Contos Eróticos

  • Sílvia Maria

    Toda noite o barulho dos saltos de Dona Sílvia estalava no assoalho de madeira. O ritual era sempre o mesmo: ela conversava alguns minutos ao telefone, abria uma garrafa de vinho, tomava um banho demorado, se arrumava e esperava o próximo chegar. Ele tocava o interfone, ela calçava os saltos e saía apressada para abrir a porta. Parecia recuperar o fôlego antes de dar o primeiro “Oi!”, e o que se passava depois era sempre abafado por barulhos de beijos e outros um pouco mais comprometedores. Tudo durava no máximo duas horas e aí outro ritual começava: o rapaz se despedia, ela guardava as taças, abria a porta, talvez o beijasse, e descalçava os saltos no meio do corredor. Ligava a TV, abria mais uma garrafa de vinho e chorava vendo algum filme meloso até o dia raiar.

    Nunca vi Dona Sílvia sair de casa antes do meio-dia. Os motivos eram meio óbvios, mas ela estava sempre radiante no meio da tarde. Viúva, bonitona, ia sempre à academia, e talvez pela endorfina, parecia até estar de bem com a vida. Parecia. Dizem que nunca esqueceu o marido e todas as noites chamava um rapaz diferente para, digamos, conversar. Não sei exatamente se era falta de carinho ou mesmo de sexo. A questão é que ela era uma mulher realmente solitária. Os filhos quase nunca a visitavam e pareciam não aprovar essa nova forma de diversão da mãe. Mas, essa forma seria realmente nova?

    Menina bem-criada, educada em um conceituado colégio interno, aprendeu a tocar piano, sabia bordar como ninguém e se casou com aquele aprovado pelo pai. Não era só por amor, mas também por conveniência. Uniam-se sobrenomes, fortunas e filhos de maneira prática e constante naquela época.

    Como eu sei de tudo isso? Bem, isso é quase – ou bastante – constrangedor, mas um dia precisei entrar às pressas no apartamento dela. Digamos que algo saiu um pouco do controle e Sílvia se machucou com um dos rapazes. Como sou o vizinho mais próximo, acabei ganhando a missão de levá -la até o pronto socorro e trocamos algumas palavras – por educação, a princípio – mas nas visitas que lhe fiz, também por educação, fui me encantando com aquela mulher e seu modo de viver nada tradicional. Como consequência do ato impensado, Dona Sílvia quebrou o braço direito, o que a impossibilitava de fazer a maioria das atividades domésticas. Ela não me pediu diretamente, mas fez parecer que estava me fazendo um favor aceitando a minha presença em sua casa diariamente. Como eu estava tralhando em um livro e não tinha horários fixos – muito menos rígidos – para sair ou fazer algo na rua, podia dar a ela o privilégio da minha presença. Ou vice-versa, como ela colocou desde o início. O que poderia ganhar em tão insana companhia?

    No primeiro dia que fui ajudá-la encontrei a porta aberta e um cheiro doce de café e algum quitute que parecia estar sendo feito na hora. Dona Sílvia cantarolava uma canção e não parecia nada impossibilitada, mesmo com o gesso no braço direito. Sua casa era repleta de lembranças do que pareciam ser os seus áureos tempos. Além de várias fotos, provavelmente de filhos e netos, na parede principal da sala um quadro imponente se destacava. O homem retratado era tão imponente quanto e, tanto a moldura dourada quanto o semblante rígido traziam uma aura quase imperial. Quem poderia ser? Móveis pesados contrastavam com a leveza das cortinas e o colorido das almofadas. Tudo parecia requintado, caro, menos as imagens de Nossa Senhora que surgiam em diferentes estilos e tamanhos. Uma devota, com certeza. Sílvia também era Maria e naquela tarde ela vestia um robe salmão de cetim e parte do seu corpo podia ser vista entre uma e outra conferida no forno. Não me entendam mal, não poderia ter nenhum tipo de atração por aquela senhora que muito bem poderia ser minha mãe ou uma tia mais velha. Mas devo admitir que, para seus anos de experiência, ela estava mesmo em forma.

    – Você gosta de broa de milho? – Ela me perguntou entre uma estrofe e outra de alguma música de Maria Bethânia. Ou era do Roberto Carlos?

    – Adoro. Lembra as tardes da minha infância!

    – A mim também! Mas tenho certeza de que você nunca comeu nada igual à minha broa.

    Pode parecer loucura, mas percebi uma certa malícia na palavra “broa”. Ok, eu poderia estar delirando, pelo total marasmo sexual que se tornara a minha vida.

    – Esta receita é de uma beata que sempre fazia broa para os lanches de domingo na igreja que eu frequentava na minha terra. Era o primeiro quitute que acabava… não sobrava nem farelo!

    Realmente, nunca tinha provado nada igual. A broa de milho do Rio é seca, apenas com milho e farinha. A de Dona Sílvia vinha recheada de pedaços de queijo minas e ainda tinha raminhos de erva -doce. Ela derretia na boca e enchia todos os sentidos com novos cheiros e sabores. Acompanhada do café fresquinho, era quase um orgasmo gustativo. Ok, vou parar de fazer comparações sexuais. Dona Sílvia podia ser minha avó!

    – Nem sei como agradecer a sua presença, querido. Não sei o que faria sem você!

    – Pelo visto, a senhora está se saindo muito bem sem poder usar o braço direito!

    – Claro, querido! Sou canhota!

    Ardilosa, aquela mulher.

    – E, na minha época, ser canhota era como ser bruxa. Ou até mesmo o próprio belzebu. A mão esquerda sempre foi tida como coisa do capeta. Na escola, amarra- vam a nossa mão “errada” e nos forçavam a fazer tudo com a mão direita. Acabei aprendendo a usar as duas e nunca tive dificuldades em usar ambas. Ou cada uma delas da maneira que fosse preciso. Você sabia que até mesmo fazer o sinal da cruz com a mão esquerda era pecado? Nem sei se ainda é… Ainda se faz isso?

    – Sinceramente, não sei, Dona Sílvia…

    – Sílvia! Pelo amor de Deus! Não é porque tenho idade para ser sua mãe que você precisa me tratar como uma viúva italiana. Acho que devo fazer mais sexo do que você… Não tenho ouvido muitos ruídos vindos do seu apartamento!

    Sinceramente, não sei se estava comendo a broa ou tomando o café naquele momento, mas me senti tão envergonhado que só me recordo de ter cuspido alguma coisa… Ou ambas. Dona Sílvia, que poderia tanto ser minha mãe como uma das minhas professoras do ginásio, falava sobre sexo com a ousadia de uma ninfeta ninfomaníaca. Como assim, não escutava ruídos do meu apartamento? E a noite em que… E a que… Bem, venhamos e convenhamos que as coisas estavam um pouco paradas, eu estava concentrado no livro – que ainda estava no primeiro capítulo – mas ser humilhado por uma quase anciã era demais!

    – Dona Sílvia… – ou melhor, Sílvia –, me desculpe, mas eu não falo muito sobre esse tipo de assunto com pessoas com quem não tenho muita intimidade. Na verdade, acho que nunca falei sobre esse tipo de coisa com ninguém!

    – Meu Deus, mas por quê? Temos todos a mesma origem, somos seres sexuais, gostamos mais ou menos das mesmas coisas. Ou você não gosta de transar? Tem gostos bizarros?

    Minha cabeça parecia que iria explodir a qualquer momento e sentia um calor febril nas faces. Devia estar muito vermelho e gostaria apenas de sair daquele apartamento.

    – Realmente não entendo essa frescura toda quando o assunto é sexo. Se seu pai e sua mãe não tivessem feito nada disso, você não estaria aqui. Apesar de que, na minha época, a mulher transava mesmo para procriar. Você sabia que ninguém se importava se a mulher gozava ou não? E não tinha esse negócio de preliminar, não! Nosso corpo era como um santuário: não podia ser explorado, apreciado, revirado… Quanta bobagem, meu Deus! Algumas camisolas que usávamos na noite de núpcias tinham apenas uma
    abertura na… Bem, você sabe onde. Todo o resto do corpo ficava coberto, não tinha função. Fui descobrir as delícias de uma boa chupada no peito depois de viúva. Dá para acreditar? E é um manjar dos deuses, pode acreditar! Ainda atônito com a imagem de meus pais me concebendo, fiquei imaginado como uma pessoa poderia conjugar no mesmo parágrafo tanto Deus com um quase nome do órgão sexual feminino. Desculpem, mas me recuso a falar buceta. Que seja, então. Estava tonto demais com tanta informação.

    – E você? O que mais gosta na cama?

    Entendi como uma deixa: percebi que era hora de ir.

    Perguntei se ela precisava de mais alguma coisa, agradeci o lanche e deixei meu telefone para qualquer emergência. Nem meu terapeuta havia tentado invadir a minha intimidade com tamanha fúria. Levei um pedaço de broa para o café da manhã – ela insistiu – e ainda tentava esquecer a imagem de meus pais em atos obscenos quando cheguei em casa.

    Mas não foi exatamente essa imagem que não me deixou dormir. Tentava descobrir quem era aquela nova Dona Sílvia. Sílvia. Sabia que ela recebia seus amantes, que não era muito bem vista pelas outras mulheres do prédio, mas nunca imaginei que ela teria tamanha naturalidade ao falar sobre assuntos que me envergonhavam até em pensamento. Com certeza ela não teve uma criação liberal, não na época em que nasceu. Havia se tornado hippie? Era adepta do amor livre? Tinha uma vida secreta que escondera dos filhos e do marido? Quem era realmente Dona Sílvia? Ou melhor, Sílvia Maria.

    Esse era o nome que constava na conta de luz que usei como desculpa para rever a minha misteriosa vizinha. Toquei a campainha com a conta e uma vasilha com outro pedaço de bolo, esse comprado na confeitaria da esquina. Posso não ser um lorde, mas aprendi algumas coisas com minha mãe. E uma delas é que nunca se devolve um prato ou uma forma de bolo sem alguma coisa dentro. Comestível, de preferência.

    – Ei, menino! Que bom que voltou! Acho que te assustei um pouco ontem, não foi? Desculpa, mas fico muito tempo sem ter com quem falar e acabo extrapolando.

    – Imagina, Don… Sílvia. Gostei muito das nossas conversas. Talvez não estivesse mesmo preparado, mas…

    – Prometo que não vai se repetir, meu caro. Obrigada pelo bolo e pela conta.

    E fechou a porta. Como se algo urgente lhe esperasse do outro lado, como se minha presença fosse dispensável – de fato era – como se sua total independência houvesse voltado. Me senti um grande idiota. Um idiota careta, o que é pior.

    Alguns dias se passaram e não conseguia achar uma desculpa para voltar à casa de Dona Sílvia. Queria ouvir mais, falar sobre os meus dramas, os porquês da minha cama e de as páginas do meu livro estarem sempre vazias. Pensei na minha falta de inspiração e como ela poderia me ajudar. Resolvi ser sincero, me retratar. Talvez outro bolo me ajudasse. Ou uma broa de fubá.

    – Boa tarde, Sílvia. Tudo bem? Acabei de voltar da rua e não resisti ao cheiro dessa broa… Será que ela chega aos pés da sua?

    Ela sorriu de um jeito como quem não precisa de mais explicações e disse:

    – Só há um jeito de saber!

    Da cozinha vinha aquele cheiro familiar de café – parecia ter adivinhado a hora do lanche – e Sílvia Maria cantarolava uma nova música. Essa parecia ser de Gal.

    – O segredo da broa está no recheio. Esse pessoal novo não sabe disso. Broa, na minha terra, tem excesso de queijo, e queijo bom, fresco. Não queijo de supermercado, dentro de plástico. Queijo precisa respirar…

    Eu, como bom carioca da gema, nunca havia tirado leite de vaca, muito menos sabia como fazer um queijo.

    Mas Sílvia parecia ser uma expert no assunto:

    – Por exemplo: você sabe a diferença do queijo frescal para o curado?

    – Curado? O que é isso?

    – É um tipo de queijo, menino… Ele tem mais sal do que o frescal, é mais firme, mais amarelado…

    – Interessante. – Não consegui demonstrar nenhuma empolgação.

    – Mas você parece que não veio aqui falar sobre queijo, não é?

    Ela me olhou da mesma maneira maliciosa do dia da broa e – juro – eu não estava vendo coisas. Fiquei ruborizado e apenas mudei de assunto.

    – O braço da senhora está melhor?

    – Está tudo melhor, meu filho! Eu me sinto ótima, pronta para outra!

    – Por favor, Sílvia. Não vá se machucar novamente!

    – Se for da mesma maneira que da outra vez, vou adorar!

    Senti novamente aquele incômodo, e ela percebeu.

    – Me desculpa, querido… Não quero te constranger, mas não sou muito boa com as palavras… Sempre falei mais do que devia, fiz o que não podia e me dei mal quase todas as vezes.

    – Você não parece ter se dado mal na vida, Sílvia.

    – Ser mulher não é uma coisa fácil, meu filho. E para uma mulher que não se encaixa nos padrões, é muito pior.

    Sofri muito por ser diferente, por gostar demais das coisas ditas “erradas”. Hoje vejo que os errados são os outros, os que fingem sentimentos, escondem as emoções e passam pela vida alimentando mentiras. Nunca fui assim, mas não me arrependo de nada.

    – Mas a senhora parece ter tido uma vida tão normal… Foi casada, teve os seus filhos…

    – E logo, logo, serei avó…

    – Avó?

    – Na minha época, a gente se casava muito nova. Faz as contas, Carlos: tive o meu primeiro filho ainda menor de idade. Então, com 54 anos, já posso ser avó!

    Fiquei pensando que o seu corpo não condizia mesmo com a sua idade. Ela devia malhar ou aquilo tudo era fruto de uma excelente genética. Mas me desfiz dos próximos pensamentos, e continuei:

    – Que coisa boa! Está vendo, não tem como ser mais… comum!

