Sábado

  • Folga

    Uma empresa chinesa criou, recentemente, a licença infelicidade. Cada funcionário, ao longo do ano, tem direito de faltar ao serviço, por um período de até dez dias, caso se sinta triste, irritado, angustiado ou infeliz.

    De primeira, questionei a ingenuidade da proposta. Como eles não desconfiam das artimanhas da procrastinação? Eu, sem dúvida, anualmente, seria acometida por uma certa tristeza, às segundas e sextas. Naqueles dias de sol em que os infelizes trabalham, meu caminho seria o mar. Pé na areia. Mate Leão. Biscoito Globo. Livro do mês e celular desligado. Sim, cada vez mais me convenço de que a telinha quebra o clima de intimidade em qualquer situação, inclusive comigo mesma. Sem culpa de enganar o chefe.   

    Pensando bem, no mercado não se joga para perder. É possível que a empresa tenha criado o direito à licença infelicidade sabendo que ninguém tirará proveito, por medo de represálias. Aqui no Brasil, tenho certeza que o benefício seria gatilho de insegurança e ansiedade, pois funcionaria, subliminarmente, assim: o funcionário que tirar licença de um dia para cuidar do seu sofrimento será, imediatamente, incluído na lista de demissão do fim do ano. Isso para não citar outras complicações, como, por exemplo, a possibilidade de um setor inteiro fechar devido à competição entre os pares: se Marcela não veio, não sou eu quem vou trabalhar por dois. Tô indo. Eu também não. Nem eu.

    Brincadeiras à parte, a iniciativa chinesa, ainda que saibamos da desvalorização da mão de obra por lá e, provavelmente, justo por isso, denuncia a consequência nefasta — para o trabalhador, empresa e sociedade — da obrigatoriedade de sermos produtivos em dias difíceis ou a despeito de qualquer dor existencial.

    Lembro de uma senhora que descobriu na emergência de um hospital que teria que ficar internada, em função da gravidade do seu caso, e ela respondeu:

    — Entendo, doutor. Mas agora não posso. Tenho reunião no escritório. Assim que acabar, eu volto.

    Para onde estamos indo? Que lógica é essa que ignora a própria morte em nome da soberania da exploração e do lucro? 

    A medicalização da tristeza (não me refiro à depressão) é prova da manobra de urgência para que a máquina não pare. Não há tempo para digerir términos, perdas, decepções, frustrações. Engula o choro junto com o remédio e siga em frente. Rápido. Rápido!

    Para uma empresa criar esse mecanismo de despressurização, no mínimo, já se deu conta da epidemia que se agiganta a nossa frente.

    E quanto a você? A julgar pelo seu estado emocional, amanhã será dia de trabalho ou de licença? 

  • O teatrólogo e o apresentador de tv

    Qual elo poderia unir duas figuras tão distintas quanto o teatrólogo Zé Celso (1937 – 2023) e o apresentador Sílvio Santos (1930 – 2024)?

    Agitador cultural, artista libertário, inovador, ousado, Zé Celso Martinez Corrêa dedicou sua vida às artes cênicas e a difundir cultura para esse país tão carente, um sujeito transgressor e revolucionário que jamais se submeteu aos padrões estabelecidos, tendo batido de frente com a ditadura. Faleceu bestamente num incêndio em seu apartamento, aos 86 anos.

    Sílvio Santos, ou melhor, Senor Abravanel, um dos homens mais ricos do Brasil, dono de uma portentosa rede de comunicação, o SBT, com programação voltada para as classes mais humildes, é um homem desprovido de ideais e motivações políticas, conhecido por bajular os donos do poder, foi um dos veículos de que serviu de sustentáculo ao ex-presidente Bolsonaro. Após mais de 60 anos de carreira, retirou-se dos palcos por conta de sua idade avançada aos 92 anos, em 2023. Vindo a falecer um ano depois.

