Conto de Quinta

  • A difícil arte de aceitar afeto

    O homem com a cicatriz no rosto viu quando ela ia descalça e mancando pela estrada. Parou o carro e a pôs no banco de trás, encolhida feito um novelo. Ela tremia de frio, ele a cobriu com uma manta. Dirigiu o mais devagar que pôde, nenhum solavanco a perturbasse. Não trocaram palavra. Em casa, deu-lhe banho quente, segurando-a pela nuca, como a um defunto. Observou que ela tinha novas tatuagens, gostou de algumas, não de todas. Preparou-lhe um mingau suave de aveia, para não machucar seu estômago, sabe-se lá desde quando não comia. Meteu-a na cama em silêncio, cuidando para não tirá-la do torpor em que estava imersa. Foi até o jardim e queimou as roupas que ela vestia. Eram roupas de homem. Enormes, como as dele.

    Deitou-se no sofá da sala e demorou para pegar no sono. Pensou e pensou, mas não conseguia chegar ao que poderia ser a melhor solução para tirá-la do poço em que tinha se metido. Passou a mão pela cicatriz no rosto: não deixaria que ela o machucasse de novo.

    Pela manhã, o homem com a cicatriz no rosto acordou no sofá já sabendo que ela tinha ido embora, certamente vestindo roupas dele, como da última vez. Também sabia que, no espelho do banheiro, escrito com batom vermelho na caligrafia ainda infantil, encontraria o pedido para que não voltasse a socorrê-la: Por favor, não me ajude mais. A mesma súplica que, horas atrás, o homem da cicatriz no rosto tinha ouvido dos lábios dela antes de se deitar no sofá e mergulhar no sono mais profundo de toda a sua vida.

    Nem ele nem a filha sabem prever quando será o próximo encontro entre os dois.


  • Tatiana está sangrando

    Era perto do meio-dia quando Tatiana saiu correndo da escola. Ela tinha ainda que almoçar antes de se encontrar com a Ju. Estava atrasada, e isso a fazia suar mais. Passou no meio dos meninos a tempo de escutar “A gorda tá com pressa?” Olhou para a frente e correu mais. Não dava tempo de chorar. “Corre mesmo, gorda, pra ver se perde meia tonelada”, ela ouviu antes de cruzar o portão e ganhar a calçada. Subiu no ônibus e procurou um assento no fundo da condução, onde ninguém a visse. Olhou pela janela e aí, sim, chorou um pouquinho. Decidiu não ir na Ju, depois ligaria para a amiga. Faria sozinha hoje.

    Entrou em casa, gritou “Cheguei!” e foi direto para o banheiro. Trancou-se, pegou o estilete na mochila e começou. Doeu tanto, tanto, no corpo e no coração, mas vai cicatrizar. Tatiana sabe que todas as feridas cicatrizam mais cedo ou mais tarde. Fica a marca por um tempo, depois some — um fio de sangue que corre pelo joelho, uma trilha que nasce no ponto do corte e busca, pela gravidade, alcançar o chão. Uma gota maior e mais robusta dilata o fio vermelho e morre no meio da gaze que a mão aperta contra a pele, estancando a hemorragia. A água fria da torneira termina de limpar o resto, só permanece aquele tom avermelhado e difuso, a mancha que denuncia a mutilação, a identidade do flagelo imposto por ela própria.

    Tatiana sabe que isso está errado, mas não consegue parar de errar. A mãe chama “Almoço pronto. Tá morta aí dentro?” Tatiana quis gritar “Tô”, mas só disse “Já vou”. Não queria ver ninguém naquele momento, não precisava de testemunhas na hora de lavar e expiar o que os outros consideravam pecado. Tampouco precisava que mais uma vez, outra vez, a julgassem e lhe apontassem com o dedo. Seca as pernas com papel higiênico e puxa a saia para baixo, escondendo os sinais.

    Semana que vem, quando a marca de hoje já estiver velha, uma nova será feita, porque ela precisa de ajuda e, na hora da ajuda, ninguém aparece. Só aparece a Ju, tão gorda, tão vesga, tão infeliz como ela.


