Contos Eróticos

  • Sérgio e a coroa de flores

    Nem eram tão amigos assim. Colegas de trabalho, se cumprimentavam cordialmente, participavam das mesmas rodinhas de café, talvez tenham se encontrado em um ou dois “happy hours.” E só. Mas o desespero e a dor têm o dom de aproximar os desavisados e foi nesse momento que Sérgio assinou o seu destino.

    Ficou sabendo que o tio de Cleide havia falecido no dia anterior e foi prestar condolências. Ela, ainda com os olhos inchados do choro da véspera, tentava se fazer de forte. Talvez pela distância da família – o falecido morava em uma cidadezinha na Paraíba – ou por ter o tio em alta consideração – Era como um pai para mim, ela repetia – que o rosto ainda não tinha se recuperado de todo o sofrimento.

    – Se puder fazer algo pela senhora, conte comigo!

    – Jura, sr. Sérgio?

    Claro! Amigos são para essas coisas.

    Não era amigo, mas não podia ver uma mulher fragilizada.

    – Então vou pedir! Sei que o senhor está indo para a Campina Grande e o enterro do meu tio será em uma cidadezinha ao lado. Será que o senhor pode levar uma encomenda? É de toda família!

    – Claro, dona Cleide. Mas embarco amanhã cedo.

    – Encontro com o senhor no aeroporto, pode ser?

    – Claro. Mas não posso ir nessa cidadezinha…

    – Minha tia vai encontrá-lo no aeroporto, pode ficar despreocupado!

    Pelo menos ele não precisaria passar na casa dela para buscar a tal encomenda. Tem tanto folgado por aí!

    Sérgio planejava essas férias há muitos anos. Tinha o sonho de conhecer o São João de Campina Grande. Sempre via na TV aquelas roupas coloridas, as danças frenéticas, a animação do povo. Mas sua mulher nunca quis saber de viajar tanto para ver o tal arraiá. Agora, separado, não se fez de rogado. Ia passar os 30 dias do mês de junho se inebriando de quitutes e São João. Sua mala estava repleta de camisas xadrez e ele até tinha ensaiado uns passinhos.

    Às 7 da manhã Cleide já o esperava no portão para a sala de embarque, sem chance para negativas. A encomenda era uma coroa de flores, “SAUDADES ETERNAS DA FAMÍLIA SILVA”, para o tio falecido na Paraíba. Sérgio achou que era o sono que estava lhe pregando uma peça, mas a imagem de repente se formou em toda a sua plenitude de cores e letras douradas.

    – Muito obrigada Seu Sérgio. Nem sei como agradecer.

    Virou as costas e se foi, por pressa ou por medo da recusa de Sérgio, que ficou lá parado sem entender como iria carregar aquele trambolho. Pensou em jogar fora e comprar outra ao chegar no destino, mas ficou com medo de ter o pé puxado pelo defunto, Seu Ismael.

    Resolveu encarar a missão e os olhares dos outros passageiros. Virou os dizeres para si, como se acreditasse em mau agouro e foi andando na fila como se os cochichos não fossem para ele. Quando finalmente chegou na entrada do avião, teve que se explicar para a aeromoça, que exclamou, assustada:

    – Em 20 anos de carreira nunca vi ninguém tão pessimista!

    Sérgio sorriu, constrangido:

    – Não, minha senhora. Isso é um favor que fui praticamente obrigado a fazer. É para o enterro do tio de uma conhecida. Nem amiga é. Mas não tive como negar. Ou não pude, já nem sei mais.

    – Não sei se ela vai caber no bagageiro.

    – Levo na mão, no colo, sei lá. Só quero chegar logo em Campina Grande e ficar livre disso.

    A aeromoça usou todos os seus anos de treinamento para conseguir deixar a coroa de flores em um lugar que não incomodasse nem assustasse ninguém. Foi em vão. Ela parecia querer escapar do bagageiro e quase acertou uma senhora que ia se sentar na poltrona confort. Quando a coroa de flores se abriu exibindo todos os lírios e girassóis, metade dos passageiros se levantou. Queriam embarcar em outro voo imediatamente, que brincadeira era aquela? A outra metade, talvez a dos mais corajosos, começaram a rezar.

    Finalmente, ânimos acalmados, coroa de flores ajeitada, levantaram voo para Campina Grande. Com toda a sua experiência em viagens de avião, Sérgio poderia dizer tranquilamente que aquela talvez tivesse sido a mais tranquila. Sem turbulência, céu de brigadeiro do começo ao fim e nem ao menos uma criança para chutar a sua cadeira ou uma senhora nervosa para lhe pedir que segurasse a sua mão. Paz, absoluta paz. Chegou a cogitar que a coroa de flores, era, na verdade, um amuleto da sorte. Teria certeza logo mais.

    O avião pousou no horário marcado sem maiores problemas. Sérgio esperou todos saírem para tirar a coroa de flores já amassadas e não atrapalhar mais ninguém. Despediu-se com um muito obrigado a todos da tripulação e quase se esqueceu que ainda teria que entregar o trambolho para a tia de Cleide. Qual era mesmo o nome dela?

    Nem precisou se lembrar. Assim que saiu do portão de desembarque se deparou com uma senhora que era a cópia de Cleide em tamanho reduzido. Tinha o mesmo rosto inchado da sobrinha, onde o choro tinha feito morada havia pouco. Só algumas rugas a mais e maquiagem de menos.

    – Seu Sérgio?

    – Sou sim. A senhora é a tia da Cleide?

    – Sim senhor. Prazer, Antônia. Nem sei como agradecer por trazer essa coroa de flores. Meu marido ia ser enterrado sem nada, não fosse a minha sobrinha.

    Se sentiu quase um santo ao perceber a importância do seu favor. Passou a coroa de flores para Antônia e segurou o riso quando elas ficaram praticamente na mesma altura. Despediram-se com um aceno cordial e Sérgio ficou observando aquela senhora, já idosa, levar aquela coroa de flores como se fosse um fardo.

    – Dona Antônia, deixa eu te ajudar!

    Pegou a coroa com uma das mãos e viu o corpo de dona Antônia se endireitar. E lá se foram dois completos desconhecidos para o local do velório de Seu Ismael em uma cidade chamada Coxixola. Pertinho, segundo ela.

    Duas horas mais tarde, algumas trocas de palavras sobre o tempo, a vida no Sul – para os do norte, Rio de Janeiro é o Sul – e o excesso de calor, estavam no único cemitério da cidade. Lá os esperavam um coveiro sonolento, um cachorro caramelo e talvez toda a cidade de Coxixola, que não tinha mais do que mil habitantes. Parecia que o tal Ismael era um homem muito bom, querido por todos. Parecia.

