam nos quartéis pedindo a volta da ditadura e vandalizaram as sedes dos 3 Poderes achando que estavam salvando o país do… comunismo. O próximo estágio será serem presos pelo Xandão ou irem para um manicômio pois perderam totalmente o senso.

    Esses seres simplórios fizeram valer para a palavra ‘comunista’ (ou seus congêneres, ‘esquerdopata’ e ‘petralha’) uma conotação pejorativa, quase como um xingamento, referente a um ente maléfico que devora criancinhas vivas e quer se apropriar dos modestos bens que possuímos para financiar o regime de Cuba e da Venezuela.

    Foram transformados em ‘comunistas’ todos aqueles que mantiveram ideias independentes, os críticos, os inconformados, os contestadores, os que pensam com a própria cabeça, os ‘diferentões’, enfim todos aqueles que, por uma razão ou por outra, não foram varridos pela maré pasteurizadora de imbecilidade que se apropriou dos corações e mentes, recusando-se a tornar-se panacas robotizados.

    Pela nova abrangente classificação, são considerados comunistas, quase todos os jornalistas, estudantes de universidades públicas, médicos do SUS, assistentes sociais, sociólogos, intelectuais, professores, jornalistas, historiadores, poetas, músicos, atores, cineastas, ambientalistas, naturalistas, veganos, esotéricos, umbandistas, pais-de-santo, muçulmanos, zen-budistas, iogues, ateus, feministas, gays, lésbicas, travestis, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, capoeiristas, homeopatas, antirracistas, afrodescendentes, imigrantes, indigentes, moradores de rua, humanistas, excêntricos, democratas, defensores de minorias. Também se enquadram nessa categoria políticos das mais variadas estirpes como Lula, Simone Tebet, Marina Silva, FHC, Alckmin, Sarney, Doria, Kassab, ACM Neto, Rodrigo Maia, Helder Barbalho, Rodrigo Pacheco. E artistas diversos como Caetano, Gil, Maria Rita, Nando Reis, Daniela Mercury, Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Emicida, Marcelo D2, João Gordo, Odair José, Ivete Sangalo, Xuxa, Angélica, Fábio Porchat, Luciano Huck, Datena, Paolla Oliveira, Anitta, Pabblo Vitar, Luiza Sonza, Ludmilla, Valesca Popozuda entre tantos. Todos comunistas.

    Como pode ser deduzido, não sobrou muito espaço para quem não se filiar a uma das duas facções em que a sociedade ficou dividida: a dos comunistas e a dos babacas.

    Nesse sentido, mesmo sem comungar das ideias ortodoxas dos ‘comunas’ clássicos, mas ficando ao lado de todos aqueles que mantiveram a lucidez e o discernimento, ante o mar de boçalidade conservadora, posso proclamar com muito orgulho: SOU COMUNISTA!

    *Textos assinados não refletem necessariamente a opinião do portal Crônicas Cariocas. Liberdade de opinião é o nosso principal de pilar!

  • Por isso escrevo – parte II

    Estou revisitando meus contos, crônicas e estudos sobre escrita criativa. De vez em quando, tenho rompantes de “chefe”. Deve ser coisa do hábito — afinal, diz o ditado popular “o uso do cachimbo entorta a boca.” 

    Durante anos, fui supervisora na repartição onde trabalhei e, vez por outra, precisava revisar processos. O quê, como, quando, por quê, para quê.

    Agora estou aqui, na curiosa posição de algoz e vítima da minha antiga função.

    Revejo os cursos que fiz, as anotações, os exemplos, as descobertas. Tudo o que estudei, registrei e arquivei ao longo dos anos dedicados à escrita. Algumas descobertas me orgulham; outras, frustram — como em tudo na vida.

    De tudo tenho a certeza que é preciso coragem para deixar fluir minhas ideias e sentimentos, o caos da minha mente, ver o texto tomar forma e soltá-lo no mundo, para que encontre eco e sentido em meus leitores.

    Ainda assim, o saldo é positivo. Fiz muitos cursos, tive diversos mentores, explorei diferentes camadas da arte de escrever.