  • A casa de Cortázar, tomada

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    em homenagem ao conto “Casa Tomada”, de Julio Cortázar (1914-1984), escritor argentino

    Gostamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (mesmo que hoje as casas antigas sejam pouco valorizadas), guarda as recordações de avós e bisavós, pais e toda a nossa infância. As paredes sabem de nós, quem fomos, quem somos. O eco das vozes do passado ainda nos enchem de encantamento. Houve felicidade aqui — ainda há.

    Minha irmã Irene e eu nos acostumamos a viver sozinhos. Não há mais ninguém da família entre nós, só a lembrança deles. Temos nossa quieta solidão e isso nos basta. Chegamos à meia-idade com leveza e despreocupação. Em nenhum momento pensamos em sair daqui e viver em outro lugar. Isso nunca nos passou pela cabeça, já que nosso corpo e nossa alma não saberiam viver longe destas paredes. Esta casa é um celeiro de lembranças e somos dependentes delas. Também somos agradecidos pelo que elas nos proporcionam. Há recordações que, com o passar do tempo, se diluem na memória e não sabemos distinguir muito bem se foram reais ou se estiveram a ponto de sê-lo ou se foram fruto de nossa imaginação. Há outras, entretanto, que são tão nítidas que parece que aconteceram ontem mesmo. O que sabemos, Irene e eu, é que aqui é o nosso lugar e aqui ficaremos até o dia em que deixe de ter importância o que queremos ou não.

    A crise econômica que hoje assola a nação também nos pegou, e isso foi inevitável. O país inteiro sofre com a má administração do dinheiro público, por que conosco seria diferente? Decidimos vender alguns móveis, ainda que nos doesse. Tínhamos que incrementar nossa renda de aposentadoria para manter esta casa tão grande. Vieram uns homens para retirar algumas peças, deixando vazios vários cômodos. Sentimos muito, mas preferimos assim. Os vasos com as plantas ornamentais também renderam um bom dinheiro, assim como alguns quadros e uma parte das louças e dos objetos de prata e cristal. Nem vou falar dos livros franceses; separar-me deles doeu muito em mim. Eles eram como um tesouro que eu guardava com o máximo cuidado. Irene chorou quando tivemos que nos desfazer do genuflexório forrado com veludo roxo. Os carregadores passavam ao nosso lado com estantes, penteadeiras, poltronas e cômodas nos ombros. Ficamos desolados vendo a mobília sair da casa e ir sabe-se lá para onde. Sentimos que perdemos um pouco o chão; ficamos sem certezas, como aquela que se tem de encontrar o litro de leite na soleira da porta a cada manhã. Mas teve que ser assim, os dias modernos nos levaram a isso. Eu tentei animar minha irmã e ela me pediu que dissesse àqueles estranhos que os móveis podiam ir, mas a casa ficaria no lugar de sempre. A casa não estava à venda.

    As primeiras horas depois disso foram penosas. Ver a casa quase vazia era muito difícil, mas aos poucos deixamos para trás os dias ruins. Utilizamos as lembranças para superar a tristeza. Por exemplo, recordar o dia em que a casa passou a ser propriedade só nossa, minha e de Irene, por direito e herança. Eu dancei sozinho sobre o piso de madeira para celebrar o acontecimento e Irene, mais familiarizada com cálculos e contas, assinou o contrato, encerrando o caso. A casa era definitivamente nossa. Foi um dia memorável. Gostei de ver minha irmã enfim sorrindo, ainda que fosse um sorriso triste. Logo depois do jantar ela retomou o tricô e comentou que precisaria de mais lã azul para terminar o cachecol que fazia para mim. Eu disse que na manhã seguinte iria até o centro da cidade e compraria. Ela agradeceu com a delicadeza de sempre e voltou os olhos para o trabalho. Eu continuei mergulhado nos livros. Dormimos muito bem aquela noite.

    Quando Irene sonhava em voz alta, e chorava, eu acordava de imediato. Corria até seu quarto e a sacudia com delicadeza. Ela me perguntava, ainda dormindo, que carro era aquele que tinha passado perto da janela do quarto. Era uma voz estranha, que vinha do mais profundo de sua inconsciência e não de sua garganta. Eu respondia que não sabia, era apenas um carro, um automóvel qualquer que alguém dirigia na rua de nossa casa. Ela retrucava implorando que eu dissesse ao motorista que a casa não estava à venda. Eu a abraçava com força para acalmá-la.

