Sábado

  • Ela morreu

    Sentada à mesa de um restaurante, aguardando uma amiga para o almoço de celebração da nossa amizade, chegou aos meus ouvidos uma frase, com efeito de fogos de artifício, dita por uma voz feminina, provavelmente da mesa ao lado:

    — Eu confiava nela. 

    No momento que decodifiquei o som e o sentido se fez claro, fui tomada por uma tristeza absoluta e uma identificação imediata com a enganada da vez. 

    Sem que nos conhecêssemos ou tivéssemos intimidade, experimentei, por osmose, a dor causada pelo corte profundo da decepção. O sangrar hemorrágico de um fim que se impõe mesmo diante do perdão. Toda falsidade ou traição fere a eternidade do sentimento, a ingenuidade da confiança. Sem isso, ela é outra coisa. Perde o viço, a raridade, o estado nato de berço. Mas tem quem não se importe, quem acredite que uma vez ferida, ela, a confiança, feito lagartixa, se regenera. Quanto engano! 

    Seu ferimento tem dor profunda, pulsante e incurável. Sua cicatriz é feita de queloide. Impossível retornar ao conforto inicial de sentir-se em casa diante do outro. Esse é o maior luto. A certeza de que não se volta ao estado natural de ingenuidade. Impressionante que as pessoas não se deem conta do que perdem com o fim da fé em si. 

    Eu confiava nela. Que triste! 

  • O que perdemos com o Wi-Fi

    A tecnologia nos trouxe muitas coisas. Mas o que ela levou embora? Creio que a pergunta poderia ser: as crianças ainda brincam? Acredito que brincam bem menos do que eu, meus irmãos e amigos! Os tempos mudaram.

    Ninguém mais fica na rua, na frente de casa. As famílias não têm tantos filhos. E com isso perdeu-se também o maravilhoso programa de irmos à casa da vó, onde os primos se encontravam e saíam esbaforidos para aproveitar o tempo e brincar.

    Passar anel, esconde-esconde, amarelinha, rolimã, pique, queimada, cabra-cega, “adivinha o que é?”, pular corda, cabo de guerra, telefone sem fio, cantiga de roda…

    Essas eram as brincadeiras antigas, normais e lícitas. Existiam também as perigosas: subir em árvores, descer de rolimã, guerra de sementes de mamona, roubar frutas nos quintais alheios, soltar espoletas…

    Quanta coisa existia em nosso mundo infantil! E os insetos? Será que as crianças conhecem os louva-a-deus, cigarras, esperanças, joaninhas, vaga-lumes?

    Os perigos eram conhecidos: não andar descalço para não entrar espinho no pé ou pisar em cacos de vidro; não subir no telhado para pegar a rabiola da pandorga; não sair sem avisar a mãe…

    A tecnologia mudou a vida dos adultos e a das crianças também.  Estimulou o aprendizado, os jogos lúdicos aumentaram a atenção e o foco, desenhos e filmes facilitaram o interesse por outros idiomas. Quem já não ouviu delas : Tem Wi-Fi?

    Em todos os tempos existirão brincadeiras inocentes e perigosas. Algumas desconhecidas… Na sala de casa, um celular e um frasco de desodorante podem ser fatais.

    Crianças são crianças.

  • Para Su e todas nós

    Essa semana uma amiga viveu uma situação bastante traumática e corriqueira no universo das mulheres: foi intimidada verbalmente por um colega de trabalho e ameaçada de agressão física durante seu expediente. Notem: um homem de quase 2 metros de altura levantou a mão na direção de uma mulher de 1,60 metros enquanto lhe ofendia aos gritos.

    Não vou citar o motivo do desentendimento porque me parece óbvio que nenhuma situação justificaria esse tipo de violência e covardia. Mas, se você se perguntou “o que ela fez para ele partir para cima dela?”, sugiro que você faça uma análise profunda sobre o nível de entranhamento da misoginia em seu comportamento.

    Fato é que ninguém interveio na cena nem a protegeu.

    O chefe da seção considerou justo ouvir todas as partes, como quem busca razão para perdoar o absurdo. Para agravar o desamparo, aproveitou para repreendê-la por ter usado uma palavra de baixo calão na discussão com o sujeito. Dando provas que os homens sempre se apoiam, defendem e blindam uns aos outros, validou a máxima: a mulher é sempre culpada.

