Sábado

  • Dia Internacional das Mulheres

    Caras amigas, manas, iguais…

    Temos um dia.

    Sim, um dia dedicado a nós. Num mundo dominado pelos homens, isso não é pouco!

    Pouco é o quão precária ainda é nossa rede de apoio. Pouco são os que nos valorizam para ocupar lugares de liderança, chefia, comando. Pouco são os que reconhecem que homens e mulheres merecem o mesmo espaço de fala, de presença, de decisão na vida.

    No entanto, eu me aproprio da homenagem e da data: 8 de março.

    Não faço fila com quem acha que nada temos a festejar. Celebro com as mulheres da minha família, da minha vida acadêmica, do meu trabalho e com todas aquelas com quem divido esta grandiosidade que é a vida.

    Acredito que aprendemos a viver, sobreviver e sobressair neste mundo ainda tão machista.

    Nós, mulheres, temos a sabedoria de aquietar a mente, cultivar o silêncio, exercer o amor próprio.

    Uma pequena pausa — minutos, dias, anos, não importa… Logo renascemos,

    prontas para acreditar, nos reinventar, empreender.

    E para comemorar nosso dia, nada como esta frase de Clarice Lispector:

    “Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.”

  • Quanto custa vencer?

    Quem desfila em escola de samba ou torce por uma, sabe a tensão que é aguardar o momento da apuração na Quarta-Feira de Cinzas. 

    Quem não é folião, mas já aguardou um resultado importante, seja de concurso, campeonato, teste de gravidez ou habilitação para dirigir, entende bem a agonia que me refiro:  uma espécie de cócegas misturada a uma comichão intensa, seguido de um aperto no estômago, a repercutir numa certa bambeira nas pernas e um escorrer de suor no trajeto das costas. O pensamento também se envolve nesse parangolé: a cada 15 minutos, furando a fila de outros pensamentos, surge: será que  venceremos? Será que o meu melhor foi suficiente? 

    Talvez o remédio para essa agonia seja pensar no trabalho realizado, na entrega ao longo dos meses, no vivido durante o percurso. Mas, no final das contas, o resultado é sempre soberano, ainda que nem sempre seja justo ou corresponda a realidade.

    Somos reféns da validação dos números, do reconhecimento do outro, da aprovação dos grupos. Vítimas de uma necessidade visceral de ser, a todo instante, muito mais do que somos. E por quê? 

    A maldição é tamanha!

    Quem nunca sentiu o desconforto de viver no perímetro do próprio corpo, feito quem passa o dia num sapato que aperta o calo ou arranca a pele do calcanhar? 

    Essa é a única crítica que faço ao Criador: deveríamos nascer com um dom nato para nos amarmos profundamente; e ainda mais intensamente quando diante de demandas e expectativas contrárias à expressão genuína de quem somos na íntegra. Assim, mais do que viver em estado de tensão/avaliação, aguardando o boletim social, a aprovação final, viveríamos na tranquilidade de um lar interior sereno, com uma compaixão sincera pelos infelizes que não fossem capazes de nos aceitar in natura. Mas a competição, a inveja e a mania de perfeição parecem ser o que há de mais resistente e duradouro no DNA da humanidade. Que pena!

    Volta o desassossego: será que a Imperatriz vai vencer?  Seremos campeões?

    Ah, como desejo sentir essa alegria…

    Se não acontecer, que diferença faz?  Não foi tempo perdido, foi tempo vivido, suado amado, crescido. Continuará sendo minha rainha, e no próximo carnaval, novamente, estarei lá.

    Já é hora de entender que frustrar-se faz parte do que chamamos existência. É decepção, mas, não é destruição ou desilusão. É possibilidade de recomeço, reinvenção, retomada.

    Feito purpurina, brincando no ar ou caída no chão, é brilho que não deixa de brilhar.

    Ah, como quero sentir a grandeza de ser feliz por ter vivido mais do que por ter vencido.

    Sei que você, leitor, quando encontrar esse texto, que será publicado no sábado, o resultado já será conhecido, o futuro de agora será passado, mas eu precisava dividir minha angústia e minha promessa com alguém de minha confiança.

  • DIGNÍSSIMO CANALHA

    Pelo presente instrumento, venho dirigir-me a vossa excelência. Com minúsculas e na segunda pessoa, pessoa de segunda que és, mauricinho de nariz empertigado. Tu, que te ocultas, sorrateiro, por trás dessa impecável e pretíssima toga escrota. Tu que recebes aprumado a reverência do povo de joelhos à espera de tuas soberanas e irretocáveis decisões peremptórias. Tu que estás imbuído da divina prerrogativa, intransferível e vitalícia, de deliberar sobre o destino dos homens que habitam o mun­do dos vivos, já que o dos mortos foge à tua jurisprudência, instância suprema à do teu Supre­mo. Tu que reclamas indignamente indignado por direitos inalienáveis e vives na intimidade inescrutável da tua vida pri­vada de práticas inconfessáveis. Tu mesmo, nobre calhorda, que de tanto exercer o ofício de julgar os outros, julgas-te acima dos outros.

    Venho oficiar-te, honorável patife, que há mais retidão e honra na palavra espontânea e honesta que brota do coração de um humilde iletrado do que no alfarrábio que sustém tuas áridas, infindáveis, mirabolantes e ordinárias sentenças. As mesmas que apões em papel pergaminho com letras douradas, fazendo-as constar dos anais onde exibes tua soberba grandiloquência farisaica e tua rocambo­lesca sapiência estéril.

    Amealhas com vileza recursos subtraídos do povo injustiçado para manter intacto esse intrincado e indecifrável sistema, tão inócuo quanto iníquo, que qualificas cinicamente de Justiça, a fim de cobrir com aura de magnificência e infalibilidade essa espeta­culosa e suntuosa pantomima patética e embusteira que estarrece as legiões dos sem-justiça desse país, mantendo­-os sob o jugo do teu julgar.

    Cultivaste esse interminável cipoal de leis, decretos, normas, códigos, tratados, regimentos, resoluções, regula­mentações, pareceres, dispositivos e medidas provisórias para reservares a ti próprio o monopólio do conhecimento e das práticas a ti outorgadas tautologicamente “por lei”, afastando o povaréu inculto de teu demarcado territó­rio. Para que, na mesma medida em que amplias a doutrina do direito, reduzas o primado da justiça.

    A chave de tua inoperância chama-se prazo. Conside­raste, eminente pulha, que, após décadas de espera, a sentença já foi proferida, independente do transitado em julgado? Abstrais, emérito canalha, a variável tempo sob pre­sunção de que o tempo é uma mera ‘questão de tempo’. Adias, protelas, procrastinas, prorrogas, retardas, demoras, protrais, diferes, pospões, alongas, espichas, espacejas, alastras, esticas, dilatas, intervalas, encompridas, acresces, amplias, expandes, empurras com a barriga. Pois, então, devo informar-te, distinto safardana, que quem aguarda por anos, seja nutrindo a raiva da privação de benesses não fruídas, seja gozando do deleite de penas não cumpridas, já é repositório da sentença, seja esta qual for. Em meio a tantos réus, jurados e testemunhas, apenas um deve ser declarado culpado em todas as instâncias: tu, criatura ignóbil.

    Sai da tocaia, egrégio velhaco. Desce desse palácio de letras, capítulos, parágrafos, alíneas, incisos, caputs e cláusulas em que te enclausuras. Cumpre salientar, excelentíssimo pústula, que as cruas ruas, inobserváveis das janelas do palácio que ergueste, sem decurso de prazo, para te isolares da re­alidade de fato e de direito, estão repletas de malfeitores que levianamente livrastes das masmorras. Não por um senti­mento benevolente de perdão ou por uma crença abnegada no poder de recuperação humana, mas por uma ardilosa interpretação das normas vigentes. Delinquentes de toda a es­pécie a quem remistes da pena, hoje libertos de punição, zombam, sob tua retumbante indiferença, dos tolos que se pautam em princípios e honradez.

    Vivem os justos à margem das formalidades legais que queres agrilhoar os cidadãos, a fim de emparelhares todos pelo mesmo nível de calhordice de que imaginas serem, por na­tureza, dotados. Por certo, espelhando tua maneira de te com­portar e de enxergares os homens para necessitarem de tua mediadora e interesseira presença,

    Sob o manto do teu venerável ‘estado de direito’, corruptos, patifes, ladrões de todas as espécies ascendem aos postos de direção com a tua máxima leniência, amparando-os com a força irrefutável das brechas da lei, aplicando-lhes impiedosamente draconiana indulgência e intolerância zero. Cobrindo a impunidade com o manto legalista da imu­nidade.

