Conto de Quinta

  • Cecília, Paulo e Lucas

    Lucas tem sete anos e mora com Cecília. Cecília é sua mãe. Lucas passa os fins de semana na casa de Paulo. Paulo é seu pai.

    Paulo e Cecília não moram juntos há muito tempo, desde que Lucas tinha um ano. Ou desde que Paulo deu a primeira e única bofetada no rosto de Cecília. Cecília ficou três dias com o olho direito inchado. Saiu sangue de seus lábios. Paulo e Cecília brigaram na frente de um juiz pela guarda de Lucas. Cecília ganhou, era a mãe do menino e esse foi o desfecho natural. Cecília e Paulo quase não se falam, só o necessário e só quando o assunto é Lucas. A escola de Lucas, a saúde de Lucas, as roupas de Lucas, os sapatos de Lucas, o videogame novo de Lucas.

    Paulo vai à casa de Cecília toda sexta-feira à noite para pegar Lucas e todo domingo no fim da tarde para devolver Lucas. Lucas passa os fins de semana jogando videogame e vendo filmes com o pai. Os dois gostam de filmes com muita ação. Quando o bandido toma um tiro, Paulo grita Chupa! Lucas repete Chupa! Lucas se diverte muito vendo filmes com seu pai.

    No último domingo, quando devolveu Lucas para a mãe, Paulo falou: O menino tá com caspa e tem dificuldade com a matemática. Paulo falou essas coisas sem olhar nos olhos de Cecília, como se o problema fosse dela. Cecília passou a semana inteira tentando acabar com as caspas de Lucas. Comprou xampu anticaspa, loção anticaspa, creme anticaspa. Gritou com ele, atrás da porta fechada do banheiro, para esfregar bem a cabeça e o cabelo no banho. Também gastou toda a semana discutindo com Lucas para largar a porcaria de videogame e estudar matemática. Lucas detestava matemática e ficou com raiva de Cecília. Ficou com muita, muita raiva de Cecília.

    Nessa sexta à noite, enquanto Paulo o esperava no carro, Lucas não quis se despedir de Cecília com um beijo, como costumava fazer. Só falou: Estou com raiva de você, vou pedir pro meu pai te cobrir de porrada.

  • O meu amiguinho

    Sei que ele está indo embora, é só uma questão de tempo. Está mais fraquinho a cada dia, alimenta-se mal, come sem apetite. Cabisbaixo, calado, triste, tão diferente de outros tempos, não passa agora de uma sombra do que costumava ser. Sempre achei chato olhar para ele pelas grades da gaiola, mas com o tempo me habituei. Ainda que possa parecer egoísta, eu ficava reconfortado por saber que ele estava ali, pertinho de mim. Sua companhia me fazia bem e eu só posso agradecer por tanta generosidade. Com a presença dele, a solidão pesava menos. E, quando ele cantarolava, eu juntava minha voz à dele e éramos os dois mergulhados numa só melodia.

    A vida prática, porém, ensina que não é bom tomar-se de tanto carinho pelos bichinhos de estimação. Quando eles morrem, a gente fica só, desarvorado. A gente fica sem chão e tudo passa a não ter mais sentido. Como acontece agora. Meu amiguinho está indo embora e eu me sinto muito triste. Perdi a melodia, minha garganta secou. Minhas penas vão logo perder a cor e o brilho. Agora só penso com qual dos dois filhos do meu amiguinho eu vou ficar. O mais velho nunca se importou comigo. Talvez o mais novo queira me levar, não sei.

  • Coisa de louco

    O que comentam é que Gabriel não tinha como saber a verdade, já que fora criado por freiras num orfanato. Não conheceu os pais nem ninguém de sua família biológica. Mal tinha nascido quando uma vidente, dessas que ganham a vida enganando gente ignorante, sussurrou no ouvido da mãe:

    — Essa criança nasceu com olho grande, a cabeça tem um formato estranho e prevejo tragédia no futuro. Livre-se dela o quanto antes.

    Foi o que fez a mãe de Gabriel: entregou-o às freiras, com a concordância do marido. O tempo passou e Gabriel ficou no orfanato até os onze anos. Um dia falou para as freiras com aquele sorriso irresistível:

    — Valeu, meninas, mas agora eu vou vazar. Tô indo, muito obrigado por tudo.