    A fatalidade colocou frente a frente essas personalidades tão díspares numa pendenga judicial que se arrasta por mais de 40 anos em torno do destino de um terreno no bairro do Bixiga em São Paulo. Trata-se de uma área de 10 mil m2 que contorna o teatro Oficina, marco cultural da cidade, onde Zé Celso com outros companheiros iniciou sua carreira e no qual foram encenadas peças importantes como o Rei da Vela de Oswald de Andrade e outros clássicos da dramaturgia.

    Ocorre que a área em questão foi arrematada pelo Grupo Sílvio Santos que nele pretendia erguer um monstrengo imobiliário com cerca de mil apartamentos e outro tanto de vagas de garagem, empreendimento que iria impactar severamente um bairro com tantas tradições, além de desconfigurar o arrojado trabalho da arquiteta Lina Bo Bardi para a casa de espetáculos, tida pelo jornal Guardian o melhor projeto arquitetônico do mundo para um teatro.

    A mastodôntica iniciativa comercial desagradava não apenas Zé Celso como todos aqueles que gostariam que fosse dada uma destinação mais nobre para a área, mais especificamente, a criação de um parque, que melhor se harmonizasse com a icônica casa de espetáculos que circunda.

    São Paulo é uma das cidades mais caóticas e desajeitadas do planeta, cuja expansão desordenada avança a reboque dos interesses das incorporadoras como demonstra a famigerada revisão do Plano Diretor do município, recentemente aprovada. O bairro do Bixiga é um dos últimos redutos que ainda resiste e mantém-se ativo com seus teatros, sua vida boêmia, suas cantinas e padarias italianas, seus marcos históricos, suas pitorescas construções e uma famosa feira de antiguidades.

    Para resolver o impasse do terreno, foi promovido em 2017 um surreal encontro que colocou frente a frente Zé Celso e Sílvio Santos. A inusitada reunião (que pode ser apreciada no Youtube) mediada pelo então prefeito João Dória mostrou o quão difícil é chegar a um entendimento já que confronta concepções de vida bastante distintas. Sílvio repetidamente afirmava: “mas o que você pretende fazer com o terreno?”, insistindo que, a despeito de ser rico, pagou caro pelo investimento do qual não pretendia abrir mão. Zé Celso, por sua vez, retrucava não querer tomar posse do terreno e sim que se tornasse um espaço livre para realização de atividades culturais e não conseguia entender a falta de sensibilidade do empresário.

    Curioso que Sílvio Santos, ao contrário do que se possa imaginar, não é assim tão avesso ao tema tanto que ergueu a poucos metros do local, o Teatro Imprensa, que se manteve em atividade com sucesso por mais de 20 anos e só fechou as portas para reduzir as despesas do grupo numa época de vacas magras, não obstante fosse superavitário. Afora isso, Sílvio criou no SBT um núcleo de dramaturgia, sua esposa Íris é autora de novelas, sua filha Cíntia roteirista e seu neto Tiago um consagrado ator.

    Honrando essa trajetória, o que custaria ao Homem do Baú, num gesto magnânimo de desprendimento, brindar o terreno à capital paulista na qual o apresentador construiu seu império, num parque que poderia até ganhar o seu nome? A cidade ficar-lhe-ia eternamente grata e ele fecharia com chave de ouro seu currículo.

    Grandes magnatas como Bill Gates, Warren Buffett e George Soros doaram ou comprometeram-se a doar mais da metade de sua fortuna para causas filantrópicas. Sílvio não precisa chegar a tanto. Dono de um patrimônio de quase 2 bilhões de reais, o terreno representa uma fraçãozinha de suas posses.

    O dono da Tele Sena que já batalhou por quase um século de vida, poderia encerrar brilhantemente sua jornada terrena com essa louvável demonstração de generosidade. Mostraria que poderia trocar o ‘Topa Tudo por Dinheiro’ por uma iniciativa nobre que lhe eternizasse como homem público. Ou imagina o apresentador que vai levar seus bens para um baú da felicidade a sete palmos do chão?

