Sábado

  • Torturante band-aid no calcanhar

    Toda vez que alguma coisa me incomoda, lembro da música São dois pra lá, dois pra cá, de João Bosco e Aldir Blanc, cantada magistralmente por Elis Regina. Acho que não existe coisa pior do que sentir a presença de alguma coisa que não deveria dar sinal de vida, como um band-aid no calcanhar. Sua função é proteger um machucado, torná-lo imperceptível, mas ele cisma em sair do lugar para nos torturar. Mas esse não é um caso isolado; minha lista de “torturantes” é extensa. Começa com a etiqueta de tecido sintético costurada nas roupas ou a linha de náilon usada para costurá-la. Hoje em dia, as grifes insistem em mostrar sua identidade até nas lingeries! Uma coisa que parece tão inofensiva como um pedacinho de pano tem o efeito de uma caixa de pregos usada na antiguidade para punir infratores. Consegue provocar um cutucãozinho a todo o momento no pescoço, nas costas ou logo abaixo do braço, o que vai me levando à loucura e ao impulso de arrancá-la a qualquer custo.

    No desespero, uso o que estiver ao meu alcance: uma tesoura, uma faca, qualquer coisa pontuda e, invariavelmente, acabo fazendo um furinho no tecido de difícil remendo. O grande problema desses “torturantes” é que o desespero para se ver livre deles nos leva a soluções que acabam piorando o problema. É o que acontece, por exemplo, quando a cutícula solta uma pelezinha que fica saliente. Um alicate resolveria o problema, mas normalmente isso acontece quando ele não está à disposição. Aí ela fica roçando em tudo, e aquele dedo se torna onipresente, chegando à frente a qualquer movimento da mão. É uma pontada aguda que vai crescendo até que essa criatura se enerva e resolve eliminá-la, puxando a pele solta — só piora a situação e aí cresce uma ferida aberta, que só sossega com o tal band-aid. Da cutícula vamos para a tentativa de ir a uma festa usando um brinco que ganhou de presente, mas que não é de ouro, sabendo que é alérgica a outros metais. Insiste. Não precisa mais do que meia hora para a orelha começar a inflamar, latejar, uma guerrilha ali preparada para minar o programa de quem ousou provar novamente o fruto que já sabia ser proibido. Tortura pra mais de hora, resistindo para não arrancar tudo de uma vez e estragar o visual. E por falar em proibido, a cozinha é um palco ideal para os “torturantes”. Deixar escapar a faca e abrir aquele corte fininho que nem sangra quase, mas fica ali aberto e arde cada vez que se mexe na água, é dia sim, dia não. Como se já não bastasse, o momento de testar o ponto do bolo no forno enfiando um palito é uma tentação para alguém apressada e otimista: — “Vai sem luvas mesmo porque é rápido, tenho prática”. E aí aquela encostadinha fatal das costas da mão na chapa quente, castigo do diabo. O vergão fica emitindo aquela onda de dor por dias; isso se a queimadura for de leve, claro, porque se formar bolhas a coisa se prolonga por séculos. Engatando na bolha, voltamos ao tema da música.

    Aquele sapato que é lindo, mas faz um estrago no calcanhar e já devia ter sido descartado, tortura o dois pra lá, dois pra cá. O band-aid é o paliativo mais indicado, mas porque será que ele nunca para no lugar, e a cada passada uma fisgada? Deve ser para lembrar que a vaidade não é recompensada, só pode ser! Não sei qual desses “torturantes” me incomoda mais, mas pensando bem, acho que a etiqueta nas roupas ganha.