    Só que na verdade, Ismael tinha três famílias e todas estavam presentes, com as referidas viúvas, seus filhos, netos e até um bisneto! Dona Antônia parecia ser a matriz, pois foi a única que teve o direito a rezar e a colocar a coroa de flores sobre o caixão de madeira clara. As outras duas viúvas, um pouco mais novas, estavam ao seu lado, em sinal de respeito. Uma chorava alto, pedia para ir junto, dizia que a vida não tinha mais sentido. A outra, que Sérgio descobriu ser a preferida, era mais contida, quase elegante.

    Em torno desse núcleo de mulheres, outras pessoas choravam e se lembravam das façanhas do Seu Ismael. Bom violeiro, não perdia uma festa. Era bom de gole e de dança. Cantava como ninguém. Torcedor fanático do Campinense, não perdia uma final do Paraibão. Tratava a todos com o mesmo respeito e dizia que só traia por amor. E como amou seu Ismael!

    Sérgio foi ficando. Estava gostando de ouvir os casos, beber uma para o santo, espantar as muriçocas. Sem perceber, ele estava já na procissão para o enterro, o adeus final a Ismael, segurando uma das alças do caixão. Se envolveu com aquela gente, com o sofrimento misturado com o calor e as lembranças. Lembranças que eram também suas, de tantos velórios e despedidas. Seu pai, que se foi ainda novo, deixando expectativas demais e presença de menos. Sua mãe, que o criou sozinha e que talvez tenha
    sobrevivido apenas pela responsabilidade que lhe caiu de repente nas costas. Seus avôs, alguns amigos, tanta coisa que ficou sem aquele depois que esperamos, sem nunca ter a certeza de que irá mesmo acontecer…

    O enterro aconteceu ao pôr do sol, uma cena linda e comovente. O sol desaparecia ao mesmo tempo em que seu Ismael deixava a superfície e voltava para a terra, sob o choro desesperado de todas as suas mulheres. Dizem que nesse momento a certeza da perda é avassaladora e não teve elegância que segurasse a dor. Os choros. De todos. Alguns amigos estavam com uma camisa que trazia o rosto sorridente do amigo e a frase

    – “Eu bebo sim, estou vivendo” na frente e “Tem gente que não bebe e está morrendo” nas costas. Seria irônico se não fosse trágico.

    O dia se findou e só aí Sérgio se deu conta de que estava longe de onde havia reservado o hotel. Duas horas, para ser exato. E em uma cidade com mil habitantes, quais seriam as opções de hospedagem? Precisou interromper dona Antônia na fila dos cumprimentos e pedir informações.

    – Imagina, seu Sérgio. O senhor fica lá em casa!

    – Não quero incomodar, a senhora está de luto. Nem fica bem.

    – Então fica na casa da minha sobrinha. Joana, chega aqui!

    Ainda sem entender como não tinha reparado naquele pedaço de mau caminho, Sérgio deve ter ficado um bom tempo de boca aberta até a tal sobrinha se apresentar. Tanto que Antônia lhe deu um cutucão e um aviso:

    – É bonita, mas não é desfrutável. Tome tento!

    – Claaaaaro, dona Antônia. Por quem me toma?

    – Não te tomo por ninguém, nem lhe conheço. Mas quem faz a lei aqui é o pai dela, o delegado Tonhão, meu irmão. Então, avisar não ofende. E faz bem para os dentes.

    Ciente da situação e dos limites, Sérgio foi para casa de Joana com pensamento fixo em uma só questão: o celibato. Era isso. Durante toda essa noite, seria como um padre. Se tantos conseguem durante anos,
    como ele não conseguiria durante algumas poucas horas?

    Mas não era bem assim. Joana iria no dia seguinte para Campina Grande, trabalhava – adivinha onde? – no mesmo hotel que Sérgio iria se hospedar. Claro que ele não sabia de nada disso e dormiu feito um bebê, feliz por resistir àquela tentação e já planejando a sua maratona de festas em Campina Grande.

    No dia seguinte, tomaram café juntos. Ela com uma camisola rosa, rendada, com lacinhos em lugares estratégicos. Ele, rezando baixinho um Pai Nosso e o credo, já estava todo vestido e de mala em punho para não dar sorte para o azar.

    – Já vai? – a deusa disse com aquele sotaque delicioso e arrastado, como se nem mesmo as palavras tivessem acordado ainda.

    – Sim. Na verdade, nem era para estar aqui.

    – Ah, diga isso não…Quem sabe era aqui mesmo que o senhor deveria estar?

    A lógica do povo do nordeste era mesmo diferenciada. Eles simplesmente aceitavam as coisas como eram entregues. Ai dele se pensasse assim.

    – Querer eu queria, mas já perdi um dia de reserva do hotel.

    – Qual hotel?

    – Estou no Garden.

    – Coincidência…Trabalho lá.

    Jesus, só podia ser uma provação.

    – Que bom…então, obrigada pela hospedagem, já vou.

    – Vá não…espere um pouco que vou com o senhor.

    Sérgio começou um Salve Rainha e embalou uma Ave Maria, porque no desespero quem salva é Nossa Senhora. Joana foi tomar banho com aquela calma que lhe era peculiar e o cheiro de alfazema inundou a casa. Ela saiu do banheiro envolta em uma tolha também rosa como se ninguém estivesse por perto e seus cabelos molhados pareciam envolver todo o seu corpo e o mundo todo. Sérgio apenas ficou sentado em uma das cadeiras dispostas em volta da mesa como uma criança de castigo. Não conseguia largar a mala e sua mão suava tanto quanto a sua testa. Não era mais calor, era desespero.

    Mas, se já está no inferno, que abrace o capeta. Sérgio então esperou a moça se arrumar, levando o seu pensamento para qualquer coisa que não fosse a imagem de Joana nua escolhendo uma roupa no armário ou passando um batom nos lábios. Ou apenas nua, o que já era suficiente para tirar Sérgio e qualquer outro homem do prumo.

    Depois de alguns minutos que pareciam eternos, Joana apareceu ainda mais linda e perfumada. O carro que Sérgio havia pedido já esperava lá fora e nem mesmo o motorista, que buzinava inquieto, conseguiu ficar imune ao encantamento que era ver Joana envolta em alfazema e cor de rosa. Parecia que tudo que ela vestia e usava tinha aquela cor.