    As colegas de trabalho preferiram não se meter, vai que apanham também… E minha amiga ficou ali, sozinha, vulnerável a todo tipo de manobra permitida por uma sociedade machista, misógina e escrota.

    Por que será que nós, mulheres, não nos unimos, apoiamos, protegemos umas às outras? Não formamos grupos, clãs, clubes que nos fortaleçam e amparem. Estamos constantemente julgando quem engordou, quantas celulites cada uma de nós tem, quem é mais brega ou rejeitada.

    Penso que a ideia do amor romântico, produto que só nós, mulheres, compramos, faz parte de um megaprojeto separatista. Afinal, competimos entre nós para sermos as mais bonitas, desejadas. Nos vestimos para suplantar as outras, nos medimos e criticamos em relação àquelas que julgamos sensacionais. Dificilmente oferecemos um abraço genuíno, uma guarida provisória, sem críticas, julgamentos ou comparações.

    Estou convencida de que essa luta inglória para ser “a tal” do pedaço, a poderosa do trabalho, a gostosona do reino nos enche de espinhos sem que nasçam pétalas. 

    Por sorte, minha amiga me ligou naquele dia horrível e juntas rogamos milhares de pragas naquele infeliz. Depois, rimos das nossas armas. Elas não são capazes de derrubar o inimigo, mas protegem a vítima da solidão imposta pela violência sofrida sem amparo e rede de apoio.

    Te amo, amiga! Esse infeliz há de ter um prejuízo financeiro grande, ou pior, vai ver seu time do coração perder a final do campeonato. De virada.

    O que mais seria capaz de afetar um homem?

    Voltamos a sorrir porque juntas somos mais. Juntas sabemos/podemos nos defender. Juntas somos nós!

  • Vamos tomar um café?

    — Um café? Sim, obrigada!
    — Toma um café comigo? Claro, vamos!
    — Aceita um cafezinho? Sim, aceito!

    Vejam só: em todas essas frases há um convite que vai além da xícara. Há cumplicidade, um gesto de carinho, quase um abraço em forma de aroma.

    Da história do café, lembro de uma narrativa antiga — um pastor de cabras africano, com a ajudinha de um monge, teria descoberto os efeitos revigorantes daquele grão escuro.

    Verdade? Talvez. Isso não importa. O que importa é o que ele representa: esse pequeno ritual que cabe numa xícara e aquece a alma.

    Tomar um café com alguém é mais do que saciar um gosto — é um tempo concedido, uma pausa generosa, um olhar que escuta. É o gesto de quem diz: “estou aqui com você”.

    O perfume do café pela manhã invadindo a casa é quase um sinal de que o mundo segue. É continuidade, é calor, é o anúncio de que mais um dia começou — e, com sorte, com afeto.

    Ainda que o café seja solitário, mesmo assim  ele faz companhia. É o cheiro que abraça. O gosto que desperta. O silêncio compartilhado com a gente mesma.

    O café da tarde tem seus rituais. Com a vizinha, com o parceiro, ou mesmo que você esteja só e com a cadeira vazia à sua frente, o valor de uma xícara é incontestável. Ele tem esse poder de reabastecer não só a energia do corpo, mas a ternura do coração.

    Ninguém convida um desafeto para um café. Isso diz muito. Café é símbolo de reconciliação, de recomeço, de partilha. Já esteve em cenas emblemáticas de filmes, já foi desculpa para uma boa conversa, já foi até poesia.

    Hoje, com o preço subindo mais do que o aroma na cozinha, na cafeteria ou no escritório, convidar alguém para um café virou quase um luxo afetivo. Mas vale cada centavo. Porque o café, mesmo caro, é a essência da cordialidade, do apreço e da simpatia. Por isso sempre vai ter o seu valor.

    Então, não se furte a um convite:
    Vamos tomar um café?

  • República Evangélica do Brasil

    Eles estão espalhados pelos mais afastados recônditos do país, onde pode faltar creche, farmácia, delegacia e agência do Banco do Brasil, mas nunca faltará uma igreja evangélica. Dentro de poucos anos, serão a maior religião do Brasil que, para decepção dos servos de Francisco, deixará de ser o maior país católico para contar com um dos mais numerosos rebanhos evangélicos do planeta. Na liderança, os EUA, terra do capitalismo, do consumismo, do individualismo e do protestantismo, com seus 160 milhões de adeptos. Entretanto, ao contrário do que ocorre aqui, na terra de tio Sam os evangélicos estão em baixa, sobretudo entre os jovens. Para compensar, conquistaram popularidade na América Latina e na África, onde estão em franca expansão.

