cotidiano

  • bolhas opacas em sinais de trânsito

    Intuição é um troço engraçado. Às vezes, quando nos deixamos ser por ela guiados, pode dar bom, pode dar samba — ou crônica mesmo [bem melhor, convenhamos, que uma história crônica na bagagem da vida]:

    […)

    Sempre se sentava nos assentos dos veículos públicos, por segurança, por melhor vista da pista, “n” motivos. Hoje, pelo choque de sair da Cidade Universitária, que voltara a frequentar mais de uma década depois, e se deparar com seu velho ônibus para casa vazio, não pensara duas vezes: embarcou, com seu anacrônico RioCard — agora existe um totem de um tal “jaé”, em mais evidência do que o que aceitava o cartão em sua mão esquerda, avanço tecnológico de primeiríssima categoria, outrora. Não sabia o por quê, mas seu coração evidenciara um lugar próximo à porta da saída, nos fundos. Sentou-se. Como uma recém redomesticada “bicho do mato”, com os sentidos apurados em selva de pedra, não ousou pegar o celular. Optou por um livro, um pouco escondido dentro da bolsa grande, que continha de tudo: pasta de dentes, escova de dentes, um outro par de brincos, álcool em gel, lenços de papel, caneta, prancheta, sacola plástica dobrada, um isqueiro, uma lanterna, carregador de celular, uma pera, uma garrafa de água, carteira, chaves de duas casas, o telefone, um desodorante, uma cachemire, um casaco e uma sombrinha. Correu os olhos por uma ou duas páginas; não introjetava as palavras; preferiu conferir a paisagem do Rio em um dia nublado de outono; os cariocas não curtem. Percebeu uma mulher com celular em punho, bem em evidência, que passeava por perfis masculinos em redes sociais. O rapaz no assento atrás do seu parou o que fazia, e l-i-t-e-r-a-l-m-e-n-t-e esticou o pescoço para uma fofocada virto-presencial sem toques — um modo um tanto quanto stalker de se posicionar; assim ficou; o ônibus estava vazio. Esperançosa de ter seu resto do dia bem aproveitado por tão baita sorte da condução espaçosa, relaxou. Semáforo amarelento em contraponto à frieza e letargia de um início de tarde assim, o motorista ameaça pegar a Ponte do Saber. Mas só ameaça. Uma nova volta por toda a ilha se fez. A condução é famosa por estar sempre cheia, inadmissível vagar pelos asfaltos tão levemente. Paciência, os minutos que dedicaria a voltar mais cedo para sua cidade natal (e atual) seriam gastos para um outro propósito. Resolveu abdicar do percurso em linha reta para a Novo Rio. Até queria conhecer o tão comentado novo Terminal Gentileza, mas, ouvindo seu coração, deixou-se rumar para Botafogo.

    O ônibus lotou. Uma discussão esquisita começou próxima ao assento no qual certamente estaria. A senhora que ali sentada estava ganhou uma cotovelada de graça na bochecha direita. E um despertar daquele bater de pestanas tão reconfortante, quando se está acomodada em um veículo público cheio. Evitara um confronto, ponto para a intuição! E ainda tinha sua saída garantida, sem empurra-empurra e aglomeração, calor e estourar das bolhas de cada um. Todo mundo vive em uma bolha que se contrai e se dilata, à medida que passa por situações e ambientes diferentes. Cada um sabe a beleza e os cm a mais dos quais abre mão — e não! — para conviver em sociedade.

    Uma hora depois, avista um shopping conhecido. O ônibus para em um ponto que não se lembrava de ser uma parada, tão próxima era do shopping. Levantou-se de um ímpeto adolescente e puxou a cordinha. Permaneceu de pé, virando-se para a porta. O ônibus simplesmente subiu o viaduto.

    Passos apressados na saída — parada errada: 10 anos antes, o shopping era a deixa. As coisas mudam, resiliência mantendo a pose de antiga moradora da capital. As nomenclaturas de pontos de “BRéssssses” (para dar um ar mais carioca no coloquial da leitura), confundiram seu GPS natural tão assertivo, e as pernas traduziram o nervosismo de andar por ruas conhecidas com lojas diferentes, prédios demolidos, moradores de rua em número bastante significativo e policiais que, ou conversam amigavelmente com um civil das redondezas, ou um dos seus à paisana, ou são corruptos. O rosto da ex-carioca mantinha um semblante que a misturava à multidão, anos de prática — e de teatro —, são como andar de bicicleta. O corpo grita um alerta vermelho, como o toque luminosamente poético sobre sua cabeça: estamos entrando em pânico, é seu íntimo quem diz; respira e foca em chegar a um lugar mais íntimo em suas memórias. Passa por uma esquina arquitetônica e urbanisticamente arredondada: o interior intersticial de uma mecânica de automóveis expõe 3 viaturas suspensas por andaimes, sem rodas, como se estivessem rendidas e cercadas por mais de uma dezena de outros indivíduos, todos latas velhas em estado lamentável. Achou graça na fragilidade momentânea dos veículos da segurança oficial. Sente-se energizada e com fome. Atravessa a rua, sinal verde-esperança, depara-se com uma galeria que tem ares de residencial, mas não somente, seus pés a conduzem, eles sabem o caminho de cor. Dá de cara com o seu velho supermercado, cada vez mais envelhecido e caquético, que sempre a salvava, de domingo a domingo. Vontade do hot-dog da madruga que custava R$ 1,99. Não existe mais. “Serviria um balde do KFC, acho que ainda deve ter um na outra esquina…”