    Entraram no carro e foram os dois, no banco de trás, trocando palavras soltas. Sérgio tentava contemplar a paisagem, fazer planos em cadernos imaginários. Pensava em planilhas com datas e horas para as festas, as roupas, o que iria comer e beber. Queria esquecer que Joana estava bem ao seu lado, ainda com os cabelos molhados e a perna roçando na dele a cada curva da estrada. De repente, um cachorro cruzou na frente do carro e a parada brusca fez Joana ir inteira para o seu colo. Seu vestido se levantou, alcinhas saíram do lugar e coxas e seios pularam como pedindo abrigo. A voz de Dona Antônia parecia ecoar em seus ouvidos:

    – Não é desfrutável!

    Joana se recompôs, o cachorro seguiu seu caminho e Sérgio voltou a fazer planos em notas imaginárias, mas os seios de Joana agora já eram uma realidade e nada mais conseguiria ter mais a sua atenção.

    Na entrada do hotel se despediram. Ele foi rapidamente para o seu quarto enquanto Joana foi se trocar para começar o dia de trabalho. Sérgio tomou um longo banho e deitou-se na cama espaçosa. Ainda não se acostumara a dormir sozinho, mas acreditou que seria uma questão de tempo. O fim do casamento ainda era uma ferida aberta, mas como toda cicatrização, só precisava de tempo para acontecer. “O tempo cura tudo” é uma das maiores verdades que a gente escuta por aí.

    Consultou a programação do dia e viu que as festas juninas só começariam depois das 18 horas. Resolveu então conhecer o hotel, tomar um banho de piscina, relaxar. Ainda era cedo, depois pensaria no almoço. Não queria ter hora para nada. Estava de férias, afinal.

    Assim que chegou na área de lazer do hotel, reconheceu aquele cheiro de alfazema. Joana estava a postos, com seu uniforme de camareira, entregando toalhas para os hóspedes. O hotel estava lotado, famílias inteiras estavam lá pelo mesmo motivo de Sérgio: conhecer o famoso São João de Campina Grande. Tentou disfarçar e procurou uma cadeira bem longe da confusão e de Joana. Que eram praticamente sinônimos. Tirou o roupão e tentou relaxar. Pegou o livro da vez e começou a se concentrar
    na história, enquanto crianças de todas as idades pulavam incessantemente na piscina a sua frente. Ele não teve filhos e naquele momento achou a decisão bem acertada. Era um show de descontrole
    quase animal. E os pais pareciam ignorar as crias, bebendo e conversando a uma distância segura. Para eles!

    Enquanto pensava no que fazer para se ver livre daquele barulho, Sérgio não percebeu Joana se aproximando com uma toalha nas mãos. Ela conseguia ficar linda até de uniforme e disse, com aquele sotaque preguiçoso e ardente:

    – Trouxe uma toalha para o senhor. Quer mais alguma coisa?

    Ele queria, ah como ele queria! Queria Joana inteira, com cheiro de alfazema e calcinha rosa na sua cama, todos os dias e para sempre. Queria encarar delegado, dona Antônia, padre e polícia por causa daquela doçura endiabrada. Mas não podia, não podia…Não queria!

    – Quero não – ele respondeu, já imitando o sotaque de Joana sem querer.

    – Querendo, é só chamar.

    Vou ficar querendo, ele pensou.

    Depois do almoço farto e de uma cochilada revigorante, Sérgio estava pronto para a sua primeira festa de São João em Campina Grande. A tão sonhada noite que ele planejava desde a sua separação. A atração da festa seria Elba Ramalho, que subiria ao palco depois da primeira apresentação de quadrilha da cidade. Estava eufórico como criança em noite de Natal. Tinha medo de que suas expectativas fossem maiores do que as realidade que lhe aguardava logo mais. Mas se surpreendeu mais do que poderia
    imaginar. Aprendeu que era “estribado”, mesmo com outros homens “mangando” do seu sotaque. Só os homens. De pura inveja mesmo.

    Pois Sérgio era um belo carioca, com sotaque malando e olhos verdes do mar de Copacabana em dia de ressaca. Fazia esportes na praia diariamente antes do trabalho e mantinha um belo bronzeado. O banho
    de mar era sua religião e seu estilo de vida só não era mais descolado porque tinha que bater ponto. Tirando isso, era o mais belo exemplar de toda ginga esperada de alguém nascido na cidade maravilhosa. E é claro que tudo isso foi detectado pelas mulheres de Campina Grande. Por onde Sérgio passava, ganhava mais do que comprava. A cerveja vinha com um carinho na mão, o espetinho com um olhar malicioso, o curau com um bilhetinho, o mungunzá com o telefone da menina que servia o quitute, o beijinho com a promessa de mais…Era tanto sucesso que Sérgio já nem se lembrava mais de Joana. Ou pensava que não.

    Em 28 dias de festa, Sérgio conheceu tantas mulheres, beijou tantas bocas, se fartou entre tantas pernas, se inebriou em tanto cangote, dançou tanto xote, que o cheiro de alfazema parecia ter desaparecido entre os mais variados cachos e ventres. Ele aparecia apenas na hora da toalha, na piscina, onde a cada dia Joana abria mais um botão da blusa e se curvava com mais empenho, sabendo exatamente o que mostrava e o que ainda queria esconder.

    Mas no último dia de festa, Joana apareceu cedo no quarto de Sérgio. Bateu na porta oferecendo serviço de quarto, que ele não pedira. Mas abriu a porta mesmo assim, sonolento, exausto, ainda com o gosto da
    mulher da noite anterior na boca. Manuela era seu nome. Manu. Talvez a mais fogosa que ele já tinha conhecido. Quase certeza.

    – Bom dia Seu Sérgio. Pediu café da manhã no quarto?

    Ele nem teve tempo de pensar na resposta e Joana já foi entrando no quarto empurrando o carrinho com os mais variados e exóticos quitutes. Seu cheiro de alfazema se misturava aos aromas daquelas delícias e Sérgio não sabia o que o estava deixando mais louco.

    – Joana, eu não pedi nada.

    – Mas eu lhe trouxe mesmo assim. Tem quase um mês que lhe quero e toda noite lhe vejo bulindo outra rapariga na festa. Tudo garapeira amostrada! O que lhe fiz, homem?

    Sérgio ficou sem ação e sem entender metade das palavras que ela dizia nervosa e com raiva. Ela lhe queria?

    – Sua tia me disse para não encostar a mão em você, Joana. Precisava lhe respeitar, você é donzela.

    – Que donzela nada! Sou moça de família, mas já perdi o cabaço tem tempo. E o senhor tá me deixando abilolada fugindo de mim assim.

    O rosto de Joana enfurecido de tesão, aqueles aromas invadindo o quarto, o calor que ele não sabia mais distinguir de onde vinha, os seios que ela mostrava pouco a pouco todos os dias…Sérgio simplesmente não queria mais resistir.

