
A Paraíba no horizonte da poesia: uma entrevista com Lau Siqueira
Lau Siqueira é um velho conhecido da poesia paraibana, da brasileira e deste portal. Gaúcho de nascimento, é, desde 1985, também um tanto paraibano. Nascido em Jaguarão, integra, como legítimo representante, o cenário da poesia paraibana. Entre outros livros, é autor de: O inventário do pêssego (2020), A memória é uma espécie de cravo ferrando a estranheza das coisas (2017), Livro arbítrio (2015) e Poesia sem pele (2011). No dia 27 de novembro, em João Pessoa, Lau Siqueira lançou Horizonte mirado na lupa: cem poemas contemporâneos da Paraíba (Casa Verde, 2022), livro organizado por ele. Com 50 autores, a obra – que ainda conta com ilustrações de Flávio Tavares – apresenta uma amostra do que de melhor vem sendo produzido na Paraíba em matéria de poesia.
A partir de 12 perguntas, batemos um papo com ele acerca dessa antologia e da poesia paraibana.
1 – Primeiramente, gostaria de saber como surgiu a ideia de organizar uma antologia da poesia paraibana e quando se iniciou o trabalho de pesquisa que resultou nesse livro.
Há uns dois anos estou pesquisando para um projeto que eu chamo de Beraderos. Poetas que nasceram na Paraíba e que por diversos motivos foram morar e fizeram suas carreiras literárias fora. É o caso de José Chagas, que nasceu em Piancó e foi morar no Maranhão. Outro nome é o de Zila Mamede que nasceu em Nova Palmeira-PB e desenvolveu sua carreira em Natal, onde é muito reconhecida. Alex Polari, Milfa Valério, Leonardo de Almeida Filho, Carlos Moreira, Franklin Capistrano e muitos outros. Todavia fui atropelado por um convite irresistível. Visando o Mulherio das Letras que aconteceria em João Pessoa, a editora Casa Verde (da Laís Chaffe), me convidou para organizar uma antologia de poetas do RS e da PB. Isso foi lá para junho ou julho, não lembro bem. Mas o tempo era curto e só seria possível organizar um livro com poetas da Paraíba e foi o que fizemos. Desde então trabalhei duramente. Li e reli os livros que tenho. O trabalho foi facilitado pelo fato de possuir livros de todos e todas que haviam publicado e ainda acompanhar publicações diárias de algumas pessoas nas redes sociais. Foi uma pauleira, mas conseguimos um resultado que considero bom, mas sabendo que precisa ser ampliado. Nenhum olhar sobre a poesia pode ser definitivo, sob pena de cometermos erros imperdoáveis.
2 – Diante de um número grande e variado de autores e poemas disponíveis, quais foram os critérios utilizados para a seleção?
O principal critério diz respeito ao cenário atual da poesia paraibana. Tentei uma leitura que extrapolasse os limites geográficos. Fomos um pouco mais além. Buscamos o que eu chamo de “ambiente poético” do estado, onde encontramos poetas que nasceram aqui e vivem fora, nasceram fora e vivem aqui e até poetas que em algum momento moraram aqui e contribuíram para a cena poética local, como é o caso de Inês Monguilhot e mais ainda de Eliane Potiguara que não nasceu nem morou aqui, mas sua ancestralidade está no nosso Litoral Norte. Eliane não é paraibana porque sua família foi expulsa da terra antes do seu nascimento. Achei que estava na hora de devolver sua cidadania roubada. É uma homenagem para uma mulher indígena que lutou e venceu o permanente genocídio contra seu povo. O olhar para a diversidade foi o critério central e a partir daí buscamos o que nos parece representativo na cena atual, sabendo que se tratava de um universo bastante amplo e que essa seleção não se esgotaria num único livro. Na verdade, achei que seria necessário começar um mapeamento editorial da produção paraibana. Enfim, uma “obra aberta” que se permite e se propõe inconclusa. Um dos critérios foi ter livro publicado em mãos. Eu frequento lançamentos, compro livros. Pesquiso permanentemente. Não busquei a rigidez, mas o rigor que nos traz a diversidade da produção real. Aquela que não pode nem deve ser silenciada.