    De quem é a culpa? “Dos legisladores, do governo, da polícia, da falta de juízes, da falta de vagas no sistema prisional, da falta de investimento, da má distribuição da renda, do desemprego, da falta de políticas públicas, dos baixos salários, da alta dos juros, do neoliberalismo, da crise do euro, da colonização portuguesa, da gripe suína, do derretimento das calotas polares”, bradas indignado. Tu, homo vermis, és o único triplamente qualificado como “not guilty” nessa história. Justo tu! “Por falta de provas”, provas.

    Todo teu empenho é de não punir. Inocentes ou culpa­dos, pouco importa. ‘In dubio pro reo’, desde que teus honorá­rios sejam quitados ‘in specie’ com correção, exatidão, integri­dade e… justiça.

    E assim, pelos mais variados pretextos, vais libertan­do das grades todos os poderosos tubarões, reservando os horrores dos calabouços aos despossuídos que não participam do pecúlio que sustenta a devassidão moral que apadrinhas, consagrando esse país como o paraíso da impunidade.

    Deixa de hipocrisia. A quem pretendes enganar dizen­do que és a fonte da Justiça? Teu ofício é apenas advogar em prol de vermes, devolvendo­-lhes em serviços pérfidos o vil metal que banca o suntuoso padrão de vida que ostentas. A verdadeira justiça é o oposto de ti. É tornar o mundo digno, decente, com as pessoas podendo se olhar de frente, sem dissimulações, confian­do umas nas outras. Prescindindo de teus sórdidos préstimos.

    Justiça seja feita: quem te sustenta, respeitável biltre, são apenas os safados. Crápulas que, dispensando nobres considerações éticas, estudam teus intrincados preceitos e se formam doutores para assimilar os meios legais, penais, constitucionais e amorais de permanecer impunes e qualificarem-se a ingressar em tuas ro­dinhas infames. Partilharem do papo do cafezinho do fórum. Onde, restritas às indevassáveis paredes que os protegem, ro­lam torpezas inimagináveis. Tornam-se teus amigos e cupinchas. Uma corporação fechada de rábulas parasitas. Justamente!

    Os princípios de retidão e civilidade trazemo-los dentro de nós. Num mundo de justos, tua justiça não se ajusta. Gente honrada entende-se entre si, sem necessitar da tua protocolar intermediação. Bastam os princípios. Quem carece de lei são os que dela vivem à margem. Se para os honrados, é des­necessária e para os bandidos, ineficaz, para os da escória que integras, é verba no bolso.

    Data vênia, vai pra p* que te pariu.

  • Carnavais

    Admiro o carnaval.

    A espera, o frenesi, os preparos do corpo — regimes, bronzeamentos, fortalecimentos. A rotina dos exercícios e treinos; a dedicação da passista em horas e horas de ensaios; o tratamento e implante de cabelos, cílios e o que mais puderem. A entrega do ritmista, a criatividade dos sambistas, as costureiras e suas fábricas de fantasias e adereços. Tudo isso compõe esse evento grandioso.

    Vou falar… admiro mesmo! Mais do que isso: fico perplexa.

    O carnaval me causa espanto… ou será que sou eu a própria estranheza?

    Como assim, não ser apaixonada por essa festa impressionante?

    Ignorar essa extraordinária celebração?

    Não, isso não deve ser normal!

    Volto no tempo, na minha meninice. Quem sabe lá eu tenha me encantado com uma serpentina ou com um brilho de purpurina no rosto… talvez uma sapatilha dourada, um saquinho de confete.

    Vasculho minhas lembranças, tento encontrar um sinal, uma pista… talvez o barulho de um tambor, o gemido de uma cuíca, a luz e o brilho daquele que é considerado “o maior espetáculo da terra.”

    Que besteira! Fui criança de cidade do interior, onde os bailes de carnaval eram exclusividade dos associados. Ainda assim, talvez tenha me assustado com a irreverência de um palhaço ou com algum moleque de máscara horripilante, saída dos gibis de terror.

    Por acaso, alguma mãe de coleguinha me terá convidado para um matinê ou bailinho vespertino?

    Carnaval. Essa festa tão linda, tão sonora, tão colorida, um evento grandioso, hipnotizante e inesquecível!

    Desisto. Procuro e não encontro — nem no passado longínquo, nem em lembranças esparsas e menos ainda nesta fase da vida — nada, nenhum sinal que justifique minha total incapacidade de ser tocada pela grandiosidade dessa festa.

    Ainda assim, desejo àqueles que aguardam o ano todo pelo “Grito de carnaval” que aproveitem a época, mas lembrem-se: ano que vem tem mais!

  • Dia do fico

    Toda segunda e quarta é dia de lutar por melhores condições de vida no futuro: dia de pilates. A motivação que me leva até lá, semanalmente, é equivalente ao ânimo de comprar um produto que não sei se chegará ao destino ou se terei tempo de desfrutar, mas compro por desencargo de consciência (vai que preciso…).

    Sigo o fluxo, sempre em frente, na busca de um envelhecimento ativo e saudável ainda que, naquela sala cheia de molas, pesos e caneleiras, eu encare a face sádica do tempo.

    Dona G chega acompanhada do marido. Passos miúdos, andar cambaleante de um corpo que teima em não aceitar comandos, nem os dela.

    Olhos de um verde aceso bailam sem rumo pelo espaço. O sorriso ingênuo grudado nos lábios delata a persistência de uma alegria que não se justifica mais. Tudo ali é passado.

    Presente só o silêncio do amanhã.

    A professora, pacientemente, explica os exercícios para Dona G. Suas palavras caem na cabeça da querida senhora feito chuva que não se espera.

    Fico ali a me perguntar: qual o sentido de tudo isso? No lugar dela, eu escolheria continuar cuidando de um corpo que me traiu de forma tão falsa ou gastaria meus dias sentada numa varanda, admirando, sem culpa, a natureza?

    A questão retorna com a dor de um haltere caindo no dedão do pé: qual o sentido de tudo isso?

    Não sei. Talvez a vida careça de um sentido inventado. Ou só seja possível vivê-la em estado de pura abstração. 

  • Viagem no Tempo

    13 de fevereiro é o Dia do Rádio. Aquele que já foi essencial nas casas das famílias, por mais simples que fossem.

    O pai ouvia as notícias através da Voz do Brasil.

    A mãe encantava-se com as vozes dos heróis e heroínas das novelas de rádio.

    Ah, Albertinho Limonta, como você pôde renegar seu filho em O Direito de Nascer?

    E as mocinhas sonhadoras?

    Encantavam-se com as músicas apaixonadas dos cantores que se tornavam ídolos da juventude:

    “Quero beijar-te as mãos, minha querida
    És o maior enlevo da minha vida.”

    O rádio era um passaporte para outros mundos e, ao mesmo tempo, reunia a família ao redor de suas ondas sonoras. Juntos, apreciavam a música, vibravam com partidas esportivas e acompanhavam programas de entretenimento. Ah, e não se perdia o horóscopo! Na sala de casa, ocupava um lugar de destaque, e os locutores de rádio tornavam-se quase membros da família, de tão conhecidos que eram.

    O próprio aparelho era um símbolo de status. Famílias mais abastadas das décadas de 70 e 80 passaram a ter o rádio vitrola em suas salas e, posteriormente, o famoso três em um, o auge da ostentação.

    Com o tempo, o rádio perdeu seu trono na sala de estar. Pequeno e portátil, deixou de ser um evento coletivo para se tornar uma companhia individual. Depois, a televisão assumiu o protagonismo, e aquele brilho dourado das ondas sonoras foi se apagando no cotidiano das famílias.

    O Dia do Rádio. Não sei exatamente o significado dessa data, mas sei o que ela me traz: uma enxurrada de lembranças.

    Lembrei-me da caixa com brilho de verniz, com os alto-falantes escondidos pela tela entremeada de linhas douradas e, em cujas ondas, eu sonhava com o futuro.

    Lembrei-me do meu pai, no final da tarde, com seu rádio portátil preto, onde talvez ele rememorasse o passado.