    Busco encontrar a essência da escrita criativa e nela me desenvolver.

    Sei onde posso pisar com segurança e onde prefiro não arriscar — como escrever romances, seguir roteiros rígidos, usar escaletas.

    Não, essa forma de escrita, não me atrai.

    Quero escrever. Gosto de contar histórias. Criar crônicas que dialoguem com o leitor, provoquem reflexões ou simplesmente narrem o cotidiano.

    Ainda não li o livro de Marcelo Rubens Paiva que inspirou o premiado Ainda Estou Aqui, mas imagino que seja uma história contada com alma. Uma literatura carregada de emoção, escrita por alguém que viveu aquele tempo e cenário, que sentiu na pele medos e dores. Diante disso, a última coisa que importaria seria a aplicação de teorias sobre escrita.

    É isso que quero dizer: quando um autor permite que sua alma fale, a técnica se torna secundária. O valor está na emoção, na verdade que extrapola a forma do texto.

    Isso significa que o estudo não importa? Claro que não! Mas, lá no fundo, gosto de acreditar que a história precede a escrita.

    E, pelo sim, pelo não, sigo estudando. Porque escrever faz parte de mim — de quem eu sou.

  • Por isso, escrevo

    Aprender sobre literatura faz parte do meu dia a dia.

    Aposentei-me após trinta e cinco anos como servidora pública. Trabalhei mais cinco anos nessa condição, até decidir que era hora de dar espaço ao novo. Mas que novo? Os jovens que me substituiriam no trabalho? A nova rotina, sem horários rígidos ou prazos? Ou, mais que tudo, o novo que sempre esteve em meu subconsciente?

    A vontade de escrever, de me dedicar à literatura, de compreender meus autores favoritos e sentir o gosto de transformar em palavras o que habita minha imaginação. Resolvi estudar. Aprendi muito, mas sei que ainda há um longo caminho a percorrer.

    Descobri a escrita criativa, o lirismo, o poder dos adjetivos bem escolhidos, a força das figuras de linguagem usadas no momento certo. Percebi que os acontecimentos não devem ser apenas narrados, mas transformados em literatura, com musicalidade, ritmo, beleza — e não simplesmente relatados como em um noticiário.

    Aprendi a selecionar adjetivos, a escolher substantivos, a encontrar poesia nas palavras.

    As narrativas devem fazer sorrir, refletir, provocar, revelar o mundo além do que se vê e se ouve. A riqueza da língua portuguesa deve encantar tanto a mim quanto ao meu leitor.

    A vida dança entre amores, desamores, honra, destino, vingança, ordem ou caos — inquietação e paz.
    Desses dilemas busco a matéria-prima da minha escrita, onde escolho as cores e sabores que coloco nas histórias que povoam a minha mente.

    Por isso, escrevo.

  • PODRES PALAVRAS

    Elas não constam de glossários de expressões chulas. Não podem ser categorizadas morfologicamente. Têm em comum apenas a repulsão que provocam, por mais subjetiva e arbitrária que seja essa agregação.

    São repugnantes por natureza. Trazem o signo do horror em suas entranhas. Assim que ouvidas ou lidas, antes mesmo que nosso racional processe a interpretação de seu presumível significado, batem direto no emocional provocando imediata rejeição. Mantém linha direta com o lado obscuro do cérebro, fazendo emergir conteúdos e imagens que preferíamos deixar quietos nos porões do esquecimento.

    Mas afinal de onde provém essa condição? Poder-se-ia argumentar tratar-se de um fator cultural. Eu diria que mais provavelmente seria um fator gutural.

    Mas uma dúvida persiste. Foi seu subjacente conceito que contaminou sua forma? Ou sua fealdade orgânica tem um liame subliminar com sua presuntiva acepção?

    O fato é que, ainda que sem revelar para que vieram ou de onde surgiram, sua mera pronúncia provoca um indisfarçável desconforto, um mal estar no estômago, eventualmente até mesmo um arrepio.