    Se aproximou de Joana como se estivesses prestes a cometer a maior loucura de sua vida. A encarou como quem desiste de viver e simplesmente se entregou ao beijo. Seus lábios pareciam arder e Joana, rainha agora do seu servo, não se fez de rogada. Terminou de abrir os botões da blusa e deu a Sérgio tudo que ele esperava há quase um mês. Ela, de calcinha cor de rosa e encharcada de alfazema. Sérgio não reagiu. Travou no meio daquele furacão moreno e cor de rosa e brochou. Miseravelmente. Não sabia o que fazer. Talvez o cansaço pela noite anterior, talvez o excesso de desejo por Joana. Simplesmente brochou.

    Joana não podia acreditar no que via. Aquilo nunca tinha acontecido com ela e, até aquele dia, também não tinha acontecido com Sérgio. Tentaram de tudo. Joana rebolou, brincou, inventou. Nada. Desolado e constrangido, Sérgio não sabia mais o que falar ou fazer. Joana, revoltada com aquela desfeita homérica, se recompôs e foi embora batendo a porta levando com ela seu cheiro de alfazema.

    Com todo aquele fuzuê, Sérgio tinha perdido a noção do tempo e precisou se apressar para não perder o avião. Fez rapidamente a mala, com a certeza de que não teria surpresas na bagagem para levar de volta ao Rio. No trajeto até o aeroporto, foi pensando no que poderia ter acontecido. Cansaço, só podia ser. Talvez medo do que poderia acontecer, de dona Antônia contando para o delegado, contando para Cleide, seu Ismael voltando para lhe puxar o pé por ter comido sua sobrinha…Enfim. Talvez tenha sido melhor assim.

    O tempo estava perfeito para uma viagem de avião até o momento em que Sérgio colocou os pés no aeroporto. Nuvens negras surgiram como um presságio e o tempo fechou de repente. Todos os voos foram cancelados e ninguém sabia dar alguma previsão de retorno.

    Ao seu lado uma menina brincava distraída com sua boneca toda em cor de rosa. A mãe falava com alguém no celular e, mesmo sem querer, Sérgio não pode deixar de ouvir:

    – Perdi o voo, amor. Não tenho a menor ideia do que vai acontecer. Talvez tenha que voltar para Coxixola, vamos esperar para ver.

    Mais essa, agora. Deveria ser algum carma, só podia. De todas as pessoas no aeroporto, tinha que ter alguém de Coxixola?

    – Me desculpe, a senhora é de Coxixola?

    – Sim, senhor. Por quê?

    – Não, nada. Conheci a sua cidade há um mês. Quente…

    – Foi fazer o que em Coxixola? Lá não tem nada!

    – Fui ao enterro do Seu Ismael. Conheceu?

    – Seu Ismael…Pessoa massa! Todo mundo ficou borocoxô quando ele se foi.

    – Pois é. Fui eu quem levou a coroa de flores. Encomenda da Cleide.

    – Cleidinha? Minha amiga de infância. A gente era pixototinha e já andava encangada. Quando comecei a namorar com meu marido, ela segurava muita vela pra gente poder ir ao cinema. Naquele tempo…

    Mas é claro. O que mais poderia acontecer? Ela, por telepatia, saber que ele tinha brochado? Achou melhor encerrar o assunto de maneira educada antes que ela também fosse também amiga de Joana.

    – Trabalhamos juntos. Muito prazer, sou Sérgio.

    – Vixe Maria! O senhor é o Sérgio de Joana?

    – Como assim, Sérgio de Joana?

    – Joana, prima de Cleide. Ela me contou do senhor…Sim, disse que estava apaixonada. Ih…nem sei se devia contar tudo isso.

    – Joana, apaixonada por mim?

    – Bem, se for o mesmo Sérgio que ela me contou…Sim. é o senhor mesmo! Lembro dos olhos verdes que ela ficou caidinha.

    Não era possível. Joana, apaixonada por ele e ele brocha? Tinha que resolver isso. Tinha que ver Joana, entender aquela paixão que ele também sentia. Não tinha nada a perder, afinal. Como parecia mesmo que nenhum voo deveria decolar mais naquele dia do aeroporto, estava com tudo a favor. A previsão era de mais chuva e Sérgio resolveu voltar para o hotel.

    – Vou voltar para a cidade. A senhora aceita uma carona?

    – Mas o senhor não vai esperar? E se conseguirem colocar a gente em algum outro voo?

    Sérgio não queria mais esperar. Não podia mais.

    – Não me interessa o que eles vão dizer. Preciso resolver uma coisa e agora.

    – Bem, se não for dar trabalho. De lá, acho que volto para Coxixola. Não tenho onde ficar em Campina Grande.

    Já estava se acostumando a essas caronas. Pegaram as malas e rumaram para o Garden. Sérgio logo perguntou por Joana:

    – Saiu logo cedo, hoje é dia de folga dela. Já deve estar em casa.

    Ou seja, em Coxixola. Claro.

    – A senhora está com sorte. Tenho que ir para Coxixola, vamos?

    – O senhor tem certeza?

    – Não sei se tenho toda a certeza do mundo ou se estou fazendo a maior bobagem da minha vida. Mas saberei assim que chegar na sua cidade. Nem ao menos perguntei seu nome, me desculpe.

    – Sou Joelma e a mina filha, essa delícia, é a Ana.

    Era demais. Jo e Ana. Seria Deus lhe mandando sinais? Começou a acreditar em absolutamente tudo. Só não sabia ao certo o que falar para Joana. – Ei, encontrei uma amiga da sua prima que disse que você está
    apaixonada por mim. Posso tentar não brochar dessa vez? Beirava o ridículo.

    Duas horas mais tarde, chegaram em Coxixola. Já estava começando a gostar do lugar. Até cumprimentou um e outro que estavam no bar. Amigos de velório são para sempre, como não? Joelma e Ana ficaram na casa dos parentes. Se encantou pela menina de tal forma que quase começou a querer ser pai. Já imaginava uma filha com Joana, com cheiro de alfazema e pele de romã. Quando o carro parou em frente à casa de sua musa, respirou fundo para tomar coragem. Pagou e parou em frente a porta. Não tinha ensaiado nada, mas resolveu bater antes que ficasse encharcado. Coxixola também estava debaixo de chuva.

    – Quem é?

    – Sou eu, Sérgio!

    Joana abriu a porta em um rompante, como sem acreditar.

    – Arre-égua! O que tu tá fazendo aqui?

    – Bem, meu voo foi cancelado e… não te encontrei no Garden e… não queria que você achasse que eu…e aí, encontrei Joelma…

    – Tu encontraste Joelma aonde?

    – No aeroporto. Ela e a filha, que também perderam o voo e…

    – Oxi…E elas estão bem?

    – Sim, as deixei em casa.