    E jogou a perna no mundo. Vagabundeou até os dezesseis, morou na rua, viveu de pequenos furtos, fumou umas quantas pedras e se deixou levar pela vida. Num dos assaltos em que se meteu, o homem gordo não quis lhe dar a carteira e o celular e Gabriel não hesitou em despachar o tipo com dois tiros na altura do coração. Escondeu-se por um tempo até completar dezoito anos.

    Já maior de idade, com o corpo ganhando contornos de homem feito, percebeu que agradava ao sexo oposto e conseguiu emprego como stripper num clube noturno. Todas as noites se vestia de marinheiro e se despia no palco para o aplauso e o grito das mulheres em êxtase. Foi quando conheceu uma mulher madura, viúva e muito rica, que lhe prometeu dinheiro e proteção em troca de carinho. Gabriel logo foi morar com a amante e em poucos dias virou o homem de confiança da dona da casa. Passou a desfrutar das delícias da vida abastada: dinheiro, carros, passeios, viagens, restaurantes, festas.

    Quando menos esperava, Gabriel recebeu a visita de dois policiais, que tinham provas de que ele assassinara o homem gordo, anos antes. Suas impressões digitais na roupa do morto o denunciaram. E, como o destino não gosta de deboche, o delegado cismou de fazer um exame de DNA em Gabriel e no gordo e o resultado foi uma tragédia, talvez única no mundo: comprovou-se que, na realidade, o homem assassinado era o verdadeiro pai de Gabriel. A prisão, então, era o seu inexorável destino e, sem alternativa, Gabriel pediu ajuda à velha amante protetora. Em vão. A mulher não era outra senão a viúva do homem gordo e, portanto, sua mãe biológica.

    — Meu Deus, que história inacreditável! E Gabriel, o que foi feito dele?

    Pegou prisão perpétua. Ficou que nem louco. E cego. Mal entrou na cela, num acesso de fúria incontrolável, arrancou os próprios olhos para não ter que encarar a realidade: ele tinha matado o pai e ido para a cama com sua mãe.

    — Que tragédia! Não me recordo de ouvir uma história parecida com essa em toda a minha vida.

    Eu também não. Coisa de louco, não?

    — Nem me fale. É de pôr os cabelos em pé.

  • Rebentada

    Caminha ereta, embora isso custe e doa. Os dois meninos, de cabeças enormes e pernas finas, acompanham como podem o ritmo da mãe. Parecem frangos doentes, ciscando inutilmente num terreno seco. Andam os três sobre uma terra rachada e poeirenta. O horizonte continua distante, tão distante quanto no dia em que iniciaram a jornada a pé. O sol permanece no alto, maltratando os olhos, a pele e a esperança.

    O menor dos meninos, vencido pelo cansaço, senta-se numa pedra e curva a espinha para a frente, até que seu peito quase toque o chão. Visto de longe, parece uma fruta que apodrece aos poucos, mas de perto é só um menino cansado, sujo e com fome. A mãe o ajuda a se levantar e o carrega nos braços, como se levasse um punhadinho de folhas secas caídas de uma árvore, embora naquelas bandas não haja árvore, só deserto.

    Levam já quatro dias andando e ainda faltam mais quatro para chegarem ao campo de refugiados. O outro menino, mais velho e mais esperto, sabe que não vai aguentar. Resolve interromper a caminhada e põe-se de cócoras, as mãos sobre a cabeça. Neste caso não há diferença se visto de perto ou de longe: é um menino que desistiu.

    A mãe põe o pequeno no chão e pensa. Avalia que será impossível avançar com os dois no colo, não terá forças. Levanta os olhos para o céu e chora sem lágrimas, rebentada por dentro. Sabe que vai morrer sob o punhal afiado da escolha, mas não hesita. Olha para um, depois para o outro e recomeça a caminhar, puxando só um deles pela mão.