    São podres palavras, palavrões no sentido mais extensivo do termo.

    ***

    Esgoto, escroto, escopo, estupro, zigoto, peçonhento, bucéfalo, jurássico, chumbrega, mequetrefe, rebuceteio, ricochete, ambivalente, volúpia, interregno, escroque, imberbe, pundonor, hecatombe, hediondo, aborto, absorto, nu, cru, suruba, bacanal, cafuné,  outrossim, ulterior,  visigodo,  macumba, ufano, carcaça, jaez, treta, opróbrio, taciturno, pusilânime, macambúzio, birrento, banzo,  sorumbático,  gárgula, lamuriento, bricolagem, belzebu, quiproquó, barafunda, muvuca, grotão, aziago, ungüento, tara, pamonha,  busílis, úvula, galhofa, cabotino, probo, apedeuta, truculência, brucutu, vuvuzela, quasímodo, chinfrim, putativo.

    Estapafúrdio, esdrúxulo, bombástico, estrambótico.

    Bagulho, bugiganga, espelunca, geringonça.

    Sovaco, chulé, arroto, flatulência.

    Fétido, fedorento, pútrido, putrefato.

    Mocréia, bruaca, muxiba, baranga.

    Cafuzo, mameluco, chibarro, curiboca.

    Nauseabundo, moribundo, furibundo, meditabundo.

    Úmido, túmido, túrgido, tumefacto.

    Chorume, estrume, azedume, negrume.

    Bruto, xucro, ogro, bronco.

    Sacana, safardana, sacripanta, salafrário.

    Velhaco, gatuno, gaiato, larápio.

    Biltre, pulha, crápula, calhorda.

    Roxo, lixo, coxo, mixo.

    Nojo, bojo, jugo, mijo.

    Vômito, pus, cuspe, gosma, muco, pigarro, escarro, urina, caca, baba, estrume, cerúmen, seborréia, fleugma, remela, espirro, esporra, esperma, excremento, meleca.

    Frieira, íngua, ferida, prurido, comichão, cólica, brotoeja, bulimia, disfagia, câimbra, torcicolo, sudorese, hemorróida, icterícia, náuseas, herpes, lúpus, sarna, urticária, enjoo, vertigem.

    Úlcera, lepra, peste, gangrena, cirrose, esclerose, brucelose, trombose, toxoplasmose, esquistossomose, esquizofrenia, hipofibrinogenemia.

    Aids, ebola, chicungunha, zicavírus.

    Mufumba, chaboque, sapiranga, mondrongo.

    Sarcoma, linfoma, mioma, carcinoma, neoplasma, abscesso, furúnculo intumescência, cisto, quisto, cancro, câncer, metástase, pústula, fistula, hiperplasia, fibrose, necrose.

    Intestino, esôfago, estômago, pulmão, pâncreas, abdômen, tórax, cóccix, sacro, peritônio, amígdala, panturrilha, queixo, vômer, fêmur, úmero.

    Útero, prepúcio, testículo, vagina, ânus, pélvis, pênis, púbis, vulva, uretra, pentelho.

    Medonho, soturno, nefasto, funesto, fúnebre, lúgubre, mórbido, tétrico.

    Túmulo, caixão, cova, sepultura, esqueleto, carcaça, cadáver.

    Cemitério, necrotério, crematório, sepulcrário.

    Sanatório, hospital, hospício, manicômio.

    Podólogo, otorrino, obstetra, geriatra.

    Cauterização, curetagem, traqueotomia, lobotomia.

    Tumor, dor, torpor, terror, temor, horror, pavor, tremor.

    Buchada, rabada, galinhada, vaca-atolada, barreado, guisado, linguado, angu, caruru, sururu, aratu, tutu, umbu, pururuca, bobó, quibebe, xinxim, jerimum.

    Espinafre, alfafa, chicória, repolho, nabo, quiabo, inhame, jiló, jaca, cajá, caju, caqui, kiwi.

    Churrasco, chuleta, maminha, coxão.