    Mas em nenhum lugar do mundo o crescimento é tão vertiginoso como no Brasil. Há meio século, havia um deles a cada 50 brasileiros. Atualmente, um em cada 3. A retórica simplória que utilizam ajustou-se à nossa natureza crédula (chamados que são de ‘crentes’). Nos locais que se ressentem da presença do Estado como nas favelas e nos morros cariocas, áreas controladas pela bandidagem e pelas milícias, estenderam sua influência, convivendo harmonicamente com o tráfico e a contravenção.

    Os neopentecostais ganham espaço dando respostas concretas a problemas cotidianos do povão e uma pregação mais próxima à sua sofrida realidade, cujas razões não lhes interessa compreender. Através da ‘ideologia da prosperidade’, oferecem a promessa de rápida ascensão social, ainda nessa encarnação, que ninguém aguenta esperar a redenção post mortem no paraíso celestial. Tudo mediante uma módica contribuição mensal de 10% dos proventos, através da qual os missionários intermediam a intervenção de Jesus, com quem mantêm uma estreita relação de compadrio.

    Inspirado no american way of life, estimulam a cultura do empreendedorismo em que cada um é (ou julga ser) senhor de si mesmo, sem que o patrão lhes extraia a mais valia. Esse modelo se adequa à precarização da força de trabalho em que o indivíduo se desdobra 18 hs ao dia por uns trocados, na ilusão de que, com a bênção do pai celestial, virá a se tornar um Neymar.

    Mas se os espoliados fiéis penam sem sair do lugar, o mesmo não se pode dizer dos bispos. A apropriação dos dízimos mais as generosas isenções tributárias a que têm direito, possibilitou aos aspirantes a pastor exercer uma modalidade lucrativa de negócio. Investindo pouco e sem necessitar de grande preparo, a não ser um desempenho verborrágico convincente, puderam encontrar uma oportunidade de rápido enriquecimento. A ponto de alguns deles amealharem gigantescas fortunas, ostentando vidas de luxo, com bênção divina. Comportamento bem distante do ideal franciscano de opção preferencial pelos pobres, inspirado nas palavras do Mestre: “É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus” (Mateus 19:24), versículo que os crentes gostariam de expurgar do Novo Testamento.

    A vida singela e despojada do homem de Nazaré que repelia os mercadores fariseus e se aproximava dos pecadores e marginalizados presta-se melhor, segundo avaliam, à de um esquerdopata. O deus que evocam assemelha-se mais a um agente financeiro que retribui as colaborações pecuniárias, não com a felicidade eterna, mas com polpudos retornos monetários e a perspectiva de um mundo de abundância material regado a grana e luxúria.

    Os evangélicos não se mobilizam em praticar ações sociais em prol da coletividade. Se alguém padece em condições aviltantes, a culpa não é do sistema, mas unicamente do indivíduo que falhou em seu empenho pessoal.

    O crescimento evangélico foi possibilitado pela permissiva facilidade com que são tratados pela legislação. Num país onde montar uma barraquinha de doces exige um mar de obrigações, abrir um templo requer um mero registro em cartório. E para habilitar-se pastor não há necessidade de graduação em teologia ou qualquer outra exigência. Enquanto na calvinista Europa, sua formação exige uma série de pré-requisitos, aqui qualquer charlatão pode exercer de imediato o ofício.

    Curiosamente, o primeiro governo de Lula, hoje acusado de perseguição, criou facilidades para a prática da religião, isentando as igrejas de uma série de responsabilidades estatutárias. Nesse período ocorreu uma explosão na quantidade de igrejas. Segundo o IBGE, o número de estabelecimentos religiosos no país em 2022 superou os de ensino e saúde juntos!

    Se o PT foi condescendente com o crescimento vertiginoso dos evangélicos, foi Bolsonaro quem capitalizou com competência o apoio dessas igrejas angariando através de medidas populistas o apoio da classe, vindo a se tornar um ser ungido, enviado pelos deuses para salvar a nação do perigo ‘marxista’ e ‘ateu’. Conseguiu até difundir sua política armamentista e seu discurso raivoso recheado de palavras chulas num universo em que deveria prevalecer tolerância e amor ao próximo. E ainda colocou no STF um juiz ‘terrivelmente evangélico’ que acima dos preceitos jurídicos, julga pelo que reza a Bíblia.