3 – Pelo exposto na apresentação e pelo que encontramos ao longo da obra, vemos que houve grande preocupação com a questão da representatividade. Este é um quesito que vem sendo bastante debatido no meio literário dos últimos anos, com posições diversas em torno dele, como você vê essa questão?
Exato. Esse debate ainda provoca algumas turbulências em alguns momentos. A meu ver são turbulências totalmente inexplicáveis porque a seara da literatura é um campo aberto para o debate. O olhar crítico é sempre necessário. Se há, por exemplo, uma literatura negra na Paraíba e não é de hoje, precisamos entender que segmentar é reduzir. Afinal, a poesia paraibana e brasileira é negra, indígena, cigana, feminina, masculina, trans, etc. A literatura contemporânea da Paraíba é de quem está produzindo. A realidade mudou, o mundo mudou. Se você observar duas das antologias mais representativas, a da Geração 59 e da Geração Sanhauá, verá que são marcos importantes, mas são antologias de poetas, homens brancos majoritariamente. Dessas duas, apenas a de 59 tem a presença de uma mulher, Liana de Barros Mesquita. Hoje isso não é mais possível. São muitas as poetas e “poetos” ainda jovens que já começam a publicar seus livros, a exemplo da Moama Marques, da Jennifer Trajano e da Aline Cardoso, por exemplo. São vozes poéticas das mais diferentes vertentes que desaguam no cotidiano da produção paraibana todos os dias.
4 – Essa antologia não é apenas de poetas paraibanos, mas de poetas paraibanos contemporâneos. Qual a importância de ler os contemporâneos?
Existem alguns mitos em relação à poesia. Dizem que ninguém lê poesia. Todavia em 2007 a pesquisa Retratos da leitura no Brasil aponta a região do Pajeú uma região onde a poesia é mais popular que livro religioso. Quando a pessoa viaja pelos sertões, percebe que isso não se limita ao Pajeú. A Paraíba é um estado de poesia. O Nordeste todo é poético. A poesia contemporânea neste primeiro centenário da Semana de Arte Moderna, nos parece que está sendo redescoberta. São muitos autores e autoras publicando no estado inteiro. No mais a poesia é sempre uma descoberta. Ninguém é obrigado a ler poesia e principalmente poesia contemporânea. Todavia, o prazer da descoberta de versos que nos causem algum impacto só a poesia contemporânea tem. Os clássicos são os clássicos. Ninguém pode ler ou deve ler apenas os contemporâneos. É necessário frequentar as tradições porque, na verdade, estamos sempre aprendendo a ler poesia. Às vezes de um mesmo poema extraímos diversas leituras.
5 – Entre autores nascidos na Paraíba, que moram no estado ou apenas viveram por um período nele, há algo em comum, o cenário poético paraibano. Esse universo da poesia paraibana é apenas uma amostra local da poesia brasileira ou apresenta algo próprio?
Eu vou mais longe. Acho que existem coisas em comum na Poesia de Língua Portuguesa de um modo geral. Até porque a poesia brasileira influenciou a poesia africana, por exemplo, e hoje bebe nas fontes africanas. Talvez mais que da poesia portuguesa. A riqueza da linguagem do povo nordestino é enorme, mas a maioria dos nossos poetas tem influências diversas e fazem parte em maior ou menor grau, do cenário atual da poesia brasileira. O que temos nesta antologia, por exemplo, vai do neobarroco ao cordel, passando pelo soneto e pelo verso branco que eu chamo de polimétrico – ouvi ou li de alguém e gostei do termo. Acho que o cenário poético da Paraíba não tem fronteiras, pois universalizou-se desde Augusto dos Anjos. É um estado de boa tradição poética. Terra de um poeta da dimensão de um Sérgio de Castro Pinto. Todavia acho que Zila Mamede, mesmo tendo vivido a cena potiguar, nasceu em Nova Palmeira e não devemos desistir de reconhecê-la como poeta paraibana porque ela é uma das mais importantes poetas brasileiras. A visão do poeta municipal, estadual e nacional é uma visão bastante ultrapassada. Toda boa poesia é universal e nascer em algum lugar significa nascer no mundo e viajar nas suas imensidões.