    Carne-vermelha, febre-amarela, catarro-verde, baleia-azul.

    Glutamato, glifosato, transgênico, Monsanto.

    Glúten, nugget, nutella, miojo.

    Rinha, rodeio, vaquejada, muay-thay.

    Roto, rito, reto, rato.

    Porco, bode, bezerro, burro, cachorro, ornitorrinco, fuinha, texugo, cachalote, esturjão, barracuda, arenque, paca, pacu, baiacu, pirarucu, urubu, peru, jacu, anu, corvo, gralha, rola, pinto, carrapato, cupim, lacraia, lesma, lombriga, percevejo, escaravelho, marimbondo, gafanhoto.

    Colchetes, parêntesis, travessão, gerúndio, cacofonia, anacoluto, onomatopéia, antonomásia, catacrese, anfibologia.

    Vara, alvará, estelionato, carceragem, ouvidoria, glosar, ab-rogar, impugnar, prevaricar, tergiversar, locupletar,  tutela, concordata, hipoteca, precatório, caução, esbulho, estagflação.

    AI5, HIV, PCC, STF.

    SUS, SAMU, PIS-PASEP, BOVESPA.

    Bolchevique, Gulag, Glasnost, Perestroika.

    Azerbaijão, Cazaquistão, Uzbequistão, Quirquistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Baluchistão, Curdistão, Chechênia, Andorra, Bósnia, Bulgária, Kosovo, Luxemburgo, Liechtenstein, Budapeste, Praga, Tirana.

    Fatah-Al-Islam, Taliban, Boko Haram, Ku Klux Klan.

    Hezbollah, FARC, ETA, Baader Meinhof.

    Putin, Pinochet, Pol Pot, Papa Doc.

    Tzar, Salazar, Bashar, Muammar.

    Nero, Calígula, Torquemada, Maquiavel.

    Mengele, Ulstra, Bolsonaro, Garrastazu.

    Ditadura, tortura, clausura, viatura.

    Cárcere, cadafalso, calabouço, cala-boca.

    Mordaça, porrada, porrete, cacete.

    Zebedeu, Zaqueu Zulmira, Zoroastro.

    Odebrecht, Richtofen , Nardoni, Abdelmassih.

    Brutus, Luthor, Vader, Voldmort.

    Hannibal, Godzilla, Poltergeist, Pulp Fiction.

    Akira, Naruto, Pokemon,  Pikachu.

    Rutger Hauer, Heth Ledger, Renée Zelweger, Van Diesel.

    Snoop Dogg, Tupac Shakur, Dr Dre, Shaggy.

    Safadão, Marrone, Teló, Ludmilla.

    Popozuda, Catra, Tchan, Créu.

    Fuck, funk, punk, crack.

    Google, Netflix, Huawei, Bitcoin.

    Uber, Trivago, Hopihari, Agro é pop.

  • Alguém mais a viu por aí?

    Estou convencida de que a felicidade, aquela menina nada popular e tão cobiçada por nós, é fruto de uma disponibilidade interna para o bom estado de espírito. A menina parece acompanhar somente os que desfrutam de uma inclinação nata para viver no agora ou os que são habitados por uma espécie de fé, inabalável, na pureza dos seres e na dinâmica generosa da vida. 

    É possível, também, que sua presença seja consequência de alguma alteração na estrutura do globo ocular. As pessoas que caminham em sua companhia devem ter mais células cones, o que levaria à percepção de um mundo mais colorido. 

    É curioso perceber que eles não carecem de bens materiais, atributos físicos, grandes oportunidades ou sorte no amor para cultivarem uma brisa fresca e aromatizada alma. Certamente, seus eleitos têm como atributo um refinamento dos sentidos, uma poética do existir, uma relação estreita com as manifestações da arte (cantar, tocar, dançar, escrever, ler, interpretar, pintar).

    Os urgentes, os assoberbados de sucesso, os competitivos e os covardes pegam atalhos que impedem o encontro. Ela não é de amassos, demanda carinho, peito aberto e mente livre de manuais de conduta.