    Mesmo sabendo que jamais terá apoio deles, Lula teme exercer maior fiscalização aos evangélicos e acabar com a farra de privilégios. Se os militares e os políticos medem palavras, os pastores soltam o verbo com a certeza de que não existe, sob o céu de Jeová, força capaz de refrear sua atuação.

    Conseguem assim emplacar o que lhes agrada. Ficam incomodados com a existência de homossexuais (direcionando-os à ‘cura gay’) e de banheiros unissex, mas não estão nem aí com os desvalidos famintos. Passam o pano para os estupradores Robinho e Daniel Alves (ambos evangélicos) mas amaldiçoam meninas que querem tirar de seu corpo o fruto de uma violência sexual.

    Contam com o suporte da poderosa Frente Parlamentar Evangélica. Não há no Congresso corporações de católicos, espíritas, muçulmanos, judeus, budistas, umbandistas ou ateus. Tampouco, existe ‘bancada verde’, ‘bancada indígena’ ou ‘‘bancada antirracista’.  Mas tem a ‘Bancada da Bíblia’ que, ao lado da ‘Bancada do Boi’ e a ‘Bancada da Bala’, formam a famigerada tríade BBB, unidas em prol do atraso.

    Dispõem também do controle de meios de radiodifusão, obtendo concessões públicas que deveriam promover assuntos de interesse de toda a coletividade. Recentemente, perceberam maior eficácia nas redes sociais onde conseguem com baixos custos obter comportamento bovino da massa de fiéis. Os pastores dispõem de milhões de seguidores repassando-lhes fake news.

    Os evangélicos enfiam goela abaixo seus princípios morais a todos os brasileiros e brasileiras inclusive aos que professam outros credos. Ao contrário das outras religiões, boicotaram medidas de combate à COVID porque obstavam as aglomerações (e consequentemente a receita financeira).

    Na Amazônia, mantêm boas relações com desmatadores e garimpeiros ilegais, quase todos evangélicos (a quem enxergam como ‘empreendedores’). Querem ‘catequizar’ na marra índios e quilombolas, levando-lhes ‘a palavra de Deus’. É conhecida a virulência com que atacam o candomblé e as religiões de matriz africana que associam ao diabo.

    Alinham-se a governos de direita que desprezam os princípios da democracia e os direitos humanos a que associam ao comunismo. 

    Se com 30% já conseguem manipular o país, imagine o que farão quando se tornarem maioria! Sua intenção é claramente implantar uma teocracia, a República Evangélica do Brasil. Converta-se voluntariamente antes que seja obrigado a fazê-lo.

  • A eterna mania de estar pronta para reagir

    Ontem foi dia de esperar a chuva torrencial prometida pela meteorologia. Não fui ao Pilates, imagina ter que voltar ensopada para casa às 8h da manhã. Lá pelas 11h, olhei o céu da minha varanda, dia claro. Só nuvens fofinhas a decorar a paisagem. Mas decidi não fazer a caminhada diária, vai que o tempo muda de repente e a danada da chuva me pega desprevenida. 

    À noite, teria o aniversário de uma amiga querida e depois um show. Por volta das 19h30, ouvi umas trovoadas, depois vinte minutos de chuva forte com pingos grossos e o receio de passar sufoco para chegar nos eventos ou sair de lá. Botei o pijama e aguardei com paciência o dilúvio. 

    Enquanto observava o asfalto secar, senti uma admiração profunda por todos que apostaram na sorte. Pelos amigos que foram encontrar a aniversariante e pelos desconhecidos que curtiram a noite dançando no show.

    A vida sempre ensina: palavras, promessas e previsões o vento leva. A realidade é feita da aposta no agora. 

    Será que amanhã vai chover? 

    Não importa!

  • Comunista

    Sou comunista! Antes que essa escandalosa revelação afaste os leitores de minha repugnante companhia (tal qual acontecia com os leprosos e lazarentos da Idade Média), apresso-me em oferecer alguns esclarecimentos para tentar aplacar a aversão de meus detratores.