6 – A prosa paraibana também alcançou destaque nos últimos anos. Qual o lugar da poesia paraibana no conjunto da literatura produzida no estado?
Não digo que a prosa como um todo, mas o romance principalmente vem galgando espaços importantes no mercado. Isso com todas as limitações que este mercado oferece. Expoentes como Maria Valéria Rezende, Marília Arnaud, Bruno Ribeiro, mais recentemente, vem conquistando um bom espaço. Alguns poetas surpreendem, como Antônio Mariano que escreveu o excelente romance Entrevamento. Todavia a poesia corre numa outra direção. Não existe como comparar apenas porque o resultado comercial do romance é maior. A poesia não aceita nada senão o seu “deslugar” e a sua impermanência.
7 – Já foi muito comum escritores se referirem à Paraíba como provinciana na sua vida literária. Essa classificação é aplicável à realidade atual?
Moro na Paraíba desde 1985. Às vezes notei uma autoestima baixa por aqui, talvez até um certo provincianismo, mas um provincianismo cosmopolita. Diferente do provincianismo bairrista do Rio e São Paulo. A Paraíba pariu um dos maiores poetas de Língua Portuguesa, o Augusto dos Anjos. Temos atrasos imensos na política, nos costumes da classe média, mas nas artes sempre fomos vanguarda. Terra de Pedro Osmar e Unhandeijara Lisboa e Chico Cesar. Zé Ramalho e a psicodelia. Essa terra jamais será uma província até porque o eixo Rio/São Paulo quebrou na emenda faz tempo. Todo centro tem suas periferias e toda periferia tem seu centro. Em relação ao provincianismo o que eu acho é que existem pessoas provincianas, mas elas estão em todos os lugares.
8 – Além da diversidade étnica, de localidade e de gênero, encontra-se também grande variedade geracional. Vemos desde Sérgio de Castro Pinto, membro da Grupo Sanhauá, até autores que surgiram recentemente. De lá para cá, o que tanto mudou na poesia paraibana?
Sérgio é um mestre. Certamente influenciou e influencia todos os demais. Todavia, temos entre nós poetas da dimensão de um Chico Cesar que, logicamente, tem a sua música muito mais reconhecida que sua poesia, mas para além dos seus livros, suas letras também são pura poesia. Temos Braulio Tavares, Saulo Mendonça e um Amador Ribeiro Neto que certamente, enquanto professor do Curso de Letras da UFPB, ajudou na formação de alguns poetas que estão nesta antologia. O que mudou foi exatamente o alargamento das possibilidades e o aparecimento de poetas das mais variadas vertentes. O que mudou foi o mundo e a poesia veio junto. Por isso em 59 tínhamos apenas uma mulher na antologia e nesta temos a maioria, 26 ao todo. O que mudou é que a juventude indígena a partir da primeira década do ano 2000 foi fazer faculdade e agora está por aí recuperando a história oral das suas ancestralidades. O que mudou foi que a poesia negra aquilombou-se e hoje somos uma coisa só, densa, uma poesia que cresce aos olhos do Brasil.
9 – Hildeberto Barbosa Filho, certamente nosso maior crítico literário, estudando o itinerário da poesia paraibana, localizou quatro períodos referentes a ela. O último, iniciado nos meados da década de 1970, seria caracterizado, por um lado, pela preocupação formal e, por outro lado, pelo relaxamento e liberdade artística. A nova onda de autores e obras ainda se encontra nessa quarta fase ou estamos diante de uma quinta?
