Crônicas

O BICHO LIXO

As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco.

Assim termina A revolução dos bichos, brilhante livro de George Orwell. Animais que se rebelam contra a opressão humana, conquistam a ideia de liberdade para, com o tempo, perceberem que apenas passaram seus destinos para outro opressor: o porco. Um animal, portanto.

Ou humano?

O bicho homem, complexo ser, vive a transformação diária, tal qual um camaleão na esperança de alcançar a presa ou na tentativa vã de evitar a morte. O bicho homem serpenteia, mergulha, agita-se na areia.

O bicho homem, político ser, vive maquinações maquiavélicas e porta-se como um bando de hienas à espreita da caça ou do resto. Elas riem. Elas gargalham. Contudo só aguardam o momento para despedaçar a carne e revelar sua ferocidade.

O bicho homem, flexível ser, vive entre montanha e mar: voa, nada, arrasta-se e pula. É bípede, mas locomove-se como se tivesse mais e mais pernas. Voa, mesmo sem asas. Escala penhascos como se tivesse garras.

Mas eis que o bicho homem vira bicho de lixo: rato, abutre, urubu. O bicho homem ergue casas de lixo. O bicho homem vive sobre o lixo. E tudo está bem! E tudo vai bem! O lixo se acumula e o homem se reproduz.

Mas eis que chove e chove muito e chove forte sem parar e sem descanso em um lamento sem sentimento. Um lamento só. Águas brutas. Águas raivosas e encardidas. Depois lama e mais água, água negra. Águas e punhal. Águas muitas e sem igual.

E tudo vai ao chão: casas, sonhos, brinquedos e infância. Como em uma explosão: pedaços, farrapos e depois uma poeira mansa. E depois o silêncio que perturba mais que os gritos. Mais que o choro. Confusão. Palavras sem sentido.

Orwell, com olhar crítico e sabedor das coisas, revela a grande fera. A maior e mais temível criatura: o bicho homem. Com discursos afiados e palavras polidas deu-se a inquietação. Com armas e punhos e propaganda deus-se a revolução.

Mas quantos ainda têm que morrer ou chorar ou fugir para que se estabeleça a paz? Mas quantos homens terão que se submeter ao lixo? Quantos homens serão tratados como bichos? Quantos homens serão vistos como lixo? Lama e miséria e caos. Desgoverno, desesperança, caminho fatal.

Os jornais, em manchetes diárias, contam os mortos e mostram mais fotos. Na televisão, homens engravatados ou porcos ou nem isso, usam palavras bonitas, fazem ar de pena, de compaixão, mas não estendem a mão.

Outros homens, cansados do esforço diário, contentam-se com o seu lar. Não sonham ou sonham pouco, mas vivem com o que há: casa pequena, apertada, lixo no meio, no fim ou na entrada.

E assim está tudo bem! Assim tudo está bem!

Orwell, se brasileiro fosse, teria, talvez, feito uma história outra:

“As criaturas de fora olhavam do lixo para o homem, do homem para o lixo e do lixo para o homem outra vez; mas já era impossível distinguir o que era homem, o que era lixo…”

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Campista Cabral

Campista Cabral, leitor assíduo dos portugueses Camões e Pessoa, do poetinha Vinícius, herdou deles o gosto pelo soneto. A condensação dos temas do cotidiano, assim como a reflexão sobre o fazer poético, parece procurar a sua existência empírica ou, nas palavras do poeta, um rosto perfeito, na estrutura do soneto. Admirador e também leitor obsessivo de Umberto Eco, Ítalo Calvino, José Cardoso Pires, Lobo Antunes, do mestre Machado de Assis e do moçambicano Mia Couto, retira dessas leituras o gosto pela metalinguagem, o prazer em trabalhar um espaço de discussão da criação literária em sua prosa. A palavra, a todo instante, é objeto base dos contos e das crônicas. A memória, o dia-a-dia, o amor, as sensações do mundo e os sentidos e significados da vida estão presos nos mistérios e assombros da palavra.

Um comentário

  1. Infelizmente, nada tão verdadeiro quanto o conteúdo do texto. Apesar de toda a sujeira humana e bestialidade humana ainda somos capazes de produzir arte em forma de palavras como na crônica que acabei de ler.

    Grande abraço, Cabral!

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