    – O senhor as trouxe?

    – Pois é. Olha Joana, só voltei porque você me disse aquelas coisas que a sua tia mentiu e que você me queria e tal…

    – Desembuche logo, homem, que chego a tá com gastura! Sérgio respirou fundo mais uma vez e conseguiu encará-la:

    – Quero você Joana. Não consigo parar de pensar no que aconteceu, não consigo parar de pensar em você. Mas, olhe…

    Joana abriu seu sorriso mais doce, mexendo os cabelos e espalhando todo seu cheiro de alfazema pela varanda. Olhou Sérgio bem nos olhos e disse:

    – Emburaque de uma vez! Lhe lascou um beijo na boca e o colocou para dentro de sua casa e de si.

    De ambos os lugares, Sérgio nunca mais saiu. Dona Antônia deu a benção ao casal, enquanto Cleide e Joelma foram madrinhas no casamento. A primeira filha do casal se chamou Ana. E, até onde se sabe, a vida de Sérgio continua cor de rosa e com cheiro de alfazema. E em Coxixola.


  • Só um pouquinho

    Dona Glória acabara de comemorar seus 70 anos e, como presente, ganhou um gesso no braço. Uma queda boba, o tapete fora do lugar, o piso encerado e ela se estabacou no chão. No instinto, colocou a mão na frente e o braço segurou o peso de todo o corpo. Que não era muito, pois Glória se cuidava e mantinha a silhueta em dia. Mas também não era pouco.

    Dois meses depois do incidente, ela finalmente tirou aquele incômodo e a primeira reação foi coçar a parte esbranquiçada da pele. Mantinha uma cor bronzeada, fruto da proximidade da praia, e aquele pedaço de braço cor de isopor lhe assustou. Era como se voltasse no tempo e a visse criança, chegando ao Rio, junto com os pais italianos. Era tão branca que se destacava sempre quando se misturava com outras crianças.

    — Sua recuperação foi muito boa, Dona Glória! Mas, como o braço ficou muito tempo imóvel, vou recomendar uma fisioterapia. Algumas sessões e a senhora vai ficar como nova!

    Mais essa, agora! Ela não queria ficar como nova, queria apenas poder se coçar e tomar sol.

    — Tem certeza que preciso disso?

    — Claro. Depois de certa idade a musculatura atrofia e os ossos já não se recuperam da mesma forma. A fisioterapia vai fortalecer tudo.

    Depois de certa idade… Será que todo mundo tem uma idade que marca o começo do fim? Qual seria a dela?

    — Posso fazer em casa? Não tenho saído muito e prefiro o conforto do meu cantinho.

    O que ela queria mesmo era escapar do controle do médico.

    — Tenho alguns profissionais que atendem em domicílio sim. Vou te passar os contatos e a senhora escolhe o melhor.

    Nomes e telefones em mãos, Dona Glória voltou feliz da vida para sua casinha. Realmente achava que todo aquele cuidado era um exagero e deixou de lado a história do fisioterapeuta. Era uma mulher saudável, independente, ia se virar muito bem sozinha.

    Mas já nos primeiros dias, viu que não seria bem assim. O braço não correspondia ao comando, o ombro doía, os armários pareciam mais altos, a mesa mais longe, as cadeiras mais pesadas. Tudo que fazia, doía. Acabou se rendendo. Pegou de volta o papelzinho no fundo da bolsa e resolveu ligar para o primeiro nome da lista. Wagner.

    — Boa tarde Wagner, tudo bem? Aqui quem fala é Glória, quem me deu seu contato foi o Dr. Paulo. Você atende em casa?

    — Boa tarde Dona Glória, atendo sim.

    — Você pode vir amanhã? Estou com muita dor.

    — Posso sim. Pode ser depois do almoço, às 14 horas?

    — Marcado. Anota o meu endereço.

    Glória acreditava em intuição e gostou do jeito de Wagner. Uma voz mansa, grave, como um locutor de rádio de antigamente. Deveria ser um belo homem. Tomara que sim.

    Não que ela estivesse interessada em algo mais que a fisioterapia. Viúva há 20 anos, desde então não se interessara por mais ninguém. Se distraía com as amigas, entre mesas de bar e excursões para Caldas Novas. Elas também se reuniam todas as quartas para jogar buraco, organizavam o bazar da igreja, iam às estreias de filmes, peças de teatro, aulas de dança e tudo mais que o dinheiro desse e o quadril aguentasse. Eram conhecidas como as “Velinhas da Van”: Para todo lugar que queriam ir, alugavam a van do conhecido Seu Joaquim e chegavam seguras, festivas e aprumadas. Com isso, o tempo passava e ela se esquecia da saudade do marido e a distância dos filhos e netos, que sempre tinham algo mais interessante para fazer do que visitá-la.

    Às 14 horas em ponto Wagner batia na porta. Glória olhou pelo olho mágico e gostou do que viu: um homem alto, forte, com rosto suave e mãos fortes. Se ajeitou e abriu a porta com seu melhor sorriso:

    — Bem-vindo, Wagner. Muito trabalho te espera!

    Ele sorriu de volta e começou a se ambientar com a casa. Perguntou o que tinha acontecido, onde era a dor, tirou alguns aparatos e começou a sessão.

    O primeiro contato das mãos de Wagner no braço esquerdo de Glória causou-lhe um arrepio forte até o fim da coluna. Ela tinha se esquecido daquele pedacinho chamado cóccix que ligava as costas às partes mais íntimas e tremeu. Ele pegava de maneira firme, fazia movimentos vigorosos e tudo parecia voltar para o lugar como um milagre. Depois de 40 minutos, Glória, radiante com as novas emoções e já se sentindo um pouco mais ágil, resolveu fazer um café para os dois.

    — Adoçante ou açúcar?

    — Puro mesmo.

    Café de macho. Começaram uma conversa amigável, levada pelo aroma quente da bebida. Ela descobriu que Wagner era o primogênito de seis irmãos, filho de uma empregada doméstica e um motorista de ônibus. Tinha 28 anos, cursou Fisioterapia para ajudar a avó que sofrera um acidente em casa – uma bobagem, mas que ainda limitava os seus movimentos – e conseguiu uma bolsa através do FIES. Ela se limitou a falar que era viúva. Tinha medo de dar muitos detalhes. Achava sempre que podia ser sequestrada ou roubada. E ele teria acesso a ela e a casa, melhor prevenir.

    Marcaram mais sete sessões, duas por semana, sempre depois do almoço. Glória pagou as dois primeiras e disse que ficariam assim.

    — Até sexta!