    – Vamos deixar de ser hipócritas, Carlos. Você sabe muito bem o que eu faço todas as noites. Você me levou para o hospital depois de me ver na posição mais não-ortodoxa do Kama Sutra. Talvez nem você mesmo tenha experimentado a “Toda Poderosa”. É claro que eu não sou… comum!

    Quando ela me chamou pelo nome, me senti como se minha mãe estivesse me levando para o castigo. Mas esse sentimento desapareceu assim que ouvi a palavra “Kama Sutra”. Não sabia como tratar essa mulher. Não me sentia homem suficiente perto dela. Não era filho, não era amante… Seríamos amigos?

    – E eu até entendo esse espanto todo, pois com certeza você nunca ouviu uma mulher da minha idade falar sobre esses assuntos com tanta franqueza. E sabedoria, claro! Na minha época, a gente não tinha vez nem voz.

    Éramos apenas enfeites, seres não confiáveis, carnes penduradas no açougue para serem compradas. Só tínhamos valor se acompanhadas de um homem, fosse pai, irmão ou marido. Se não tivesse marido, depois de certa idade ficava para cuidar da mãe, porque não tinha outra serventia. Já imaginou?

    Claro que eu já tinha ouvido histórias assim, mas nunca de alguém tão próximo a mim. Apesar de ter nascido em plena revolução sexual, meus pais não eram de falar muito sobre esses assuntos e o máximo de conhecimento que obtive foi em filmes e documentários sobre algumas mulheres notáveis e o movimento feminista. Era chocante!

    – Só que eu nasci na época errada, entende? Nunca abaixei a cabeça para o meu pai; questionava todas as ordens que me eram dadas; tinha uma curiosidade feroz. Nunca aceitei não como resposta e era muito atrevida. Nossa empregada, uma senhora doce e sábia, neta de escravos, sempre dizia que o meu nariz empinado era sinal de que ninguém iria me domar. Se fosse hoje, eu acreditaria. Na época, apanhava sempre que me negava a obedecer. Um dia, talvez cansado de me bater ou de brigar, meu pai resolveu me mandar para o colégio interno com a esperança de que voltasse domada e pronta para me casar.

    Ledo engano. No primeiro dia de internato, machuquei as mãos na queda em um balanço e não conseguia me fazer entender. As freiras, francesas, viam minhas mãos sangrando e fingiam não ter como ajudar. Desesperada e com dor, fugi pela mata que circundava a escola. Me acharam toda suja e me levaram de volta. Fiquei uma semana de castigo por desobediência e lambia as mãos para acalmar o ardor das feridas. Quer mais café?

    Eu ainda sorvia as últimas informações e o derradeiro gole de café. Aceitei mais, para continuar a conversa e experimentar a tal broa que eu mesmo levara.

    – Claro! Está uma delícia! E vamos comparar as broas? Mas você acha que todas as freiras são ruins?

    – Você tem alguma dúvida de que a minha é melhor?

    Mas vamos experimentar a sua…

    Enquanto servia fatias generosas daquela broa que, com certeza, não tinha nada de queijo no recheio, ela continuou:

    – Sinceramente, acho que foi aí que começou o meu pavor por freiras. Bem, claro que nem todas. Durante um inverno muito rigoroso, meus lábios estavam muito rachados e não tínhamos acesso a quase nenhum remédio. Eu passava a língua, mas quanto mais a saliva entrava em contato com as freiras, mas meus lábios sangravam. Uma dessas freiras, bem novinha… – Não, ela ainda era noviça, ou seja, não havia se tornado freira – … pegou um pouco do óleo que alimentava as luminárias da igreja em que rezávamos e passou de maneira abundante na minha boca. As rachaduras sugaram aquele manjar e, em dois dias, eu já estava curada. Mas ela não precisava ser freira para fazer uma boa ação. Quem disse que para ser fiel a Deus temos que fazer voto de castidade? Quem disse que sexo é pecado? Você realmente acha que Jesus era casto?

    – Bem, diz a Bíblia que sim…

    – Bobagem, meu filho! Ele seria casto por quê? Na época dele não existia a tal Igreja Católica com todas essas regras sobre todas as coisas. Você acha mesmo que Deus nos daria tantas possibilidades de prazer se não pudéssemos usufruir delas?

    – Esse é um ponto interessante…

    – Mas é claro! O pecado está na cabeça de cada um. Errado para mim é proibir alguém de ser feliz. Imagina quantos padres não devem ter deixado de viver suas paixões por outros homens ou mulheres por acreditarem que era pecado? Muitos entravam para a Igreja porque as famílias eram pobres e não tinham como arcar com uma educação de qualidade. Na minha cidade mesmo tinha um que sempre almoçava nas casas das famílias mais abastadas. Minha mãe, carola que era, fazia questão de convidá-lo e sempre que ele ia embora, ela lhe emprestava um livro da coleção Saraiva. Eu era encarregada de buscá -los, mas não podia sair sem meu irmão mais velho. Em uma dessas idas até a casa paroquial, ele pediu que eu buscasse outro livro e deixasse meu irmão lá. Quando voltei, ele estava nu e meu irmão lhe acariciava o pênis. Fiquei tão chocada que deixei o livro escapar e os dois se assustaram com o barulho. Saí correndo e nunca contei a ninguém. Sabe por quê? Porque ninguém iria acreditar em mim. Também nunca perguntei se aquilo era consensual ou não para o meu irmão. Acho que prefiro não saber.

    – Mas os seus pais nunca desconfiaram?

    – Pai e mãe nem olhavam direito para os filhos. Imagina. Éramos sete, meu pai ficou viúvo quatro vezes, eu dava trabalho pelos outros seis. A gente nem abria a boca; tinha medo até de respirar mais alto.

    – Mas, e o colégio interno? Conseguiu endireitar à senhora?

    – É claro que não, né, Carlos? Fui expulsa por ter modos lascivos já no primeiro mês. Eu tinha comichão sexual, se é que posso dizer assim. Queria entender o meu corpo, tinha um prazer louco quando me tocava. Mas em um local com 20, 30 pessoas dormindo em camas muito próximas, era loucura se manifestar. Como tudo era pecado, abafava meus gritos no travesseiro e me esfregava no lençol depois que todas já estavam dormindo. Mas eu gozava de maneira abundante e meus lençóis amanheciam sujos e com cheiro de sexo. As freiras começaram a desconfiar e passavam a noite me observando. Me descobriram e me expulsaram.

    – E como seu pai aceitou isso?

    – Ele não aceitou. Me mandou para outro colégio, em outra cidade, pagou uma fortuna para que as freiras me endireitassem e deu ordens expressas de que eu só sairia de lá casada. Não o culpo, coitado. Ele não tinha a menor condição de cuidar de tantos filhos e ainda de uma fazenda. Não existiam pais solteiros nessa época; os homens não eram criados para essa função.

    – E então? Esse outro colégio deu certo?

    – Bem, para o meu pai, sim. Saí de lá casada com um bom moço. Muito bom, na verdade. Meu marido se apaixonou pela minha impetuosidade, mas não sabia o que fazer comigo na maior parte das vezes. Ele estudava em um colégio militar, bem próximo ao meu. À tarde, quando tínhamos permissão de ficar no pátio, alguns dos alunos desse colégio passeavam próximos às altas grades e deixavam bilhetinhos para as suas escolhidas. Se fossem aprovados pela família, os relacionamentos evoluíam – sob os olhares rígidos das freiras – e bons casamentos eram arranjados. Era uma excelente solução para a maioria das famílias, que garantiam filhas virgens e os rapazes não eram desmoralizados na sociedade.

    – Deve ser muito estranho se casar com alguém que você nem ao menos transou.

    – E transar com alguém garante que vocês serão felizes para sempre? É por isso que tudo hoje em dia termina tão rápido. As pessoas já perderam o mistério, não conversam mais, se impacientam rapidamente com os defeitos um do outro. Na minha época, o primeiro beijo era um acontecimento! Pegar na mão tinha a sua magia! Hoje, vocês mudam de parceiros como mudam de roupa.

    – E transar com alguém garante que vocês serão felizes para sempre? É por isso que tudo hoje em dia termina tão rápido. As pessoas já perderam o mistério, não conversam mais, se impacientam rapidamente com os defeitos um do outro. Na minha época, o primeiro beijo era um acontecimento! Pegar na mão tinha a sua magia! Hoje, vocês mudam de parceiros como mudam de roupa.

    – Olha, Carlos, o que eu faço todas as noites não tem nada a ver com amor. E o amor, de verdade, não tem a ver só com sexo. Eu já vivi o tal amor com o pai dos meus filhos. Não éramos exatamente Romeu e Julieta, mas nos amávamos. Construímos uma bela família e tivemos uma vida feliz. Nunca lhe faltou sexo, porque eu gostava até mais do que ele. Gostava não, gosto! Se não tivesse me casado com Augusto, acho que seria puta. Você já foi a um puteiro?

    – Não…

    – É tão alegre e festivo! Claro que nunca entrei em um, aí também seria demais. Mas um dia, voltando da escola – devia ter uns sete anos –, quis saber o que tinha em uma rua sem saída, um pouco afastada da praça principal da minha cidade. Sempre quando passava por lá com a minha mãe, ela se virava para o outro lado e fazia o sinal da cruz. Eu nunca entendia o porquê e morria de curiosidade de saber o motivo. Nesse dia, tomei coragem e entrei pelo beco. As putas ainda estavam se levantando após a noite de trabalho – e prazer – e pareciam seres quase angelicais. Elas estendiam as roupas íntimas nas janelas e lavavam os cabelos com água de alfazema. Era um mundo paralelo, com cores vivas e canções misteriosas, que nunca havia escutado nas missas dominicais. Mas todas, sem exceção, tinham expressões felizes. Muito tempo depois consegui entender o motivo.

    – Não vai me dizer que elas tinham uma vida fácil?

    – Claro que não. Mas eram livres! Exatamente por serem tão marginalizadas e colocadas de lado pela sociedade, elas podiam fugir dos padrões e usar calcinhas vermelhas e cantar músicas de cabaré sem nenhum pudor. Muitas apareciam nuas nas janelas e varandas, mas aquilo não me assustava, porque elas não tinham vergonha do seu corpo. Era tudo natural, livre, como deveria mesmo ser.

    – A senhora acha que deveríamos ficar nus nas janelas?

    – Ai, Carlos! Você é muito literal! Claro que não. Mas o que deveria causar mais vergonha? Um seio nu ou uma criança morrendo de fome?

    – Acho que não estamos preparados para as suas ideias!

    – Nem hoje, nem naquela época. Quando cheguei em casa e fui perguntar à minha mãe por que ela fazia o sinal da cruz quando passava pelo beco das moças alegres, levei um tapa no rosto que me feriu a alma. Entendi menos ainda o porquê de tanta raiva daquelas mulheres e fiquei algum tempo sem conversar com minha mãe. Ela morreu meses depois e não tive tempo nem de me desculpar. Ou de me fazer entender. Hoje, sei que a felicidade das putas era algo que deveria irritar profundamente uma mulher que só fazia parir e obedecer ao meu pai. Será que minha mãe gozou alguma vez na vida?

    – A senhora já?

    Sílvia me olhou, pela primeira vez, assustada. Não imaginava que eu, logo eu, seria capaz de constrangê -la.

    – Sim, Carlos, já gozei. Algumas vezes, com meu marido. Outras, com um belo amante que tive enquanto éramos casados.

    – A senhora teve um amante?

    – Ah, Carlos… Chegamos a um ponto do nosso casamento em que os filhos estavam criados, meu marido estabilizado e eu ainda me sentia inquieta. Chamei Augusto para conversar e acredito ter sido a precursora do tal “relacionamento aberto”. Mas não poderia imaginar que ele só aconteceria para mim. Meu marido ainda era apaixonado pela menina que conhecera no colégio interno e não admitia sentir desejo por outra mulher. Ou, então, fingia muito bem. Mas ele sabia que não poderia me segurar por muito tempo, e como não cogitávamos nos separar – não por comodismo, longe disso, éramos grandes amigos –, fomos até o final. Resolvi propor um acordo. Se eu me sentisse muito atraída por outro homem, proporia a ele termos um relacionamento consensual e discreto, apenas em locais que não seríamos descobertos, muito menos que pudesse expor Augusto de alguma forma.

    – E deu certo?

    – Deliciosamente! Conheci meu amante em um jantar da Sociedade Brasileira de Medicina. Ah, sim! Augusto era cardiologista, renomado. Ao sermos apresentados, esse homem beijou a minha mão de tal maneira que imediatamente criou uma corrente elétrica. Ela percorreu todos os recantos do meu corpo e conseguiu arrepiar a minha nuca. Tive a certeza de que seria ele, e Augusto também notou. Fiquei eufórica a noite toda, tomava champagne sem parar e quase fiz uma bobagem. Era correspondida de maneira eletrizante e flertávamos sem parar. Mas meu marido era um homem muito elegante; me chamou para conversar longe de todos e disse: “Se você quer tanto dar para ele, pelo menos marque em um local que ninguém os conheça”.

    Consegui me conter pelo resto da noite, mas logo pela manhã, com o cartão dele em mãos, liguei. Trocamos poucas e necessárias palavras e já estávamos juntos naquela mesma tarde. Me senti como a Belle de Jour, a própria Catherine Deneuve do filme de Buñel.

    – Quem?

    – Ah, Carlos! Se você soubesse mais eu seria sua…

    Alguns dias até me inspirava nas roupas da Belle de Jour para me encontrar com meu amante. Queria ter aqueles belos cabelos louros…

    Bem, tínhamos tardes tórridas, sempre em locais diferentes e longínquos. Dávamos nomes falsos, algumas vezes cheguei a usar perucas louras e ruivas para despistar algum curioso e, também, satisfazer as fantasias do meu novo homem. Éramos felizes por instantes eternos antes de voltarmos para as nossas realidades.