    Hoje é o Dia do Rádio. E, entre tantas transformações, ele permanece. Talvez não mais no centro da casa, mas sempre no coração e na memória.

  • O agora é o antídoto da frustração

    Telma acordou cedo para cumprir tudo que havia programado: passear com seu cachorro, ir ao pilates, mercado, banco. À tarde pegar a roupa na costureira e depois tomar um café com Silvia, sua amiga de infância. 

    À medida que realizava o seu cronograma, experimentava aquela alegria fagueira dos que honram as promessas feitas para si mesmo. 

    Telma se encaminhou para o ponto de ônibus embalada pela leveza de não cair nos cambalachos da procrastinação. Tudo resolvido. Tudo pronto. Tudo perfeito. Mal podia acreditar que em trinta minutos estaria com sua amiga de uma vida inteira. Quanto tempo… quanta saudade. 

    Acostumada a dar vazão às emoções, embora sua mãe chamasse isso de ansiedade, enviou um áudio para Silvia declarando sua felicidade com o reencontro que estava para acontecer. 

    — Silvinha, já estou chegando. Tô doida pra te ver. Te amo, amiga!

    Silvia ouviu a mensagem aliviada por não ter desmarcado o encontro com Telma, embora ainda estivesse um pouco indisposta. Pensou em responder, mas estava atrasada, deixou para falar pessoalmente. Queria chegar logo e abraçá-la como nos velhos tempos. 

    Na saída de casa, a dor aumentou. Foram três passos e mais nada. 

    Telma jamais saberá o quanto sua amiga desejou revê-la. 

    Silvia tinha planos para um futuro que a vida decidiu não aguardar.

    Uns vão dizer que Telma não deveria ter criado expectativas para não se decepcionar com o desfecho.

    Outros vão achar que Telma não deveria se entregar tanto às relações para não se frustrar.

    Eu digo que Telma, pelo menos, vivenciou a alegria de esperar pela festa. Ainda que a festa não vá acontecer.

    A vida sem expectativa é um jardim sem flor. 

    Um corpo sem movimento. Um olhar sem brilho. Uma alma sem voz.

    Um texto sem leitor.

    Um salve para todos os corajosos do agora.

  • MARCHINHA

    “O teu cabelo não nega, mulata, porque és mulata na cor. Mas como a cor não pega, mulata, mulata, eu quero o teu amor” (Lamartine Babo, Irmãos Valença)

    A marchinha de Carnaval faz parte da história da música brasileira e, por mais surpreendente que pareça, é mais antiga que o samba. Quando Donga registrou sua composição “Pelo Telefone”, oficialmente considerado o primeiro samba da história, a marchinha “Ô Abre Alas” (de 1899), de autoria da maestrina Chiquinha Gonzaga, já contava com 17 anos de idade!

    A partir de 1920, o ritmo reinou absoluto no Carnaval por quatro décadas. Apenas a partir da década de 1960 foi destituído nos desfiles das escolas de samba pelo samba-enredo. Mais recentemente, perdeu espaço também nos blocos de rua para o axé e canções descartáveis que mal duram até a próxima estação.

    Permanece, todavia, com suas letras insolentes, divertidas e de fácil memorização, na lembrança de todos. Traduz o espírito brincalhão do nosso povo. “A marchinha é um gênero marcado pela crônica de época e pela malícia”, diz o musicólogo Ricardo Cravo Albin, autor do famoso dicionário musical que leva seu nome.

    Devido a suas características desaforadas, as marchinhas passaram a ser alvo da intolerância decorrente da onda do politicamente correto que tem assolado nossa cultura. Outrora consideradas ingênuas, agora vêm sendo banidas do repertório de diversos blocos carnavalescos para não ferir o brio de grupos que se sentem oprimidos.

    Rodrigo Faour, pesquisador da MPB, desaprova: “Sou contra o patrulhamento excessivo em cima das músicas de carnaval. Elas são um patrimônio brasileiro, não podemos botar uma carga tão pesada em cima delas. Existem palavras que não são aceitas hoje, mas, na época, eram faladas de maneira não pejorativa”. O renomado antropólogo Roberto DaMatta acrescenta não ter sentido os organizadores dos blocos alegarem que as músicas são discriminatórias: “A maneira de pensar era diferente”.

    Algumas mais recentes trazem conotação sexual e de fato são um tanto preconceituosas, como é o caso de “Cabeleira do Zezé”, “Maria Sapatão” e “A Pipa do Vovô”, disseminadas por Chacrinha e Sílvio Santos.

    O problema é que a perseguição extravasou esse nicho de apresentadores televisivos capciosos e respingou em compositores tradicionais como Haroldo Lobo, Braguinha, Ary Barroso e Noel Rosa, nomes emblemáticos da cultura nacional, alcançados pelo crivo jacobinista destinado a expurgar da arte de qualquer ranço de irreverência, numa cruzada moralizadora semelhante à dos tempos do AI-5.

    Sob acusação de racismo, foram alvos centenas de canções que se referiam a ‘mulata’, palavra presumidamente derivada de ‘mula’. Essa interpretação depreciativa não é consensual, havendo uma corrente que sustenta que o vocábulo deriva do árabe ‘mowallad’ (filho de pai árabe com mãe de outra etnia).

    Seja como for, é lícito extirpar da linguagem um termo popularizado, sabendo-se que seu reiterado uso coloquial consagrou uma nova conotação sem qualquer vínculo com a raiz etimológica hipoteticamente espúria?

    O cronista Ruy Castro assim se manifesta: “Das dezenas de marchas que falam da ‘mulata’, muitas foram compostas por Assis Valente, Wilson Baptista, Haroldo Lobo, Zé e Zilda, Haroldo Barbosa, Monsueto etc. etc., e lançadas por cantores como Orlando Silva, Sílvio Caldas, Aracy de Almeida, Carmen Costa, Cyro Monteiro, Moreira da Silva, Jorge Veiga, Ângela Maria etc. etc. Todos mulatos. E não viam nenhum problema nisso.”

    Nem o insuspeito Caetano Veloso escapou de constar no Index Prohibitorum por referir-se em sua música “Tropicália” aos “olhos verdes da mulata”.

    Mas a principal vítima da cruzada foi a consagrada “O Teu Cabelo Não Nega”, a mais famosa composição de Lamartine Babo, eleita pela Revista Veja a terceira maior marchinha de todos os tempos.

    Além do uso da condenada palavra ‘mulata’, os atentos patrulheiros revisionistas se fixaram no verso “mas como a cor não pega” (em que ‘pega’ teria o sentido de transmitir a ‘maldição’ da cor negra). O jornalista Tárik de Souza, um dos maiores estudiosos da nossa música, rebate alegando que o ‘pega’ em questão mais possivelmente significaria ‘importa’, o que conferiria ao verso uma acepção antirracista, ao contrário do que propalam seus críticos. De fato, não parece razoável supor que, com seu fino humor, Lamartine externasse receio de ser ‘contaminado’ pela cor da mulata que tanto exaltava.

    Um país tão pobre de referências culturais não pode se dar ao luxo de submeter seus ídolos consagrados a práticas inquisitoriais, sob o discutível pretexto de reparar eventuais injustiças históricas.

    “A volta da censura, mesmo que por razões consideradas nobres, é algo assustador. O carnaval tem sempre um sentido anárquico e caricatural”, arremata Tárik.

    (Adaptado do original MARCHA À RÉ, publicado em fevereiro de 2021)

  • A Pauta

    A pauta está em alta. E, por favor, caros leitores, puxem bem o L para não parecer que estou fazendo uma rima…

    Hoje, a frase da moda é: “Essa é a pauta” ou “Não é essa a pauta?”

    Os adjetivos, substantivos e tudo o mais que aprendemos nas aulas gramaticais estão praticamente reduzidos a frases e expressões prontas.

    As conversas estão fora de moda? Longas e gostosas conversas, em que há respeito aos pontos de vista divergentes; em que seja possível discordar sem que o outro entenda isso como agressão; diálogos com escuta atenta, perguntas e respostas sem sarcasmo ou ironia.

    As pessoas parecem estar desacostumadas ao antigo costume de trocar ideias ou mesmo “jogar conversa fora”. Ao contrário, o novo normal é o destempero, o cancelamento, as indiretas e, principalmente, a exposição ao mundo virtual antes de qualquer tentativa de conversa.