    Um sentimento novo tomou conta de Glória. Era como se sentisse de novo o seu corpo, que lhe servia apenas para levá-la da praia para casa e de lá para os encontros com as amigas. Colocou uma música no antigo aparelho de som, empoeirado de tão esquecido e se viu dançando pela sala. Feliz.

    As sessões se sucederam com verdadeiro sucesso. Glória não só já fazia todos os movimentos com o braço, como achava mesmo que todo o corpo se movimentava melhor. Já tinha contado toda a sua vida para Wagner, que também era devoto de Nossa Senhora e achou uma beleza ela se chamar Glória por ter nascido no dia 15 de agosto, dia de festa para Nossa Senhora da Glória. Depois das sessões, ela, feliz, mas sozinha, sempre arriscava uns passos de dança e começou a sentir falta de dançar com alguém. Será que Wagner lhe acompanharia em uma dança?

    No dia da última sessão ela preparou uma surpresa: comprou um presente para Wagner em agradecimento a sua dedicação e toda alegria de viver que tinha invadido a sua vida. Queria um pretexto para lhe convidar para dançar e acreditava que o presente e o fim das sessões seriam motivos suficientes.

    Depois do último exercício finalizado, ela tomou coragem. Pegou o embrulho como uma adolescente apaixonada. Sentia o rosto queimar.

    — Comprei para você. Sei que vai lhe ajudar muito.

    — Não precisava Dona Glória, imagina.

    Era um massageador elétrico, último modelo. Ele tinha comentado que um daqueles iria lhe abrir outras portas e resolveu dar um empurrãozinho. Wagner ficou contentíssimo, nem sabia como agradecer.

    — Eu tenho uma ideia, Wagner. Você me acompanha em uma dança?

    — Será um prazer, Dona Glória.

    — Glória. Me chama de Glória.

    Ela colocou um disco antigo de bolero e se deixou levar pelos braços de Wagner. Ele não sabia exatamente como se dançava um bolero, mas aquilo era o que menos importava. Os corpos unidos era só o que Glória precisava. Existia nela ainda um furor de mocidade e o contato doce daquela fartura toda fazia seu coração acelerar e o seu ventre acordava de um longo período de total esquecimento. Ela queria mais.

    Mas a música parou e Wagner se desvencilhou gentilmente de Glória dizendo que precisava ir.

    — Foi um prazer Dona Glória. Precisando de qualquer coisa, pode me ligar.

    E Glória precisava muito, de muito mais. Mas como impedir que ele sumisse de sua vida para sempre? Inventar novas dores, quebrar o outro braço? Não podia se dar ao luxo de quebrar mais nada, não suportaria mais dois meses de gesso e incômodos. Precisava de uma desculpa muito bem elaborada. Sabia que ele precisava de dinheiro, precisava ajudar em casa. Resolveu ligar para uma amiga, a mais esperta.

    — Sarah precisa que me ajude a pensar em uma desculpa.

    — Ele… O que foi?

    Glória contou toda a sua saga para Sarah, judia tradicional que frequentava as melhores rodas do Leblon. Esperta, negociante nata, ela foi certeira:

    — Ele precisa de dinheiro e nós, de distração. Que tal pagar para ele dançar com nossas amigas?

    — Será, Sarah? Não poderia parecer uma certa prostituição?

    — Ele não vai fazer sexo, só vai dançar. Por favor, Glória, nessa idade não precisamos ter tanto pudor!

    A ideia não era ruim. Glória sabia que todas as suas amigas sentiam falta de um parceiro de dança e Wagner era um pedaço de mau caminho. Elas iriam adorar a novidade e todas podiam pagar, sem dúvida. Mas, quanto ele iria cobrar? Resolveu parar de pensar e agir.

    — Bom dia Wagner, tudo bem? É Glória.

    — Bom dia Dona Glória. Está tudo bem?

    — Tudo ótimo querido. Você não vai acreditar. Conversei com algumas amigas sobre a nossa dança e como você foi gentil comigo. Elas ficaram morrendo de inveja.

    — Imagina Dona Glória. Nem danço tão bem assim.

    — Não seja modesto, rapaz. Me senti uma Ginger Rogers! E sabe o que elas me pediram?

    — Não tenho a menor ideia!

    Gloria tentava colocar toda a culpa nas amigas.

    — Elas querem que você dance com elas! Claro, vamos pagar para isso.

    Wagner ficou calado por um tempo. Achou tudo muito estranho, mas precisava de dinheiro. E o que poderia ser mais inocente em fazer meia dúzia de senhoras felizes?

    — Confesso que estou meio surpreso com a oferta…

    Glória se sentia um cafetão.

    — Mas também confesso que realmente estou precisando de uns extras.

    Aliviada, Glória resolveu encerrar o assunto e marcar:

    — Perfeito. Amanhã às 8?

    — Marcado.

    Glória desligou o telefone se sentindo uma devassa. Era como se marcasse um encontro com um garoto de programa, sentia a adrenalina tomar conta de suas emoções. Agora era convencer as amigas a ir até a sua casa e dançar com Wagner. Não seria problema. Sexta à noite normalmente ninguém tinha programa e o fato de sair de casa já era um acontecimento.

    Os preparativos começaram logo cedo. Glória arrumava a casa como uma criança que espera o Natal. Pensou em tudo: separou os discos, dividiu entre as amigas os comes e bebes, ajeitou o espaço para todas se sentarem e, também dançarem. Tinha uma sala espaçosa e precisou apenas rearrumar alguns móveis para que os novos passos coubessem no local.

    A noite chegou e Glória parecia uma debutante. Na excitação, não nos costumes. Colocou seu vestido vermelho, se perfumou como se fosse pecar e arranjou uma rosa vermelha para o cabelo. Se sentia uma cigana. Só faltava rodopiar com seu par, que acabava de tocar a campainha:

    — Chegou cedo, Wagner!

    — Achei melhor me antecipar. Quero saber como vai funcionar a hora dançante… Rs…

    — Bem, você dança com cada uma de nós pelo menos duas músicas, pode ser?

    Ele fez os cálculos de tempo: duas músicas, máximo 5 minutos cada música, 10 senhoras… Não ficaria nem duas horas por lá. Para receber uma boa grana, estava ótimo.

    — Perfeito, Dona Glória. E o pagamento é antes ou depois?

    — Posso te pagar agora!

    Tudo acordado, as amigas de Glória foram chegando aos pares, cada uma mais perfumada e arrumada do que a outra. A sala começou a ficar impregnada de sândalos e almíscares e Wagner já estava meio tonto, pois cada uma delas fez questão de cumprimentá-lo de maneira, no mínimo, efusiva. Sarah foi a que mais se demorou nos braços do rapaz:

    — Glória, esse homem é um escândalo! Vai ser difícil segurar as meninas.