    – E por que vocês não ficaram juntos? Não se amavam?

    – Não sei se o que tivemos foi amor. Sei que eu precisava do sexo, da aventura. Ele concordava com a situação; também era casado e parecia mais carente do que exatamente com tesão. Tivemos uma atração muito forte no início, como duas almas que buscam a liberdade. Mas era só aquilo, tudo terminava no seu princípio. Não imaginava apresentá -lo aos meus filhos, refazer minha vida com ele. Era uma fuga, um… Momento feliz.

    – A senhora foi feliz?

    – Eu SOU feliz, Carlos. Por mais que todos pensem que sou uma mulher vulgar por pagar para ter prazer, sou uma pessoa totalmente realizada. O dinheiro é meu, faz parte da minha herança, e se posso ajudar alguns rapazes bonitos e me satisfazer, que mal tem? Cansei de lutar contra a minha natureza. Meus filhos até hoje não me aceitam. Acham que sou escandalosa, criticam meus decotes, minha risada alta, meu batom vermelho, minha alegria estampada. Acham que eu não respeito a memória do pai. Como não, se eu dei a ele, em vida, tudo que ele me pediu e mereceu? Se até na hora de trair eu o fiz com respeito? Tínhamos nossas diferenças, mas nunca deixamos de nos amar e de confiar um no outro. Nunca passamos dos limites que colocamos para a nossa relação. Já tentaram me exorcizar, Carlos. Já tentaram me podar de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Diziam que eu tinha o capeta no corpo, que nada daria jeito em mim, que ninguém jamais me escolheria do jeito que eu era. Mas fui escolhida, amada e respeitada como merecia. Nunca condenei ninguém, mas sempre me condenaram por crimes que não cometi. Pelo menos, não eram crimes para os meus valores. Hoje, eu canto para esquecer a saudade dos meus amores. Meu marido, meu amante, meu pai, que nunca me entendeu. Se me relaciono com garotos é para fugir um pouco da solidão, sentir um corpo quente no meu, receber um carinho. Meus filhos nem ao menos me abraçam. É muito fácil julgar as pessoas sem conhecer as histórias, os caminhos. Não quero ser exemplo. Só quero ser feliz. Já sofri muito, querido. Não preciso de mais dor nesta vida. Com um suspiro, percebi uma chuva chorosa através da janela. A tarde havia passado e a noite já chegava. Minha cabeça rodava entre desabafos e cenários que fui montando em minhas histórias. Repensei toda uma vida em uma tarde e mesmo assim não sentia cansaço, mas uma vontade louca de encher páginas e páginas dos mais delirantes diálogos. Já Sílvia Maria parecia exausta. No fim da última frase, uma rouquidão surgia e sua voz ficou quase sexy. Juro que não havia nenhuma intenção, apenas uma constatação. Precisava ir embora, mas não sabia exatamente se queria. Ficamos em silêncio por alguns segundos, como se digeríssemos todas as informações.

    – Já está tarde, Dona Sílvia, eu…

    – Mas é claro, querido. Te prendi aqui tempo demais. Já está tarde. Quase na hora da minha novela.

    – A senhora gosta de novelas?

    – Você mesmo não disse que eu sou bem normal?

    – Rs… Ainda temos que comparar as broas!

    – Volte quando quiser para tirarmos a prova… Mas acho que a minha ainda é imbatível!

    – Volto sim, Dona Sílvia.

    Voltamos a ser como no começo de nossas conversas e nos demos um abraço, como há muito eu não dava em ninguém, e que ela também não recebia. Foi rápido, como em novos amigos, mas suficiente para um bom começo.

    E durante toda a madrugada em que escrevi, com uma inspiração fluida, o meu novo romance, e durante todas as outras tardes e noites que trocamos impressões sobre bolos e memórias, ninguém mais subiu para o apartamento de Dona Sílvia. De uma forma estranha e até meio torta, nos bastamos.


  • Por trás do muro azul

    Todos os dias ela saia às 16 horas em ponto. Seu destino era certo, mas ninguém sabia suas motivações. Nem mesmo seu marido, que nunca desconfiou dessas saídas no meio da tarde de Ana Maria. Ela nunca lhe deu motivo para desconfiança, mesmo sendo ainda muito bonita e com corpo esbelto. Devota, mulher prendada e dedicada a ele, Rogério saia tranquilo todos os dias para o trabalho sem nunca imaginar o que acontecia no íntimo de sua quase santa esposa.

    Ana se olhava no espelho de novo, querendo enxergar através dos seus olhos azuis que pareciam estar ficando cinza. Será que ela estava perdendo o brilho? A vida não tinha sido fácil, afinal. Nada a reclamar, pois tinha um bom marido, um belo lar… Ou melhor, uma bela casa. Um lar, para ela, era um lugar repleto de alegria e barulho. E filhos. Coisa que Deus não a permitiu ter. Teria sido mesmo Deus?

    Depois de três abortos eles finalmente desistiram. Seu corpo não aguentava mais, sua alma se dilacerava a cada perda e seus olhos perdiam aquela luz que se acendia a cada resultado positivo. Seu imaginário dançava novamente pensando em nomes, comprando roupinhas, pintando paredes do quarto, mobiliando sonhos. Tinha algo errado com seu útero, alguma doença com nome estranho e nada ficava por ali. Ela sorria por três meses, no máximo. Ficava de repouso, fazia promessas, evitava até beijar o marido para não ter vontades e colocar tudo a perder. Mas nada adiantava. Ela não tinha sido feita para ser mãe.

    Depois da dor quase enterrada, Rogério veio com a ideia de adotar. Tanta gente adota, afinal. Mas não seria a mesma coisa. Ana queria sentir a barriga crescer, seu filho ou filha mexer dentro dela, ter todo um processo de espera, de escolhas, do amor que cresce e transborda junto com a barriga e o leite que escorre quente pelos seios. Por que justo ela não poderia passar por todas as dores e delícias de parir? Será que era seca, como dizia a sua avó? Gente seca normalmente é ruim, pensou ela. Será que sou tão ruim assim?

    Esse pensamento a despertou para a hora. Não poderia chegar atrasada, por favor! Ela precisava estar presente ao seu compromisso, presente e inteira. Tentou se distrair pela rua, pensando em coisas boas. Mas estava especialmente melancólica naquele dia. Vendo flores e enxergando apenas flores, não o perfume, as cores e até os pássaros que cantam ao seu redor como percebem os apaixonados. Era como se previsse algo, com o coração apertado e o pensamento longe. Quase foi atropelada por uma bicicleta, tamanha a sua distração. Ouviu resignada o rapaz raivoso a mandar para lugares inomináveis e seguiu seu caminho. Tinha certeza que no próximo quarteirão se sentiria melhor. Seu compromisso ficava por trás de um grande muro azul e, lá, tudo era perfeição.

    Rogério chegou em casa como de costume às 19 horas e um cheiro bom de feijão vinha da cozinha. Ana Maria estava de costas e ele vislumbrou o corpo da esposa, um típico violão. Belas ancas, cintura ainda finas, os ombros delicados e penugens louras descendo pelo pescoço. Ela prendia os longos cabelos ao cozinhar e sua nuca, nua, ainda arrepiava Rogério como no começo do namoro. Ele a enlaçou pela cintura e lhe deu uma mordida leve no pescoço. Ana se assustou, mas deixou o corpo solto nas mãos do marido. Que susto, querido!

    Voltando seu rosto para ele, o beijo foi inevitável e parecia que o feijão ia queimar também. Há tempos eles não se amavam e a fome se transformou em ação. Talvez já fosse hora de esquecer um pouco as amarguras e deixar a vida mais leve. O corpo de Ana pedia esse carinho, mas as lembranças a impediam de gozar. O sexo era quase sempre um martírio, pois ela nutria esperanças vãs e o fato de não mais poder engravidar tornava tudo estranho ao seu olhar. Não se sentia mãe, mulher, nada. Não se achava nada mais.

    Rogério fechou os olhos e colocou a mão por debaixo da saia de Ana. Com movimentos doces, levou sua mulher a um gozo que ela há muito não sentia. Ficou quase constrangida com o líquido que escorria pela sua perna e tentou se segurar. Mas precisava de mais e trouxe Rogério para dentro de si. No chão da cozinha, como uma adolescente. Ele se espantou com tamanha impetuosidade e foi ainda mais doce, demorando a gozar e fazendo Ana se desmanchar agarrando seus seios com força enquanto jorrava entre suas pernas. Exaustos e satisfeitos, gargalharam com toda a situação: nus, no chão, mal conseguiam se levantar sem o apoio do fogão. Não temos mais idade para isso! Riu Rogério.

    Recomposta, Ana colocou a mesa e começaram a conversar sobre o dia. Ele, todo satisfeito com o trabalho, novos colegas chegando da filial de Salvador e Ana notou uma entonação diferente quando ele comentou sobre uma tal Larissa. Moça nova, trabalhadora e esforçada, dizia ele. É bonita? Ela pensou, mas não perguntou. Bobagem, devo estar na TPM e inventando coisas. Queria contar também sobre o seu dia, mas se restringiu a falar como os preços subiram no supermercado. Daqui a pouco, vamos comer farinha com água, dramatizou. Pratos recolhidos, se aconchegaram no sofá para ver o jornal. Ele, conferindo números e fazendo conjecturas como se o apresentador lhe ouvisse. Ela, pensando em como a noite seria longa até seu compromisso de amanhã.

    No meio da tarde, Rogério liga com a voz histérica querendo respostas. Ana, minha filha, você não pode acreditar. Vamos nos mudar! Mudar como, homem? A filial de Salvador precisava de um bom gerente e nada melhor do que alguém com larga experiência como ele. Acostumada com sua vida em São Paulo, Ana Maria declinou. Não vou mesmo. O que tem pra fazer em Salvador? Rogério se segurou para não dizer: o mesmo que tu faz aqui, mas não queria ofender a esposa. Sabia de toda a sua dor e sempre preferiu que ela ficasse em casa cuidando de tudo. Não por machismo, mas como o dinheiro sobrava, dava para manter muito bem os dois. Quando Ana teve o último aborto, pensou até em sugerir que ela voltasse a ser professora, mas achou que ela talvez fosse ficar deprimida perto de crianças. Ela se fechou no seu mundo, ele teve medo de entrar e dois deixaram as coisas caminharem por si. Mas agora a vida ia mudar!

    Ana desligou o telefone e ficou pensando em como iria tirar essa ideia maluca da cabeça do marido. Que se dane a empresa, ele pode muito bem se recusar a um pedido deles! Não poderia estar tão longe do seu compromisso, da alegria por trás do muro azul. Não aguentaria mais uma perda, não mais. Ia se separar, pronto. Ele que fosse e deixasse ela lá. Tirou logo a ideia da cabeça. Amava Rogério, sem dúvida que amava. E imagina ele em Salvador, solto. Deus me livre! Pensou em esfriar a cabeça e foi tomar banho. Sentiu a água quente descendo pelo corpo. Lembrou-se da noite anterior, os dois no chão da cozinha e seu gozo escorrendo pelas pernas. Sorriu para si. Sim, amava Rogério. Resolveu relaxar e se masturbou. Sentiu cada pedaço do seu corpo como há muito tempo não sentia. Se sentiu bonita. Seu corpo continuava firme, com curvas delicadas, penugens louras nas coxas e se tocou com ardor. Fez amor com ela mesma.

    O muro azul continuava ali, mas ela achava que ele tinha ido embora. Para Salvador, junto com ela, dentro da mala. Chegou no local às lágrimas, como se fosse mudar no outro dia. Que desespero, meu Deus. O que vou fazer? Contar a Rogério? Ele não entenderia. Talvez risse de mim. Por mais encantador e compreensivo que ele fosse, era homem. E como todo homem, era prático. Sentimentos e apegos não eram com ele. Nada que ela falasse ou que precisasse seria suficiente para ele desistir da ideia de Salvador. Será que essa tal Larissa também vai estar lá? Será que é por isso que ele quer se mudar? Que louca eu sou, meu Deus. Pra que pensar tanto? Às vezes queria ter um botão de liga e desliga para simplesmente parar de pensar. Claro que não acreditava que seu marido era 100% fiel. E foi ensinada a entender isso. Homens têm necessidades que as mulheres não têm, aconselhava a sua mãe. Se ele te der uma casa, te sustentar e não te bater, já se de por satisfeita.

    Sua mãe apanhou a vida inteira e é claro que seus pré-requisitos para um homem ideal eram bem baixos. Quando Ana começou a namorar, o único conselho que recebeu da mãe foi para casar virgem. Homem não respeita mulher que já deu. Nem que goste de sexo. Putaria ele faz com as putas. Seja uma mulher direita e uma boa dona de casa. Lhe dê filhos e o resto você finge que não vê. Ana conseguiu se segurar até o casamento, por mais que quisesse muito se entregar para aquele homem que mexia nos seus seios dentro do carro e fazia suas coxas umedecerem. Aquilo era gozar? Toda vez que ela molhava o vestido sentia uma culpa imensa e ficava com medo dele perceber. Tinha vergonha de querer ele tanto e medo dele achar que ela gostava de sexo. Custou a se segurar e fez de tudo para apressar o casamento. Queria Rogério dentro dela, sobre ela, para sempre.

    Na noite de núpcias, Ana Maria se fez a mais bela das mulheres. Depois do casamento na igreja, com direito ao seu pai levá-la no altar com um orgulho besta por ela ainda ser virgem, se refastelaram na festa oferecida pelo seu padrinho, fazendeiro rico do sul de Minas. Sua mãe, mais aliviada do que exatamente feliz – Ana era a última das filhas a se casar, suas irmãs já estavam parindo netos sem parar – eles finalmente foram para o hotel. Ela preferiu assim, passar a noite na cidade antes de embarcar para Buenos Aires. Não se aguentava mais e ficou com medo de morrer virgem no avião. Deus me livre! Colocou a camisola preta que havia comprado escondida – preto e vermelho eram cores de puta – e mais nada. Teve a coragem de não colocar a calcinha que vinha junto e apenas perfumou seus seios e suas coxas para quando Rogério finalmente a tomasse para si. Não tinha mais vergonhas nem pudores. Queria apenas ser do seu homem.