    Hoje, no aeroporto do Galeão, entre os viajantes não a encontrei. Sabe onde ela estava? No banheiro, na cantoria apaixonada da funcionária da limpeza. 

    Ah, felicidade… o que te seduz é a leveza do descomplicado. O conforto do simples. A graça escondida nos pequenos detalhes, na alegria do hoje.

  • Dia sim, dia não

    Seria pouco honesto dizer que Shirley não tentou caber na mesmice dos dias. Todos somos testemunhas de sua dedicação: levava o cachorro na rua, duas a três vezes, o filho na escola, no futebol, na explicadora, fazia mercado, voltava de lá com os braços lotados de sacolas pesadas e ainda arrumava tempo para vender os panos de prato que ela mesma bordava.

    Uma vez, a observei limpando os vidros da janela da sala, metade do corpo para fora do apartamento, apoiando-se feito malabarista no parapeito. Parecia não temer altura nem queda. Invejei sua disposição para viver com vigor horas sem nenhum atrativo.

    No condomínio sua fama de exímia cozinheira corria os andares. O cheiro do seu tempero invadia os corredores do prédio na hora do almoço e da janta. Sempre comida fresca.

    Aos domingos, com o filho no colo e de braços dados com o marido, encaminhava-se para o templo. Cabelo preso, bem esticado num coque, vestido abaixo dos joelhos, de manga longa, acho que usava sempre o mesmo, sapatilha fechada e perfume de alfazema. Não demonstrava cansaço ou desagrado. Sua perfeita adaptação ao morno da vida me jogava no buraco da culpa. Odiava o jeito firme com que Shirley fazia continência para a felicidade, mas, confesso, me causava um prazer macabro observá-la abrir a cortina, às cinco da manhã, animada para começar seus afazeres enquanto eu apagava o último cigarro antes de ir dormir.

    Ontem, como de costume, assisti ao ritual: a janela se abriu lentamente, corpo rígido como quem já está pronto para a luta, palmas das mãos voltadas para cima, olhos pregados no céu. A boca pálida parecia balbuciar a oração do amanhecer. Agora, eu podia dormir sem paz.

    Passava das duas horas da tarde quando o barulho das buzinas me despertou. Corri para a varanda. No meio da avenida, caminhando entre os carros, passos lentos, braços abertos, salto alto e despida de tudo, desfilava Shirley.

    Quando os enfermeiros a alcançaram, não resistiu, não chiou, não chorou. Entrou na ambulância com seu sorriso cansado todo borrado de batom carmim.

  • Outono, bem-vindo!

    O outono chegou, espalhando seu tapete de petalas de flores pelas ruas e enchendo o ar com um frescor renovador. Hoje é o primeiro dia dessa estação que sempre me traz simbologias e memórias.

    Que época maravilhosa! O poeta Carlos Drummond de Andrade enalteceu os dias de abril: “Não basta sentir a chegada dos dias lindos. É preciso proclamar!” E eu concordo. O céu de um azul inigualável, a temperatura amena, o ar mais leve — tudo parece nos tocar de forma sutil e encantadora.

    As folhas amareladas dançam ao vento, antes de cair e formar caminhos dourados nas calçadas. Paineiras e jacarandás nos brindam com flores delicadas, as cerejeiras se vestem de tons suaves, e o vento frio no início e no fim do dia nos lembra que a natureza segue seu ciclo, renovando-se.

    Os parques se tornam mais convidativos: pais e filhos passeiam, jovens pedalam, amigas conversam, idosos descansam nos bancos. O outono parece aliviar o peso do cotidiano, trazendo leveza ao nosso olhar sobre a cidade. Até mesmo aqueles de quem se diz que estão no “outono da vida” parecem renascer. A alma se revigora, as janelas se abrem, os sorrisos se tornam mais frequentes.

    E como toda estação tem seus rituais, o outono é tempo de aquecer a casa com sabores que nos trazem conforto e história. Sei bem o que ele provoca em mim: saudades. Mas daquelas boas, que aquecem o coração.