Hildeberto é um crítico literário militante. Estuda a poesia paraibana há anos. Não está nesta antologia apenas porque é analógico. Mandei o convite, mas ele deixou a resposta na caixa de rascunhos do seu e-mail. Outro dia numa entrevista para o Itaú Cultural respondi uma pergunta semelhante. Eu dizia que a poesia contemporânea é aquele silêncio antes da explosão. Marcelino Freire tem uma boa explicação para isso. Segundo ele, a literatura brasileira contemporânea é um liquidificador ligado. Ainda não é possível saber a vitamina que vai ser servida. Eu acho que a nova onda ainda não está se mostrando suficientemente incomodada para representar uma ruptura ainda que suave. Não acho que isso esteja posto. Ainda somos reféns das vanguardas sendo torturados pelo pau-de-arara do parnasianismo com o corpo cheio de vaidades inexplicáveis.
10 – Apesar de a literatura paraibana estar recebendo grande destaque, muitos autores seguem apontando dificuldades, principalmente editoriais e comerciais. Quais os principais desafios que a produção literária da Paraíba enfrenta hoje?
Os principais desafios têm a ver com os baixos índices de leitura e a ausência da literatura contemporânea nas escolas, não como imposição de um programa, mas como opção, como um cardápio para a juventude. Professores não leem, logo alunos também não leem, apesar de todo o benefício que a literatura oferece para a formação intelectual e profissional dos nossos jovens. Somente a literatura nos aproxima de um conhecimento fundamental que é o conhecimento da nossa Língua. As bibliotecas escolares, de um modo geral, são uma tragédia. Não se oferecem, quando existem, enquanto um lugar de fruição, de prazer. Geralmente é imposta como um lugar de castigo e isso afugenta o jovem da literatura e da leitura de um modo geral. O que me incomoda é aquela velha necessidade de ser reconhecido. Ser reconhecido por quem? Vida de poeta é dureza. Se estiver achando ruim, melhor fazer outras coisas. Poeta nunca terá vida fácil.
11 – Após ler, pesquisar e antologizar a poesia paraibana; o que você, ao mirar na lupa, vê no horizonte?
Eu vejo mais um ou dois volumes para poder dizer que temos finalmente um mapeamento da poesia paraibana contemporânea. Vou citar apenas alguns nomes que poderiam estar nesta antologia, mas que certamente estarão em outras. Daniel Rodas, Solha, Hildeberto Barbosa Filho, Luciana Queiroz, Dione Barreto, Violeta Formiga, Lúcio Lins, Marcos Tavares, Geraldo Vandré, Lucas Arroxelas (conhece?) e muita gente boa que está por aí. Aliás, já estou mergulhado em duas novas pesquisas. Uma delas para uma antologia do cordel contemporâneo da Paraíba e, talvez, um segundo volume para continuar mapeando a produção paraibana em toda a sua diversidade. A poesia contemporânea está em movimento. Estamos descobrindo bons poetas o tempo todo não há como colocar um ponto final nisso. Aliás, Amador Ribeiro Neto deve lançar em breve uma antologia da nova poesia paraibana.
12 – Você já ensejou a ideia de organizar outro volume com poetas paraibanos contemporâneos. O que podemos esperar desse projeto?
Eu sei que não vou conseguir organizar outra antologia sem mergulhar ainda mais na pesquisa. Espero conseguir fôlego para ir em frente. Não é fácil. Mesmo neste trabalho para o qual eu tinha um prazo determinado e curto, muitos nomes que eu gostaria de contar ficaram de fora. Eu só não lamentei porque não dei este trabalho por encerrado. Vamos continuar pesquisando, lendo a produção paraibana. Vamos ver como repercute esse trabalho e tentar uma nova publicação no próximo ano.
*Entrevista feita originalmente em Dezembro de 2022.