    O que antes era tratado entre quatro paredes — traições, términos de relacionamentos, cenas de ciúmes, mal-entendidos — está ali, “na rua” da internet, pronto para receber likes, na busca por sensações de sucesso ou aprovação.

    Reconhecer o valor do diálogo, das conversas profundas, dos bate-papos leves, não nos apequena — ao contrário.

    Antes que me digam “Vamos encerrar logo com este assunto” ou “Essa não é a pauta”, termino sempre com a expectativa de que tenhamos tido uma boa troca de ideias!

  • Sobre não saber

    Chegou a hora de escolher o esmalte a ser usado amanhã para o ensaio técnico da minha escola de samba, a verde e branco, Imperatriz Leopoldinense. Parece uma questão tosca, sem relevância social, mas para mim não é. Imagino, inclusive, que para vocês, leitores, seja uma situação desprezível, o que não diminui o poder de impacto da maldita dúvida no meu dia: verde-claro com glitter ou verde-bandeira? Postei a questão no grupo de amigas do zapp. “Escolha qualquer um”, disse uma amiga. “Quem vai ver sua unha no meio da multidão?”, argumentou outra querida. “Não perca tempo com isso. O importante é estar lá”, falou a mais objetiva. 

    Enquanto isso, na minha cabeça, batucava a dúvida: o claro divertido ou o escuro classudo?

    As manifestações no grupo não pararam por aí. Mais amigos queriam resolver o meu problema, cessar a minha angústia: “No casamento do meu filho, fiquei na dúvida entre branco e nude e acabei usando o rosa.” “Pior sou eu, não posso usar nenhum esmalte porque estou com unheiro.” “Eu nem esmalto mais a unha, tenho alergia. Larguei pra lá.”

    De fato, não posso elevar a minha dúvida à categoria de catástrofe ou considerá-la um problema real diante de tantas coisas sérias no mundo: fome, guerras, violência. Acontece que, para uma coisa nos atormentar, ela não precisa de aval ou relevância social. Porém, somos mestres em julgar a dimensão e profundidade dos problemas dos outros, usando a régua das dores existenciais para medir e validar a angústia de cada um.

    À parte as boas intenções, quem me ajudou mesmo foi a única que não apresentou soluções nem exemplos pessoais sobre o tema. Apenas lançou: 

    — Posso ajudar de alguma forma?

    Tanta empatia implícita nessa pergunta…

    Escolhi o verde-claro. Acho que já o queria desde o início. Mas a conclusão mais importante foi perceber que a dor da escolha mora na dificuldade de perder. Se escolhemos A, perdemos B e vice-versa.

    Resolvi o impasse quando mudei o enfoque. Não era qual eu deixaria de usar, mas qual eu não abriria mão de ter.

  • Folga

    Uma empresa chinesa criou, recentemente, a licença infelicidade. Cada funcionário, ao longo do ano, tem direito de faltar ao serviço, por um período de até dez dias, caso se sinta triste, irritado, angustiado ou infeliz.

    De primeira, questionei a ingenuidade da proposta. Como eles não desconfiam das artimanhas da procrastinação? Eu, sem dúvida, anualmente, seria acometida por uma certa tristeza, às segundas e sextas. Naqueles dias de sol em que os infelizes trabalham, meu caminho seria o mar. Pé na areia. Mate Leão. Biscoito Globo. Livro do mês e celular desligado. Sim, cada vez mais me convenço de que a telinha quebra o clima de intimidade em qualquer situação, inclusive comigo mesma. Sem culpa de enganar o chefe.   

    Pensando bem, no mercado não se joga para perder. É possível que a empresa tenha criado o direito à licença infelicidade sabendo que ninguém tirará proveito, por medo de represálias. Aqui no Brasil, tenho certeza que o benefício seria gatilho de insegurança e ansiedade, pois funcionaria, subliminarmente, assim: o funcionário que tirar licença de um dia para cuidar do seu sofrimento será, imediatamente, incluído na lista de demissão do fim do ano. Isso para não citar outras complicações, como, por exemplo, a possibilidade de um setor inteiro fechar devido à competição entre os pares: se Marcela não veio, não sou eu quem vou trabalhar por dois. Tô indo. Eu também não. Nem eu.

    Brincadeiras à parte, a iniciativa chinesa, ainda que saibamos da desvalorização da mão de obra por lá e, provavelmente, justo por isso, denuncia a consequência nefasta — para o trabalhador, empresa e sociedade — da obrigatoriedade de sermos produtivos em dias difíceis ou a despeito de qualquer dor existencial.

    Lembro de uma senhora que descobriu na emergência de um hospital que teria que ficar internada, em função da gravidade do seu caso, e ela respondeu:

    — Entendo, doutor. Mas agora não posso. Tenho reunião no escritório. Assim que acabar, eu volto.

    Para onde estamos indo? Que lógica é essa que ignora a própria morte em nome da soberania da exploração e do lucro? 

    A medicalização da tristeza (não me refiro à depressão) é prova da manobra de urgência para que a máquina não pare. Não há tempo para digerir términos, perdas, decepções, frustrações. Engula o choro junto com o remédio e siga em frente. Rápido. Rápido!

    Para uma empresa criar esse mecanismo de despressurização, no mínimo, já se deu conta da epidemia que se agiganta a nossa frente.

    E quanto a você? A julgar pelo seu estado emocional, amanhã será dia de trabalho ou de licença? 

  • O teatrólogo e o apresentador de tv

    Qual elo poderia unir duas figuras tão distintas quanto o teatrólogo Zé Celso (1937 – 2023) e o apresentador Sílvio Santos (1930 – 2024)?

    Agitador cultural, artista libertário, inovador, ousado, Zé Celso Martinez Corrêa dedicou sua vida às artes cênicas e a difundir cultura para esse país tão carente, um sujeito transgressor e revolucionário que jamais se submeteu aos padrões estabelecidos, tendo batido de frente com a ditadura. Faleceu bestamente num incêndio em seu apartamento, aos 86 anos.

    Sílvio Santos, ou melhor, Senor Abravanel, um dos homens mais ricos do Brasil, dono de uma portentosa rede de comunicação, o SBT, com programação voltada para as classes mais humildes, é um homem desprovido de ideais e motivações políticas, conhecido por bajular os donos do poder, foi um dos veículos de que serviu de sustentáculo ao ex-presidente Bolsonaro. Após mais de 60 anos de carreira, retirou-se dos palcos por conta de sua idade avançada aos 92 anos, em 2023. Vindo a falecer um ano depois.

    A fatalidade colocou frente a frente essas personalidades tão díspares numa pendenga judicial que se arrasta por mais de 40 anos em torno do destino de um terreno no bairro do Bixiga em São Paulo. Trata-se de uma área de 10 mil m2 que contorna o teatro Oficina, marco cultural da cidade, onde Zé Celso com outros companheiros iniciou sua carreira e no qual foram encenadas peças importantes como o Rei da Vela de Oswald de Andrade e outros clássicos da dramaturgia.

    Ocorre que a área em questão foi arrematada pelo Grupo Sílvio Santos que nele pretendia erguer um monstrengo imobiliário com cerca de mil apartamentos e outro tanto de vagas de garagem, empreendimento que iria impactar severamente um bairro com tantas tradições, além de desconfigurar o arrojado trabalho da arquiteta Lina Bo Bardi para a casa de espetáculos, tida pelo jornal Guardian o melhor projeto arquitetônico do mundo para um teatro.

    A mastodôntica iniciativa comercial desagradava não apenas Zé Celso como todos aqueles que gostariam que fosse dada uma destinação mais nobre para a área, mais especificamente, a criação de um parque, que melhor se harmonizasse com a icônica casa de espetáculos que circunda.

    São Paulo é uma das cidades mais caóticas e desajeitadas do planeta, cuja expansão desordenada avança a reboque dos interesses das incorporadoras como demonstra a famigerada revisão do Plano Diretor do município, recentemente aprovada. O bairro do Bixiga é um dos últimos redutos que ainda resiste e mantém-se ativo com seus teatros, sua vida boêmia, suas cantinas e padarias italianas, seus marcos históricos, suas pitorescas construções e uma famosa feira de antiguidades.