    Aviso logo: não sou comunista tipo saudosista, na acepção estrita do termo, o autêntico comunista que se espelhava nos antigos regimes da URSS e da China. Dos tempos, em que para fazer jus ao título, o aspirante a comunista tinha que ralar, adquirindo uma sólida formação intelectual com base em leituras das obras clássicas de Engels, Gramsci, Rosa Luxemburgo, Adorno, Sartre, Marcuse e outros autores marxistas chiques que faziam furor entre a juventude rebelde dos anos 60. Pensadores esses cujos ensaios, vejo-me obrigado a confessar, como comunista de meia tigela que sou, conheço muito pouco.

    Nos círculos mais sofisticados da intelectualidade, era charmoso afirmar-se ‘de esquerda’, que significava ser esclarecido, em oposição aos burgueses alienados, presos a ultrapassados dogmas, desprezados por sua falta de conhecimento e de consciência social. Sim, caro leitor, houve uma época em que as pessoas cultas é que eram admiradas e valorizadas socialmente.

     Mas os ventos mudaram de direção. Nesses tempos de Inteligência Artificial e de bitcoins, quem é burro e rico é que tem prestígio. Naufragaram socialistas, emergiram socialites. Ser instruído perdeu o charme e o saber passou a ser mercadoria barata, acessível a um clique de mouse.

    No mundo atual, ganharam status os influencers que, com suas pregações vazias na internet, amealharam legiões de seguidores, que passaram a pautar sua visão de mundo não pelos grandes compêndios da literatura universal mas por curtas mensagens de WhatsApp. Assimilaram um entendimento estereotipado de como se comportam as coisas, que pode ser identificado pelo seu ideário: não acreditar na vacina, na ciência, nas escolas, no processo eleitoral, no STF, ser negacionista do clima, acreditar na balela da meritocracia, adotar a Bíblia como única fonte de informação confiável, ser avesso à cultura e às artes, não assistir a Globolixo, acusar os artistas de rapinarem dinheiro público pela Lei Rouanet e outros chavões que lhes foram impingidos pelos formadores de opinião.

    Caso não seja um desses pobres diabos cujo conhecimento (ou a ausência dele) foi homogeneizado pelas redes sociais, o leitor por certo tem algum parente ou algum (ex) amigo nessa condição. Trata-se de um padrão que certamente já foi identificado pelo leitor, a cujo comportamento bovino foi conferida a condição de ‘gado’. Perfeita descrição!

    Os mais extremados marcham pelas ruas pateticamente de verde amarelo, louvando o ‘mito’. Esses não têm mais jeito. Vivem uma realidade paralela, converteram-se ao terraplanismo, adotaram a religião neopentecostal rasa ou o ‘catolicismo’ medieval, rezam para pneus, pedem a intervenção de ETs etc. Alguns acamparam nos quartéis pedindo a volta da ditadura e vandalizaram as sedes dos 3 Poderes achando que estavam salvando o país do… comunismo. O próximo estágio será serem presos pelo Xandão ou irem para um manicômio pois perderam totalmente o senso.

    Esses seres simplórios fizeram valer para a palavra ‘comunista’ (ou seus congêneres, ‘esquerdopata’ e ‘petralha’) uma conotação pejorativa, quase como um xingamento, referente a um ente maléfico que devora criancinhas vivas e quer se apropriar dos modestos bens que possuímos para financiar o regime de Cuba e da Venezuela.

    Foram transformados em ‘comunistas’ todos aqueles que mantiveram ideias independentes, os críticos, os inconformados, os contestadores, os que pensam com a própria cabeça, os ‘diferentões’, enfim todos aqueles que, por uma razão ou por outra, não foram varridos pela maré pasteurizadora de imbecilidade que se apropriou dos corações e mentes, recusando-se a tornar-se panacas robotizados.

    Pela nova abrangente classificação, são considerados comunistas, quase todos os jornalistas, estudantes de universidades públicas, médicos do SUS, assistentes sociais, sociólogos, intelectuais, professores, jornalistas, historiadores, poetas, músicos, atores, cineastas, ambientalistas, naturalistas, veganos, esotéricos, umbandistas, pais-de-santo, muçulmanos, zen-budistas, iogues, ateus, feministas, gays, lésbicas, travestis, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, capoeiristas, homeopatas, antirracistas, afrodescendentes, imigrantes, indigentes, moradores de rua, humanistas, excêntricos, democratas, defensores de minorias. Também se enquadram nessa categoria políticos das mais variadas estirpes como Lula, Simone Tebet, Marina Silva, FHC, Alckmin, Sarney, Doria, Kassab, ACM Neto, Rodrigo Maia, Helder Barbalho, Rodrigo Pacheco. E artistas diversos como Caetano, Gil, Maria Rita, Nando Reis, Daniela Mercury, Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Emicida, Marcelo D2, João Gordo, Odair José, Ivete Sangalo, Xuxa, Angélica, Fábio Porchat, Luciano Huck, Datena, Paolla Oliveira, Anitta, Pabblo Vitar, Luiza Sonza, Ludmilla, Valesca Popozuda entre tantos. Todos comunistas.