    Rogério continuava imaginando a nova vida em Salvador com um sorriso besta no rosto. Quem sabe Ana não se animava, tomava uma cor e toda noite seria como a anterior? Tinha tempo que eles não faziam amor e Rogério estava quase desistindo da mulher. Pensou até em pagar uma puta, tamanha era sua aflição. Resistiu bravamente às investidas de Larissa, que há tempos debruçava sobre a sua mesa mostrando muito mais do que documentos. Acabou falando o nome dela por puro problema de consciência, como se fosse uma novata. Que Deus me perdoe, mas não queria magoar a esposa. Era o estilo pijamão com muito orgulho. Os amigos até tentavam apresentar mulheres para ele, levar para a caça, mas Rogério era fiel a Ana. Até em pensamento. Desde o primeiro dia que se viram. Ele nunca imaginou sentir aquele amor todo por alguém, mas quando deu de cara com Ana imaginou: Essa mulher vai ser a mãe dos meus filhos.

    Pena que nem tudo que ele pensou para os dois se concretizou. Rogério ficou casto até o casamento, por mais que quisesse dar suas escapadas. Você é muito trouxa, diziam os amigos. A Ana, tudo bem, se guardar para você. Mas tu, Rogério, que já pegou metade de Saquarema? Faça-me o favor! Trouxa! Mas Rogério não queria nem ao menos outro perfume. Dormia e acordava com o cheiro de jasmim de Ana no seu travesseiro e imaginava aquele corpo branco deitado na sua cama. Imaginava a boca de Ana se abrindo para ele, os cabelos deslizando nos seus lençóis e suas pernas longas com aquelas penugens louras se cruzando em suas costas. Como amar outra mulher se ela era tudo que ele um dia imaginou ter? Filha caçula de pai militar, Ana havia sido muito bem criada, frequentado ótimos colégios e tinha um caráter inabalável. Sua mãe sempre se gabava da filha, apesar de levantar suspeitas por várias marcas roxas pelo corpo. A mãe de Rogério dizia que ela bebia até cair, mas ninguém nunca viu nada e Ana continuava sendo o melhor partido da cidade. E foi gostar justamente dele. Que sorte maior ele poderia ter?

    O telefone tocou estridente despertando Rogério das lembranças. Deve ser Ana, mudando de ideia, tão boa ela é. Vai me pedir desculpas por ter pensado o contrário e vai acatar a minha decisão, como sempre. Mas era uma voz de homem, rouca, ameaçadora. Você sabe onde a sua mulher está agora? É melhor ficar de olho! Um frio absoluto passou pela espinha de Rogério. O que seria isso? Uma brincadeira de mau gosto? Mal teve tempo de retrucar e a voz do outro lado havia sumido. Estava tão perdido que nem ouviu o clique do desligar. Estava zonzo, como se houvesse tomado de uma vez só a dose da cachaça da fazenda do seu primo de Minas. Ela desce arranhando a garganta e abre o chão que a gente pisa. Se apoiou na mesa e tentou raciocinar. Que bobagem era aquela? Desconfiar de Ana? Nunca! Olhou para o telefone e pensou em ligar para casa. Claro que ela estava lá, pensando no que fazer para a janta daquela noite, talvez até mesmo pensando em colocar uma lingerie nova para ele, surpresa das surpresas! Mas não custava conferir. Pegou o telefone. Discou. Ridículo, Rogério, ridículo. Não vou ceder ao jogo desse cretino que me ligou, é isso que ele quer. Ridículo. Mas não resistiu. Discou tremendo os números e começou a ouvir angustiado o som do telefone. Chamando uma, duas, 10 vezes. Deve estar tomando banho, pensou. Ligou de novo. Mais uma eternidade. Só pode ter ido ao supermercado. Claro! Rogério já suava frio e começou a imaginar Ana na cama com outro, como em um filme de Luis Buñel. Catherine Deneuve, a bela da tarde, olhava para ele de rabo de olho e dava uma piscada, alisando a perna de penugem loura de Ana enquanto esperavam o próximo cliente. Louco, só posso estar ficando louco.

    Ana Maria saía finalmente pelo muro azul e foi apreciando, de verdade, a paisagem. Como uma apaixonada pela vida. Como quem voltar a respirar. Se sentia bem todas as vezes que saía de lá e o trajeto para casa sempre era mais colorido, mais perfumado, mais feliz. Abriu a porta de casa cantarolando alguma daquelas canções que grudam na cabeça da gente e deu de cara com um Rogério transtornado. O rosto vermelho, como um lobo furioso, começou a pedir explicações. Por onde ela andava, afinal? Pega de surpresa, Ana gaguejou e sentiu o primeiro tapa na cara. Com a força, caiu no chão e começou a chorar. Rogério, ainda mais transtornado e sem saber o porquê de ter batido com tanta força na mulher, não sabia se a ajudava a levantar ou se dava outro tapa. Perguntou de novo onde ela estava, mas Ana mal conseguia mexer o maxilar. Ele se aproximou, e sentindo o cheiro do perfume e o vermelho do batom da mulher, não titubeou. Deu outro tapa e saiu. Vagabunda!

    Ana ainda segurava o rosto quando percebeu que o marido havia saído e se levantou. Ela tinha sangue nos lábios, talvez tivesse mordido a boca durante a briga. Não reconheceu naquele monstro o marido que havia passado por tanta coisa com ela. Um homem bom, educado, quase casto, como sua mãe mesmo dizia. Rogério era de família rica, nunca precisou se esforçar muito para ter o que queria. Seu pai, médico paulista renomado, sempre fez gosto com o casamento, enquanto a mãe teimava em achar defeitos em Ana. Como não conseguia nada, começou a atacar sua mãe. Inventava que a Dona Vivi bebia até cair, por isso vivia roxa. Mal sabia ela que cada roxo era um soco que o pai de Ana desferia quando ela se recusava a algo. Ou simplesmente por existir. Militar reformado, comandante Reis era duro com as filhas e insuportável com a mulher. Queria tudo perfeito, da cama até os pratos na cozinha. A comida tinha hora marcada, tempero certo e a hora da refeição era sagrada. Não podia ter conversa, barulho, os cotovelos para fora da mesa e até o jeito de pegar no talher era inspecionado por ele. Todas as filhas o temiam e nenhuma se lembra do seu abraço. Dona Vivi se resignava pela vida, dando desculpas pelo roxos, ouvindo maledicências e descobrindo, aqui e ali, os casos do marido pelos puteiros de Carmo do Rio Claro. Ela e todas as esposas da época.

    Ainda zonza, Ana Maria resolveu se levantar e entender o que havia acontecido. Aonde ela estava, era isso que ele queria saber? Meu Deus, será que alguém havia descoberto? Mas, se sim, seria motivo para tanto ódio de Rogério? Ficou com medo do retorno dele e resolveu sair de casa, pelo menos até entender o que havia acontecido. Juntou algumas roupas, calcinhas e cremes, ligou para uma das poucas amigas que ainda tinha e se foi. Nem um bilhete deixou, ele realmente não merecia. Ou melhor, ia deixar o número da casa da amiga. Melhor. Melhor? Não, não ia deixar nada. Ligaria no outro dia para o escritório, isso sim. Bateu a porta e pegou um ônibus até a Vila Mariana. Assim que entrou no pequeno apartamento, deu de cara com o rosto boquiaberto da amiga. Ela havia esquecido o quanto deveria estar roxa, pois a sua pele branca havia sido alvo de dois fortes tapas. Meu Deus, é por isso que todos me olhavam no ônibus, pensou. Vamos agora mesmo para uma delegacia, ele não pode fazer isso com você! Não, não precisa. Ele estava fora de si. Ainda não sei o que aconteceu. Deve haver uma explicação. Para isso? Acredito que não!

    Depois de andar como um zumbi pelas ruas, Rogério tomou coragem de voltar para casa. Meu Deus, porque tinha batido em Ana? Nem ao menos perguntou nada, nem esperou ela se defender. Talvez se ela não tivesse chegado cantando, toda feliz como uma mulher no cio, ele tivesse conseguido pensar. Mas ela estava linda, cheirosa, satisfeita…Claro que estava me traindo, claro! E voltou sem compras, então nada de supermercado. Vagabunda, era o que ela era. Meu Deus, mas não era possível. Eles tinham se amado na noite anterior, era real aquilo. E Ana nunca gostou muito de sexo, não teria porque trair. Será que ela estava apaixonada por outro? Mas quem, meu Deus, quem? Agora que ela está acuada, vai ser difícil descobrir alguma coisa. Por isso que ela não queria ir para Salvador, claro. Que burro eu fui, achando que ela era apegada a cidade, as amigas…Tinha macho na parada, é claro! Burro, meu Deus, burro. E ainda sendo fiel, resistindo a Larissa, sem pegar nenhuma puta, respeitando uma vagabunda…Burro!!!

    A noite, Ana não conseguiu dormir. Ainda tinha muita dor no rosto, por mais que sua amiga tivesse lhe dado 2 analgésicos. A dor era muito mais profunda e ela estava tentando montar as peças de um quebra cabeças bizarro. Tinha certeza que alguém deveria ter feito fofoca com Rogério, inventado algo para lhe desmoralizar. Quem? E porque? Rogério deveria estar pensando que ele o estava traindo, mas nunca poderia ter tido aquela reação, meu Deus. Ela, que sempre foi uma esposa devota, nunca lhe deu motivo para desconfiar de nada. Como ele poderia ter pensado isso dela? Ia ligar, com certeza, para o escritório. Com calma, tentar entender tudo. Depois? Não sei. Estava muito confusa ainda. Será que ele sentia falta dela? Será que já tinha voltado para casa? Deve ter ido pegar mulher, claro. E ainda ia se justificar, inventando uma traição dela. Canalha. Bruto. Preciso dormir. Ainda não sei se vou ligar.

    Em casa, Rogério só encontrou o vazio. Nada de Ana, de jantar, de nada. No quarto, poucas roupas e o cheiro de jasmim na penteadeira. Levou o perfume para o outro, vagabunda. Nenhum bilhete dava conta do paradeiro de Ana e Rogério entrou em desespero. Poderia estar sendo estúpido o bastante perdendo sua mulher sem nenhum motivo? Mas, por que então, ela havia saído de casa? Deve ter montado casa com amante, claro! Meus Deus, estou ficando louco. Preciso encontrar minha mulher. E se tudo tiver sido um grande mal entendido, como ela poderá me perdoar? Eu bati na minha mulher, meu Deus. A noite ia ser longa e Rogério nem tinha certeza se gostaria que o dia chegasse.

    Mas o dia veio e com ele novas dores no rosto de Ana. Com as bochechas inchadas e o coração aos pulos, ela ainda não sabia ao certo o que fazer. Olhou no relógio. 07:15. Dormiu mais do que achou que conseguiria. Com certeza foram os analgésicos. Pensou em fazer o café para amiga, se vestir e ir de encontro a Rogério, ainda em casa. Mas teve medo. Não sabia se ele ainda estava com raiva e nem ao menos o porquê. Imaginou o marido no puteiro, chegando em casa com cheiro de álcool e perfume barato de mulher, como tantas vezes viu seu pai entrar em casa de manhã antes de alvejar sua mãe, que ainda se dava ao trabalho de fazer o café para o seu carrasco. Tentou apagar a imagem suja da cabeça e pegou o telefone. Vou ouvir a voz dele primeiro, para sentir o seu ânimo. Seria melhor assim.

    Do outro lado da cidade, Rogério, ainda de camisa e gravata, se revirava no sofá. Não teve coragem de dormir na cama que foi, durante tantos anos, o local de encontro com Ana. Do amor com ela. Das negativas e tentativas frustradas durante os meses após os abortos. Ele sempre respeitou a dor da mulher, ficava imaginando a sua tristeza, o seu sofrimento. Até parava de pensar em sexo. Burro! O telefone tocava ao fundo e ele levantou ainda cambaleante com a cabeça zonza de raiva e culpa. Quem poderia ser tão cedo? Será que aconteceu alguma coisa com ?Ana? Meu Deus, o que ele teria feito? Era ela. A voz calma, perguntou com ele estava. Falsa, vagabunda. Como poderia estar o novo corno da cidade? Ótimo, claro! Ana não riu e ignorou o sarcasmo do marido. Ele parecia mais calmo, mas talvez fosse ainda pelo efeito do sono. A voz estava embargada e é claro que ele passou a noite na gandaia. Filho da puta. De qualquer maneira, precisamos conversar. Conversar? Pra que? Acho que devemos explicações. Podemos almoçar como pessoas civilizadas. Cretina, quer me contar o caso e ainda levar meu dinheiro. Claro, vamos almoçar, mas já vou avisando: Já falei com meu advogado.Tanto faz. E Ana desligou.

    Rogério tomou um banho rápido e foi para o escritório. Não tinha cabeça para nada, mas notou um burburinho incomum quando chegou na empresa. Não sabe o que aconteceu? Larissa foi encontrada morta em casa. Estão desconfiando do ex marido. Ele era muito ciumento, parece que nunca aceitou o fim do casamento e jurou acabar com a vida de todo mundo que ela dava em cima. Rogério sentiu o mesmo frio que gelou a sua espinha no momento do tal telefonema. Seria a mesma voz? Lembrou do tal ex marido de Larissa, um homem alto, forte, com jeito de poucos amigos. De vez em quando ele dava um perdido na porta da empresa, esperava Larissa sair e a pegava pelo braço, tentando colocá-la no carro. Ela esperneava e as vezes apelava para Rogério, que saia em defesa da menina, dando um chega pra lá no armário em forma de gente. Invariavelmente o grandão cedia, mas nunca sem antes soltar, em tom ameaçador: Vai cuidar da sua mulher, senão eu cuido! A voz, era sim, a mesma do tal telefonema. Será que ele estava seguindo Ana? Meu Deus, que loucura! Será que ele desconfiava dos dois? Rogério correria perigo? Mais essa,agora. Já não bastava ser corno agora era alvo. Nem teve tempo de ficar consternado pela morte de Larissa. Era um problema a menos afinal.