    Para resolver o impasse do terreno, foi promovido em 2017 um surreal encontro que colocou frente a frente Zé Celso e Sílvio Santos. A inusitada reunião (que pode ser apreciada no Youtube) mediada pelo então prefeito João Dória mostrou o quão difícil é chegar a um entendimento já que confronta concepções de vida bastante distintas. Sílvio repetidamente afirmava: “mas o que você pretende fazer com o terreno?”, insistindo que, a despeito de ser rico, pagou caro pelo investimento do qual não pretendia abrir mão. Zé Celso, por sua vez, retrucava não querer tomar posse do terreno e sim que se tornasse um espaço livre para realização de atividades culturais e não conseguia entender a falta de sensibilidade do empresário.

    Curioso que Sílvio Santos, ao contrário do que se possa imaginar, não é assim tão avesso ao tema tanto que ergueu a poucos metros do local, o Teatro Imprensa, que se manteve em atividade com sucesso por mais de 20 anos e só fechou as portas para reduzir as despesas do grupo numa época de vacas magras, não obstante fosse superavitário. Afora isso, Sílvio criou no SBT um núcleo de dramaturgia, sua esposa Íris é autora de novelas, sua filha Cíntia roteirista e seu neto Tiago um consagrado ator.

    Honrando essa trajetória, o que custaria ao Homem do Baú, num gesto magnânimo de desprendimento, brindar o terreno à capital paulista na qual o apresentador construiu seu império, num parque que poderia até ganhar o seu nome? A cidade ficar-lhe-ia eternamente grata e ele fecharia com chave de ouro seu currículo.

    Grandes magnatas como Bill Gates, Warren Buffett e George Soros doaram ou comprometeram-se a doar mais da metade de sua fortuna para causas filantrópicas. Sílvio não precisa chegar a tanto. Dono de um patrimônio de quase 2 bilhões de reais, o terreno representa uma fraçãozinha de suas posses.

    O dono da Tele Sena que já batalhou por quase um século de vida, poderia encerrar brilhantemente sua jornada terrena com essa louvável demonstração de generosidade. Mostraria que poderia trocar o ‘Topa Tudo por Dinheiro’ por uma iniciativa nobre que lhe eternizasse como homem público. Ou imagina o apresentador que vai levar seus bens para um baú da felicidade a sete palmos do chão?

  • O hoje do ontem

    Aproveitei o final de ano e mandei estofar o sofá. Chegou ontem. Interessante o impacto que uma simples mudança causa na sequência aleatória dos dias. Aliás, a espera pela entrega do “novo”, por si só, me provocou alvoroço. Não sou capaz de imaginar o resultado final do serviço a partir do pedacinho de pano da amostra. Por sorte, deu certo.

    A novidade trouxe animação, beleza, vontade de decorar a sala com novos objetos. Valeu o custo. O velho estava surrado de uso, a espuma sem firmeza, o tecido soltando o alinhavo e as amarras da história. O desbotado teimava em gritar o que se foi. Perdeu a graça, o charme e, na tristeza do seu envelhecer, passou a incomodar.

    Agora, o sofá azul de céu noturno assume sua imponência vestido de novos tempos. Do seu posto de belo, encara a tevê como se ordenasse um brinde ao que virá. Dono de um vigor encantador, ele brilha, orgulhoso de si. A mesa de jantar, a de centro, a luminária velha de guerra, na timidez da falta de viço, parecem nutrir um amor platônico. Não sei se o sofá inveja a intimidade, a cumplicidade e a vivência dos objetos que aqui estão desde o início.

    Ele é sedutor, instigante, atraente, classudo. Porém, feito namorado novo, exige formalidades. Estamos no início, fase em que se exercita as pequenas falsidades próprias a toda conquista. Sorriso contido, pernas cruzadas, costas erguidas, almofada sobre a coxa. Eu e o poderoso prontos para o frescor da paixão. Acontece que felicidade não é produto de fácil consumo… sinto saudade do passado. Nele, eu me jogava sem medo. Acariciava seu rosto com a sola dos pés. Mesmo empoeirado de rotina, éramos íntimos. Não reclamava da minha falta de jeito ou do peso das minhas pernas em suas costas.

    Será que a belezura do momento desconfia do que foi vivido em outros panos? Será que sabe que o novo é tempo que passa?

  • Promessas e Cotidianos

    Ano novo anda de mãos dadas com promessas. Não fugi à regra, quando enumerei minha lista de boas intenções. Passada a euforia refleti sobre esse costume. Eu estou me enganando! Claro que sim, ora se bem me conheço, nenhum rol ou plano de ações vai mudar a minha forma de ver o mundo, de agir, de errar e acertar.

    Que alívio! Vamos então ao meu ponto de equilíbrio: escrever. Essa é a minha terapia, o meu exercício diário de conexão com o mundo, com a vida.

    Na apreciação do cotidiano, no fascínio pelo simples, pelas belezas da natureza, e das pessoas eu encontro o meu refúgio. Vejo, crio ou invento pequenos milagres ou grandes feitos no que ninguém mais viu. Me comovo e me surpreendo com novas e antigos costumes.

    Não é assim de estalo, que família e amigos, em rotinas ou viagens me entendem ou correspondem. E tudo bem!

    O comum, o rotineiro me encantam, mesmo em lugares onde estou só a passeio. O pequeno grupo de alunos que passa em frente ao hotel, os uniformes com emblemas em outro idioma, as frases que não entendo, a alegria, o riso.

    Ao sumirem na próxima esquina levam o meu olhar entre curioso e amoroso; nem por isso evito o sorriso maroto quando penso não ter nada a  ver com tarefas, almoços e problemas do dia seguinte. Sou espectadora apenas. E da minha lista de intenções, sou “grandinha” o suficiente para saber o que me faz bem, o modismo ou necessário. Então eu confesso:  só ao final do ano vou revê-la e se necessário adequar a rota!

  • Eu, produto de valor

    Abriu uma nova sorveteria no shopping perto da minha casa. Por estratégia ou atrevimento, a novinha fica em frente à geladinha oficial.

    Disposta a conhecer a gostosura da hora, entrei na imensa fila que se formava. Tentei me distrair com as opções de sabor, designer da loja, mas, na consciência, pesava a culpa da traição. Para agravar a tensão, pertinente ao momento de flerte que não deveria acontecer, me acompanhava o olhar da atendente da sorveteria antiga. Pude ouvir seus pensamentos:

    — Tá fazendo o quê aí, sua falsa? 

    Juro que pensei em desistir. Rejeitar a oportunidade de saborear uma nova experiência e, com o rabo entre as pernas, voltar para a queridinha oficial. Mas o tédio é um encosto nos traidores. 

    O cansaço da rotina desperta o pior de cada um. Pensar nisso, construiu a coragem necessária para rebater os resquícios da minha ética amorosa:

    — Merece o chifre. Enquanto era única na minha vida, nunca fez uma promoção, me deu brinde ou ofereceu um cupom de desconto. Agora, aguenta a dor de me perder. 

    Peguei minha casquinha, ergui os ombros, joguei o cabelo, empinei o bumbum e passei bem devagar na porta da ex.

    A lógica do mercado também rege as relações amorosas. A concorrência sempre favorece o consumidor. 

  • Redução de dano

    Estamos a passos curtos de poder apagar as memórias ruins que nos atormentam, é o que aponta um estudo realizado por cientistas da Universidade de Hong Kong e publicado no Jornal O Globo.

    Por sorte, a técnica desenvolvida com sucesso no Japão se diferencia do procedimento oferecido no inesquecível “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”. Na película, o protagonista se submete a um tratamento experimental para apagar as memórias com sua ex. Porém, ao descobrir que, para isso, também serão deletadas as boas lembranças, se arrepende e tenta reverter o processo.

    No caso da pesquisa, o sumiço das recordações desagradáveis foi menos custoso. O resultado foi alcançado com a ativação de boas lembranças durante o sono.

    Esse feito promete reabrir as portas do Paraíso. Já imaginou acessar somente memórias felizes? Poder calar a voz ruminante das mágoas?

    Para completar a alegria de um futuro sorridente, em seguida me deparei com uma reportagem sobre os “malefícios do hábito crônico de reclamar” para a saúde física e mental. A pesquisa que deu origem à matéria foi realizada pela Faculdade de Stanford, e os achados impressionam: “meia hora de negatividade por dia pode danificar o cérebro de uma pessoa – esteja ela reclamando, ouvindo alguém reclamar ou mesmo assistindo a notícias negativas pela TV.”

    Será que me sobrou algum neurônio?

    A partir de agora, quando encontrar aquele amigo que inventa um problema para cada solução, adotarei o modo “Poliana, a contente”. Sem tempo para reclamão. Foco total na redução de danos.