    Como pode ser deduzido, não sobrou muito espaço para quem não se filiar a uma das duas facções em que a sociedade ficou dividida: a dos comunistas e a dos babacas.

    Nesse sentido, mesmo sem comungar das ideias ortodoxas dos ‘comunas’ clássicos, mas ficando ao lado de todos aqueles que mantiveram a lucidez e o discernimento, ante o mar de boçalidade conservadora, posso proclamar com muito orgulho: SOU COMUNISTA!

    *Textos assinados não refletem necessariamente a opinião do portal Crônicas Cariocas. Liberdade de opinião é o nosso principal de pilar!

  • Por isso escrevo – parte II

    Estou revisitando meus contos, crônicas e estudos sobre escrita criativa. De vez em quando, tenho rompantes de “chefe”. Deve ser coisa do hábito — afinal, diz o ditado popular “o uso do cachimbo entorta a boca.” 

    Durante anos, fui supervisora na repartição onde trabalhei e, vez por outra, precisava revisar processos. O quê, como, quando, por quê, para quê.

    Agora estou aqui, na curiosa posição de algoz e vítima da minha antiga função.

    Revejo os cursos que fiz, as anotações, os exemplos, as descobertas. Tudo o que estudei, registrei e arquivei ao longo dos anos dedicados à escrita. Algumas descobertas me orgulham; outras, frustram — como em tudo na vida.

    De tudo tenho a certeza que é preciso coragem para deixar fluir minhas ideias e sentimentos, o caos da minha mente, ver o texto tomar forma e soltá-lo no mundo, para que encontre eco e sentido em meus leitores.

    Ainda assim, o saldo é positivo. Fiz muitos cursos, tive diversos mentores, explorei diferentes camadas da arte de escrever.

    Busco encontrar a essência da escrita criativa e nela me desenvolver.

    Sei onde posso pisar com segurança e onde prefiro não arriscar — como escrever romances, seguir roteiros rígidos, usar escaletas.

    Não, essa forma de escrita, não me atrai.

    Quero escrever. Gosto de contar histórias. Criar crônicas que dialoguem com o leitor, provoquem reflexões ou simplesmente narrem o cotidiano.

    Ainda não li o livro de Marcelo Rubens Paiva que inspirou o premiado Ainda Estou Aqui, mas imagino que seja uma história contada com alma. Uma literatura carregada de emoção, escrita por alguém que viveu aquele tempo e cenário, que sentiu na pele medos e dores. Diante disso, a última coisa que importaria seria a aplicação de teorias sobre escrita.

    É isso que quero dizer: quando um autor permite que sua alma fale, a técnica se torna secundária. O valor está na emoção, na verdade que extrapola a forma do texto.

    Isso significa que o estudo não importa? Claro que não! Mas, lá no fundo, gosto de acreditar que a história precede a escrita.

    E, pelo sim, pelo não, sigo estudando. Porque escrever faz parte de mim — de quem eu sou.

  • Por isso, escrevo

    Aprender sobre literatura faz parte do meu dia a dia.

    Aposentei-me após trinta e cinco anos como servidora pública. Trabalhei mais cinco anos nessa condição, até decidir que era hora de dar espaço ao novo. Mas que novo? Os jovens que me substituiriam no trabalho? A nova rotina, sem horários rígidos ou prazos? Ou, mais que tudo, o novo que sempre esteve em meu subconsciente?

    A vontade de escrever, de me dedicar à literatura, de compreender meus autores favoritos e sentir o gosto de transformar em palavras o que habita minha imaginação. Resolvi estudar. Aprendi muito, mas sei que ainda há um longo caminho a percorrer.

    Descobri a escrita criativa, o lirismo, o poder dos adjetivos bem escolhidos, a força das figuras de linguagem usadas no momento certo. Percebi que os acontecimentos não devem ser apenas narrados, mas transformados em literatura, com musicalidade, ritmo, beleza — e não simplesmente relatados como em um noticiário.