    Na hora do almoço, Ana se dirigiu para a porta do escritório do marido. Marido, ainda? A cabeça estava confusa e não sabia se conseguiria perdoar Rogério. Será que suportaria seu toque novamente? Será que ele ainda a desejaria? Que idiota, meu Deus. Ela havia apanhado, ele era um escroto, porque se sentia culpada? Não tinha feito nada, nunca fez. Pensou, claro. Se sentiu atraída várias vezes por outros homens, mas nem se sentia mais tão pecadora assim, apesar de ter aprendido a pedir perdão até por pensamentos impuros durante a catequese com dona Ondina. Quase freira, Maria Ondina desistiu de entrar para o convento para ensinar crianças a amar e respeitar a Deus sobre todas as coisas. Será que ainda estaria viva? Meu Deus, precisava ir a Carmo do Rio Claro visitar as pessoas, sua família, sua mãe. Será que iria ao túmulo do seu pai? Vontade não tinha, acho que jamais havia rezado nem ao menos pela sua alma. Duvido que ele tivesse uma também.

    Com um cumprimento estranho, dois beijinhos desajeitado, eles se uniram por poucos segundos e foram caminhando até o restaurante mais próximo. A comida era só um pretexto, Ana queria mesmo era um local público para se sentir segura. Rogério estava aparentemente calmo, talvez até dopado. Será que ele bebeu cedo assim? Mas não, parecia um torpor infantil, como quando adormecemos após chorar por horas a fio. Como que acomodado, resignado com um fato. Pediram os pratos, ele pediu cerveja e ela, água Queria estar sóbria, lúcida pra falar e ouvir. Tomou coragem e começou com um por quê? Ele a olhou como quem tem vergonha de si e contou tudo que tinha passado nas últimas horas. Falou da desconfiança, do ódio, do arrependimento, das lembranças boas, do medo de perder a mulher da sua vida. Pediu perdão com as mãos sobre as dela e chorava feito uma criança perdida dos pais. Mas em momento algum perguntou o que ela estava fazendo no dia anterior. Não se sentia digno de saber algo além do que ela quisesse contar. Entendeu que foi vítima de uma cilada e não queria mais sofrer. De repente, Ana se sentiu mãe do seu próprio marido. Nunca o tinha visto tão frágil, tão bobo, tão desprotegido. Era como os fetos que ela colecionava nas estantes da sua dor, cada um com um nome e sexo. Seus filhos e filhas que ela nunca pode colocar no colo, ninar, amamentar. De repente, ela se deu conta que só queria ir para casa com Rogério, se despir para o marido e deixar ele sugar seu leite e seu gozo como em sua noite de núpcias. E dormir feliz esperando o dia trazer o que há por trás do seu muro azul.


  • Sérgio e a coroa de flores

    Nem eram tão amigos assim. Colegas de trabalho, se cumprimentavam cordialmente, participavam das mesmas rodinhas de café, talvez tenham se encontrado em um ou dois “happy hours.” E só. Mas o desespero e a dor têm o dom de aproximar os desavisados e foi nesse momento que Sérgio assinou o seu destino.

    Ficou sabendo que o tio de Cleide havia falecido no dia anterior e foi prestar condolências. Ela, ainda com os olhos inchados do choro da véspera, tentava se fazer de forte. Talvez pela distância da família – o falecido morava em uma cidadezinha na Paraíba – ou por ter o tio em alta consideração – Era como um pai para mim, ela repetia – que o rosto ainda não tinha se recuperado de todo o sofrimento.

    – Se puder fazer algo pela senhora, conte comigo!

    – Jura, sr. Sérgio?

    Claro! Amigos são para essas coisas.

    Não era amigo, mas não podia ver uma mulher fragilizada.

    – Então vou pedir! Sei que o senhor está indo para a Campina Grande e o enterro do meu tio será em uma cidadezinha ao lado. Será que o senhor pode levar uma encomenda? É de toda família!

    – Claro, dona Cleide. Mas embarco amanhã cedo.

    – Encontro com o senhor no aeroporto, pode ser?

    – Claro. Mas não posso ir nessa cidadezinha…

    – Minha tia vai encontrá-lo no aeroporto, pode ficar despreocupado!

    Pelo menos ele não precisaria passar na casa dela para buscar a tal encomenda. Tem tanto folgado por aí!

    Sérgio planejava essas férias há muitos anos. Tinha o sonho de conhecer o São João de Campina Grande. Sempre via na TV aquelas roupas coloridas, as danças frenéticas, a animação do povo. Mas sua mulher nunca quis saber de viajar tanto para ver o tal arraiá. Agora, separado, não se fez de rogado. Ia passar os 30 dias do mês de junho se inebriando de quitutes e São João. Sua mala estava repleta de camisas xadrez e ele até tinha ensaiado uns passinhos.

    Às 7 da manhã Cleide já o esperava no portão para a sala de embarque, sem chance para negativas. A encomenda era uma coroa de flores, “SAUDADES ETERNAS DA FAMÍLIA SILVA”, para o tio falecido na Paraíba. Sérgio achou que era o sono que estava lhe pregando uma peça, mas a imagem de repente se formou em toda a sua plenitude de cores e letras douradas.

    – Muito obrigada Seu Sérgio. Nem sei como agradecer.

    Virou as costas e se foi, por pressa ou por medo da recusa de Sérgio, que ficou lá parado sem entender como iria carregar aquele trambolho. Pensou em jogar fora e comprar outra ao chegar no destino, mas ficou com medo de ter o pé puxado pelo defunto, Seu Ismael.

    Resolveu encarar a missão e os olhares dos outros passageiros. Virou os dizeres para si, como se acreditasse em mau agouro e foi andando na fila como se os cochichos não fossem para ele. Quando finalmente chegou na entrada do avião, teve que se explicar para a aeromoça, que exclamou, assustada:

    – Em 20 anos de carreira nunca vi ninguém tão pessimista!

    Sérgio sorriu, constrangido:

    – Não, minha senhora. Isso é um favor que fui praticamente obrigado a fazer. É para o enterro do tio de uma conhecida. Nem amiga é. Mas não tive como negar. Ou não pude, já nem sei mais.

    – Não sei se ela vai caber no bagageiro.

    – Levo na mão, no colo, sei lá. Só quero chegar logo em Campina Grande e ficar livre disso.

    A aeromoça usou todos os seus anos de treinamento para conseguir deixar a coroa de flores em um lugar que não incomodasse nem assustasse ninguém. Foi em vão. Ela parecia querer escapar do bagageiro e quase acertou uma senhora que ia se sentar na poltrona confort. Quando a coroa de flores se abriu exibindo todos os lírios e girassóis, metade dos passageiros se levantou. Queriam embarcar em outro voo imediatamente, que brincadeira era aquela? A outra metade, talvez a dos mais corajosos, começaram a rezar.

    Finalmente, ânimos acalmados, coroa de flores ajeitada, levantaram voo para Campina Grande. Com toda a sua experiência em viagens de avião, Sérgio poderia dizer tranquilamente que aquela talvez tivesse sido a mais tranquila. Sem turbulência, céu de brigadeiro do começo ao fim e nem ao menos uma criança para chutar a sua cadeira ou uma senhora nervosa para lhe pedir que segurasse a sua mão. Paz, absoluta paz. Chegou a cogitar que a coroa de flores, era, na verdade, um amuleto da sorte. Teria certeza logo mais.

    O avião pousou no horário marcado sem maiores problemas. Sérgio esperou todos saírem para tirar a coroa de flores já amassadas e não atrapalhar mais ninguém. Despediu-se com um muito obrigado a todos da tripulação e quase se esqueceu que ainda teria que entregar o trambolho para a tia de Cleide. Qual era mesmo o nome dela?

    Nem precisou se lembrar. Assim que saiu do portão de desembarque se deparou com uma senhora que era a cópia de Cleide em tamanho reduzido. Tinha o mesmo rosto inchado da sobrinha, onde o choro tinha feito morada havia pouco. Só algumas rugas a mais e maquiagem de menos.

    – Seu Sérgio?

    – Sou sim. A senhora é a tia da Cleide?

    – Sim senhor. Prazer, Antônia. Nem sei como agradecer por trazer essa coroa de flores. Meu marido ia ser enterrado sem nada, não fosse a minha sobrinha.

    Se sentiu quase um santo ao perceber a importância do seu favor. Passou a coroa de flores para Antônia e segurou o riso quando elas ficaram praticamente na mesma altura. Despediram-se com um aceno cordial e Sérgio ficou observando aquela senhora, já idosa, levar aquela coroa de flores como se fosse um fardo.

    – Dona Antônia, deixa eu te ajudar!

    Pegou a coroa com uma das mãos e viu o corpo de dona Antônia se endireitar. E lá se foram dois completos desconhecidos para o local do velório de Seu Ismael em uma cidade chamada Coxixola. Pertinho, segundo ela.

    Duas horas mais tarde, algumas trocas de palavras sobre o tempo, a vida no Sul – para os do norte, Rio de Janeiro é o Sul – e o excesso de calor, estavam no único cemitério da cidade. Lá os esperavam um coveiro sonolento, um cachorro caramelo e talvez toda a cidade de Coxixola, que não tinha mais do que mil habitantes. Parecia que o tal Ismael era um homem muito bom, querido por todos. Parecia.

    Só que na verdade, Ismael tinha três famílias e todas estavam presentes, com as referidas viúvas, seus filhos, netos e até um bisneto! Dona Antônia parecia ser a matriz, pois foi a única que teve o direito a rezar e a colocar a coroa de flores sobre o caixão de madeira clara. As outras duas viúvas, um pouco mais novas, estavam ao seu lado, em sinal de respeito. Uma chorava alto, pedia para ir junto, dizia que a vida não tinha mais sentido. A outra, que Sérgio descobriu ser a preferida, era mais contida, quase elegante.

    Em torno desse núcleo de mulheres, outras pessoas choravam e se lembravam das façanhas do Seu Ismael. Bom violeiro, não perdia uma festa. Era bom de gole e de dança. Cantava como ninguém. Torcedor fanático do Campinense, não perdia uma final do Paraibão. Tratava a todos com o mesmo respeito e dizia que só traia por amor. E como amou seu Ismael!

    Sérgio foi ficando. Estava gostando de ouvir os casos, beber uma para o santo, espantar as muriçocas. Sem perceber, ele estava já na procissão para o enterro, o adeus final a Ismael, segurando uma das alças do caixão. Se envolveu com aquela gente, com o sofrimento misturado com o calor e as lembranças. Lembranças que eram também suas, de tantos velórios e despedidas. Seu pai, que se foi ainda novo, deixando expectativas demais e presença de menos. Sua mãe, que o criou sozinha e que talvez tenha
    sobrevivido apenas pela responsabilidade que lhe caiu de repente nas costas. Seus avôs, alguns amigos, tanta coisa que ficou sem aquele depois que esperamos, sem nunca ter a certeza de que irá mesmo acontecer…

    O enterro aconteceu ao pôr do sol, uma cena linda e comovente. O sol desaparecia ao mesmo tempo em que seu Ismael deixava a superfície e voltava para a terra, sob o choro desesperado de todas as suas mulheres. Dizem que nesse momento a certeza da perda é avassaladora e não teve elegância que segurasse a dor. Os choros. De todos. Alguns amigos estavam com uma camisa que trazia o rosto sorridente do amigo e a frase

    – “Eu bebo sim, estou vivendo” na frente e “Tem gente que não bebe e está morrendo” nas costas. Seria irônico se não fosse trágico.

    O dia se findou e só aí Sérgio se deu conta de que estava longe de onde havia reservado o hotel. Duas horas, para ser exato. E em uma cidade com mil habitantes, quais seriam as opções de hospedagem? Precisou interromper dona Antônia na fila dos cumprimentos e pedir informações.

    – Imagina, seu Sérgio. O senhor fica lá em casa!

    – Não quero incomodar, a senhora está de luto. Nem fica bem.

    – Então fica na casa da minha sobrinha. Joana, chega aqui!

    Ainda sem entender como não tinha reparado naquele pedaço de mau caminho, Sérgio deve ter ficado um bom tempo de boca aberta até a tal sobrinha se apresentar. Tanto que Antônia lhe deu um cutucão e um aviso:

    – É bonita, mas não é desfrutável. Tome tento!

    – Claaaaaro, dona Antônia. Por quem me toma?

    – Não te tomo por ninguém, nem lhe conheço. Mas quem faz a lei aqui é o pai dela, o delegado Tonhão, meu irmão. Então, avisar não ofende. E faz bem para os dentes.

    Ciente da situação e dos limites, Sérgio foi para casa de Joana com pensamento fixo em uma só questão: o celibato. Era isso. Durante toda essa noite, seria como um padre. Se tantos conseguem durante anos,
    como ele não conseguiria durante algumas poucas horas?

    Mas não era bem assim. Joana iria no dia seguinte para Campina Grande, trabalhava – adivinha onde? – no mesmo hotel que Sérgio iria se hospedar. Claro que ele não sabia de nada disso e dormiu feito um bebê, feliz por resistir àquela tentação e já planejando a sua maratona de festas em Campina Grande.

    No dia seguinte, tomaram café juntos. Ela com uma camisola rosa, rendada, com lacinhos em lugares estratégicos. Ele, rezando baixinho um Pai Nosso e o credo, já estava todo vestido e de mala em punho para não dar sorte para o azar.

    – Já vai? – a deusa disse com aquele sotaque delicioso e arrastado, como se nem mesmo as palavras tivessem acordado ainda.