    Os casais jovens e as famílias mais ou menos numerosas que vinham ver a casa se admiravam com a beleza e a sobriedade da construção. Passeavam pelos cômodos olhando as paredes, o teto, as portas, os rodapés. Iam do saguão com piso de mármore até a sala de jantar forrada com gobelinos, passando pela biblioteca e pelos amplos dormitórios, que ficavam na parte mais afastada da casa, aquela que dá para a rua Rodríguez Peña — perguntavam coisas, suspiravam em alta voz, faziam comentários de admiração. Irene, a todo instante, me pedia que lhes dissesse que a casa não estava à venda, nunca estaria. Eu respondia que estava tudo bem, que podíamos nos cobrir com lençóis brancos e fingir que éramos fantasmas e mandá-los para longe daqui. Ela ria, mas seu riso continuava triste.

    Pensamos em sair à rua, trancar a porta e jogar a chave num buraco de esgoto qualquer, para que estranhos não invadissem a casa, mas não conseguíamos nos afastar de lá. E então gritávamos às pessoas que fossem embora, que deixassem de tagarelar, que não tomassem nossa casa, que ela não estava à venda. Ninguém nos ouvia. Continuavam passeando pelos cômodos, comentando sobre os poucos quadros pendurados, a cor das paredes e a altura do pé direito. “Uma casa magnífica”, diziam. Irene chorava e eu tentava mantê-la calma dizendo “Esta casa, a nossa casa, nunca será tomada.”


  • Um leão na beira da estrada

    Vi-o de longe e identifiquei o leão parado na beira da estrada. A juba grisalha e rebelde não podia ser de outra pessoa. Era ele no acostamento, apoiado em seu carro com o capô levantado. Tinha nas mãos um galão de plástico vazio e parecia aguardar uma carona. Eu passei de moto, capacete posto, só os olhos à mostra. Meu pai não me reconheceu.

    — Sem gasolina?”, perguntei.

    — Sim, que azar!, ele respondeu.

    — Sobe — indiquei com a cabeça o assento traseiro — Eu levo o senhor, tem um posto logo ali na frente.

    Meu pai ajeitou-se na moto, agarrou minha cintura com uma das mãos e, com a outra, segurou a alça do galão. Arranquei. Fazia mais de dez anos que não nos víamos ou nos falávamos. A última vez que trocamos um abraço foi no enterro de minha mãe. Depois, sem que tivesse acontecido nada relevante, fomos espaçando os telefonemas e os encontros, até que deixamos de nos comunicar. Filho único de um pai quase ausente, desisti de procurá-lo. Ele, pouco afeito a carinhos e movido por outros interesses, esqueceu-se de mim. Tudo muito natural, sem brigas ou discussões, só indiferença.

    Não tirei o capacete em nenhum momento. Não sabia qual seria sua reação ao me reconhecer. Melhor que pensasse que eu era apenas um rapaz que lhe prestava um favor na estrada. Percebi pelo espelho retrovisor como ele abaixava a cabeça para se proteger do vento, a juba dançando livremente sobre sua cabeça. O rosto de meu pai estava envelhecido, mas seu corpanzil — forte, vigoroso, saudável — mostrava outra realidade. Vi quando ele olhou para as minhas botas e percebeu que o salto do pé direito era mais alto do que o do esquerdo. Algumas vezes no passado, quando eu já era adolescente, meu pai me falara, num de seus rompantes de sinceridade, do desgosto que sentiu quando o médico, ainda na maternidade, contou sobre o meu defeito de nascença: uma perna mais curta do que a outra. Isso nunca me incomodou além das chacotas dos meninos do colégio, mas ele e minha mãe se sentiam envergonhados — talvez culpados — por esses centímetros a menos, ou a mais, segundo o ponto de vista de quem me olhava. Jamais consegui descobrir qual das minhas pernas era a defeituosa, se a mais curta ou a outra.