    De fato, as “meninas” estavam como abelhas no mel. Sorriam, mexiam nos cabelos, destacavam os decotes. Não saíam de perto de Wagner e já se enfileiravam para começarem as danças. Glória resolveu dar início a festa e colocou uma valsa. Achava chique.

    — Valsa, Glória? Não tem nada mais moderno?

    — Moderno? Desde quando somos modernas?

    E lá se foram as primeiras danças, com Wagner se esmerando nos rodopios e as amigas de Glória se sentindo adolescentes virgens sendo conduzidas pelo pretendente. Algumas soltavam pequenos gritinhos de prazer, outras apenas se ajeitavam para sentir os músculos – todos – de Wagner e outras estavam tão excitadas que o corpo parecia desobedecer. Viúvas há anos, todas já não sabiam mais o que era sentir prazer. E o que seria apenas 2 horas de dança inocente, se tornou uma grande festa, com Wagner se desdobrando para atender a todas em passos ousados e singelos amassos.

    Na outra semana, Glória resolveu se modernizar. Pediu ajuda para a neta, que apareceu uma tarde para pegar um casaco de pele emprestada. Quase não a reconheceu, estava com o cabelo roxo.

    — Isso é moda?

    — Super, vó! Quer que eu pinte o seu?

    — Deus me livre! Do que você precisa?

    — Você ainda tem aquele casaco de pele luuuuxooo?

    — Claro que eu tenho… Mas não sabia que ainda se usava isso! Não é antiecológico?

    — Que é, é. Mas é chique, né vó?

    — Isso é verdade. Tenho uma ideia! Que tal fazermos um trato?

    — Que trato, Dona Glória?

    — Eu te dou o casaco – só não conta para a sua mãe, ela é doida por ele! – e você me ensina a mexer no celular.

    — Feito!

    Em uma hora, Glória se tornou uma expert da telinha e ainda aproveitou para lanchar com a neta e colocar a conversa em dia. Ficou sabendo das últimas fofocas, dos namoros, começos e fins, do tal “ficar” e do relacionamento aberto. Achou tudo moderno demais para ela, mas se despediu da neta pedindo que ela voltasse mais, não só para pegar peças emprestadas. E, de preferência, com os cabelos castanhos mesmo. Depois que ela se foi, Glória se ateve ao seu novo brinquedinho. Estava agora em outro patamar, muito além do bom dia e figurinhas com flores no whatsapp. Baixou um aplicativo de música e não se fez de rogada. Começou a organizar playlists como uma DJ da terceira idade. Relembrou sucessos da sua época, descobriu novos cantores e fez uma playlist de tirar o fôlego: foi de Luis Miguel a Carlos Rivera, Michael Bublé e Lucho Gatica. Ok, Lucho Gatica não era exatamente uma novidade, mas ainda fazia Glória suspirar. Lembrou-se de um jantar dançante que foi com o marido no Chile. Lucho cantava por entre os casais que deslizavam na pista e Glória tentava disfarçava o olhar e o rubor que aquele homem sedutor lhe causava ao som de “La Barca”. Sabia a letra de cor e salteado e cantava baixinho, como se fosse para ele.

    À noite, na cama, com o marido já dormindo, se masturbou querendo ser de Lucho. Foi a única traição cometida em 30 anos de casamento.

    Sexta feira chegou novamente e Glória, como sempre, eufórica. Com aquela seleção de músicas mais calientes, ninguém mais iria chamá-la de antiquada. Se sentia muito ousada, para falar a verdade. As meninas chegaram ainda mais cedo, todas vindas do salão de beleza. Impecáveis. Não se via um esmalte descascado, uma raiz de cabelo por fazer, um batom fora dos lábios. Os vestidos eram novos, sem dúvida. Ou estavam esperando por uma data especial. Brilhantes, ousados, sedentos por novidades. A sala parecia um clube na sua hora mais feliz: a dançante. O ano poderia ser 1960. Todas estavam à espera de um grande amor. Ainda guardavam a inocência e tinham aquela ilusão boba que nos permite acreditar. O que seria de nós sem ela?

    Wagner também surgiu mais bem arrumado. Seu perfume invadiu a sala e o frenesi que a sua presença causava podia ser sentido pelas cadelas no cio de toda a vizinhança. As mulheres já não mais se enfileiravam, mas se sobrepunham, uma a uma, sobre Wagner. Mal uma dança terminava, outra começava com o novo par. Eles ensaiaram paços de tango, se requebraram em boleros e se extasiaram a cada passo dado de maneira mais próxima. Ou faziam acontecer esse roçar que encorajava o próximo ato.

    Glória, como dona da casa, acabava ficando por último, pois estava sempre às voltas com as bebidas e salgadinhos que as amigas levavam. A maioria sobrava, pois todas as bocas estavam preocupadas em sussurrar gracinhas para Wagner. Aquilo já estava deixando Glória louca. Ela se mordia de ciúmes, queria tirar uma por uma dali. Enquanto isso, o rapaz tentava levar as investidas daquelas senhoras de maneira educada e, invariavelmente, tirava uma ou outra mão mais atrevida do seu peito. Ou de partes, digamos, mais baixas. Lembrava-se do pagamento e sorria para disfarçar o inconveniente.

    Com isso, Glória sempre dançava com um Wagner já exausto. Duas horas de dança ininterrupta era uma maratona. E ainda tinha o jogo de cintura, o maxilar fixo, a concentração para nada sair do combinado. Em uma dessas noites, depois de todas as amigas de Glória já terem ido embora – todas tinham medo de chegar em casa muito tarde – Wagner simplesmente se deixou cair no sofá. Recostou-se e cochilou. Estava exausto. Começava o dia muito cedo, entre atendimentos em domicílio, clínicas, ônibus e trens. Se sentiu em casa e dormiu.

    Glória voltava da cozinha com duas taças de vinho para terminaram a noite, ainda falando algo sobre o assanhamento de Sarah:

    — Você reparou como ela dança? Parece que nunca viu homem na vida, Wagner. Você não deveria deixar ela ficar tão perto de você assim…

    Claro que aquilo era puro ciúmes. Glória já estava perdendo a compostura e se arrependendo de ter começado aquela história. Queria Wagner só para ela. Mas como?

    Quando chegou na sala, ainda retrucando, deu de cara com aquele deus no seu sofá. Baixou o tom de voz, pegou uma mantinha para cobri-lo e ficou ao seu lado, como em vigília. Ele nem roncava, veja bem! Parecia um gatinho, só ronronava. Chegou um pouco mais perto para sentir o seu perfume e foi descendo o rosto para o peito de Wagner. Seu coração acelerava ao mesmo tempo que seu rosto se aproximava daquele corpo. Queria lhe arrancar a roupa, lamber seu peito, fazer loucuras que ela só tinha visto em filmes.