  • O homem da casa

    Eduardo acorda cedo e, como de costume, não faz a cama. Não tem de se trocar, dormiu de roupa. Toma um café preto e ralo e sai de casa tremendo de frio. Não calçou o Nike, preferiu o sapato velho, já que sabia bem aonde tinha de ir. Como companhia, um cajado pequeno como seu tamanho, dois sacos vazios de supermercado e um lenço que sua mãe lhe amarra no pescoço. Em determinado momento esse lenço vai servir para cobrir seu nariz e sua boca: lá há gases, cheiros, micróbios e outras porcarias. Era o lenço de seu pai, agora é seu, pois virou o homem da casa. A mãe grita da porta: “Não esquece de cobrir os olhos também e não respire a fumaça.”

    Depois de andar por mais de trinta minutos, Eduardo chega ao monte enorme. Percebe que está atrasado e quase não há onde fuçar: mais de cinquenta meninos chegaram antes e fuçaram primeiro. Mesmo assim, Eduardo cobre o rosto com o lenço, mete os pés no monturo e com o cajado espanta os urubus.

  • Disputa

    Não é sempre que acontece, só às vezes, quando aquilo que o Camarão traz não é suficiente para dividir entre os dois.

    Eliseu e Célia primeiro ficam nervosos como bichos famintos dentro de uma jaula. Amaldiçoam o Camarão, a mãe dele e toda a família. Que morram todos! Depois passam à exasperação e, no minuto seguinte, partem para o confronto físico. Os dois rolam pelo chão, aos tapas. Cospem um no outro. Esse confronto nem de longe se assemelha ao que acontece quando Eliseu volta para casa bêbado e chama Célia de “cadela comunistazinha, vagabunda” e ela devolve o xingamento com “chupa-rola, porco reacionário”. Isso é quase todo dia, e isso não é nada. Casamentos, ou qualquer outro relacionamento afetivo, como se sabe, costumam atingir graus de degradação e humilhação que pouca gente imagina.

    O que ocorre, porém, quando o Camarão joga sujo e não faz o serviço direito é uma hecatombe entre duas pessoas que há horas esperam a entrega num quarto mal ventilado e fedorento de suor. Quando a entrega é feita e não é o bastante para os dois, Eliseu e Célia, cada um com sua força, dão início ao confronto furioso e violento. Trocam murros, dão pontapés e cravam as unhas no rosto do outro, no pescoço do outro, na virilha do outro. As cadeiras voam pelo cômodo, os copos espalhados pelo chão estilhaçam, as garrafas rebentam nas paredes. Um ameaça o outro com faca de cozinha ou pica-gelo, o que estiver à mão. Ainda não chegaram a se ferir seriamente. A se ferir de morte, não, ainda não.

    Depois do exaustivo embate de minutos, Célia, muito mais débil do que Eliseu, sabe que desta vez perdeu a parada e se encolhe num canto do quarto, com as unhas cheias dos cabelos que arrancou da cabeça do marido. Chora de dor com o lábio rachado depois das muitas bofetadas que recebeu. Limpa com o dorso da mão o sangue que escorre de uma das pálpebras e engole o ranho que sai do nariz e desce até a boca. Soluça alto e chama Eliseu de “veado de pau pequeno, lambedor de coturno”. Está convencida de que agora não adianta fazer mais nada a não ser xingar.

    Eliseu olha para a mulher encolhida no chão, encostada à parede. Sente pena. Percebe o cheiro de sangue misturado ao de suor no quarto. Abre uma fresta da janela e olha para fora, mas não lhe interessa o que acontece lá fora. Faz o gesto automático de sempre: entrega um lenço para Célia, indicando a ferida na pálpebra. Ela aceita e pressiona o pano contra o olho para estancar o sangue. “Foda-se o meu olho”, diz ela com o que lhe resta de lábios.

    Ele, o mais forte, agora já calmo e silencioso, senta-se na beirada da cama e, com a ajuda dos próprios dentes, amarra a tira de borracha no braço e busca, apressado, uma veia que ainda não esteja seca. Enfia a agulha, recebe o baque, sente o baque, saboreia o baque. Fecha os olhos e respira fundo.

  • Dois homens bons e generosos

    João Alfredo colhe a cada final de semana as verduras e legumes que semeia. Sua horta é cuidada com esmero, o solo é fértil e o produto de seu trabalho é considerado o melhor do povoado. A barraca que tem na feira é concorrida, todos apreciam sua colheita. Como não tem mulher nem filhos, ele costuma distribuir entre os vizinhos e amigos os vegetais que não vendeu. Todos diziam dele:

    — João Alfredo é um homem bom e generoso e as verduras e legumes que saem de sua horta têm muito boa qualidade.