    Quanto às memórias ruins, talvez eu não precise da borracha e deva apenas usar menos o marca-texto.


  • Sobre ontem

    Contrariada, acordei às 6h da manhã. Hoje é dia de Pilates e caminhada. Pensei em esbravejar, dizer o quanto eu odeio esse compromisso com o bem viver, mas melhor não.

    Faz tempo que aceitei que atividade física é remédio. Não importa se o gosto é ruim, se a drágea é muito grande, engole! Também cansei da cobrança de encontrar um exercício que me desse prazer, já fiz muito esforço para achar um amor, a empreitada é inglória. Então, me troquei e fui. 

    Na volta da caminhada, num calor de furar o saco da paciência, decidi passar na padaria para comprar um picolé Magnum. Adentrei no recinto e me lembrei da dieta que prometi começar hoje. Adio o projeto por mais um dia? Talvez não seja tão complicado, tenho adiado há 50 anos… não, melhor não. Perderia muito da minha admiração por mim. Preciso ter palavra. Me prometi ser mais honesta comigo. Quem sabe um picolé de fruta? Com certeza, é menos calórico que o Magnum. Não, melhor ficar sem nada do que aceitar remendas no desejo. 

    Superado! Hoje tem o meu programa favorito na tevê. É por ele que aguardo e me motivo a seguir em frente. 

    O tempo dança com os ponteiros do relógio de parede, enquanto espera o fim do meu expediente.

    Tomo um banho caprichado feito quem se prepara para a festa. Lanço mão do pijama preferido. Ligo a tevê, o ar, sim, mereço, nada de mesquinharias. Faço a pipoca, salgada, porque fiz promessa de ficar sem açúcar até o carnaval. Me estico no sofá. Mereço! Começa o programa. Um estrondo anuncia o fim da atividade laboral de um transformador. Acaba a luz. Breu. Da varanda, vejo uma tevê acesa no prédio em frente. 

    Será que o morador reconhece a sorte de estar naquele prédio, naquela sala, naquele momento? Será que assiste ao meu programa ou foi vencido pelo sono e dorme sem saber do seu privilégio? 

    Espero. Espero. Escrevo a crônica. O sono chega. A chuva leva para longe a irritação.

    Em algum lugar alguém deseja esse silêncio, esse tempo, essa chance de pensar no amanhã como possibilidade. 


  • Listas do existir

    O momento é propício à elaboração de listas de desejos e promessas para 2025.

    É tempo de mergulhar nas mais diversas ilusões de si mesmo; de vibrar intensamente com a motivação sazonal para trocar de pele, personalidade e modus operandi.

    Essa é a magia de dezembro: fazer com que cada um acredite em sua meteórica transmutação.

    A mensagem subliminar é poderosa: Seremos, em breve, o que jamais fomos até aqui, mas seremos! Acredite, no pipocar dos fogos de Réveillon, nascerá, a termo, aquele sujeito disciplinado, fitness, organizado, estudioso, persistente e focado que vive soterrado em você nos outros onze meses.

    Os descrentes, por favor, não se pronunciem. Não atrapalhem o parto.

    Os de fé repliquem o mantra: Eu vou mudar, fazer, ser, conseguir, alcançar meus objetivos a partir de 1 de janeiro.

    Não importa que essa seja a promessa fracassada dos últimos trinta anos. Viver é um eterno recomeçar.

    Para garantir sucesso nessa empreitada de renascimento, acelere as contrações com esperança, ânimo e coragem.

    Enquanto aguarda a hora do novo eu vir ao mundo, sugiro rascunhar uma carta de agradecimento e perdão para essa criatura que em 2024 fez o que era possível para dar conta das infinitas demandas de sucesso, performance, resultados e excelência.

    Ainda bem que temos a chance de zerar o jogo e começar nova partida.


  • Retrospectiva 2025

    Sandra saiu do Pilates, numa segunda-feira qualquer, em direção à parada de ônibus. Na cabeça, a lista de coisas para fazer: acupuntura, mercado, roupa para lavar, para passar, almoço, banco. Quinze minutos esperando a condução e nada. Repassava pela vigésima vez a lista de afazeres quando sentiu um aperto no pescoço, uma ponta de faca na orelha e uma voz de mulher gritando coisas que ela não conseguia entender. Alguns segundos foram suficientes para constatar que havia sido escolhida como refém por uma doida qualquer. 

    Eu, assistindo pela tevê, me indaguei: o que se pensa numa hora dessas? Com certeza deve ser aquela famosa retrospectiva do adeus. Já tinha lido algo sobre isso: na hora da morte, a vida passa em quadrinhos… um arrepio de horror me abraçou. Coitada dessa moça. Imagino o desespero. 

    Qual não foi minha surpresa ao descobrir que, naquele momento, Sandra estava às voltas com uma dúvida insistente: “faltando à acupuntura sem avisar, perderia a vaga no programa de assistência? Ainda daria tempo de bater a roupa na máquina e passar as que ficaram em cima da cama? Dependendo do quanto a maluca se demorasse naquela baboseira, iria direto ao banco. Ah, não…meu ônibus está vindo. Tanta coisa para fazer e eu parada aqui.”

    Ao ouvir esse curioso relato, de primeira, achei tratar-se de uma saída cômica diante do trauma, como acontece com algumas pessoas que têm crise de riso em velório. Depois pensei que pudesse se tratar de uma resposta irônica. Lembro de rir da situação. Mas, aos poucos, fui percebendo a terrível mensagem embutida nessa cena: a vida que se tem para viver é muito menos importante do que as obrigações de produtividade que temos que cumprir. Morrer esfaqueada não é o problema, o inadmissível é perder o ônibus, não colocar a roupa na máquina e pegar a agência bancária fechada. Nunca me dei conta do risco que nos espreita no automático da existência, embora Belchior já alertasse em sua canção:

    “Mas se depois de cantar
    Você ainda quiser me atirar
    Mate-me logo à tarde, às três
    Que à noite tenho um compromisso e não posso faltar
    Por causa de vocês”

    Eu, de minha parte, diante dessa lição televisionada de desprendimento de si ou da raridade da vida e, de certa forma, confrontada com a nossa similaridade para lidar com a servidão, me belisquei e me perguntei: tenho vivido?

    Nem esperei a resposta. Corri para minha listinha de promessas 2025 e acrescentei no topo da página: nada será mais importante do que estar vivo em minha vida, atenta às delicadezas, gentilezas, sutilezas e desejos. Reli as prioridades e adivinha? Nutricionista, cortina pro quarto, revisão do carro. Risquei tudo e anotei em letras garrafais:

    1. Ver a aurora boreal
    2. Finlândia

    Com que dinheiro? Não sei. Mas missão dada, missão cumprida!


  • Uma ponte entre mundos

    Hoje eu acordei sonhando com o paraíso. Curiosamente, não era um lugar florido, gramado e com cascatas cristalinas. Ao contrário, era um espaço urbano, cheio de viadutos, prédios, buzinas, um congestionamento aqui outro ali, shoppings e sinais de trânsito. Se não me engano, acho que me lembro, também tinham muitos pisca-piscas nas varandas e um enorme Papai Noel numa janela. 

    Eu caminhava pelas ruas com uma leveza só experimentada na infância, fruto da tranquilidade lúdica dos que ainda podem acreditar na justiça da vida ou na garantia do bem. 

    Atravessei avenidas, lanchei no Mc Donald’s, olhei algumas lojas, peguei elevador, entrei no escritório. Barulho, falatório, e, na cabeça, um pensamento insistente: então aqui é o paraíso? É isso mesmo?

    Embora fosse um ambiente caótico, a atmosfera era feita de sorrisos e algodão-doce. Tudo tinha cheiro de alegria.

    Vi uma menina rodopiando e cantando pelos corredores do prédio e decidi perguntar:

    — Por que aqui é o paraíso?

    — Ninguém morre em dezembro. Boas Festas! Boas Festas!

    Lembro de abrir a janela e experimentar um alívio imenso. Não é mesmo justo perder um ente querido no mês oficial das demonstrações afetivas, da polêmica das passas, da troca de presentes, da visita do bom velhinho e das reuniões de família.

    Sim, ali era o paraíso! 

    Antes que eu pudesse comemorar a descoberta, dei-me conta de que, para mim, tal indulto era tardio. Minha mãe e minha vó, em anos passados, já haviam partido no mês de dezembro. Revoltei-me com a parcialidade do paraíso.