  • O hoje do ontem

    Aproveitei o final de ano e mandei estofar o sofá. Chegou ontem. Interessante o impacto que uma simples mudança causa na sequência aleatória dos dias. Aliás, a espera pela entrega do “novo”, por si só, me provocou alvoroço. Não sou capaz de imaginar o resultado final do serviço a partir do pedacinho de pano da amostra. Por sorte, deu certo.

    A novidade trouxe animação, beleza, vontade de decorar a sala com novos objetos. Valeu o custo. O velho estava surrado de uso, a espuma sem firmeza, o tecido soltando o alinhavo e as amarras da história. O desbotado teimava em gritar o que se foi. Perdeu a graça, o charme e, na tristeza do seu envelhecer, passou a incomodar.

    Agora, o sofá azul de céu noturno assume sua imponência vestido de novos tempos. Do seu posto de belo, encara a tevê como se ordenasse um brinde ao que virá. Dono de um vigor encantador, ele brilha, orgulhoso de si. A mesa de jantar, a de centro, a luminária velha de guerra, na timidez da falta de viço, parecem nutrir um amor platônico. Não sei se o sofá inveja a intimidade, a cumplicidade e a vivência dos objetos que aqui estão desde o início.

    Ele é sedutor, instigante, atraente, classudo. Porém, feito namorado novo, exige formalidades. Estamos no início, fase em que se exercita as pequenas falsidades próprias a toda conquista. Sorriso contido, pernas cruzadas, costas erguidas, almofada sobre a coxa. Eu e o poderoso prontos para o frescor da paixão. Acontece que felicidade não é produto de fácil consumo… sinto saudade do passado. Nele, eu me jogava sem medo. Acariciava seu rosto com a sola dos pés. Mesmo empoeirado de rotina, éramos íntimos. Não reclamava da minha falta de jeito ou do peso das minhas pernas em suas costas.

    Será que a belezura do momento desconfia do que foi vivido em outros panos? Será que sabe que o novo é tempo que passa?

  • Promessas e Cotidianos

    Ano novo anda de mãos dadas com promessas. Não fugi à regra, quando enumerei minha lista de boas intenções. Passada a euforia refleti sobre esse costume. Eu estou me enganando! Claro que sim, ora se bem me conheço, nenhum rol ou plano de ações vai mudar a minha forma de ver o mundo, de agir, de errar e acertar.

    Que alívio! Vamos então ao meu ponto de equilíbrio: escrever. Essa é a minha terapia, o meu exercício diário de conexão com o mundo, com a vida.

    Na apreciação do cotidiano, no fascínio pelo simples, pelas belezas da natureza, e das pessoas eu encontro o meu refúgio. Vejo, crio ou invento pequenos milagres ou grandes feitos no que ninguém mais viu. Me comovo e me surpreendo com novas e antigos costumes.

    Não é assim de estalo, que família e amigos, em rotinas ou viagens me entendem ou correspondem. E tudo bem!

    O comum, o rotineiro me encantam, mesmo em lugares onde estou só a passeio. O pequeno grupo de alunos que passa em frente ao hotel, os uniformes com emblemas em outro idioma, as frases que não entendo, a alegria, o riso.

    Ao sumirem na próxima esquina levam o meu olhar entre curioso e amoroso; nem por isso evito o sorriso maroto quando penso não ter nada a  ver com tarefas, almoços e problemas do dia seguinte. Sou espectadora apenas. E da minha lista de intenções, sou “grandinha” o suficiente para saber o que me faz bem, o modismo ou necessário. Então eu confesso:  só ao final do ano vou revê-la e se necessário adequar a rota!

  • Eu, produto de valor

    Abriu uma nova sorveteria no shopping perto da minha casa. Por estratégia ou atrevimento, a novinha fica em frente à geladinha oficial.

    Disposta a conhecer a gostosura da hora, entrei na imensa fila que se formava. Tentei me distrair com as opções de sabor, designer da loja, mas, na consciência, pesava a culpa da traição. Para agravar a tensão, pertinente ao momento de flerte que não deveria acontecer, me acompanhava o olhar da atendente da sorveteria antiga. Pude ouvir seus pensamentos:

    — Tá fazendo o quê aí, sua falsa? 