    Assim, quando vai à padaria comprar pão para o café da tarde, quando passeia pelas ruas do povoado ou quando decide descansar e tomar um copo de vinho no Bar do Massa, João Alfredo é sempre saudado com simpatia por quem o encontra:

    — João, suas verduras e legumes são deliciosos. Sempre frescos e tenros. A cada semana se tornam melhores.

    ***

    Eu também planto e colho verduras e legumes na horta que tenho no quintal de minha casa, mas o meu solo não é tão fértil quanto o de João Alfredo, e por isso a colheita não é tão viçosa. Mesmo assim, é boa para consumo. Na feira, pouca gente frequenta a minha barraca. Também não tenho mulher ou filhos, de maneira que me sinto bem distribuindo entre meus vizinhos e amigos os produtos que sobram. Por causa disso sempre me considerei um homem bom e generoso. Mas quando vou à padaria comprar pão para o café da tarde, quando passeio pelas ruas do povoado ou quando decido descansar e tomar um copo de vinho no Bar do Massa, as pessoas não se mostram simpáticas:

    — Paulo Clemêncio, suas verduras e seus legumes são uma porcaria. Ninguém em casa gosta delas. Acho que nem os porcos gostam.

    Sempre que ouço reações assim fico com um nó na garganta. Mordo meu lábio para disfarçar o desgosto e a vontade de chorar.

    ***

    O tempo passou e todos ficamos mais velhos, inclusive João Alfredo e eu. As verduras e os legumes dele continuaram sendo um sucesso entre as gentes do povoado. As minhas, como sempre, um fracasso. Então, um dia, quando João Alfredo lavrava seu solo fértil e distribuía as sementes e mudas de verduras nos buracos que fazia na terra, eu me aproximei dele por trás e abri sua cabeça com a ponta de uma pedra. João Alfredo caiu e nunca mais se levantou. Com as provas coletadas pela Polícia Civil, um juiz e dois peritos forenses concluíram que João Alfredo tinha tropeçado e batido a cabeça numa pedra. Pobre João Alfredo, estava tão velhinho!

    ***

    Neste fim de semana colhi as verduras e os legumes de minha horta, vendi uma parte na feira e a outra parte distribuí entre os vizinhos e amigos. Depois fui comprar pão para o café da tarde, passeei um pouco pelas ruas e resolvi tomar um copo de vinho no Bar do Massa. Algumas pessoas se aproximaram:

    — Paulo Clemêncio, suas verduras e seus legumes são horríveis, intragáveis. Que saudade do João Alfredo, Deus o tenha!

    ***

    Na semana seguinte joguei veneno para ratos nas verduras e nos legumes que vendi na feira e nas que distribuí entre os vizinhos e amigos. Em poucos dias, grande parte da população morreu. A Polícia Civil investigou e, diante das provas coletadas, um juiz e dois peritos forenses me acusaram de assassinato. Fui condenado a trinta anos e levado à prisão, onde passaria os anos que me restavam de vida. Pensei que não fosse suportar, que morreria de tristeza, mas estava enganado.

    ***

    Estava muito enganado. O diretor do presídio me concedeu um pedacinho de terra ao lado do pátio, para que eu fizesse uma horta e plantasse e colhesse verduras e legumes, atividade que eu sabia executar com esmero. A vida na prisão não tem sido ruim: alimento-me bem, durmo com tranquilidade e ainda cuido da minha horta. Como não tenho a feira para vender nem vizinhos e amigos a quem distribuir meus produtos, compartilho tudo com meus colegas de penitenciária e com os carcereiros.

    Aqui me consideram um preso bom e generoso. Assim, quando passeio pelo pátio, quando descanso num banco para ver cair a tarde ou quando fumo calmamente um cigarro depois do almoço, os companheiros se aproximam:

    — Paulo Clemêncio, suas verduras e legumes são uma verdadeira delícia. Estão melhores a cada semana.