    Seu corpo gira nos calcanhares e esbarra no Cine Estação, e, então, tudo congela: Olhos nas programações Pele ouriçada frente a tantos títulos disponíveis para uma quarta-feira qualquer Suor frio e cheiro de pipoca amanteigada Sente um calor vir debaixo, está excitada Lê o título de filme de uma francesa na Coreia, em cartaz na contagem regressiva de 20 min. Alguém derrama o líquido inconfundível de uma Coca-Cola em um copo plástico.

    Sai esbaforida, encontra um KFC há 15 passos, pede uma promoção qualquer e acha tudo muito engordurado. 15 minutos foram suficientes para avermelhar o rosto, aguardar o preparo da comida rápida | senta-se sozinha, come, repara nas pessoas ao redor, sente-se feliz por estar de volta. A volta em si mesma, as mordidas que rebobinam o tempo. Se vê com pouco mais de 20 anos; compra o ingresso; senta- se na poltrona errada e está mais do que bem, a sala está vazia. Na tela, uma mulher ensina francês para sobreviver em outra cultura. Mas nunca deu aula disso. Ela arrisca. Ela, também.

    O filme termina na incompreensão entre os poucos cinéfilos — quase todos da terceira idade — e ela. Ela quer expandir seus horizontes com a força dos semáforos verdes, um após o outro. Abertos, todos, sem uma transição em um degradê sem sentido. Chama um 99. Não se preocupa com a rua e o movimento. O sinal fecha, todos andam, não [se] sabe[m] para onde, ela tampouco. Adentra o carro, sinal vermelho como pôr do sol. As bolhas aqui e acolá parecem uma instalação a céu aberto orientada por alguma galeria de arte. Sinal vermelho que não se vai. Alguém pega um pedaço de papel na rua.

    Opacarofilia.

  • pausas: cotidiano em . p.o.n.t.o.s .

    Bateu.

    O passarinho no vidro imóvel do topo da porta da varanda. Reflexo de algo ou transparência que não parecia obstáculo? Não se sabe. O barulho foi intenso e assustou a menina, que estava naquela casa, sozinha com seu cachorro. Ambos prestaram atenção, alertas. Silêncio.

    Bateu.

    Uma mão contra a outra. Uma vez. Duas. Três. Silêncio. De novo; uma voz auxilia o movimento. Nada.

    A campainha não funciona ou… não há ninguém? Sem sinal – de vida. Repetição do processo: mãos que se encontram quase sem se sentir, tão ágeis. A voz. Um assobio. Silêncio.

    Bateu.

    O líquido com a fruta, num redemoinho premeditado. Tensão que transforma uma coisa em outra coisa para outra coisa. O metal corta e estraçalha. O barulho distrai os acontecimentos em segundos de quase alquimia. Muito barulho por nada?
    Suco.

    Bateu.

    A sensação de frio, por todo lado; o sol se esconde, o vento se faz perceber. O piso é frio, contra a pele prévia e deliciosamente aquecida. Temperatura em vertigem. Calma. Abrir de olhos, céu todo branco.

    Bateu.

    A saudade do momento antes, que já se foi, morno como um abraço infinito, aquecendo o turbilhão da vida contemporânea. Sangue que corre vívido no corpo, como o vinho é agitado na taça antes de ser aprovado.

    Bateu.

    Tum

    Tum

    Tum

    Tum

  • Caçadores de eclipses

    Chuvas atrapalham planejamentos. Na realidade, chuvas atrapalham expectativas, e estas, nos frustram.

    [Aqui, chuvas podem se tratar de chuvas. Ou não. Use-a como metáfora, os textos pertencem a quem os lê, no momento da leitura].