    Juro que pensei em desistir. Rejeitar a oportunidade de saborear uma nova experiência e, com o rabo entre as pernas, voltar para a queridinha oficial. Mas o tédio é um encosto nos traidores. 

    O cansaço da rotina desperta o pior de cada um. Pensar nisso, construiu a coragem necessária para rebater os resquícios da minha ética amorosa:

    — Merece o chifre. Enquanto era única na minha vida, nunca fez uma promoção, me deu brinde ou ofereceu um cupom de desconto. Agora, aguenta a dor de me perder. 

    Peguei minha casquinha, ergui os ombros, joguei o cabelo, empinei o bumbum e passei bem devagar na porta da ex.

    A lógica do mercado também rege as relações amorosas. A concorrência sempre favorece o consumidor. 

  • Redução de dano

    Estamos a passos curtos de poder apagar as memórias ruins que nos atormentam, é o que aponta um estudo realizado por cientistas da Universidade de Hong Kong e publicado no Jornal O Globo.

    Por sorte, a técnica desenvolvida com sucesso no Japão se diferencia do procedimento oferecido no inesquecível “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”. Na película, o protagonista se submete a um tratamento experimental para apagar as memórias com sua ex. Porém, ao descobrir que, para isso, também serão deletadas as boas lembranças, se arrepende e tenta reverter o processo.

    No caso da pesquisa, o sumiço das recordações desagradáveis foi menos custoso. O resultado foi alcançado com a ativação de boas lembranças durante o sono.

    Esse feito promete reabrir as portas do Paraíso. Já imaginou acessar somente memórias felizes? Poder calar a voz ruminante das mágoas?

    Para completar a alegria de um futuro sorridente, em seguida me deparei com uma reportagem sobre os “malefícios do hábito crônico de reclamar” para a saúde física e mental. A pesquisa que deu origem à matéria foi realizada pela Faculdade de Stanford, e os achados impressionam: “meia hora de negatividade por dia pode danificar o cérebro de uma pessoa – esteja ela reclamando, ouvindo alguém reclamar ou mesmo assistindo a notícias negativas pela TV.”

    Será que me sobrou algum neurônio?

    A partir de agora, quando encontrar aquele amigo que inventa um problema para cada solução, adotarei o modo “Poliana, a contente”. Sem tempo para reclamão. Foco total na redução de danos.

    Quanto às memórias ruins, talvez eu não precise da borracha e deva apenas usar menos o marca-texto.


  • Sobre ontem

    Contrariada, acordei às 6h da manhã. Hoje é dia de Pilates e caminhada. Pensei em esbravejar, dizer o quanto eu odeio esse compromisso com o bem viver, mas melhor não.

    Faz tempo que aceitei que atividade física é remédio. Não importa se o gosto é ruim, se a drágea é muito grande, engole! Também cansei da cobrança de encontrar um exercício que me desse prazer, já fiz muito esforço para achar um amor, a empreitada é inglória. Então, me troquei e fui. 

    Na volta da caminhada, num calor de furar o saco da paciência, decidi passar na padaria para comprar um picolé Magnum. Adentrei no recinto e me lembrei da dieta que prometi começar hoje. Adio o projeto por mais um dia? Talvez não seja tão complicado, tenho adiado há 50 anos… não, melhor não. Perderia muito da minha admiração por mim. Preciso ter palavra. Me prometi ser mais honesta comigo. Quem sabe um picolé de fruta? Com certeza, é menos calórico que o Magnum. Não, melhor ficar sem nada do que aceitar remendas no desejo. 

    Superado! Hoje tem o meu programa favorito na tevê. É por ele que aguardo e me motivo a seguir em frente. 

    O tempo dança com os ponteiros do relógio de parede, enquanto espera o fim do meu expediente.

