Crônicas

Livro, o cachorro encadernado

Tenho uma relação antiga com o livro. E feliz.

Acredito que ninguém é obrigado a ler tudo. O básico de cada um é o resultado de suas predileções e inclinações, momentâneas ou não, ditadas por tantas coisas que reúnem um pouco de tudo que se chama você. Mutante por natureza, esponja que absorve e que despeja os excessos pelo caminho.

O olhar muda com o tempo porque é forjado por nossa maturidade. Não ter idade para ler alguém é uma verdade, mesmo que incomode nossa vaidade intelectual. Acontece. Às vezes, você retorna ao livro mais adiante na sua vida. Às vezes, ele desaparece pelo caminho. Nossa estante de livros, a metafórica, quero dizer, não é melhor nem pior do que a dos outros. São nossas escolhas, sem competir com ninguém.

Na adolescência, alguns amigos se tornaram fãs de J.R.R. Tolkien e sua saga “O Senhor dos Anéis”. Eu descobri Garcia Márquez a partir de “Cem anos de solidão”. Nossos caminhos literários não se cruzavam. Eles insistiam em me dizer que eu não sabia o que estava perdendo por não conhecer a Terra Média. Lá em Macondo, eu balançava minha rede e suspirava.

Influências externas podem te empurrar na direção de uma estante. Ou te afastar dela. Mas o que dizer dos estalos que nos chegam de repente? Sabe quando nosso olhar examina a obra e uma voz baixinha nos diz: “acho que vou experimentar esse aí”…

Ser leitor é muito bom.

Houve uma época da minha vida em que levava, por baixo, uma hora e meia de casa ao trabalho. E, para voltar também, não tinha refresco. Pegava duas conduções e, na primeira, a de uma hora, eu conseguia viajar sentado. Como sempre pegava o ônibus no ponto final, tanto na ida quanto na volta, era tranquilo. E, para ocupar o tempo, eu lia.

Foram mais de seis meses nesse trajeto até mudar de casa. Nesse tempo, Guimarães Rosa me fez companhia. Li “Grande Sertão: Veredas” nessas duas horas diárias de viagem. Lembro até o que fiz no dia em que Riobaldo uivou de tristeza. Interrompi a leitura, completamente afogado pelas emoções do jagunço, e lancei um olhar perdido na cidade à minha volta. Sertão bruto me cercava. E Riobaldo uivava.


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Fernando Neves

Fernando Neves é carioca, nascido em 24 de setembro de 1965, na cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Mora na cidade de São Paulo, continua Tricolor de Coração, é separado duas vezes e tem filhas gêmeas do segundo casamento. Jornalista profissional, desde os tempos no Colégio Pedro II sempre se interessou pelas letras, seja como leitor ávido seja como aprendiz de escritor. O jornalismo abriu a oportunidade de escrever e praticar mas não foi suficiente para seu desejo de escrever cada vez mais. As opções de forma são a mininovela e o conto. O estilo adotado pelo autor compreende um arco que inclui suspense, humor, conspiração e realismo fantástico. Semanalmente ele exercita sua paixão pela crônica e poesia publicando em seu instagram @fernandonevesescritor.

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