    Aprendi a selecionar adjetivos, a escolher substantivos, a encontrar poesia nas palavras.

    As narrativas devem fazer sorrir, refletir, provocar, revelar o mundo além do que se vê e se ouve. A riqueza da língua portuguesa deve encantar tanto a mim quanto ao meu leitor.

    A vida dança entre amores, desamores, honra, destino, vingança, ordem ou caos — inquietação e paz.
    Desses dilemas busco a matéria-prima da minha escrita, onde escolho as cores e sabores que coloco nas histórias que povoam a minha mente.

    Por isso, escrevo.

  • PODRES PALAVRAS

    Elas não constam de glossários de expressões chulas. Não podem ser categorizadas morfologicamente. Têm em comum apenas a repulsão que provocam, por mais subjetiva e arbitrária que seja essa agregação.

    São repugnantes por natureza. Trazem o signo do horror em suas entranhas. Assim que ouvidas ou lidas, antes mesmo que nosso racional processe a interpretação de seu presumível significado, batem direto no emocional provocando imediata rejeição. Mantém linha direta com o lado obscuro do cérebro, fazendo emergir conteúdos e imagens que preferíamos deixar quietos nos porões do esquecimento.

    Mas afinal de onde provém essa condição? Poder-se-ia argumentar tratar-se de um fator cultural. Eu diria que mais provavelmente seria um fator gutural.

    Mas uma dúvida persiste. Foi seu subjacente conceito que contaminou sua forma? Ou sua fealdade orgânica tem um liame subliminar com sua presuntiva acepção?

    O fato é que, ainda que sem revelar para que vieram ou de onde surgiram, sua mera pronúncia provoca um indisfarçável desconforto, um mal estar no estômago, eventualmente até mesmo um arrepio.

    São podres palavras, palavrões no sentido mais extensivo do termo.

    ***

    Esgoto, escroto, escopo, estupro, zigoto, peçonhento, bucéfalo, jurássico, chumbrega, mequetrefe, rebuceteio, ricochete, ambivalente, volúpia, interregno, escroque, imberbe, pundonor, hecatombe, hediondo, aborto, absorto, nu, cru, suruba, bacanal, cafuné,  outrossim, ulterior,  visigodo,  macumba, ufano, carcaça, jaez, treta, opróbrio, taciturno, pusilânime, macambúzio, birrento, banzo,  sorumbático,  gárgula, lamuriento, bricolagem, belzebu, quiproquó, barafunda, muvuca, grotão, aziago, ungüento, tara, pamonha,  busílis, úvula, galhofa, cabotino, probo, apedeuta, truculência, brucutu, vuvuzela, quasímodo, chinfrim, putativo.

    Estapafúrdio, esdrúxulo, bombástico, estrambótico.

    Bagulho, bugiganga, espelunca, geringonça.

    Sovaco, chulé, arroto, flatulência.

    Fétido, fedorento, pútrido, putrefato.

    Mocréia, bruaca, muxiba, baranga.

    Cafuzo, mameluco, chibarro, curiboca.

    Nauseabundo, moribundo, furibundo, meditabundo.

    Úmido, túmido, túrgido, tumefacto.

    Chorume, estrume, azedume, negrume.

    Bruto, xucro, ogro, bronco.

    Sacana, safardana, sacripanta, salafrário.

    Velhaco, gatuno, gaiato, larápio.

    Biltre, pulha, crápula, calhorda.

    Roxo, lixo, coxo, mixo.

    Nojo, bojo, jugo, mijo.

    Vômito, pus, cuspe, gosma, muco, pigarro, escarro, urina, caca, baba, estrume, cerúmen, seborréia, fleugma, remela, espirro, esporra, esperma, excremento, meleca.

    Frieira, íngua, ferida, prurido, comichão, cólica, brotoeja, bulimia, disfagia, câimbra, torcicolo, sudorese, hemorróida, icterícia, náuseas, herpes, lúpus, sarna, urticária, enjoo, vertigem.

    Úlcera, lepra, peste, gangrena, cirrose, esclerose, brucelose, trombose, toxoplasmose, esquistossomose, esquizofrenia, hipofibrinogenemia.

    Aids, ebola, chicungunha, zicavírus.

    Mufumba, chaboque, sapiranga, mondrongo.