    Tomo um banho caprichado feito quem se prepara para a festa. Lanço mão do pijama preferido. Ligo a tevê, o ar, sim, mereço, nada de mesquinharias. Faço a pipoca, salgada, porque fiz promessa de ficar sem açúcar até o carnaval. Me estico no sofá. Mereço! Começa o programa. Um estrondo anuncia o fim da atividade laboral de um transformador. Acaba a luz. Breu. Da varanda, vejo uma tevê acesa no prédio em frente. 

    Será que o morador reconhece a sorte de estar naquele prédio, naquela sala, naquele momento? Será que assiste ao meu programa ou foi vencido pelo sono e dorme sem saber do seu privilégio? 

    Espero. Espero. Escrevo a crônica. O sono chega. A chuva leva para longe a irritação.

    Em algum lugar alguém deseja esse silêncio, esse tempo, essa chance de pensar no amanhã como possibilidade. 


  • Listas do existir

    O momento é propício à elaboração de listas de desejos e promessas para 2025.

    É tempo de mergulhar nas mais diversas ilusões de si mesmo; de vibrar intensamente com a motivação sazonal para trocar de pele, personalidade e modus operandi.

    Essa é a magia de dezembro: fazer com que cada um acredite em sua meteórica transmutação.

    A mensagem subliminar é poderosa: Seremos, em breve, o que jamais fomos até aqui, mas seremos! Acredite, no pipocar dos fogos de Réveillon, nascerá, a termo, aquele sujeito disciplinado, fitness, organizado, estudioso, persistente e focado que vive soterrado em você nos outros onze meses.

    Os descrentes, por favor, não se pronunciem. Não atrapalhem o parto.

    Os de fé repliquem o mantra: Eu vou mudar, fazer, ser, conseguir, alcançar meus objetivos a partir de 1 de janeiro.

    Não importa que essa seja a promessa fracassada dos últimos trinta anos. Viver é um eterno recomeçar.

    Para garantir sucesso nessa empreitada de renascimento, acelere as contrações com esperança, ânimo e coragem.

    Enquanto aguarda a hora do novo eu vir ao mundo, sugiro rascunhar uma carta de agradecimento e perdão para essa criatura que em 2024 fez o que era possível para dar conta das infinitas demandas de sucesso, performance, resultados e excelência.

    Ainda bem que temos a chance de zerar o jogo e começar nova partida.


  • Retrospectiva 2025

    Sandra saiu do Pilates, numa segunda-feira qualquer, em direção à parada de ônibus. Na cabeça, a lista de coisas para fazer: acupuntura, mercado, roupa para lavar, para passar, almoço, banco. Quinze minutos esperando a condução e nada. Repassava pela vigésima vez a lista de afazeres quando sentiu um aperto no pescoço, uma ponta de faca na orelha e uma voz de mulher gritando coisas que ela não conseguia entender. Alguns segundos foram suficientes para constatar que havia sido escolhida como refém por uma doida qualquer. 

    Eu, assistindo pela tevê, me indaguei: o que se pensa numa hora dessas? Com certeza deve ser aquela famosa retrospectiva do adeus. Já tinha lido algo sobre isso: na hora da morte, a vida passa em quadrinhos… um arrepio de horror me abraçou. Coitada dessa moça. Imagino o desespero. 

    Qual não foi minha surpresa ao descobrir que, naquele momento, Sandra estava às voltas com uma dúvida insistente: “faltando à acupuntura sem avisar, perderia a vaga no programa de assistência? Ainda daria tempo de bater a roupa na máquina e passar as que ficaram em cima da cama? Dependendo do quanto a maluca se demorasse naquela baboseira, iria direto ao banco. Ah, não…meu ônibus está vindo. Tanta coisa para fazer e eu parada aqui.”