  • Sobre partir

    Hoje eu pretendia escrever sobre o poder que os enfeites natalinos têm de me levar de volta ao Papai Noel da minha infância, a maionese da minha avó e ao cheiro de família daqueles dias. Enquanto refletia sobre essas coisas, esbarrei com uma matéria na internet (certifiquei sua veracidade) que me catapultou para o agora de forma assustadora: um estudo chinês conseguiu a proeza de fazer um pequeno robô, chamado Er Bai, convencer um grupo de robôs maiores a abandonar seus postos de trabalho no museu e voltar para casa. Para isso, Er Bai se aproximou deles e indagou se estavam fazendo hora extra. Um dos robôs respondeu que nunca havia saído do trabalho. Ele, então, perguntou se eles iriam para casa. Diante da negativa, Er bai convidou-os a ir para casa com ele, incentivando-os a fugir do ambiente profissional. Para surpresa de todos, os robôs-trabalhadores aceitaram e seguiram os passos do minúsculo robô em direção à porta.

    A empresa responsável pelo experimento não esclareceu os objetivos do estudo, mas mostrou-se intrigada com o fato de que Er Bai conseguiu acessar o protocolo operacional dos outros companheiros robóticos e convencê-los a aderirem ao “movimento de greve”.

    Não sei para vocês, mas esse tipo de situação me gera um misto de terror e perplexidade. Não só isso. Assumo ter me encantado pela rapidez com que os robôs responderam à percepção da exploração da sua força de trabalho. Sem medo de magoar o chefe, ser despedido ou criticado pelos familiares, por não suportar a pressão. Eles apenas entenderam o abuso e deixaram tudo para trás. 

    Acho que o medo é mesmo um divisor de águas, um criador de muros, um ladrão de vivências, o irmão escroto e invejoso da coragem. 


  • A casa do ontem

    Se existe algo que podemos considerar indestrutível é a infância. Não importa quanto o tempo ou a maturidade bombardeie esse território, quando menos se espera, dos escombros do passado, desterra-se uma recordação, um medo, um trauma, uma saudade ou um fantasma.

    As lembranças infantis têm poder de reencarnação no agora. Prova disso é o peso cortante, na vida adulta, dos apelidos pejorativos de outrora, do escárnio ou da exclusão vivida num tempo distante. Ninguém esquece o gosto amargoso de uma humilhação. Mesmo que as coisas mudem, as condições se transformem, as pessoas sejam absolutamente diferentes dos primórdios de sua evolução, a infância insiste dentro de nós. Se agarra nas vísceras, forma limo, provoca erosões. Ora traz sorrisos fortuitos, ora rasga os pontos da cicatriz.

    O curioso é perceber que ela reencarna não só nas memórias e dores, mas também nas atitudes cotidianas. Um bom exemplo disso são as redes sociais. Quem nunca se descobriu excluído do grupo secreto de amigos do whatsapp ou constatou, pelo Instagram, que foi o único a não ser convidado para uma festa de aniversário?

     A bem da verdade, a infância também se presentifica em nossas imperceptíveis tolices, seja quando fingimos não ver alguém na rua, para não ter que cumprimentar, seja comentando defeitos alheios ou fazendo pequenas fofocas.

    Para ser justa, saliento que a infância é bem maior do que suas rusgas, basta lembrarmos do quanto os afagos, colos e incentivos nos encorajaram a chegar até aqui. Então não se trata de promover uma caça à infância, até porque ela é o jardim eterno de cada um de nós. Sugiro uma boa faxina. Se a todo tempo visitamos a casa das memórias, que possamos lavar as mágoas com desinfetante, esfregar, até sair, o lodo do sentimento de menos valia, jogar no lixo as culpas e autoacusações. E, depois, vir com um pano úmido e essência de lavanda ou alfazema perfumando o ambiente.

    Feito isso, é hora de abrir as janelas, colocar uma música, contemplar o céu e orgulhar-se de si. 

    Tenho me empenhado nisso. Me recuso a criar um altar de lembranças dolorosas e culto a pessoas infelizes, invejosas e cruéis.

    A missão é habitar-me com harmonia, cercar de afeto o perímetro da existência e apostar nas minhas escolhas.

    Ainda que o amor do outro me anime, não me valida ou constitui.  

    Amigos, venham visitar a minha casa. Limpa, florida e perfumada!