    No inverno, a comida tem um papel quase sagrado na convivência familiar, e o outono é o prenúncio desse tempo acolhedor. Os encontros em casa se tornam mais frequentes, trazendo caldos fumegantes, fondues compartilhados, chocolates quentes e bolos acompanhados de café. Ninguém faz essas delícias só para si — é tempo de reunir-se à mesa, de criar momentos. Tão diferente do churrasco de verão, com sua algazarra de amigos, vizinhos e agregados! O outono pede aconchego.

    Na época dos meus pais, nos juntávamos na cozinha, aquecidos pelo fogão a lenha. As labaredas crepitavam, iluminando os rostos, enquanto esperávamos a “janta” entre histórias e risadas. Minha mãe, carregando sua própria saudade, preparava os pratos típicos do povo guarani, ao qual pertencia. Sopões encorpados, milho cozido, bijou com chá mate… sabores de raízes profundas.

    Lembro-me especialmente de um prato simples e delicioso: carne moída, caldo de feijão, macarrão cabelo de anjo e, por fim, ovos quebrados direto na panela. Comida para dar “sustância”, como diziam os antigos. O outono e o inverno fortaleciam o senso de família, e esses costumes, ainda que transformados pelo tempo, resistem em algumas casas.

    E que bom que resistem! Porque, no fim, o outono sempre nos renova. Seu nascer do sol aquece a alma, suas tardes douradas acalmam, suas noites frescas aconchegam. Como disse o poeta:

    “E o raio de sol benevolente, pousando no objeto, tem alguma coisa de carícia.”

    Que saibamos sentir essa carícia e deixar o outono nos transformar.

  • Quaresma

    Hoje, me pego pensando. Em quê? No tempo, esse estranho tão íntimo de nós. Culpado, amado, detestado — ele simplesmente é. Nunca, em todo esse tempo, me ocupei em entender ou julgar a Quaresma.

    Lembro-me da infância… Meu pai, minha mãe, abuelas, tios e primos, todos paraguaios de origem. Nesse período, a vida ganhava um tom especial. Para nós, crianças, era uma época de brincar com os primos, comer coisas gostosas e ser quase invisíveis para os adultos, ocupados com a Quaresma. Durante quarenta dias, em nossa casa e na de outras famílias, acontecia a “reza”. Alguém puxava, e todos seguiam. Minha lembrança ficou impregnada do sotaque e do ritmo cantado: “Dios te salve, reina, llena de gracia”“En el nombre del Padre, del Hijo y del Espíritu Santo”.

    O ponto alto do dia era a reza em família, com vizinhos e amigos que vinham participar do que já anunciava a chegada da Semana Santa. Minha saudade é longínqua… parece pertencer a outra vida.

    Ainda sou emotiva, arquivo belezas, enfeito lembranças. Mesmo que só eu saiba. A vida tem outro ritmo, as pessoas têm seus próprios interesses, e quase ninguém quer saber das coisas do tempo que não conheceram. Escrevo e me surpreendo. Como assim? Como essas mudanças aconteceram? Se estou aqui rememorando o que vi e vivi, quando e como tudo se transformou? As crianças e adolescentes de hoje terão memórias afetivas? O que estão arquivando como lembranças?

    Ao escrever e me fazer essas perguntas, não pretendo criar polêmica nem impor meus pontos de vista. Apenas organizo minhas ideias, num misto de lembrança, imaginação e invenção. Nesse redemoinho de pensamentos, entre o real e o irreal, descortino meus contentamentos, dilemas e contradições.

    Sei que me arrisco, mas, como já disseram, “se minhas palavras ecoarem em ao menos uma pessoa, respirarei aliviada: não estou só”.

    E seguirei buscando, na vida e na imaginação, o que me preenche a alma. 

    Em tempo: que a Quaresma seja tudo o que seu coração desejar!

  • Prazo de validade

    Desde criança me intrigavam as relações que sobrevivem ao lodo do tempo. Talvez por ter avós e pais separados, a união indissolúvel de duas histórias me comovia profundamente. 