    É quando fecho os olhos e sorrio para mim mesmo, satisfeito e certo de ser um homem bom e generoso.

  • A trama

    Assim que chega a manhã, as esposas dos pescadores se dirigem às docas e ali se sentam, os pés dentro d’água. Todas trazem linhas e agulhas de tamanhos variados e se dedicam à tarefa de fechar os buracos das redes que seus maridos utilizam no trabalho. Cantarolam enquanto cosem, e cosem com diligência e sem distração: ao entardecer, seus homens precisarão das redes prontas antes de saírem para o mar em busca do alimento e do sustento de todos os dias.

    Em determinados pontos da trama, que escolhem cuidadosamente tal qual um segredo bem urdido, elas substituem a linha de tecer por fios dos próprios cabelos, arrancados da cabeça num puxão seco e dolorido, e prosseguem a costura, embaladas pela cantoria que sai das dezenas de bocas em uníssono. Dessa maneira, um pequeno pedaço de cada uma — seus cabelos — acompanha o marido quando o barco em que ele está toma a direção do desconhecido, noite e mar adentro.

    Na manhã seguinte, repetem o ritual da costura e da cantilena e, quando necessário, em conjunto, solidárias, tratam de decapitar as sereias que, por atrevidas e insolentes, sem serem convidadas, aparecem na rede de vez em quando, no meio de centenas de milhares de sardinhas e outros peixes maiores. Deram-se mal, as tais, se tinham por objetivo alcançar a terra firme para seduzir homens que têm dona.

  • Carta para Maria Santa

    Maria Santa, preciso muito lhe dizer umas coisas. Coisas que andam acontecendo aqui em casa desde que você foi embora. Coisas incríveis, sabe? Os primeiros que vi estavam atrás da geladeira. Eu os encontrei numa manhã de setembro, justo naqueles dias de passagem do inverno para a primavera, quando a solidão fica mais pesada. Lembro-me de que fazia um mês que você tinha partido e eu estava me sentindo tão só, tão só, que resolvi limpar toda a casa para me ocupar. Arrastei a geladeira e os vi.

    Eram dois. Não fiquei muito surpreso quando os encontrei. Lembra-se de que falávamos que nossa casa era muito úmida? Além disso, tem chovido bastante nas últimas semanas. O barulho da água batendo na janela sempre me desperta de madrugada, e não pego mais no sono até amanhecer. Não consigo me acostumar a dormir sozinho, Maria Santa, e qualquer bobagem, como o barulho da chuva, faz com que meus olhos permaneçam abertos.

    Poucos dias depois vi mais alguns, debaixo da mesinha de canto e também sob o sofá. Estava arrumando os livros na estante, lembrando-me de como fazíamos isso juntos, e encontrei uma verdadeira colônia deles atrás do móvel, e já estavam se espalhando pelo rodapé. A casa está infestada de cogumelos. Como crescem rápido! Brotam do assoalho como se isso fosse natural. Não consigo compreender, Maria Santa. Parecem suculentos e apetitosos, e poderiam muito bem fazer parte de uma saborosa refeição. Aliás, pensei nisso: convidar você para jantar e conversar. Você ficaria surpresa com as habilidades culinárias que adquiri desde que você foi embora. Procurei na internet o melhor modo de preparar uma boa refeição com essas coisinhas, mas não encontrei nada sobre essa espécie que há aqui. E se forem venenosos?

    À noite, quando procurava meus chinelos, descobri outro grupo deles embaixo da cama. Eu sei, Maria Santa, esta casa sem você é um caos, não acho nada, onde estavam meus chinelos? Não consegui encontrar. E digo mais: na manhã seguinte, ao pegar uma camisa limpa, vi dezenas deles dentro do armário. Se você estivesse aqui, Maria Santa…

    Eles crescem em qualquer canto, sobre a escrivaninha, no teto, no banheiro, sob a pia da cozinha. Até comprei um livro que falava deles, mas, novamente, nenhuma informação sobre essa espécie. Acho que tenho aqui um tipo ainda desconhecido de cogumelo. Vou chamá-lo de “cogumelo do homem só”.