    – Sim. Na verdade, nem era para estar aqui.

    – Ah, diga isso não…Quem sabe era aqui mesmo que o senhor deveria estar?

    A lógica do povo do nordeste era mesmo diferenciada. Eles simplesmente aceitavam as coisas como eram entregues. Ai dele se pensasse assim.

    – Querer eu queria, mas já perdi um dia de reserva do hotel.

    – Qual hotel?

    – Estou no Garden.

    – Coincidência…Trabalho lá.

    Jesus, só podia ser uma provação.

    – Que bom…então, obrigada pela hospedagem, já vou.

    – Vá não…espere um pouco que vou com o senhor.

    Sérgio começou um Salve Rainha e embalou uma Ave Maria, porque no desespero quem salva é Nossa Senhora. Joana foi tomar banho com aquela calma que lhe era peculiar e o cheiro de alfazema inundou a casa. Ela saiu do banheiro envolta em uma tolha também rosa como se ninguém estivesse por perto e seus cabelos molhados pareciam envolver todo o seu corpo e o mundo todo. Sérgio apenas ficou sentado em uma das cadeiras dispostas em volta da mesa como uma criança de castigo. Não conseguia largar a mala e sua mão suava tanto quanto a sua testa. Não era mais calor, era desespero.

    Mas, se já está no inferno, que abrace o capeta. Sérgio então esperou a moça se arrumar, levando o seu pensamento para qualquer coisa que não fosse a imagem de Joana nua escolhendo uma roupa no armário ou passando um batom nos lábios. Ou apenas nua, o que já era suficiente para tirar Sérgio e qualquer outro homem do prumo.

    Depois de alguns minutos que pareciam eternos, Joana apareceu ainda mais linda e perfumada. O carro que Sérgio havia pedido já esperava lá fora e nem mesmo o motorista, que buzinava inquieto, conseguiu ficar imune ao encantamento que era ver Joana envolta em alfazema e cor de rosa. Parecia que tudo que ela vestia e usava tinha aquela cor.

    Entraram no carro e foram os dois, no banco de trás, trocando palavras soltas. Sérgio tentava contemplar a paisagem, fazer planos em cadernos imaginários. Pensava em planilhas com datas e horas para as festas, as roupas, o que iria comer e beber. Queria esquecer que Joana estava bem ao seu lado, ainda com os cabelos molhados e a perna roçando na dele a cada curva da estrada. De repente, um cachorro cruzou na frente do carro e a parada brusca fez Joana ir inteira para o seu colo. Seu vestido se levantou, alcinhas saíram do lugar e coxas e seios pularam como pedindo abrigo. A voz de Dona Antônia parecia ecoar em seus ouvidos:

    – Não é desfrutável!

    Joana se recompôs, o cachorro seguiu seu caminho e Sérgio voltou a fazer planos em notas imaginárias, mas os seios de Joana agora já eram uma realidade e nada mais conseguiria ter mais a sua atenção.

    Na entrada do hotel se despediram. Ele foi rapidamente para o seu quarto enquanto Joana foi se trocar para começar o dia de trabalho. Sérgio tomou um longo banho e deitou-se na cama espaçosa. Ainda não se acostumara a dormir sozinho, mas acreditou que seria uma questão de tempo. O fim do casamento ainda era uma ferida aberta, mas como toda cicatrização, só precisava de tempo para acontecer. “O tempo cura tudo” é uma das maiores verdades que a gente escuta por aí.

    Consultou a programação do dia e viu que as festas juninas só começariam depois das 18 horas. Resolveu então conhecer o hotel, tomar um banho de piscina, relaxar. Ainda era cedo, depois pensaria no almoço. Não queria ter hora para nada. Estava de férias, afinal.

    Assim que chegou na área de lazer do hotel, reconheceu aquele cheiro de alfazema. Joana estava a postos, com seu uniforme de camareira, entregando toalhas para os hóspedes. O hotel estava lotado, famílias inteiras estavam lá pelo mesmo motivo de Sérgio: conhecer o famoso São João de Campina Grande. Tentou disfarçar e procurou uma cadeira bem longe da confusão e de Joana. Que eram praticamente sinônimos. Tirou o roupão e tentou relaxar. Pegou o livro da vez e começou a se concentrar
    na história, enquanto crianças de todas as idades pulavam incessantemente na piscina a sua frente. Ele não teve filhos e naquele momento achou a decisão bem acertada. Era um show de descontrole
    quase animal. E os pais pareciam ignorar as crias, bebendo e conversando a uma distância segura. Para eles!

    Enquanto pensava no que fazer para se ver livre daquele barulho, Sérgio não percebeu Joana se aproximando com uma toalha nas mãos. Ela conseguia ficar linda até de uniforme e disse, com aquele sotaque preguiçoso e ardente:

    – Trouxe uma toalha para o senhor. Quer mais alguma coisa?

    Ele queria, ah como ele queria! Queria Joana inteira, com cheiro de alfazema e calcinha rosa na sua cama, todos os dias e para sempre. Queria encarar delegado, dona Antônia, padre e polícia por causa daquela doçura endiabrada. Mas não podia, não podia…Não queria!

    – Quero não – ele respondeu, já imitando o sotaque de Joana sem querer.

    – Querendo, é só chamar.

    Vou ficar querendo, ele pensou.

    Depois do almoço farto e de uma cochilada revigorante, Sérgio estava pronto para a sua primeira festa de São João em Campina Grande. A tão sonhada noite que ele planejava desde a sua separação. A atração da festa seria Elba Ramalho, que subiria ao palco depois da primeira apresentação de quadrilha da cidade. Estava eufórico como criança em noite de Natal. Tinha medo de que suas expectativas fossem maiores do que as realidade que lhe aguardava logo mais. Mas se surpreendeu mais do que poderia
    imaginar. Aprendeu que era “estribado”, mesmo com outros homens “mangando” do seu sotaque. Só os homens. De pura inveja mesmo.

    Pois Sérgio era um belo carioca, com sotaque malando e olhos verdes do mar de Copacabana em dia de ressaca. Fazia esportes na praia diariamente antes do trabalho e mantinha um belo bronzeado. O banho
    de mar era sua religião e seu estilo de vida só não era mais descolado porque tinha que bater ponto. Tirando isso, era o mais belo exemplar de toda ginga esperada de alguém nascido na cidade maravilhosa. E é claro que tudo isso foi detectado pelas mulheres de Campina Grande. Por onde Sérgio passava, ganhava mais do que comprava. A cerveja vinha com um carinho na mão, o espetinho com um olhar malicioso, o curau com um bilhetinho, o mungunzá com o telefone da menina que servia o quitute, o beijinho com a promessa de mais…Era tanto sucesso que Sérgio já nem se lembrava mais de Joana. Ou pensava que não.

    Em 28 dias de festa, Sérgio conheceu tantas mulheres, beijou tantas bocas, se fartou entre tantas pernas, se inebriou em tanto cangote, dançou tanto xote, que o cheiro de alfazema parecia ter desaparecido entre os mais variados cachos e ventres. Ele aparecia apenas na hora da toalha, na piscina, onde a cada dia Joana abria mais um botão da blusa e se curvava com mais empenho, sabendo exatamente o que mostrava e o que ainda queria esconder.

    Mas no último dia de festa, Joana apareceu cedo no quarto de Sérgio. Bateu na porta oferecendo serviço de quarto, que ele não pedira. Mas abriu a porta mesmo assim, sonolento, exausto, ainda com o gosto da
    mulher da noite anterior na boca. Manuela era seu nome. Manu. Talvez a mais fogosa que ele já tinha conhecido. Quase certeza.

    – Bom dia Seu Sérgio. Pediu café da manhã no quarto?

    Ele nem teve tempo de pensar na resposta e Joana já foi entrando no quarto empurrando o carrinho com os mais variados e exóticos quitutes. Seu cheiro de alfazema se misturava aos aromas daquelas delícias e Sérgio não sabia o que o estava deixando mais louco.

    – Joana, eu não pedi nada.

    – Mas eu lhe trouxe mesmo assim. Tem quase um mês que lhe quero e toda noite lhe vejo bulindo outra rapariga na festa. Tudo garapeira amostrada! O que lhe fiz, homem?

    Sérgio ficou sem ação e sem entender metade das palavras que ela dizia nervosa e com raiva. Ela lhe queria?

    – Sua tia me disse para não encostar a mão em você, Joana. Precisava lhe respeitar, você é donzela.

    – Que donzela nada! Sou moça de família, mas já perdi o cabaço tem tempo. E o senhor tá me deixando abilolada fugindo de mim assim.

    O rosto de Joana enfurecido de tesão, aqueles aromas invadindo o quarto, o calor que ele não sabia mais distinguir de onde vinha, os seios que ela mostrava pouco a pouco todos os dias…Sérgio simplesmente não queria mais resistir.

    Se aproximou de Joana como se estivesses prestes a cometer a maior loucura de sua vida. A encarou como quem desiste de viver e simplesmente se entregou ao beijo. Seus lábios pareciam arder e Joana, rainha agora do seu servo, não se fez de rogada. Terminou de abrir os botões da blusa e deu a Sérgio tudo que ele esperava há quase um mês. Ela, de calcinha cor de rosa e encharcada de alfazema. Sérgio não reagiu. Travou no meio daquele furacão moreno e cor de rosa e brochou. Miseravelmente. Não sabia o que fazer. Talvez o cansaço pela noite anterior, talvez o excesso de desejo por Joana. Simplesmente brochou.

    Joana não podia acreditar no que via. Aquilo nunca tinha acontecido com ela e, até aquele dia, também não tinha acontecido com Sérgio. Tentaram de tudo. Joana rebolou, brincou, inventou. Nada. Desolado e constrangido, Sérgio não sabia mais o que falar ou fazer. Joana, revoltada com aquela desfeita homérica, se recompôs e foi embora batendo a porta levando com ela seu cheiro de alfazema.

    Com todo aquele fuzuê, Sérgio tinha perdido a noção do tempo e precisou se apressar para não perder o avião. Fez rapidamente a mala, com a certeza de que não teria surpresas na bagagem para levar de volta ao Rio. No trajeto até o aeroporto, foi pensando no que poderia ter acontecido. Cansaço, só podia ser. Talvez medo do que poderia acontecer, de dona Antônia contando para o delegado, contando para Cleide, seu Ismael voltando para lhe puxar o pé por ter comido sua sobrinha…Enfim. Talvez tenha sido melhor assim.

    O tempo estava perfeito para uma viagem de avião até o momento em que Sérgio colocou os pés no aeroporto. Nuvens negras surgiram como um presságio e o tempo fechou de repente. Todos os voos foram cancelados e ninguém sabia dar alguma previsão de retorno.

    Ao seu lado uma menina brincava distraída com sua boneca toda em cor de rosa. A mãe falava com alguém no celular e, mesmo sem querer, Sérgio não pode deixar de ouvir:

    – Perdi o voo, amor. Não tenho a menor ideia do que vai acontecer. Talvez tenha que voltar para Coxixola, vamos esperar para ver.

    Mais essa, agora. Deveria ser algum carma, só podia. De todas as pessoas no aeroporto, tinha que ter alguém de Coxixola?

    – Me desculpe, a senhora é de Coxixola?

    – Sim, senhor. Por quê?

    – Não, nada. Conheci a sua cidade há um mês. Quente…

    – Foi fazer o que em Coxixola? Lá não tem nada!

    – Fui ao enterro do Seu Ismael. Conheceu?

    – Seu Ismael…Pessoa massa! Todo mundo ficou borocoxô quando ele se foi.

    – Pois é. Fui eu quem levou a coroa de flores. Encomenda da Cleide.

    – Cleidinha? Minha amiga de infância. A gente era pixototinha e já andava encangada. Quando comecei a namorar com meu marido, ela segurava muita vela pra gente poder ir ao cinema. Naquele tempo…

    Mas é claro. O que mais poderia acontecer? Ela, por telepatia, saber que ele tinha brochado? Achou melhor encerrar o assunto de maneira educada antes que ela também fosse também amiga de Joana.

    – Trabalhamos juntos. Muito prazer, sou Sérgio.

    – Vixe Maria! O senhor é o Sérgio de Joana?

    – Como assim, Sérgio de Joana?

    – Joana, prima de Cleide. Ela me contou do senhor…Sim, disse que estava apaixonada. Ih…nem sei se devia contar tudo isso.

    – Joana, apaixonada por mim?

    – Bem, se for o mesmo Sérgio que ela me contou…Sim. é o senhor mesmo! Lembro dos olhos verdes que ela ficou caidinha.

    Não era possível. Joana, apaixonada por ele e ele brocha? Tinha que resolver isso. Tinha que ver Joana, entender aquela paixão que ele também sentia. Não tinha nada a perder, afinal. Como parecia mesmo que nenhum voo deveria decolar mais naquele dia do aeroporto, estava com tudo a favor. A previsão era de mais chuva e Sérgio resolveu voltar para o hotel.

    – Vou voltar para a cidade. A senhora aceita uma carona?

    – Mas o senhor não vai esperar? E se conseguirem colocar a gente em algum outro voo?

    Sérgio não queria mais esperar. Não podia mais.

    – Não me interessa o que eles vão dizer. Preciso resolver uma coisa e agora.

    – Bem, se não for dar trabalho. De lá, acho que volto para Coxixola. Não tenho onde ficar em Campina Grande.

    Já estava se acostumando a essas caronas. Pegaram as malas e rumaram para o Garden. Sérgio logo perguntou por Joana:

    – Saiu logo cedo, hoje é dia de folga dela. Já deve estar em casa.

    Ou seja, em Coxixola. Claro.

    – A senhora está com sorte. Tenho que ir para Coxixola, vamos?

    – O senhor tem certeza?

    – Não sei se tenho toda a certeza do mundo ou se estou fazendo a maior bobagem da minha vida. Mas saberei assim que chegar na sua cidade. Nem ao menos perguntei seu nome, me desculpe.