    Dirigi com habilidade e cautela, não me aproximando demais dos carros que iam à nossa frente. Notei que meu pai, em que pese o pudor de estar em contato físico tão próximo com outro homem, agarrava-se com firmeza à minha cintura com uma das mãos. Seus olhos não saíam do meu pé direito. Não conversamos durante o trajeto. Quem sabe ele não estava se perguntando se eu não poderia ser seu filho? Talvez estivesse se lembrando da série de médicos a que me levou quando eu era pequeno, as intermináveis radiografias, a sucessão de opiniões sobre a provável causa do meu defeito físico, até a sugestão feita por um especialista, afinal adotada, de colocar um salto maior que o outro nos meus sapatos, de maneira a compensar a diferença de comprimento entre as minhas duas pernas. Ou então estava revivendo o olhar de decepção que me dirigia quando me observava coxeando pelo chão da sala, eu menino, ainda ignorante do preconceito que sofreria vida afora.

    Ao parar no sinal vermelho, já perto do posto de gasolina, senti sua mão pressionando minha barriga, como uma demonstração de afeto. Não esbocei reação. Estacionei a moto ao lado de uma das bombas do posto, e ele desceu do assento traseiro. Falei, sem tirar o capacete e sem olhar em seu rosto, que não poderia levá-lo de volta, estava atrasado para um compromisso. Ele respondeu que encontraria sem dificuldade outra carona para voltar até seu carro. Percebi que tentava ver meus olhos e meu rosto pela viseira do capacete.

    — Muito obrigado, moço, você me fez um grande favor — disse meu pai, seus olhos insistentes na busca dos meus.

    — Não tem de quê — respondi e fui embora.

    À noite, já em casa, meu telefone tocou várias vezes.


  • A cena vencedora

    Um casal de velhinhos com a roupa encharcada de merda e vergonha caminha com esforço pela calçada, esgueirando-se pelas paredes. Os dois vão para casa e querem chegar logo. As pernas não ajudam e eles percebem isso. Olham para os lados, que ninguém os veja no estado em que estão. Balbuciam palavras um ao outro, procurando entender o que tinha acontecido. O operário da prefeitura, responsável pela obra, ia atrás deles explicando, quase em prantos, o lamentável acidente: o cano do esgoto estourou, eles estavam passando justo naquele momento, a merda se espalhou, a culpa não foi dele nem de ninguém, ele sentia muito, estava com a alma e o coração destroçados, pediu perdão. Juntou gente para olhar.

    O jato de merda inundou o rosto e o cabelo da velhinha, manchou os óculos e as calças do velhinho, merda e mais merda pelo corpo inteiro dos dois, mãos e bengalas. Eles olharam para o vazio e pensaram numa maldição ou num castigo que tivesse caído do céu em forma de sujeira. Não merecemos, ela disse. Não se faz isso com gente da nossa idade, ele ecoou. Desorientados, sentiam-se incapazes de cuidar um do outro. E essa casa que não chega nunca?

    A filha os recebeu com o espanto na boca aberta e no nariz tapado. A gente vinha do médicotinha reforma no prédio da prefeitura, balbuciou a velha. Não precisa dizer nada, filha, pediu o velho, a gente já vai se limpar. Foram os dois para o quarto, passo a passo sob o peso insuportável da vergonha. Lá dentro, sozinhos, sentaram-se na beira da cama e abaixaram a cabeça, humilhados. Começaram a se livrar das roupas fedorentas com a dificuldade e a lentidão que só os velhos muito velhos têm. Houvesse em algum lugar do mundo um concurso de tristeza, essa cena certamente seria a vencedora.


  • A poeira branca

    O professor mandou que eu entregasse um bilhete pra minha mãe. Antes li o que estava escrito: dizia que precisava falar com ela porque eu estava com as notas baixas, não sabia a lição, estava com dificuldade para aprender e andava muito distraído. Deixei o papelzinho sobre o criado-mudo, perto do copo de leite que eu tinha posto lá de manhã. Ela não bebeu. Olhei pra minha mãe jogada na cama, o cabelo sem lavar e o rosto amarelado, e pensei em quanto tempo ela ainda ficaria desse jeito.