    Sarcoma, linfoma, mioma, carcinoma, neoplasma, abscesso, furúnculo intumescência, cisto, quisto, cancro, câncer, metástase, pústula, fistula, hiperplasia, fibrose, necrose.

    Intestino, esôfago, estômago, pulmão, pâncreas, abdômen, tórax, cóccix, sacro, peritônio, amígdala, panturrilha, queixo, vômer, fêmur, úmero.

    Útero, prepúcio, testículo, vagina, ânus, pélvis, pênis, púbis, vulva, uretra, pentelho.

    Medonho, soturno, nefasto, funesto, fúnebre, lúgubre, mórbido, tétrico.

    Túmulo, caixão, cova, sepultura, esqueleto, carcaça, cadáver.

    Cemitério, necrotério, crematório, sepulcrário.

    Sanatório, hospital, hospício, manicômio.

    Podólogo, otorrino, obstetra, geriatra.

    Cauterização, curetagem, traqueotomia, lobotomia.

    Tumor, dor, torpor, terror, temor, horror, pavor, tremor.

    Buchada, rabada, galinhada, vaca-atolada, barreado, guisado, linguado, angu, caruru, sururu, aratu, tutu, umbu, pururuca, bobó, quibebe, xinxim, jerimum.

    Espinafre, alfafa, chicória, repolho, nabo, quiabo, inhame, jiló, jaca, cajá, caju, caqui, kiwi.

    Churrasco, chuleta, maminha, coxão.

    Carne-vermelha, febre-amarela, catarro-verde, baleia-azul.

    Glutamato, glifosato, transgênico, Monsanto.

    Glúten, nugget, nutella, miojo.

    Rinha, rodeio, vaquejada, muay-thay.

    Roto, rito, reto, rato.

    Porco, bode, bezerro, burro, cachorro, ornitorrinco, fuinha, texugo, cachalote, esturjão, barracuda, arenque, paca, pacu, baiacu, pirarucu, urubu, peru, jacu, anu, corvo, gralha, rola, pinto, carrapato, cupim, lacraia, lesma, lombriga, percevejo, escaravelho, marimbondo, gafanhoto.

    Colchetes, parêntesis, travessão, gerúndio, cacofonia, anacoluto, onomatopéia, antonomásia, catacrese, anfibologia.

    Vara, alvará, estelionato, carceragem, ouvidoria, glosar, ab-rogar, impugnar, prevaricar, tergiversar, locupletar,  tutela, concordata, hipoteca, precatório, caução, esbulho, estagflação.

    AI5, HIV, PCC, STF.

    SUS, SAMU, PIS-PASEP, BOVESPA.

    Bolchevique, Gulag, Glasnost, Perestroika.

    Azerbaijão, Cazaquistão, Uzbequistão, Quirquistão, Turcomenistão, Tadjiquistão, Baluchistão, Curdistão, Chechênia, Andorra, Bósnia, Bulgária, Kosovo, Luxemburgo, Liechtenstein, Budapeste, Praga, Tirana.

    Fatah-Al-Islam, Taliban, Boko Haram, Ku Klux Klan.

    Hezbollah, FARC, ETA, Baader Meinhof.

    Putin, Pinochet, Pol Pot, Papa Doc.

    Tzar, Salazar, Bashar, Muammar.

    Nero, Calígula, Torquemada, Maquiavel.

    Mengele, Ulstra, Bolsonaro, Garrastazu.

    Ditadura, tortura, clausura, viatura.

    Cárcere, cadafalso, calabouço, cala-boca.

    Mordaça, porrada, porrete, cacete.

    Zebedeu, Zaqueu Zulmira, Zoroastro.

    Odebrecht, Richtofen , Nardoni, Abdelmassih.

    Brutus, Luthor, Vader, Voldmort.

    Hannibal, Godzilla, Poltergeist, Pulp Fiction.

    Akira, Naruto, Pokemon,  Pikachu.

    Rutger Hauer, Heth Ledger, Renée Zelweger, Van Diesel.

    Snoop Dogg, Tupac Shakur, Dr Dre, Shaggy.

    Safadão, Marrone, Teló, Ludmilla.

    Popozuda, Catra, Tchan, Créu.

    Fuck, funk, punk, crack.

    Google, Netflix, Huawei, Bitcoin.

    Uber, Trivago, Hopihari, Agro é pop.

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