    Hoje em dia é simples assistir eventos astronômicos com uma meteorologia ruim; eu, por exemplo, inspirada pela minha irmã, de vez em sempre, me surpreendo a mim mesma com o celular em punho, de noite, da varanda, de uma das janelas, da rua, apontando essa prótese humana para o céu, que pode estar límpido ou encoberto, não importa: lá estou eu girando no meu próprio eixo, tal qual uma lunática. Eis o app Stellarium, e a minha curiosidade pelo posicionamento de estrelas, outros astros e da Lua.

    Na madrugada da quinta para a sexta-feira última, fiz planos para ver a Lua de Sangue. Já com minhas vivências, velas e banhos engatilhados para a sexta-feira à noite, me empolguei com a magnífica poasibilidade de assistir a um momento envergonhado, enraivecido ou enamorado do nosso satélite natural, que teria o ápice de seu fenômeno às 3h26 da madrugada. Eu e muitos conhecidos e desconhecidos, aqui do lado ocidental e acidentalmente noturno da Terra, preparávamos nosso inconsciente para a madrugada em claro — que logo, tornaria-se escura, pela nossa própria sombra sobre a Lua. Mas, em Nova Friburgo, uma chuva torrencial, começou quando nem noite ainda era, minando o planejamento. Planejamento, uma pinoia!, diria minha avó; a tal da expectativa. A Lua vai passar pelo seu processo de eclipse, faça chuva ou passem nuvens. Estamos em março, as águas são certas e fecham o verão. Quem quer, que abrace a chuva e se molhe! Olhe para o céu, tome um banho de Lua. As energias podem até ser potencializadas. Há os que se preparem com telescópios ou cameras semi-profissionais com zoom 42x. Há ainda os que não se animem a sair de seus lençóis e pijamas, e liguem smart TVs, celulares, projetores, computadores ou outros — à exceção do Chrome Cast, que rapidamente instaurou o caos e um burburinho cibernético, com resets da configuracao padrão aqui e acolá, mudança de humores, por sair do ar, assim, sem explicações,dias afora…. em tempos de ansiedade impregnada nas veias, nada pior do que perder uma conexão que se espera onipresente e a nosso bel prazer — de novo, posso não estar me referindo à gadjets ou bandas largas, entenda como bem lhe convir. Por último, há os canais ao vivo no YouTube, com comentários que mais me mortificariam se eu não os acompanhasse no percurso da caça ao eclipse, sobre quatro rodas, suprimentos de café e tapiocas feitos às pressas, um spitz alemão com o focinho voltado para o céu, no meu colo, e um motorista que quase sucumbiu à frustração – e ao sono. Pouco antes das 2h, a chuva parou. Vibra a ligação via WhatsApp no pulso:

    — Alô…
    — Vambora? Anima, se não só em 2039!

    Enquanto todas as opções acima ocorressem por todas as Américas, dois adultos e um cachorro se embasbacavam com a Lua alaranjada que ora estava do lado do motorista, curvas depois do lado do carona. Nuvens e vegetações faziam necessária a presença do Stellarium.

    — Tá ali!

    Sobre a coxa do motorista, a tela do celular mostrava a Lua imensa, suas crateras, e exclamações que faziam a caçada ser mais interessante:

    — Está incrível, pessoal! Noooossa, olhem isso, está incrível! Já já essa nuvem passa, pessoal, por enquanto, façam um PIX de R$5,00 e mandem uma mensagem que respondemos aqui ao vivo.

    Seguimos o rastro da Lua, em busca de um descampado distante das luzes da cidade, quieto e seguro que nos permitisse parar, observar o fenômeno e fazer um lanchinho. Um bairro à esquerda, deixa fluir, lá vamos nós, 5G perdendo força, o 4G o qualquer G. Stellarium no more. Adeus YouTube.

    — Melhor voltar.
    — Vamos perder o ápice se voltarmos.

    De repente, uma pracinha digna de cidade de interior, um campo de futebol desses tomados pelas gramas selvagens, um ponto de ônibus, as casas que dormem. Paramos.

    A Lua.

    Para quem nunca presenciou com os próprios olhos, é difícil descrever; tem sabor de perfume de lavanda, sob o formato de brigadeiro; tem cheiro de um perfume marcante misturado ao odor de um café na madrugada, fumegante para que os olhos se abram. É de um vermelho revigorante. Parece final de copa do mundo, a experiência de se estar a ponto de gritar bem alto “É goooooooool!”. Mas não podemos, todos dormem — só os galos cantaram, cachorros-lobos uivaram e o meu spitz tenta inspirar de uma só tragada o pequeno piso concretado com suas narinas pequeninas. 3h26, o ápice. O mundo pára, por um instante.

    Ainda bem que, apesar de tudo, somos bons em desenvolver tecnologias. E ainda bem que sempre há lunáticos dispostos a vencer o sono, outros que se empenham em manter o planejamento e cachorros que nos fazem superar todas as (im)prováveis frustrações.

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