    Esquentei no micro-ondas a lasanha congelada que comprei no supermercado e comi a metade. Coloquei a outra metade ao lado do copo de leite, mas eu sabia que ela não iria comer.

    Minha mãe segue igual, com os olhos vermelhos, que olham sem ver, e com o cabelo, que não brilha mais, esparramado em cima do travesseiro. O quarto tem cheiro de suor. Disse que iria abrir a janela para entrar ar fresco, ela gritou que não, não queria, que deixasse como estava. Que era melhor não ver o sol. Que, se não visse o sol, seria como se o tempo não tivesse passado e tudo estivesse como antes. Não achei isso certo.

    Eu sei que os dias passam, vejo no calendário, vejo quando saio de manhã pra ir à escola, vejo as pessoas na rua. Então eu sei que o tempo não para nunca e um dia sempre vem depois do outro. Eu vejo que a máquina de lavar tá cheia de roupa suja e que na pia não cabe mais nem um prato, e por isso eu sei que o tempo passou e não aconteceu nada. Mas a minha maior certeza dessa passagem é quando percebo a tristeza que tá em cima dos móveis. A tristeza é uma poeira branca que dança no ar e se deita sobre qualquer superfície. Tá nas paredes da casa, nos lustres e nas cortinas. No começo achei divertido, eu podia escrever sobre o tampo da mesa com a ponta do dedo, minha mãe tá triste, mas, no dia seguinte, não se podia ler as palavras escritas porque havia mais tristeza em cima delas, quer dizer, mais poeira.

    Não me lembro do último dia que minha mãe fez comida, que me ajudou a fazer os deveres, que conversou comigo ou que vimos juntos um filme na televisão à tarde, esperando meu pai chegar do trabalho. Desde que ele foi viajar com aquela colega do escritório ela só fica deitada, dormindo ou olhando pro teto sem falar nada. O professor falou que tiro notas baixas porque eu me distraio muito na sala de aula. É que não consigo deixar de pensar que um dia essa poeira branca vai cobrir a casa inteira, vai cobrir minha mãe deitada na cama e vai me cobrir também. E, quando meu pai chegar da viagem, a tristeza vai ser tanta e vai estar por todo lado, cobrindo tudo, que ele não poderá ler volta, pai que escrevi ontem com o dedo na tela escura da televisão desligada.

  • Réveillon

    Comprou vestido branco e sapatos novos porque quis e a ocasião exigia. A ocasião é hoje, o último dia do ano. A calcinha também é nova, ela sempre ouviu dizer que é assim que se deve receber o ano novo. Fez tudo o que disseram para fazer e estava ansiosa. Na sala, os doze bagos roxos de uva brilhavam no prato sobre a mesinha de centro. Ao lado, a taça de champanhe já cheia e, no fundo, a aliança dada pela avó, anos atrás. Celina decidiu usá-la hoje, precisamente na passagem do ano, para atrair as mudanças que desejava. Não que um novo casamento, depois de dois fracassados, estivesse em seus planos, mas porque, quando a ganhou, sua avó dissera:

    — Use quando concluir que você não precisa de marido pra ser feliz.

    Achou graça e prometeu colocá-la no dedo na primeira ocasião especial. Que é hoje. Estava no quarto, quase terminando de se arrumar, quando ouviu, vindo da televisão lá da sala, o anúncio de que ia começar a contagem regressiva. Celina correu com os sapatos de salto 15 na mão e o zíper do vestido branco ainda aberto — não perderia por nada o ritual da meia-noite comandado pelo eufórico homem de paletó brilhante na telinha. Superstição ou não, queria mandar o ano velho para o lixo e receber o novo com estilo. Estava cheia de esperança e otimismo.

    Largou os sapatos no chão e sentou-se na borda do sofá. Puxou o prato de uvas para perto de si e pegou o primeiro bago. Pensou que o pior ano de sua vida estava quase dobrando a esquina, e já ia tarde. Engoliu as uvas uma a uma com devoção e urgência, os olhos fechados: um bago para cada número da contagem regressiva, como uma cerimônia — 10, 9, 8, 7, um bago para cada um, até o último. Celina estava eufórica, a noite se mostrava perfeita e desta vez ela tinha feito tudo no tempo exato, em sintonia com o relógio da Avenida Paulista, que via da janela, e com a contagem do homem da televisão.