    – Sou Joelma e a mina filha, essa delícia, é a Ana.

    Era demais. Jo e Ana. Seria Deus lhe mandando sinais? Começou a acreditar em absolutamente tudo. Só não sabia ao certo o que falar para Joana. – Ei, encontrei uma amiga da sua prima que disse que você está
    apaixonada por mim. Posso tentar não brochar dessa vez? Beirava o ridículo.

    Duas horas mais tarde, chegaram em Coxixola. Já estava começando a gostar do lugar. Até cumprimentou um e outro que estavam no bar. Amigos de velório são para sempre, como não? Joelma e Ana ficaram na casa dos parentes. Se encantou pela menina de tal forma que quase começou a querer ser pai. Já imaginava uma filha com Joana, com cheiro de alfazema e pele de romã. Quando o carro parou em frente à casa de sua musa, respirou fundo para tomar coragem. Pagou e parou em frente a porta. Não tinha ensaiado nada, mas resolveu bater antes que ficasse encharcado. Coxixola também estava debaixo de chuva.

    – Quem é?

    – Sou eu, Sérgio!

    Joana abriu a porta em um rompante, como sem acreditar.

    – Arre-égua! O que tu tá fazendo aqui?

    – Bem, meu voo foi cancelado e… não te encontrei no Garden e… não queria que você achasse que eu…e aí, encontrei Joelma…

    – Tu encontraste Joelma aonde?

    – No aeroporto. Ela e a filha, que também perderam o voo e…

    – Oxi…E elas estão bem?

    – Sim, as deixei em casa.

    – O senhor as trouxe?

    – Pois é. Olha Joana, só voltei porque você me disse aquelas coisas que a sua tia mentiu e que você me queria e tal…

    – Desembuche logo, homem, que chego a tá com gastura! Sérgio respirou fundo mais uma vez e conseguiu encará-la:

    – Quero você Joana. Não consigo parar de pensar no que aconteceu, não consigo parar de pensar em você. Mas, olhe…

    Joana abriu seu sorriso mais doce, mexendo os cabelos e espalhando todo seu cheiro de alfazema pela varanda. Olhou Sérgio bem nos olhos e disse:

    – Emburaque de uma vez! Lhe lascou um beijo na boca e o colocou para dentro de sua casa e de si.

    De ambos os lugares, Sérgio nunca mais saiu. Dona Antônia deu a benção ao casal, enquanto Cleide e Joelma foram madrinhas no casamento. A primeira filha do casal se chamou Ana. E, até onde se sabe, a vida de Sérgio continua cor de rosa e com cheiro de alfazema. E em Coxixola.


  • Só um pouquinho

    Dona Glória acabara de comemorar seus 70 anos e, como presente, ganhou um gesso no braço. Uma queda boba, o tapete fora do lugar, o piso encerado e ela se estabacou no chão. No instinto, colocou a mão na frente e o braço segurou o peso de todo o corpo. Que não era muito, pois Glória se cuidava e mantinha a silhueta em dia. Mas também não era pouco.

    Dois meses depois do incidente, ela finalmente tirou aquele incômodo e a primeira reação foi coçar a parte esbranquiçada da pele. Mantinha uma cor bronzeada, fruto da proximidade da praia, e aquele pedaço de braço cor de isopor lhe assustou. Era como se voltasse no tempo e a visse criança, chegando ao Rio, junto com os pais italianos. Era tão branca que se destacava sempre quando se misturava com outras crianças.

    — Sua recuperação foi muito boa, Dona Glória! Mas, como o braço ficou muito tempo imóvel, vou recomendar uma fisioterapia. Algumas sessões e a senhora vai ficar como nova!

    Mais essa, agora! Ela não queria ficar como nova, queria apenas poder se coçar e tomar sol.

    — Tem certeza que preciso disso?

    — Claro. Depois de certa idade a musculatura atrofia e os ossos já não se recuperam da mesma forma. A fisioterapia vai fortalecer tudo.

    Depois de certa idade… Será que todo mundo tem uma idade que marca o começo do fim? Qual seria a dela?

    — Posso fazer em casa? Não tenho saído muito e prefiro o conforto do meu cantinho.

    O que ela queria mesmo era escapar do controle do médico.

    — Tenho alguns profissionais que atendem em domicílio sim. Vou te passar os contatos e a senhora escolhe o melhor.

    Nomes e telefones em mãos, Dona Glória voltou feliz da vida para sua casinha. Realmente achava que todo aquele cuidado era um exagero e deixou de lado a história do fisioterapeuta. Era uma mulher saudável, independente, ia se virar muito bem sozinha.

    Mas já nos primeiros dias, viu que não seria bem assim. O braço não correspondia ao comando, o ombro doía, os armários pareciam mais altos, a mesa mais longe, as cadeiras mais pesadas. Tudo que fazia, doía. Acabou se rendendo. Pegou de volta o papelzinho no fundo da bolsa e resolveu ligar para o primeiro nome da lista. Wagner.

    — Boa tarde Wagner, tudo bem? Aqui quem fala é Glória, quem me deu seu contato foi o Dr. Paulo. Você atende em casa?

    — Boa tarde Dona Glória, atendo sim.

    — Você pode vir amanhã? Estou com muita dor.

    — Posso sim. Pode ser depois do almoço, às 14 horas?

    — Marcado. Anota o meu endereço.

    Glória acreditava em intuição e gostou do jeito de Wagner. Uma voz mansa, grave, como um locutor de rádio de antigamente. Deveria ser um belo homem. Tomara que sim.

    Não que ela estivesse interessada em algo mais que a fisioterapia. Viúva há 20 anos, desde então não se interessara por mais ninguém. Se distraía com as amigas, entre mesas de bar e excursões para Caldas Novas. Elas também se reuniam todas as quartas para jogar buraco, organizavam o bazar da igreja, iam às estreias de filmes, peças de teatro, aulas de dança e tudo mais que o dinheiro desse e o quadril aguentasse. Eram conhecidas como as “Velinhas da Van”: Para todo lugar que queriam ir, alugavam a van do conhecido Seu Joaquim e chegavam seguras, festivas e aprumadas. Com isso, o tempo passava e ela se esquecia da saudade do marido e a distância dos filhos e netos, que sempre tinham algo mais interessante para fazer do que visitá-la.

    Às 14 horas em ponto Wagner batia na porta. Glória olhou pelo olho mágico e gostou do que viu: um homem alto, forte, com rosto suave e mãos fortes. Se ajeitou e abriu a porta com seu melhor sorriso:

    — Bem-vindo, Wagner. Muito trabalho te espera!

    Ele sorriu de volta e começou a se ambientar com a casa. Perguntou o que tinha acontecido, onde era a dor, tirou alguns aparatos e começou a sessão.

    O primeiro contato das mãos de Wagner no braço esquerdo de Glória causou-lhe um arrepio forte até o fim da coluna. Ela tinha se esquecido daquele pedacinho chamado cóccix que ligava as costas às partes mais íntimas e tremeu. Ele pegava de maneira firme, fazia movimentos vigorosos e tudo parecia voltar para o lugar como um milagre. Depois de 40 minutos, Glória, radiante com as novas emoções e já se sentindo um pouco mais ágil, resolveu fazer um café para os dois.

    — Adoçante ou açúcar?

    — Puro mesmo.

    Café de macho. Começaram uma conversa amigável, levada pelo aroma quente da bebida. Ela descobriu que Wagner era o primogênito de seis irmãos, filho de uma empregada doméstica e um motorista de ônibus. Tinha 28 anos, cursou Fisioterapia para ajudar a avó que sofrera um acidente em casa – uma bobagem, mas que ainda limitava os seus movimentos – e conseguiu uma bolsa através do FIES. Ela se limitou a falar que era viúva. Tinha medo de dar muitos detalhes. Achava sempre que podia ser sequestrada ou roubada. E ele teria acesso a ela e a casa, melhor prevenir.

    Marcaram mais sete sessões, duas por semana, sempre depois do almoço. Glória pagou as dois primeiras e disse que ficariam assim.

    — Até sexta!

    Um sentimento novo tomou conta de Glória. Era como se sentisse de novo o seu corpo, que lhe servia apenas para levá-la da praia para casa e de lá para os encontros com as amigas. Colocou uma música no antigo aparelho de som, empoeirado de tão esquecido e se viu dançando pela sala. Feliz.

    As sessões se sucederam com verdadeiro sucesso. Glória não só já fazia todos os movimentos com o braço, como achava mesmo que todo o corpo se movimentava melhor. Já tinha contado toda a sua vida para Wagner, que também era devoto de Nossa Senhora e achou uma beleza ela se chamar Glória por ter nascido no dia 15 de agosto, dia de festa para Nossa Senhora da Glória. Depois das sessões, ela, feliz, mas sozinha, sempre arriscava uns passos de dança e começou a sentir falta de dançar com alguém. Será que Wagner lhe acompanharia em uma dança?

    No dia da última sessão ela preparou uma surpresa: comprou um presente para Wagner em agradecimento a sua dedicação e toda alegria de viver que tinha invadido a sua vida. Queria um pretexto para lhe convidar para dançar e acreditava que o presente e o fim das sessões seriam motivos suficientes.

    Depois do último exercício finalizado, ela tomou coragem. Pegou o embrulho como uma adolescente apaixonada. Sentia o rosto queimar.

    — Comprei para você. Sei que vai lhe ajudar muito.

    — Não precisava Dona Glória, imagina.

    Era um massageador elétrico, último modelo. Ele tinha comentado que um daqueles iria lhe abrir outras portas e resolveu dar um empurrãozinho. Wagner ficou contentíssimo, nem sabia como agradecer.

    — Eu tenho uma ideia, Wagner. Você me acompanha em uma dança?

    — Será um prazer, Dona Glória.

    — Glória. Me chama de Glória.

    Ela colocou um disco antigo de bolero e se deixou levar pelos braços de Wagner. Ele não sabia exatamente como se dançava um bolero, mas aquilo era o que menos importava. Os corpos unidos era só o que Glória precisava. Existia nela ainda um furor de mocidade e o contato doce daquela fartura toda fazia seu coração acelerar e o seu ventre acordava de um longo período de total esquecimento. Ela queria mais.

    Mas a música parou e Wagner se desvencilhou gentilmente de Glória dizendo que precisava ir.

    — Foi um prazer Dona Glória. Precisando de qualquer coisa, pode me ligar.

    E Glória precisava muito, de muito mais. Mas como impedir que ele sumisse de sua vida para sempre? Inventar novas dores, quebrar o outro braço? Não podia se dar ao luxo de quebrar mais nada, não suportaria mais dois meses de gesso e incômodos. Precisava de uma desculpa muito bem elaborada. Sabia que ele precisava de dinheiro, precisava ajudar em casa. Resolveu ligar para uma amiga, a mais esperta.

    — Sarah precisa que me ajude a pensar em uma desculpa.

    — Ele… O que foi?

    Glória contou toda a sua saga para Sarah, judia tradicional que frequentava as melhores rodas do Leblon. Esperta, negociante nata, ela foi certeira:

    — Ele precisa de dinheiro e nós, de distração. Que tal pagar para ele dançar com nossas amigas?

    — Será, Sarah? Não poderia parecer uma certa prostituição?

    — Ele não vai fazer sexo, só vai dançar. Por favor, Glória, nessa idade não precisamos ter tanto pudor!

    A ideia não era ruim. Glória sabia que todas as suas amigas sentiam falta de um parceiro de dança e Wagner era um pedaço de mau caminho. Elas iriam adorar a novidade e todas podiam pagar, sem dúvida. Mas, quanto ele iria cobrar? Resolveu parar de pensar e agir.

    — Bom dia Wagner, tudo bem? É Glória.

    — Bom dia Dona Glória. Está tudo bem?

    — Tudo ótimo querido. Você não vai acreditar. Conversei com algumas amigas sobre a nossa dança e como você foi gentil comigo. Elas ficaram morrendo de inveja.

    — Imagina Dona Glória. Nem danço tão bem assim.

    — Não seja modesto, rapaz. Me senti uma Ginger Rogers! E sabe o que elas me pediram?

    — Não tenho a menor ideia!

    Gloria tentava colocar toda a culpa nas amigas.

    — Elas querem que você dance com elas! Claro, vamos pagar para isso.

    Wagner ficou calado por um tempo. Achou tudo muito estranho, mas precisava de dinheiro. E o que poderia ser mais inocente em fazer meia dúzia de senhoras felizes?

    — Confesso que estou meio surpreso com a oferta…

    Glória se sentia um cafetão.

    — Mas também confesso que realmente estou precisando de uns extras.

    Aliviada, Glória resolveu encerrar o assunto e marcar:

    — Perfeito. Amanhã às 8?

    — Marcado.

    Glória desligou o telefone se sentindo uma devassa. Era como se marcasse um encontro com um garoto de programa, sentia a adrenalina tomar conta de suas emoções. Agora era convencer as amigas a ir até a sua casa e dançar com Wagner. Não seria problema. Sexta à noite normalmente ninguém tinha programa e o fato de sair de casa já era um acontecimento.

    Os preparativos começaram logo cedo. Glória arrumava a casa como uma criança que espera o Natal. Pensou em tudo: separou os discos, dividiu entre as amigas os comes e bebes, ajeitou o espaço para todas se sentarem e, também dançarem. Tinha uma sala espaçosa e precisou apenas rearrumar alguns móveis para que os novos passos coubessem no local.

    A noite chegou e Glória parecia uma debutante. Na excitação, não nos costumes. Colocou seu vestido vermelho, se perfumou como se fosse pecar e arranjou uma rosa vermelha para o cabelo. Se sentia uma cigana. Só faltava rodopiar com seu par, que acabava de tocar a campainha:

    — Chegou cedo, Wagner!

    — Achei melhor me antecipar. Quero saber como vai funcionar a hora dançante… Rs…

    — Bem, você dança com cada uma de nós pelo menos duas músicas, pode ser?