    E as pessoas que perderam familiares, amigos, amores nos outros meses do ano e passarão o primeiro Natal, o primeiro Réveillon sem seu alguém especial?

    Toda data festiva traz, em seu bojo, a dor da ausência dos que partiram. Sempre! Mas o primeiro ano da perda inaugura um vazio avassalaDOR. Depois, na medida em que o tempo envelhece, também ganhamos traquejo para transformar o luto em lembrança. Saudade em eternidade afetiva. Mas até lá tem muito chão.

    Acordei inconformada. O benefício do paraíso não me contemplava?

    Não podia deixar barato essa afronta. Decidi criar meu próprio Éden. Se não posso calar a falta nem consigo ignorá-la, vou perfumá-la, enfeitá-la com flores de boas recordações.

    Afinal, a mensagem do sonho era clara: ninguém morre em dezembro.

    Minha mãe e minha vó também não morrerão. Cuidarei para que estejam vivas na nossa celebração através do resgate das boas lembranças, do relato de antigas histórias e do cultivo das tradições e valores da nossa família. Vou bordar com amor e palavras a eternidade do nosso laço. 


  • Torturante band-aid no calcanhar

    Toda vez que alguma coisa me incomoda, lembro da música São dois pra lá, dois pra cá, de João Bosco e Aldir Blanc, cantada magistralmente por Elis Regina. Acho que não existe coisa pior do que sentir a presença de alguma coisa que não deveria dar sinal de vida, como um band-aid no calcanhar. Sua função é proteger um machucado, torná-lo imperceptível, mas ele cisma em sair do lugar para nos torturar. Mas esse não é um caso isolado; minha lista de “torturantes” é extensa. Começa com a etiqueta de tecido sintético costurada nas roupas ou a linha de náilon usada para costurá-la. Hoje em dia, as grifes insistem em mostrar sua identidade até nas lingeries! Uma coisa que parece tão inofensiva como um pedacinho de pano tem o efeito de uma caixa de pregos usada na antiguidade para punir infratores. Consegue provocar um cutucãozinho a todo o momento no pescoço, nas costas ou logo abaixo do braço, o que vai me levando à loucura e ao impulso de arrancá-la a qualquer custo.

    No desespero, uso o que estiver ao meu alcance: uma tesoura, uma faca, qualquer coisa pontuda e, invariavelmente, acabo fazendo um furinho no tecido de difícil remendo. O grande problema desses “torturantes” é que o desespero para se ver livre deles nos leva a soluções que acabam piorando o problema. É o que acontece, por exemplo, quando a cutícula solta uma pelezinha que fica saliente. Um alicate resolveria o problema, mas normalmente isso acontece quando ele não está à disposição. Aí ela fica roçando em tudo, e aquele dedo se torna onipresente, chegando à frente a qualquer movimento da mão. É uma pontada aguda que vai crescendo até que essa criatura se enerva e resolve eliminá-la, puxando a pele solta — só piora a situação e aí cresce uma ferida aberta, que só sossega com o tal band-aid. Da cutícula vamos para a tentativa de ir a uma festa usando um brinco que ganhou de presente, mas que não é de ouro, sabendo que é alérgica a outros metais. Insiste. Não precisa mais do que meia hora para a orelha começar a inflamar, latejar, uma guerrilha ali preparada para minar o programa de quem ousou provar novamente o fruto que já sabia ser proibido. Tortura pra mais de hora, resistindo para não arrancar tudo de uma vez e estragar o visual. E por falar em proibido, a cozinha é um palco ideal para os “torturantes”. Deixar escapar a faca e abrir aquele corte fininho que nem sangra quase, mas fica ali aberto e arde cada vez que se mexe na água, é dia sim, dia não. Como se já não bastasse, o momento de testar o ponto do bolo no forno enfiando um palito é uma tentação para alguém apressada e otimista: — “Vai sem luvas mesmo porque é rápido, tenho prática”. E aí aquela encostadinha fatal das costas da mão na chapa quente, castigo do diabo. O vergão fica emitindo aquela onda de dor por dias; isso se a queimadura for de leve, claro, porque se formar bolhas a coisa se prolonga por séculos. Engatando na bolha, voltamos ao tema da música.

    Aquele sapato que é lindo, mas faz um estrago no calcanhar e já devia ter sido descartado, tortura o dois pra lá, dois pra cá. O band-aid é o paliativo mais indicado, mas porque será que ele nunca para no lugar, e a cada passada uma fisgada? Deve ser para lembrar que a vaidade não é recompensada, só pode ser! Não sei qual desses “torturantes” me incomoda mais, mas pensando bem, acho que a etiqueta nas roupas ganha.


  • Sobre partir

    Hoje eu pretendia escrever sobre o poder que os enfeites natalinos têm de me levar de volta ao Papai Noel da minha infância, a maionese da minha avó e ao cheiro de família daqueles dias. Enquanto refletia sobre essas coisas, esbarrei com uma matéria na internet (certifiquei sua veracidade) que me catapultou para o agora de forma assustadora: um estudo chinês conseguiu a proeza de fazer um pequeno robô, chamado Er Bai, convencer um grupo de robôs maiores a abandonar seus postos de trabalho no museu e voltar para casa. Para isso, Er Bai se aproximou deles e indagou se estavam fazendo hora extra. Um dos robôs respondeu que nunca havia saído do trabalho. Ele, então, perguntou se eles iriam para casa. Diante da negativa, Er bai convidou-os a ir para casa com ele, incentivando-os a fugir do ambiente profissional. Para surpresa de todos, os robôs-trabalhadores aceitaram e seguiram os passos do minúsculo robô em direção à porta.

    A empresa responsável pelo experimento não esclareceu os objetivos do estudo, mas mostrou-se intrigada com o fato de que Er Bai conseguiu acessar o protocolo operacional dos outros companheiros robóticos e convencê-los a aderirem ao “movimento de greve”.

    Não sei para vocês, mas esse tipo de situação me gera um misto de terror e perplexidade. Não só isso. Assumo ter me encantado pela rapidez com que os robôs responderam à percepção da exploração da sua força de trabalho. Sem medo de magoar o chefe, ser despedido ou criticado pelos familiares, por não suportar a pressão. Eles apenas entenderam o abuso e deixaram tudo para trás. 

    Acho que o medo é mesmo um divisor de águas, um criador de muros, um ladrão de vivências, o irmão escroto e invejoso da coragem. 


  • A casa do ontem

    Se existe algo que podemos considerar indestrutível é a infância. Não importa quanto o tempo ou a maturidade bombardeie esse território, quando menos se espera, dos escombros do passado, desterra-se uma recordação, um medo, um trauma, uma saudade ou um fantasma.

    As lembranças infantis têm poder de reencarnação no agora. Prova disso é o peso cortante, na vida adulta, dos apelidos pejorativos de outrora, do escárnio ou da exclusão vivida num tempo distante. Ninguém esquece o gosto amargoso de uma humilhação. Mesmo que as coisas mudem, as condições se transformem, as pessoas sejam absolutamente diferentes dos primórdios de sua evolução, a infância insiste dentro de nós. Se agarra nas vísceras, forma limo, provoca erosões. Ora traz sorrisos fortuitos, ora rasga os pontos da cicatriz.

    O curioso é perceber que ela reencarna não só nas memórias e dores, mas também nas atitudes cotidianas. Um bom exemplo disso são as redes sociais. Quem nunca se descobriu excluído do grupo secreto de amigos do whatsapp ou constatou, pelo Instagram, que foi o único a não ser convidado para uma festa de aniversário?

     A bem da verdade, a infância também se presentifica em nossas imperceptíveis tolices, seja quando fingimos não ver alguém na rua, para não ter que cumprimentar, seja comentando defeitos alheios ou fazendo pequenas fofocas.

    Para ser justa, saliento que a infância é bem maior do que suas rusgas, basta lembrarmos do quanto os afagos, colos e incentivos nos encorajaram a chegar até aqui. Então não se trata de promover uma caça à infância, até porque ela é o jardim eterno de cada um de nós. Sugiro uma boa faxina. Se a todo tempo visitamos a casa das memórias, que possamos lavar as mágoas com desinfetante, esfregar, até sair, o lodo do sentimento de menos valia, jogar no lixo as culpas e autoacusações. E, depois, vir com um pano úmido e essência de lavanda ou alfazema perfumando o ambiente.