    Celina estranhou que o prato de uvas já estivesse vazio no momento em que gritaram “Zero!” e a barulheira começou. Será que, durante a contagem, ela engoliu dois bagos em vez de um? O estouro dos rojões e dos fogos logo a distraiu e ela começou a dançar: era a trilha sonora que ela queria ouvir naquele momento. Os fogos brilhando no céu pintaram sua sala de todas as cores. Ela pegou a taça de champanhe e a ergueu acima da cabeça, animada para brindar com o apresentador da tevê, e bebeu tudo de um gole só, refestelada no sofá. Arregalou os olhos quando ouviu o locutor falando:

    — Não estranhem, queridos telespectadores, se lhes faltou um bago de uva durante o brinde. Esta noite, por algum sortilégio que ainda não conhecemos, nosso velho relógio marcou treze vezes em vez de doze. Logo daremos notícias sobre o que aconteceu. Feliz ano novo a todos!

    Celina pulou do sofá, a taça de champanhe vazia na mão, no rosto uma máscara de horror. “Treze vezes? Isso dá azar, o número treze dá azar!”, pensou, apavorada. Subitamente teve dificuldade para respirar. Sentiu sua traqueia fechada e desesperou-se. “A aliança, engoli a aliança!”, quis gritar, mas a voz não saiu. Tateou os móveis para se manter em pé. Boqueando como um náufrago antes do afogamento, começou a correr pela sala buscando ar para os pulmões, tropeçou nos sapatos jogados no chão e caiu com estrondo. Fraturou a bacia e o fêmur esquerdo. A brusquidão da queda liberou suas vias respiratórias e a aliança pulou para fora de sua garganta. Foi então que, mais calma e respirando, deitada no tapete, Celina apalpou o corpo e soube que as mudanças chegaram com o novo ano. “Eu não morri ainda, que sorte!”, pensou. Sorriu de tanta dor, chorou de tanta dor.

    Na televisão deram sequência aos festejos e estavam agora transmitindo um show de pagode. Ninguém falou sobre as treze badaladas em vez das doze, e tudo ficou por isso mesmo. Celina se arrastou pelo chão para procurar a aliança, colocou-a no dedo e depois ligou para o hospital. Pediu para mandarem uma ambulância com urgência e desejou feliz ano-novo para a atendente.


  • De passagem

    Lembro-me bem daquela noite. Minha família e eu íamos começar a jantar quando ele chegou. Abri a porta e ouvi sua voz sumida na boca murcha dizendo “Boa noite. Estou de passagem. Posso ficar uns dias? Serão poucos.” Eu tentei disfarçar a enorme surpresa, disse “Claro!” e fiz com que entrasse. Ele cumprimentou minha mulher e meus filhos, depois olhou para mim e eu indiquei a direção do corredor. Mostrei-lhe o quarto em que poderia ficar. Ele agradeceu. Eu disse “Largue sua mala aí. Venha jantar conosco.” Comemos em silêncio. Não estranhei: a lembrança mais forte que tinha era a de que meu pai nunca foi de falar muito mesmo.

    Eu tinha treze anos quando ele nos abandonou e nunca mais o vi até aquela noite. Minha mãe nunca comentou sobre o motivo de ele ter saído de casa, deixando atrás de si mulher e filhos, e eu tampouco perguntei. Ela apenas disse para mim “Agora você manda na casa. Use a voz e a palavra que seu pai nunca teve.” Naquela época, àquela idade adolescente, eu também não tinha voz nem palavra, mas logo aprendi a ter. Cuidei de minha mãe e de minhas irmãs menores. Faz tempo que minha mãe morreu, minhas irmãs se casaram e foram para longe. E aconteceu que, tanto tempo depois, naquela noite, na minha frente, na mesma casa, jantando comigo e minha família, estava meu pai, silencioso, cabisbaixo e velho, que poucos minutos antes tinha me pedido abrigo vestindo um paletó esgarçado nos cotovelos e carregando uma mala parecida com a dos mascates de antigamente. Um estranho pai, um nunca carinhoso pai, um homem que naquela noite era todo fragilidade, que me surgiu assim, sem que eu pedisse, ao contrário, ele é que pediu. “Posso ficar uns dias? Serão poucos” foi o pedido que ele fez com a voz sumida e a boca murcha.