    Ele fez os cálculos de tempo: duas músicas, máximo 5 minutos cada música, 10 senhoras… Não ficaria nem duas horas por lá. Para receber uma boa grana, estava ótimo.

    — Perfeito, Dona Glória. E o pagamento é antes ou depois?

    — Posso te pagar agora!

    Tudo acordado, as amigas de Glória foram chegando aos pares, cada uma mais perfumada e arrumada do que a outra. A sala começou a ficar impregnada de sândalos e almíscares e Wagner já estava meio tonto, pois cada uma delas fez questão de cumprimentá-lo de maneira, no mínimo, efusiva. Sarah foi a que mais se demorou nos braços do rapaz:

    — Glória, esse homem é um escândalo! Vai ser difícil segurar as meninas.

    De fato, as “meninas” estavam como abelhas no mel. Sorriam, mexiam nos cabelos, destacavam os decotes. Não saíam de perto de Wagner e já se enfileiravam para começarem as danças. Glória resolveu dar início a festa e colocou uma valsa. Achava chique.

    — Valsa, Glória? Não tem nada mais moderno?

    — Moderno? Desde quando somos modernas?

    E lá se foram as primeiras danças, com Wagner se esmerando nos rodopios e as amigas de Glória se sentindo adolescentes virgens sendo conduzidas pelo pretendente. Algumas soltavam pequenos gritinhos de prazer, outras apenas se ajeitavam para sentir os músculos – todos – de Wagner e outras estavam tão excitadas que o corpo parecia desobedecer. Viúvas há anos, todas já não sabiam mais o que era sentir prazer. E o que seria apenas 2 horas de dança inocente, se tornou uma grande festa, com Wagner se desdobrando para atender a todas em passos ousados e singelos amassos.

    Na outra semana, Glória resolveu se modernizar. Pediu ajuda para a neta, que apareceu uma tarde para pegar um casaco de pele emprestada. Quase não a reconheceu, estava com o cabelo roxo.

    — Isso é moda?

    — Super, vó! Quer que eu pinte o seu?

    — Deus me livre! Do que você precisa?

    — Você ainda tem aquele casaco de pele luuuuxooo?

    — Claro que eu tenho… Mas não sabia que ainda se usava isso! Não é antiecológico?

    — Que é, é. Mas é chique, né vó?

    — Isso é verdade. Tenho uma ideia! Que tal fazermos um trato?

    — Que trato, Dona Glória?

    — Eu te dou o casaco – só não conta para a sua mãe, ela é doida por ele! – e você me ensina a mexer no celular.

    — Feito!

    Em uma hora, Glória se tornou uma expert da telinha e ainda aproveitou para lanchar com a neta e colocar a conversa em dia. Ficou sabendo das últimas fofocas, dos namoros, começos e fins, do tal “ficar” e do relacionamento aberto. Achou tudo moderno demais para ela, mas se despediu da neta pedindo que ela voltasse mais, não só para pegar peças emprestadas. E, de preferência, com os cabelos castanhos mesmo. Depois que ela se foi, Glória se ateve ao seu novo brinquedinho. Estava agora em outro patamar, muito além do bom dia e figurinhas com flores no whatsapp. Baixou um aplicativo de música e não se fez de rogada. Começou a organizar playlists como uma DJ da terceira idade. Relembrou sucessos da sua época, descobriu novos cantores e fez uma playlist de tirar o fôlego: foi de Luis Miguel a Carlos Rivera, Michael Bublé e Lucho Gatica. Ok, Lucho Gatica não era exatamente uma novidade, mas ainda fazia Glória suspirar. Lembrou-se de um jantar dançante que foi com o marido no Chile. Lucho cantava por entre os casais que deslizavam na pista e Glória tentava disfarçava o olhar e o rubor que aquele homem sedutor lhe causava ao som de “La Barca”. Sabia a letra de cor e salteado e cantava baixinho, como se fosse para ele.

    À noite, na cama, com o marido já dormindo, se masturbou querendo ser de Lucho. Foi a única traição cometida em 30 anos de casamento.

    Sexta feira chegou novamente e Glória, como sempre, eufórica. Com aquela seleção de músicas mais calientes, ninguém mais iria chamá-la de antiquada. Se sentia muito ousada, para falar a verdade. As meninas chegaram ainda mais cedo, todas vindas do salão de beleza. Impecáveis. Não se via um esmalte descascado, uma raiz de cabelo por fazer, um batom fora dos lábios. Os vestidos eram novos, sem dúvida. Ou estavam esperando por uma data especial. Brilhantes, ousados, sedentos por novidades. A sala parecia um clube na sua hora mais feliz: a dançante. O ano poderia ser 1960. Todas estavam à espera de um grande amor. Ainda guardavam a inocência e tinham aquela ilusão boba que nos permite acreditar. O que seria de nós sem ela?

    Wagner também surgiu mais bem arrumado. Seu perfume invadiu a sala e o frenesi que a sua presença causava podia ser sentido pelas cadelas no cio de toda a vizinhança. As mulheres já não mais se enfileiravam, mas se sobrepunham, uma a uma, sobre Wagner. Mal uma dança terminava, outra começava com o novo par. Eles ensaiaram paços de tango, se requebraram em boleros e se extasiaram a cada passo dado de maneira mais próxima. Ou faziam acontecer esse roçar que encorajava o próximo ato.

    Glória, como dona da casa, acabava ficando por último, pois estava sempre às voltas com as bebidas e salgadinhos que as amigas levavam. A maioria sobrava, pois todas as bocas estavam preocupadas em sussurrar gracinhas para Wagner. Aquilo já estava deixando Glória louca. Ela se mordia de ciúmes, queria tirar uma por uma dali. Enquanto isso, o rapaz tentava levar as investidas daquelas senhoras de maneira educada e, invariavelmente, tirava uma ou outra mão mais atrevida do seu peito. Ou de partes, digamos, mais baixas. Lembrava-se do pagamento e sorria para disfarçar o inconveniente.

    Com isso, Glória sempre dançava com um Wagner já exausto. Duas horas de dança ininterrupta era uma maratona. E ainda tinha o jogo de cintura, o maxilar fixo, a concentração para nada sair do combinado. Em uma dessas noites, depois de todas as amigas de Glória já terem ido embora – todas tinham medo de chegar em casa muito tarde – Wagner simplesmente se deixou cair no sofá. Recostou-se e cochilou. Estava exausto. Começava o dia muito cedo, entre atendimentos em domicílio, clínicas, ônibus e trens. Se sentiu em casa e dormiu.

    Glória voltava da cozinha com duas taças de vinho para terminaram a noite, ainda falando algo sobre o assanhamento de Sarah:

    — Você reparou como ela dança? Parece que nunca viu homem na vida, Wagner. Você não deveria deixar ela ficar tão perto de você assim…

    Claro que aquilo era puro ciúmes. Glória já estava perdendo a compostura e se arrependendo de ter começado aquela história. Queria Wagner só para ela. Mas como?

    Quando chegou na sala, ainda retrucando, deu de cara com aquele deus no seu sofá. Baixou o tom de voz, pegou uma mantinha para cobri-lo e ficou ao seu lado, como em vigília. Ele nem roncava, veja bem! Parecia um gatinho, só ronronava. Chegou um pouco mais perto para sentir o seu perfume e foi descendo o rosto para o peito de Wagner. Seu coração acelerava ao mesmo tempo que seu rosto se aproximava daquele corpo. Queria lhe arrancar a roupa, lamber seu peito, fazer loucuras que ela só tinha visto em filmes.

    De repente, Wagner se mexeu e Glória se assustou. Ele abriu os olhos e a encarou:

    — O que a senhora está fazendo?

    — Descoberta como uma contraventora, Glória perdeu a voz. O que ela estava fazendo?

    — Euuuu…quer dizer…é que…

    — A senhora estava me cheirando?

    — Imagina, Wagner! Você me respeite! – Disse, unindo toda a moral que se esvaía. Estava apenas ajeitando a manta!

    Ele se levantou indignado, pegou seu casaco e disse:

    — Acho que a senhora passou dos limites, Dona Glória. Não sou um prostituto.

    Ela tremia:

    — Meu Jesus, é claro que não. Não estava fazendo nada, Wagner, eu juro!

    — Me desculpe, Dona Glória, mas não volto mais aqui.

    E se foi, com toda a sua dignidade e dúvida. Muitas dúvidas.

    Glória chorou. Como uma menina abandonada pelo primeiro amor. Colocou Lucho na vitrola e chorou ainda mais. Ouviu Lucho até adormecer. Não queria acordar.

    Mas o dia raiou e invadiu a janela. Invadiu o quarto e iluminou o rosto de Glória. Era preciso acordar. Seu rosto, inchado pelo desespero, parecia derreter. Precisava reconquistar Wagner, precisava que ele voltasse. Precisava.

    Dessa vez não quis falar com Sarah ou nenhuma outra amiga. Queria Wagner só para ela. Pensou em lhe pedir desculpas, pedir que ele reconsiderasse. Oferecer mais dinheiro, pedir aulas particulares. Qualquer coisa que fizesse com que ele entrasse novamente pela porta da sua casa e fizesse as cadelas do bairro estremecerem.

    Resolveu esperar alguns dias, deixar a poeira baixar. A raiva nunca é boa conselheira. Na outra sexta feira, dia em que ele normalmente estaria de volta, resolveu ligar. Não sem antes avisar a todas as amigas que Wagner não daria mais aulas de dança. Inventou uma doença na família, ouvia uma dezena de lamentações e suspirou aliviada. Agora vinha a segunda parte: tomou coragem e ligou para Wagner. Ele atendeu, o que já era um bom sinal:

    — Boa tarde, Dona Glória.

    — Boa tarde, Wagner, que bom que você me atendeu.

    — Não tenho mágoas da senhora.

    — Ótimo. Gostaria de me desculpar se lhe passei uma impressão errada. Não gostaria que nossa amizade terminasse assim.

    — Fica tranqüila, Dona Glória. Acho que exagerei um pouco também.

    Glória respirou, aliviada.

    — Que bom, meu querido. Você não quer vir aqui hoje, para conversarmos? Sem as meninas, claro…

    Wagner parou um pouco para pensar. Será que ela poderia tentar algo mais?

    — Prometo que será apenas uma conversa. Mas se quiser dançar…

    Cedeu.

    — Irei sim, Dona Glória. As oito mesmo?

    Em ponto.

    Glória desligou o telefone com um sorriso maroto. Tinha jogado a isca e seu peixão tinha fisgado. Agora era com ela.

    Fez uma outra playlist, mais lenta e sensual. Estava craque em escolher e listar músicas. Comprou velas e alguns petiscos. Deixou o melhor vinho na geladeira, só para resfriar levemente. Decidiu comprar uma lingerie. Queria algo sexy, rendado, de puta, como sua mãe dizia. Nada bege, grande, feito para esconder a barriguinha ou amassar os seios. Vermelho sangue. Vermelho paixão. Parecia endiabrada, com um fogo lhe consumindo por dentro. Como no dia que gozou para Lucho Gatica.

    Wagner chegou pontualmente às 20 horas. Glória já tinha bebido um pouco, para relaxar. Abriu a porta com um sorriso encantador. Seus olhos verdes flamejavam:

    — Bem-vindo, querido!

    — Boa noite Dona Glória.

    — Glória, Wagner. Só Glória.

    — Para que tantas velas?

    — Gostou?

    — Sim, ficaram ótimas.

    — Li em algum lugar que elas dão um tom calmo ao ambiente. Resolvi experimentar.

    — Fez bem.

    Se sentia ardilosa.

    Eles se sentaram no sofá. Ela serviu o vinho. Eles se olharam ao brindar. La Barca começou a tocar.

    — Dança comigo, Wagner?

    — Claro, Do…Glória.

    Eles se encaixaram no ritmo da dança e Glória pôde sentir novamente aquele cheiro que lhe acompanhava em sonhos. Em delírios. Seu rosto se afundou no ombro de Wagner que escorregou as mãos pelas costas de Glória e sentiu também seu perfume. Era elegante, nada muito doce. Tocante. A música envolvia o ambiente e, à luz de velas, as diferenças desapareciam. Eles eram apenas um homem e uma mulher. Dançando.

    Glória se afastou um pouco para olhar o rosto de Wagner e se aproximou de seus lábios. Ele disse algo que ela não entendeu, ela chegou mais perto e ele não se afastou. Os lábios se tocaram, a princípio tímidos. As línguas se permitiram e as bocas se devoraram. Wagner e Glória pareciam febris, sem entender toda aquela volúpia. Na sala, no mesmo sofá que haviam se desentendido há uma semana, os dois se permitiram.

    Glória desabotoou a camisa de Wagner e lambeu o seu peito, com uma luxuria pecaminosa.

    Ela tinha um belo corpo e Wagner começou a explorá-lo, doce e gentilmente. Com pequenas mordidas e beijos sufocantes, seus corpos foram se encontrando em um ritmo que não estava na playlist. Nem nos mais insanos sonhos de ambos.

    Quando Glória aproximou sua mão do membro de Wagner, levou um susto. Era mulher de um homem só e não imaginava que aquilo poderia vir em tamanhos tão diversos. Sentiu medo. Será que, depois de tanto tempo, conseguiria dar conta de tanto? Tomou coragem e pediu:

    — Põe. Mas só um pouquinho!

    Wagner sorriu. Desceu sua boca até o sexo de Glória, que nunca havia recebido tanta atenção. Tinha vergonha, tinha culpa, achava sujo. Mas tudo desapareceu quando sentiu aquela língua quente. Suas pernas se abriram e suas coxas se molharam. Wagner se fartou e levou todo o gosto de Glória de novo até sua boca. Se lambuzaram até com o pouquinho, que Wagner colocou e tirou até Glória gozar aos prantos.

    Se bastaram. Dançaram. E, de pouquinho em pouquinho, se amaram.

    Imagina quando Sarah souber!


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