    Na infância, gostava de assistir aos avós de uma amiguinha caminharem pela rua. O andar lento, inseguro de cada um, se amparando na união das mãos enrugadas, nos braços pintados de manchas vermelhas, que depois descobri se chamarem fragilidade capilar, causavam, simultaneamente, uma paz e uma apreensão só ofertadas pela noção de eternidade.  

    Lembro de ressoar no pensamento, em momentos aleatórios, sem nenhuma explicação plausível, o termo “fragilidade capilar”. Por causa disso, toda pessoa que chegava em minha casa, jovem ou não, despertava o meu olhar investigativo na busca daquelas manchas que ficavam por baixo da pele fina. Lá pelas tantas do crescer, minhas pesquisas infantis revelaram a correlação entre aquelas marcas e o envelhecimento. Agora, sim, havia entendido tudo. O corpo dava os sinais do seu desgaste. A corrosão era de dentro pra fora. Mas, ainda assim, eu continuava a achar lindo que o caminho para a finitude fosse em parceria com o ser amado de uma vida inteira.

    Durante anos cultivei esse ideal romântico, mas a recepção dos consultórios médicos e até, mais efetivamente, do Pilates, ultimamente, têm destruído a marretadas minha ilusão. 

    Existem casais, que estão juntos há trinta, cinquenta anos, que não se suportam mais nem por um segundo. É curioso perceber a falta de paciência, as intolerâncias de todo tipo, os safanões, gritos e até xingamentos de canto de boca. As implicâncias, críticas ferozes edesvalorização do parceiro(a) também aparecem de forma acintosa.

    Hoje mesmo presenciei uma cena dessas e me indaguei: há quanto tempo passou a hora deles se separarem? Por que escolheram seguir juntos quando só a desavença os une? Quando foi que deixaram de acreditar na existência de outros caminhos? Como se estabelece o prazo limite para ser feliz? 

    Primeiro, senti uma tristeza rascante. Deve ser horrível viver com alguém pelo medo de morrer só. Em seguida, senti um alívio: quem sabe as brigas e as alfinetadas funcionem como a diversão possível ou, pelo menos, o espaço lícito para depuração das amarguras? É provável que, no exercício da convivência, eles tenham aprendido a se ignorar ou se odiar com amor. Quem sabe se sentem completos, felizes e realizados?

    Agradeci aos meus avós e a meus pais a coragem de lutar por novos rumos. Me orgulhei de mim por não ter me conformado com dias mornos.

    Suspirei fundo e lembrei daquele casal da minha infância. Eles são a prova de que é possível não deixar o amor azedar como feijão fora da geladeira.

    É isso que quero pra mim. Menos que isso não aceito nem com oitenta anos.

  • Padre no avião

    Tem mais de 20 anos eu estava em um vôo para os Estados Unidos. Ao meu lado estava um padre brasileiro que foi deslocado para a diocese de Chicago.

    Sujeito de conversa agradável e bom de copo. Cada vez que o carrinho de bebidas passava não menos que quatro pequenas garrafas ficavam ali com a gente, duas para cada um, é claro. Nesse ritmo nós dois nos igualamos ao avião e estávamos bem altos.

    Foi nessa hora que o papo ficou mais animado. Lá pelas tantas o padre me disse que na paróquia de onde ele vinha, lá na pontinha do mapa da zona Leste de São Paulo, ele tinha uma abordagem diferente quanto ao casamento.

    O padre disse que quando os moços, nas palavras dele, o procuravam querendo casar ele aconselhava que fossem morar juntos primeiro. Diante dessa revelação questionei-o.

    Perguntei se ele não percebia que estava estimulando a fornicação, o sexo antes do sagrado matrimônio.

    Ao que o padre replicou: meu filho, casamento é um contrato com Deus. Isso não se rompe.

    Fornicação é um mal menor. Se resolve com qualquer penitenciazinha, uma meia dúzia de ave-marias e fica tudo bem.

    Foi difícil não gargalhar naquele vôo.

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