    Nos dias em que ficou em casa, meu pai entrava e saía quase mudo. Falava menos do que o necessário, porque o necessário era muito para aquele homem de constantes olhos baixos. Eu não perguntava por onde tinha andado o dia todo nem com quem conversava. Minha impressão era que, se assim fizesse, iria invadir e quebrar a muralha que ele tinha construído em torno de si, e da qual parecia gostar e atrás da qual se sentia protegido. Hoje tenho consciência de que não ia a nenhum lugar definido nem conversava com ninguém. O que tinha acontecido era que as palavras sumiram de sua boca e que nesta cidade, que já foi dele um dia, se falava um idioma estranho, que ele não conseguia compreender.

    Num dos dias em que não saiu e passou as horas conosco em casa, vi meu pai perto da porta da cozinha, olhando pela janelinha que dá para o quintal. Seu olhar acompanhava um passarinho que ia e voltava ao mesmo galho, na tarefa exaustiva de construir um ninho. Ele tinha os olhos mareados. Meu pai chorava. Não um pranto convulsivo, antes um choro silencioso como ele, em que as lágrimas desciam em câmera lenta, percorrendo sem pressa os sulcos do rosto até alcançar a boca e o queixo. Sua expressão era de profunda tristeza. Puxei-o com cuidado pelo braço e o coloquei numa cadeira. Sequei seu rosto com um pano de prato. Perguntei “Pai, o que te fez chorar?”

    Ele não levantou os olhos para mim, mas percebi a enorme dor que havia neles. Tentou responder, não conseguiu. Moveu os lábios trêmulos e as palavras não saíram. Tinha ficado tanto tempo sem falar, que desaprendeu. Pôs uma das mãos em concha sobre o peito e voltou os olhos para a janelinha do quintal e para o passarinho. Então compreendi. Enterrei meu pai poucos dias depois.


  • Minha alma, meu cão, minha calma

    Nesse armário guardo minha alma. Entre paletós, camisas e calças repousa, num cabide só seu, lavada e passada, a alma que é minha. É uma coisa preciosa, única, e por essa razão só a levo comigo em ocasiões especiais. Uma alma é para toda a vida, é artigo que não se dá, não se empresta, não se esquece. Quebrada, não haverá outra para reposição.

    Só vou com ela a lugares aonde não se deve ir sem alma. À literatura, por exemplo. A um roseiral, atraído pelo perfume. A um copo de bom vinho, erguido em brinde entre amigos. Em eventos assim minha alma está sempre comigo. Em outros, não.

    É diferente de meu tempo de criança, quando não ia a nenhum lado sem alma. Não a tirava de mim nem para dormir. Era minha companhia constante nos brinquedos, nas descobertas, nos espantos, nas felicidades. Hoje em dia quase não saio com minha alma para a rua. Apavora-me pensar que as pessoas, ao me verem com ela, vão me enxergar pelo avesso e descobrir tudo sobre mim. É um risco que não quero correr.

    Não posso negar que, quando visto minha alma, cresço em profundidade. Fico mais brilhante que o Sossego, mais transparente, mais espiritual. Com alma, ganho altura e me dilato e me expando em todas as direções. Sossego é o meu cachorro.

    Ocorre que hoje, quando, com minha alma posta, me preparei para cruzar a cidade, olhei para o Sossego, sentado e algo melancólico perto da porta de entrada, quieto com sua alma peluda de cachorro, desconfiando que ficará sozinho por algumas horas. Justo nesse instante me deu um não sei quê de tristeza por deixá-lo ali, sem ninguém para lhe dar um carinho ou para quem latir. Então dou meia-volta e subo até meu quarto, abro o armário e devolvo minha alma ao cabide de sempre. Assim, sem minha alma própria, por não ser necessária agora, assovio para o Sossego e os dois saímos para passear. Com o Sossego ao lado, não se precisa de alma própria.


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