    São bonitinhos e quase não me dão trabalho. Eles não são como as plantas normais, que exigem cuidado e atenção. A essas eu me dediquei. Eu cuidei delas, sabe? Coloquei água e as deixei tomando sol para que, quando você voltasse, não as encontrasse murchas. Mas sempre me esquecia de que já havia regado, e punha água novamente. Um dia morreram afogadas pelo excesso de cuidado meu. Sob suas mãos, Maria Santa, seguramente isso não teria acontecido. Os cogumelos, não, eles não precisam de nada. Eles são assim, crescem em qualquer lugar sem ajuda, sem que lhes peçam. Apenas brotam. Gosto de acordar de manhã e ver os novos que surgiram durante a noite.

    Sempre converso com eles. Falo sobre você. Digo que, um dia desses, você cruzará a porta e os conhecerá. Também ponho músicas para tocar, aquelas que ouvíamos juntos. Às vezes leio poemas, principalmente os do Neruda, daquele livro que você me devolveu sem nunca ter lido. Eu sinto que eles gostam e estão agradecidos. E crescem. Um deles, que brotou no canto da sala, já está com quase meio metro de altura. Eu o utilizo como mesinha para o telefone e para o café. Olho para eles enquanto as horas correm. Mas as horas são lentas, Maria Santa. Desde que você me deixou, uma hora leva duas para passar.

    Mesmo gostando dos cogumelos, às vezes fico angustiado com a casa desse jeito, inteiramente tomada por eles. Tenho de fazer contorcionismo para me movimentar e andar até o quarto. Não consigo mais sair para a rua, porque eles já bloquearam o corredor e a porta. E as janelas também. Às vezes, sem querer, piso num deles e ouço seu gemido de dor, parecido com o som que sai do meu peito.

    Não há mais espaço para mim aqui.

  • Persistir na presença solitária!

    Não há necessidade de esperar tanto tempo para cair na real, ou no chão, como ocorreu com o meteorito contrito ordinário, santa filomena, que se alojou em nosso planeta após vagar solitariamente por 4,5 bilhões de anos no deep space.

    Ao esculpir sua vida dura como pedra, não sonhe com o além túmulo por causa de uma saudade imensa de alguém que se foi, porque o indivíduo “morde e assopra” e deixa os que ficaram por aqui “pisando em ovos” com uma incômoda impressão de impotência.

    Por isso, viver com a expectativa que somente após a morte exista amor e felicidade, pode ser arriscado para seus projetos nesse plano de agora.

    Erros fazem parte da escrita inclusive dos gênios, muitas experiências boas nasceram após uma lista de modificações durante o percurso de uma jornada.

    Leonardo da Vinci, por exemplo, esculpiu Moisés com chifres, após ler na Bíblia os detalhes de como ele desceu da montanha. Leonardo foi vítima de uma tradução mal feita da Bíblia, escrita por São Jeronimo, que ao invés de escrever Karan sobre a descida de Moisés, que significa adornado por feixes de luz, escreveu Keren, cabeça adornada por chifres. 

    E assim, nós, comuns mortais, apreciamos a escultura de Moisés com dois pequenos chifres na cabeça, tentando imaginar o porquê dessa alegoria acompanhando o profeta e líder mais importante da tradição judaico-cristã. 

    Dessa mesma forma o erro de qualquer outro pode ser a origem de uma atitude mal interpretada por toda uma vida.

    Mas não é por isso que você deva se amargurar e isolar de todos após alguns eventos de magnitude duvidosa. 

    No Japão os eremitas do século XXI que vivem numa caverna tecnológica, são chamados hikikomori que seria algo como “puxando para dentro”, de si. 

    Eles acabam por construir uma cova em suas almas de tanto persistir na presença solitária com seu umbigo. 

    A vida desses indivíduos é marcada pela exigência de um padrão que dificulta a ação de quem está ao redor. 

    Por isso que esse extremo não é bem-vindo para nossa saúde mental e social. 

    Bons e maus exemplos não nos tornam donos das coisas, as coisas é que são donas de nós, e a vida acaba por girar em torno delas, que sequestram as emoções por instantes longos e amargos.

    Como o leitor é um autor duplicado, seja o centro de suas metas e sonhos virais, bem antes que o todo-poderoso lhe tome em seus braços, mesmo que você já tenha pago um preço caro em suas escolhas.

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