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Cães em Condomínio: o yorkshire valentão e o dogue alemão terapêutico

No condomínio recém-inaugurado, nada demais acontecia. No começo, havia poucos moradores, poucos problemas e quase nenhuma discussão. Sobravam vagas na garagem, a academia vivia vazia e o silêncio só era interrompido pelos latidos insistentes do único cão cuja existência era de conhecimento comum: Nietzsche, um yorkshire valentão da vizinha do 304.

Nietzsche era pequeno, barulhento e absolutamente convicto de que era um rottweiler. Sua coragem era inversamente proporcional ao seu tamanho. Latia com energia e uma certa arrogância canina para qualquer coisa que se movesse — ou deixasse de se mover. No início, ninguém se importava muito. Os moradores até achavam graça. Diziam que seus latidos eram ocasionais, pontuais e, de certa forma, até simpáticos. “Um toque de vida num condomínio muito parado”, comentou o postulante a namorido da “mãe-de-pet solo” do Nietzsche. Quando alguém se queixava, outros logo o defendiam com entusiasmo. “Cachorro late mesmo.”Ah, ele só tá fazendo o trabalho dele”, diziam.

Nietzsche, no entanto, era sistemático. Latia sempre que o elevador chegava no andar. Latia para passos no corredor, para o funk do vizinho do 202, para o som da “tchibum” quando alguém pulava na piscina. Latia até para o próprio rabo, numa espécie de looping acústico irritantemente frequente.

Até que tudo mudou com a chegada de novos moradores: uma família com um dogue alemão, mansinho, equilibrado e que servia como apoio emocional a uma criança atípica, com menos de 8 anos. Os moradores mais antigos não gostaram daquele “monstrão” como vizinho. Inclusive, a moradora do 304 foi a primeira a reclamar: “Como pode um cão desse tamanho? Ninguém precisa tolerar esse absurdo.”

Os condôminos se inflamaram e, o que antes era tolerância, virou incômodo. Primeiro, vieram os olhares enviesados para o novo vizinho. Depois, os cochichos nos corredores e, inevitavelmente, os comentários no grupo de whatsapp

O grupo, aliás, começou como “Vizinhança unida”, nome otimista e pacificador. Mas, após alguns episódios, passou a se chamar “Moradores em ação”. Um número menor de moradores se rebelou e saiu em defesa do dogue alemão e, por tabela, contra o yorkshire. O humor dos moradores era medido a cada mudança no nome do grupo de whatsapp. Entre outros, o que mais agradou foi “Cachorro não é gente”. Agora sim, um nome que refletia bem o clima entre os vizinhos.

Dos dois lados, as indiretas foram ganhando corpo. Bilhetes começaram a aparecer no quadro de avisos, com caligrafias diferentes, mas mensagens semelhantes: “Silêncio é um direito de todos”, “Tem lei pra isso, sabia?”, “Esse cachorro parece um cavalo”, “Amamos cães, mas preferimos o barulho do vento”, entre outros recadinhos maliciosos.

Houve quem tentasse mediar. O síndico, sujeito sem muita paciência, chamou os donos dos cães para um bate-papo. Na conversa com a vizinha do 304, tentou expor, com certa calma, as queixas dos condôminos, sugeriu horários de passeio mais estratégicos, mencionou tapetes higiênicos e até consultou a convenção do condomínio. Empenhou-se em argumentar que existia uma lei que proibia a circulação de cães nas áreas comuns, mas a moradora, astutamente, estava munida do Código Civil e da Constituição Federal — e foi enfática ao rebater o argumento. O síndico perdeu a paciência quando ouviu, com a mais desarmante serenidade:

— Meu filho só late de alegria.

Nessa hora, deu razão ao vizinho do cão terapêutico, que estava ali para ajudar na recuperação de uma família que precisava se manter unida para cuidar de uma criança atípica.

Foi então que alguém teve uma ideia. Uma moradora do 204, que passava as tardes observando tudo da janela, comentou no grupo:

— E se chamássemos um adestrador? Mas um de verdade, desses que entendem também de gente?

E ele veio. Alto, calmo, dono de uma voz serena que fez até o síndico amolecer o coração. Apresentou-se e foi objetivo logo de cara:

— Antes de entender o cão, preciso ouvir as pessoas.

Conversou com cada morador. Sentou com a vizinha do 304, que confessou, com os olhos marejados, que, desde a fatídica pandemia, Nietzsche se tornara a sua única companhia.

O profissional fez exercícios com o cão e ensinou à dona técnicas simples, mas eficazes. Envolveu os vizinhos em uma atividade inusitada: o “Dia do Silêncio Consciente”. Um domingo inteiro em que todos se comprometeram a minimizar ruídos, inclusive o som dos próprios julgamentos. E, para surpresa geral, Nietzsche latiu bem menos depois desse dia.

Aos poucos, os latidos diminuíram. Mas algo curioso aconteceu: os vizinhos começaram a se cumprimentar mais, sorrir no elevador, trocar receitas no grupo. O nome foi alterado novamente — “Harmonia Entre as Espécies”.

Nietzsche, o valentão, virou mascote do condomínio. E o dogue alemão, antes visto como ameaça, virou figura querida entre as crianças. A criança atípica do 302 passou a brincar, ainda que timidamente, com os demais. Até ganhou um desenho feito à mão de um vizinho artista, com dois cachorros — um grande, outro pequeno — dividindo o mesmo osso em paz.

O treinador? Despediu-se com um sorriso tranquilo:

— A mente dos cães é simples. A das pessoas, nem tanto. Mas com paciência, sensibilidade e respeito, todo mundo pode aprender a conviver. Incluindo os yorkshires e os cães gigantes.

Moral da história: os conflitos não eram sobre latidos. Nem sobre o tamanho do cachorro. Era sobre relacionamentos. Entre cães, humanos e suas frágeis ideias de silêncio e ordem, sempre cabe um pouco de empatia e camaradagem entre vizinhos.

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Francci Lunguinho

FRANCCI LUNGUINHO é treinador de cães há 18 anos, sócio-fundador da Escola Lobatos. Jornalista, escritor e âncora do Podcast Cães & Pessoas, também é criador e editor do portal de literatura Crônicas Cariocas. Mora no Rio com a esposa e dois cães da raça cocker spaniel. Pai do Matheus e faixa marrom de jiu-jitsu. É coautor do livro ‘O Treinamento Invisível: educar cães e transformar pessoas é muito simples’, de 2023, pela editora Arribaçã.

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