    De repente, Wagner se mexeu e Glória se assustou. Ele abriu os olhos e a encarou:

    — O que a senhora está fazendo?

    — Descoberta como uma contraventora, Glória perdeu a voz. O que ela estava fazendo?

    — Euuuu…quer dizer…é que…

    — A senhora estava me cheirando?

    — Imagina, Wagner! Você me respeite! – Disse, unindo toda a moral que se esvaía. Estava apenas ajeitando a manta!

    Ele se levantou indignado, pegou seu casaco e disse:

    — Acho que a senhora passou dos limites, Dona Glória. Não sou um prostituto.

    Ela tremia:

    — Meu Jesus, é claro que não. Não estava fazendo nada, Wagner, eu juro!

    — Me desculpe, Dona Glória, mas não volto mais aqui.

    E se foi, com toda a sua dignidade e dúvida. Muitas dúvidas.

    Glória chorou. Como uma menina abandonada pelo primeiro amor. Colocou Lucho na vitrola e chorou ainda mais. Ouviu Lucho até adormecer. Não queria acordar.

    Mas o dia raiou e invadiu a janela. Invadiu o quarto e iluminou o rosto de Glória. Era preciso acordar. Seu rosto, inchado pelo desespero, parecia derreter. Precisava reconquistar Wagner, precisava que ele voltasse. Precisava.

    Dessa vez não quis falar com Sarah ou nenhuma outra amiga. Queria Wagner só para ela. Pensou em lhe pedir desculpas, pedir que ele reconsiderasse. Oferecer mais dinheiro, pedir aulas particulares. Qualquer coisa que fizesse com que ele entrasse novamente pela porta da sua casa e fizesse as cadelas do bairro estremecerem.

    Resolveu esperar alguns dias, deixar a poeira baixar. A raiva nunca é boa conselheira. Na outra sexta feira, dia em que ele normalmente estaria de volta, resolveu ligar. Não sem antes avisar a todas as amigas que Wagner não daria mais aulas de dança. Inventou uma doença na família, ouvia uma dezena de lamentações e suspirou aliviada. Agora vinha a segunda parte: tomou coragem e ligou para Wagner. Ele atendeu, o que já era um bom sinal:

    — Boa tarde, Dona Glória.

    — Boa tarde, Wagner, que bom que você me atendeu.

    — Não tenho mágoas da senhora.

    — Ótimo. Gostaria de me desculpar se lhe passei uma impressão errada. Não gostaria que nossa amizade terminasse assim.

    — Fica tranqüila, Dona Glória. Acho que exagerei um pouco também.

    Glória respirou, aliviada.

    — Que bom, meu querido. Você não quer vir aqui hoje, para conversarmos? Sem as meninas, claro…

    Wagner parou um pouco para pensar. Será que ela poderia tentar algo mais?

    — Prometo que será apenas uma conversa. Mas se quiser dançar…

    Cedeu.

    — Irei sim, Dona Glória. As oito mesmo?

    Em ponto.

    Glória desligou o telefone com um sorriso maroto. Tinha jogado a isca e seu peixão tinha fisgado. Agora era com ela.

    Fez uma outra playlist, mais lenta e sensual. Estava craque em escolher e listar músicas. Comprou velas e alguns petiscos. Deixou o melhor vinho na geladeira, só para resfriar levemente. Decidiu comprar uma lingerie. Queria algo sexy, rendado, de puta, como sua mãe dizia. Nada bege, grande, feito para esconder a barriguinha ou amassar os seios. Vermelho sangue. Vermelho paixão. Parecia endiabrada, com um fogo lhe consumindo por dentro. Como no dia que gozou para Lucho Gatica.

    Wagner chegou pontualmente às 20 horas. Glória já tinha bebido um pouco, para relaxar. Abriu a porta com um sorriso encantador. Seus olhos verdes flamejavam:

    — Bem-vindo, querido!

    — Boa noite Dona Glória.

    — Glória, Wagner. Só Glória.

    — Para que tantas velas?

    — Gostou?

    — Sim, ficaram ótimas.

    — Li em algum lugar que elas dão um tom calmo ao ambiente. Resolvi experimentar.

    — Fez bem.

    Se sentia ardilosa.

    Eles se sentaram no sofá. Ela serviu o vinho. Eles se olharam ao brindar. La Barca começou a tocar.

    — Dança comigo, Wagner?

    — Claro, Do…Glória.

    Eles se encaixaram no ritmo da dança e Glória pôde sentir novamente aquele cheiro que lhe acompanhava em sonhos. Em delírios. Seu rosto se afundou no ombro de Wagner que escorregou as mãos pelas costas de Glória e sentiu também seu perfume. Era elegante, nada muito doce. Tocante. A música envolvia o ambiente e, à luz de velas, as diferenças desapareciam. Eles eram apenas um homem e uma mulher. Dançando.

    Glória se afastou um pouco para olhar o rosto de Wagner e se aproximou de seus lábios. Ele disse algo que ela não entendeu, ela chegou mais perto e ele não se afastou. Os lábios se tocaram, a princípio tímidos. As línguas se permitiram e as bocas se devoraram. Wagner e Glória pareciam febris, sem entender toda aquela volúpia. Na sala, no mesmo sofá que haviam se desentendido há uma semana, os dois se permitiram.

    Glória desabotoou a camisa de Wagner e lambeu o seu peito, com uma luxuria pecaminosa.

    Ela tinha um belo corpo e Wagner começou a explorá-lo, doce e gentilmente. Com pequenas mordidas e beijos sufocantes, seus corpos foram se encontrando em um ritmo que não estava na playlist. Nem nos mais insanos sonhos de ambos.

    Quando Glória aproximou sua mão do membro de Wagner, levou um susto. Era mulher de um homem só e não imaginava que aquilo poderia vir em tamanhos tão diversos. Sentiu medo. Será que, depois de tanto tempo, conseguiria dar conta de tanto? Tomou coragem e pediu:

    — Põe. Mas só um pouquinho!

    Wagner sorriu. Desceu sua boca até o sexo de Glória, que nunca havia recebido tanta atenção. Tinha vergonha, tinha culpa, achava sujo. Mas tudo desapareceu quando sentiu aquela língua quente. Suas pernas se abriram e suas coxas se molharam. Wagner se fartou e levou todo o gosto de Glória de novo até sua boca. Se lambuzaram até com o pouquinho, que Wagner colocou e tirou até Glória gozar aos prantos.

    Se bastaram. Dançaram. E, de pouquinho em pouquinho, se amaram.

    Imagina quando Sarah souber!


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