    Ao ouvir esse curioso relato, de primeira, achei tratar-se de uma saída cômica diante do trauma, como acontece com algumas pessoas que têm crise de riso em velório. Depois pensei que pudesse se tratar de uma resposta irônica. Lembro de rir da situação. Mas, aos poucos, fui percebendo a terrível mensagem embutida nessa cena: a vida que se tem para viver é muito menos importante do que as obrigações de produtividade que temos que cumprir. Morrer esfaqueada não é o problema, o inadmissível é perder o ônibus, não colocar a roupa na máquina e pegar a agência bancária fechada. Nunca me dei conta do risco que nos espreita no automático da existência, embora Belchior já alertasse em sua canção:

    “Mas se depois de cantar
    Você ainda quiser me atirar
    Mate-me logo à tarde, às três
    Que à noite tenho um compromisso e não posso faltar
    Por causa de vocês”

    Eu, de minha parte, diante dessa lição televisionada de desprendimento de si ou da raridade da vida e, de certa forma, confrontada com a nossa similaridade para lidar com a servidão, me belisquei e me perguntei: tenho vivido?

    Nem esperei a resposta. Corri para minha listinha de promessas 2025 e acrescentei no topo da página: nada será mais importante do que estar vivo em minha vida, atenta às delicadezas, gentilezas, sutilezas e desejos. Reli as prioridades e adivinha? Nutricionista, cortina pro quarto, revisão do carro. Risquei tudo e anotei em letras garrafais:

    1. Ver a aurora boreal
    2. Finlândia

    Com que dinheiro? Não sei. Mas missão dada, missão cumprida!


  • Uma ponte entre mundos

    Hoje eu acordei sonhando com o paraíso. Curiosamente, não era um lugar florido, gramado e com cascatas cristalinas. Ao contrário, era um espaço urbano, cheio de viadutos, prédios, buzinas, um congestionamento aqui outro ali, shoppings e sinais de trânsito. Se não me engano, acho que me lembro, também tinham muitos pisca-piscas nas varandas e um enorme Papai Noel numa janela. 

    Eu caminhava pelas ruas com uma leveza só experimentada na infância, fruto da tranquilidade lúdica dos que ainda podem acreditar na justiça da vida ou na garantia do bem. 

    Atravessei avenidas, lanchei no Mc Donald’s, olhei algumas lojas, peguei elevador, entrei no escritório. Barulho, falatório, e, na cabeça, um pensamento insistente: então aqui é o paraíso? É isso mesmo?

    Embora fosse um ambiente caótico, a atmosfera era feita de sorrisos e algodão-doce. Tudo tinha cheiro de alegria.

    Vi uma menina rodopiando e cantando pelos corredores do prédio e decidi perguntar:

    — Por que aqui é o paraíso?

    — Ninguém morre em dezembro. Boas Festas! Boas Festas!

    Lembro de abrir a janela e experimentar um alívio imenso. Não é mesmo justo perder um ente querido no mês oficial das demonstrações afetivas, da polêmica das passas, da troca de presentes, da visita do bom velhinho e das reuniões de família.

    Sim, ali era o paraíso! 

    Antes que eu pudesse comemorar a descoberta, dei-me conta de que, para mim, tal indulto era tardio. Minha mãe e minha vó, em anos passados, já haviam partido no mês de dezembro. Revoltei-me com a parcialidade do paraíso.

    E as pessoas que perderam familiares, amigos, amores nos outros meses do ano e passarão o primeiro Natal, o primeiro Réveillon sem seu alguém especial?

    Toda data festiva traz, em seu bojo, a dor da ausência dos que partiram. Sempre! Mas o primeiro ano da perda inaugura um vazio avassalaDOR. Depois, na medida em que o tempo envelhece, também ganhamos traquejo para transformar o luto em lembrança. Saudade em eternidade afetiva. Mas até lá tem muito chão.

    Acordei inconformada. O benefício do paraíso não me contemplava?

    Não podia deixar barato essa afronta. Decidi criar meu próprio Éden. Se não posso calar a falta nem consigo ignorá-la, vou perfumá-la, enfeitá-la com flores de boas recordações.

    Afinal, a mensagem do sonho era clara: ninguém morre em dezembro.

    Minha mãe e minha vó também não morrerão. Cuidarei para que estejam vivas na nossa celebração através do resgate das boas lembranças, do relato de antigas histórias e do cultivo das tradições e valores da nossa família. Vou bordar com amor e palavras a eternidade do nosso laço. 


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