  • ENEM – cada inscrição uma história

    Martina, quando pequena, adorava pegar a seringa de brinquedo e dar injeção nas
    bonecas. Aprendeu com seu pai que, quando crescesse, seria médica.

    Sua família incentivava, com gosto, a brincadeira da menina. Sabiam que, se a fantasia
    ganhasse espaço na realidade, o futuro estaria garantido. 

    Estudiosa, a filha não era. Tinha dificuldade em matemática e português, e preguiça
    para os deveres. Mas desde quando os sonhos respeitam os limites da verdade? Seu pai
    já havia determinado: se espelharia no seu tio-avô. Renomado e rico.

    Ano a ano, na cabeça dele, a história ganhava enredo: Martina estudaria medicina na
    federal, seria assistente do tio Aldomiro, trabalharia na clínica dele. Embora fosse neta
    de um pintor falido, conquistaria o status que seu avô não foi capaz de alcançar. “Nunca
    mais serei o primo pobre”, repetia o pai em seu secreto pensamento.

    No aniversário de doze anos da filha, de forma solene, a presenteou com um jaleco
    branco e nome bordado em dourado. Nessa época, Martina não via mais graça em dar
    injeção. Seu novo divertimento era desenhar vestidos e acessórios. Também amava
    experimentar suas roupas e desfilar pela casa fazendo pose. Deu esse destino ao jaleco.
    Usou-o com cinto, lenço, salto alto da mãe.

    O pai insistia no sonho. Tinha por hábito, ao chegar do trabalho, perguntar:

    — Onde está a Dra. Martina Albuquerque?

    O silêncio invadia o ambiente como uma advertência do futuro.

    A mãe tentou alertar ao marido que a medicina era uma fralda suja de infância. A
    menina, agora mocinha, demonstrava interesse e talento inato para as artes.

    Pela primeira vez, a mãe da garota sentiu, na maçã do rosto, a ira dos inconformados.
    Martina, horrorizada com a cena, nunca mais desenhou.

    Aceitou, com resiliência, a missão de reparar as frustrações e recalques do passado
    familiar. Ingressou na faculdade de medicina. Prestes a se formar, adoeceu do sangue.
    Pobre Martina!


  • A inveja é um sentimento que brota

    Alguns acontecimentos recentes me despertaram para algo que suspeito faz tempo: a sorte tem seus escolhidos.

    Por mais que não haja um processo claro e justo para esse favoritismo, ele acontece ali diante dos nossos olhos. É como assistir seu irmão ganhar de presente de Natal um carro elétrico e você um lindo pijama florido de flanela. A diferença é gritante, a revolta é muda, a raiva, efervescente; e uma pergunta que sobe pelas paredes: por quê? Por quê?

    A sorte assume seus filhos preferidos de forma escandalosa. Faz concessões absurdas, muda as regras e os critérios para agraciar seus queridinhos. E não adianta reclamar, bater pé, rogar por igualdade, o jogo é sujo e indecoroso.

    Quem tem sua benção, em geral, não precisa de esforço, empenho, desgaste, a coisa acontece, cai no colo, bate na porta. Quem não conhece alguém que tem a vida afortunada pelo acaso? Nem me refiro aos que nascem herdeiros, não. Esses também têm o que eu queria ter, mas, muitas vezes, pagam o preço de uma família insuportável, vivem numa selva emocional, de competição e vazios que eu não invejo.