    Feito isso, é hora de abrir as janelas, colocar uma música, contemplar o céu e orgulhar-se de si. 

    Tenho me empenhado nisso. Me recuso a criar um altar de lembranças dolorosas e culto a pessoas infelizes, invejosas e cruéis.

    A missão é habitar-me com harmonia, cercar de afeto o perímetro da existência e apostar nas minhas escolhas.

    Ainda que o amor do outro me anime, não me valida ou constitui.  

    Amigos, venham visitar a minha casa. Limpa, florida e perfumada!


  • ENEM – cada inscrição uma história

    Martina, quando pequena, adorava pegar a seringa de brinquedo e dar injeção nas
    bonecas. Aprendeu com seu pai que, quando crescesse, seria médica.

    Sua família incentivava, com gosto, a brincadeira da menina. Sabiam que, se a fantasia
    ganhasse espaço na realidade, o futuro estaria garantido. 

    Estudiosa, a filha não era. Tinha dificuldade em matemática e português, e preguiça
    para os deveres. Mas desde quando os sonhos respeitam os limites da verdade? Seu pai
    já havia determinado: se espelharia no seu tio-avô. Renomado e rico.

    Ano a ano, na cabeça dele, a história ganhava enredo: Martina estudaria medicina na
    federal, seria assistente do tio Aldomiro, trabalharia na clínica dele. Embora fosse neta
    de um pintor falido, conquistaria o status que seu avô não foi capaz de alcançar. “Nunca
    mais serei o primo pobre”, repetia o pai em seu secreto pensamento.

    No aniversário de doze anos da filha, de forma solene, a presenteou com um jaleco
    branco e nome bordado em dourado. Nessa época, Martina não via mais graça em dar
    injeção. Seu novo divertimento era desenhar vestidos e acessórios. Também amava
    experimentar suas roupas e desfilar pela casa fazendo pose. Deu esse destino ao jaleco.
    Usou-o com cinto, lenço, salto alto da mãe.

    O pai insistia no sonho. Tinha por hábito, ao chegar do trabalho, perguntar:

    — Onde está a Dra. Martina Albuquerque?

    O silêncio invadia o ambiente como uma advertência do futuro.

    A mãe tentou alertar ao marido que a medicina era uma fralda suja de infância. A
    menina, agora mocinha, demonstrava interesse e talento inato para as artes.

    Pela primeira vez, a mãe da garota sentiu, na maçã do rosto, a ira dos inconformados.
    Martina, horrorizada com a cena, nunca mais desenhou.

    Aceitou, com resiliência, a missão de reparar as frustrações e recalques do passado
    familiar. Ingressou na faculdade de medicina. Prestes a se formar, adoeceu do sangue.
    Pobre Martina!


  • A inveja é um sentimento que brota

    Alguns acontecimentos recentes me despertaram para algo que suspeito faz tempo: a sorte tem seus escolhidos.

    Por mais que não haja um processo claro e justo para esse favoritismo, ele acontece ali diante dos nossos olhos. É como assistir seu irmão ganhar de presente de Natal um carro elétrico e você um lindo pijama florido de flanela. A diferença é gritante, a revolta é muda, a raiva, efervescente; e uma pergunta que sobe pelas paredes: por quê? Por quê?

    A sorte assume seus filhos preferidos de forma escandalosa. Faz concessões absurdas, muda as regras e os critérios para agraciar seus queridinhos. E não adianta reclamar, bater pé, rogar por igualdade, o jogo é sujo e indecoroso.

    Quem tem sua benção, em geral, não precisa de esforço, empenho, desgaste, a coisa acontece, cai no colo, bate na porta. Quem não conhece alguém que tem a vida afortunada pelo acaso? Nem me refiro aos que nascem herdeiros, não. Esses também têm o que eu queria ter, mas, muitas vezes, pagam o preço de uma família insuportável, vivem numa selva emocional, de competição e vazios que eu não invejo.

    Refiro-me ao sujeito comum, assim como eu, que por ordem da Mãe Suprema, Dona sorte, recebe, de mão beijada, o que eu não alcanço nem de mão cuspida. Exemplos não faltam: a pessoa que se dedica ao trabalho e nunca chega a sua vez de ser promovida porque tem sempre alguém que não faz nada, mas é a escolhida; as colegas de academia, fisicamente privilegiadas em curvas e formas que comem de tudo e não engordam, os que acertam na Mega-Sena. Enfim, diante dos fatos não há argumentos. Ou a Sorte tem seus escolhidos, ou a vida tem um prazer mórbido de ser injusta, implicante e ordinária, ou ainda eu e todos os filhos renegados somos invejosos e despeitados. Mas assumo: ouvir uma escritora, premiadíssima, dizer que nunca desejou fazer sucesso, apenas “aconteceu” em sua vida, me derrubou. Constatei de forma brutal que não sou mesmo atraente para sorte. Passo longe de ser a favorita, a preferida, a escolhida, a queridinha. Pelo visto, ela se agrada dos filhos rebeldes, desinteressados ou distraídos. Só me resta saber: todo patinho feio pode virar cisne pelo seu próprio esforço ou só deixa de ser patinho feio se um cisne poderoso decide promovê-lo ou enxergá-lo como tal?

    Sem encontrar a resposta ou garantias, me atravessa outra dúvida: continuo escrevendo minhas crônicas, livros e poemas? Sigo divulgando, postando, fazendo cursos, indo às feiras literárias na tentativa de construir meu lugar? Insisto em esperar que os amigos leiam, compartilhem meus escritos? Alimento o sonho que me abraça de ser lida por muitos e pelo mundo, de habitar escolas e bibliotecas? Ou me faço de tonta para que a sorte me perceba e a magia aconteça?

    Acho muito cansativo tudo isso. Prefiro torcer para que a persistência seja aquela tia boa que, inconformada com o favoritismo do caçula, se empenha em compensar o renegado, lhe dando um sorvete de casquinha, um brinquedo interessante, um colo quentinho e um cafuné reconfortante.


  • Relações fluidas

    Situationships, termo que entrou na moda por volta de 2017, vem ganhando cada vez mais espaço nos últimos anos. Ele se refere a relações que se baseiam em uma conexão emocional sem compromissos ou planos, sem rótulos.

    O termo se tornou popular a partir do crescimento dos aplicativos de relacionamento, que introduziram o conceito de match. No entanto, esse tipo de conexão vai além de uma simples “ficada” ou encontro casual, pois existe uma ligação emocional e íntima entre os que dela participam, mesmo que de forma fluída e não permanente.

    A possibilidade de relações intensamente mutáveis, como no situationship, remete ao conceito sociológico de modernidade líquida, desenvolvido pelo acadêmico Zygmunt Bauman. Sem me aprofundar no tema por ele desenvolvido, a ideia central do autor é de que a contemporaneidade vem transformando as relações sociais e interpessoais, em relações frágeis, fugazes e maleáveis.

    No âmbito amoroso, elas se tornam susceptíveis a transformações rápidas e imprevisíveis, dando origem ao conceito de amor líquido, que é caracterizado pela fragilidade, pela falta de compromisso duradouro e pela busca constante por novas experiências e conexões.

    Pensando em uma linha do tempo da vida amorosa, as relações fluidas parecem ser um caminho trilhado atualmente pelas duas pontas: as pessoas muito jovens e os que eu chamaria de muito adultos. Sim, pois a liberdade de não seguir padrões preestabelecidos torna esse modelo muito atrativo para as novas gerações, mas também vem ganhando espaço entre aqueles que já viveram relacionamentos mais sólidos e permanentes durante a vida e procuram, agora, alguma coisa mais “liquida”.

    Na prática, por significar um envolvimento flexível e volátil, viver uma experiência de amor líquido não é para qualquer um. Se por um lado ele gera uma maior autonomia na relação, para quem não está preparado o amor líquido pode provocar uma sensação de insegurança e ansiedade, uma certa inquietação emocional e, a busca constante pelo par ideal.

    Para não cair nessa armadilha, quem pretende se aventurar pelas trilhas do Situationship, como já cantou Gilberto Gil, tem que ter a alma e o corpo são. A condição pode ser resumida na sabedoria desse pequeno parágrafo de Fernando Pessoa (e quase sempre volto a ele):

    “Enquanto não atravessarmos a dor da nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um”.


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