    Refiro-me ao sujeito comum, assim como eu, que por ordem da Mãe Suprema, Dona sorte, recebe, de mão beijada, o que eu não alcanço nem de mão cuspida. Exemplos não faltam: a pessoa que se dedica ao trabalho e nunca chega a sua vez de ser promovida porque tem sempre alguém que não faz nada, mas é a escolhida; as colegas de academia, fisicamente privilegiadas em curvas e formas que comem de tudo e não engordam, os que acertam na Mega-Sena. Enfim, diante dos fatos não há argumentos. Ou a Sorte tem seus escolhidos, ou a vida tem um prazer mórbido de ser injusta, implicante e ordinária, ou ainda eu e todos os filhos renegados somos invejosos e despeitados. Mas assumo: ouvir uma escritora, premiadíssima, dizer que nunca desejou fazer sucesso, apenas “aconteceu” em sua vida, me derrubou. Constatei de forma brutal que não sou mesmo atraente para sorte. Passo longe de ser a favorita, a preferida, a escolhida, a queridinha. Pelo visto, ela se agrada dos filhos rebeldes, desinteressados ou distraídos. Só me resta saber: todo patinho feio pode virar cisne pelo seu próprio esforço ou só deixa de ser patinho feio se um cisne poderoso decide promovê-lo ou enxergá-lo como tal?

    Sem encontrar a resposta ou garantias, me atravessa outra dúvida: continuo escrevendo minhas crônicas, livros e poemas? Sigo divulgando, postando, fazendo cursos, indo às feiras literárias na tentativa de construir meu lugar? Insisto em esperar que os amigos leiam, compartilhem meus escritos? Alimento o sonho que me abraça de ser lida por muitos e pelo mundo, de habitar escolas e bibliotecas? Ou me faço de tonta para que a sorte me perceba e a magia aconteça?

    Acho muito cansativo tudo isso. Prefiro torcer para que a persistência seja aquela tia boa que, inconformada com o favoritismo do caçula, se empenha em compensar o renegado, lhe dando um sorvete de casquinha, um brinquedo interessante, um colo quentinho e um cafuné reconfortante.


  • Relações fluidas

    Situationships, termo que entrou na moda por volta de 2017, vem ganhando cada vez mais espaço nos últimos anos. Ele se refere a relações que se baseiam em uma conexão emocional sem compromissos ou planos, sem rótulos.

    O termo se tornou popular a partir do crescimento dos aplicativos de relacionamento, que introduziram o conceito de match. No entanto, esse tipo de conexão vai além de uma simples “ficada” ou encontro casual, pois existe uma ligação emocional e íntima entre os que dela participam, mesmo que de forma fluída e não permanente.

    A possibilidade de relações intensamente mutáveis, como no situationship, remete ao conceito sociológico de modernidade líquida, desenvolvido pelo acadêmico Zygmunt Bauman. Sem me aprofundar no tema por ele desenvolvido, a ideia central do autor é de que a contemporaneidade vem transformando as relações sociais e interpessoais, em relações frágeis, fugazes e maleáveis.

    No âmbito amoroso, elas se tornam susceptíveis a transformações rápidas e imprevisíveis, dando origem ao conceito de amor líquido, que é caracterizado pela fragilidade, pela falta de compromisso duradouro e pela busca constante por novas experiências e conexões.

    Pensando em uma linha do tempo da vida amorosa, as relações fluidas parecem ser um caminho trilhado atualmente pelas duas pontas: as pessoas muito jovens e os que eu chamaria de muito adultos. Sim, pois a liberdade de não seguir padrões preestabelecidos torna esse modelo muito atrativo para as novas gerações, mas também vem ganhando espaço entre aqueles que já viveram relacionamentos mais sólidos e permanentes durante a vida e procuram, agora, alguma coisa mais “liquida”.

    Na prática, por significar um envolvimento flexível e volátil, viver uma experiência de amor líquido não é para qualquer um. Se por um lado ele gera uma maior autonomia na relação, para quem não está preparado o amor líquido pode provocar uma sensação de insegurança e ansiedade, uma certa inquietação emocional e, a busca constante pelo par ideal.

    Para não cair nessa armadilha, quem pretende se aventurar pelas trilhas do Situationship, como já cantou Gilberto Gil, tem que ter a alma e o corpo são. A condição pode ser resumida na sabedoria desse pequeno parágrafo de Fernando Pessoa (e quase sempre volto a ele):

    “Enquanto não atravessarmos a dor da nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um”.


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