Mangueira

  • Rosa, verde e rosa

    Rosa. Apenas Rosa. Nascida e criada na Estação Primeira de Mangueira. Primeira estação do trem e do seu coração.

    Rosa ganhou esse nome por duas paixões do seu pai. O samba de Cartola e a Mangueira. Rosa nasceu em 1980, ano em que Cartola morreu e seu pai resolveu lhe prestar essa homenagem. Ele assobiava “As rosas não falam”, quando se lembrava da mulher, que havia lhe abandonado alguns anos após Rosa ter nascido. Dizem que sua mãe era uma mulher linda, sorridente, mas não tinha nascido para ser mãe. Depois de ter parido Rosa, ela estava sempre triste, pelos cantos, como se não gostasse mais de viver.

    Seu Reynaldo tentava de tudo. Fez até um canteiro de rosas para ela, inspirado por Cartola. Dizem que a letra de “As Rosa não falam” foi quase totalmente composta quando Cartola levou à Dona Zica, sua esposa, umas mudas de rosas que plantou no jardim. Dias depois, ao abrir a porta pela manhã, ela percebeu que muitos botões haviam desabrochado e ficou deslumbrada com tanta beleza e quantidade. Chamou seu amado e perguntou:

    – Cartola, venha aqui! Venha ver o jardim! Por que é que nasceu tanta rosa?

    E o sábio respondeu:

    – Não sei, Zica. As rosas não falam!

    Mas a mãe de Rosa parecia imune a qualquer beleza. Nada mais lhe interessava, lhe fazia sorrir, lhe animava. Sua última lembrança da mãe foi no desfile que consagrou a Mangueira, em 1984, na inauguração do Sambódromo. Quem puxava o samba era um tal Jamelão – puxava não, porque ele não gostava de ser chamado de puxador – um senhor mal-humorado com a voz de trovão, que assustou Rosa quando ela passou ao lado do carro de som. Ele parecia estar sempre bravo e a menina se agarrou ao pai com cara de choro, enquanto sua mãe se misturava ao mar verde e rosa da ala das passistas. Depois disso, ela nunca mais a viu. Nesse ano, aconteceu um dos feitos mais marcantes da história da escola: Depois de desfilar, a escola retornou pela Sapucaí, sendo aclamada pelo público. A comunidade toda ficou em festa, mas seu Reynaldo não conseguiu comemorar. Procurava sua amada em todos os cantos, parecia um louco a procura do nada. Só encontrava o vazio e se enfurecia gritando por ela.

    Mas será que alguém tinha perguntado para a sua mãe se era isso que ela queria? Mulher negra da favela, casou-se com o seu primeiro homem para sair de casa e da fúria do pai. Queria pôr fim ao ciclo de humilhação e violência que vivia com a mãe, que tinha um filho atrás do outro pelo simples motivo de que não apanhava enquanto estava grávida. Se tornou uma mulher fria, sem brilho. Paria como um bicho e fazia de tudo para engravidar novamente. O marido se gabava, enquanto ela só queria sobreviver.

    Nair era o contrário. Seu sorriso cativava a todos, seu brilho era natural. Mas precisava ser livre, desfilar, cantar seu amor pela vida. O casamento com Reynaldo ia muito bem até a notícia da gravidez. Apaixonados, nunca pensaram em evitar. Muito pelo contrário, Reynaldo sempre dissera que queria ter muitos filhos, um para cada ala da sua escola. Mas sua amada começou a se sentir como a mãe, presa pelo ventre, amarrada pela obrigação. Não falava sobre o bebê, não queria saber de pensar em nomes, não se importava se seria menino ou menina. Tinha pesadelos constantes e, por mais que Reynaldo lhe acalmasse e jamais tivera coragem de lhe erguer a mão, a barriga crescendo era muito mais um fardo do que um acalanto.

    Nesse dia em que ela sumiu na multidão, fazia 3 anos que ela não saia de casa. Depois de muita conversa de amigos e parentes, ela resolveu voltar para a sua escola. Seu Reynaldo imaginava que ela só precisava voltar a sorrir, voltar a brilhar. Como se todos os seus fantasmas fossem desaparecer na magia verde e rosa do Carnaval. Ela se aprontou com esmero especial. Vestiu-se como se fosse a última vez. Se despediu do marido e da filha com lágrimas nos olhos. Acharam que era a emoção. Mas era um adeus.

    Depois que a mãe de Rosa foi embora, Seu Reynaldo a criou do jeito que pode. Pedindo ajuda para a mãe e as irmãs que se revezavam enquanto ele trabalhava, fazendo bicos pela comunidade de pintor, eletricista e o que mais precisassem. Rosa cresceu cercada de amor, mas a falta da mãe parecia uma chaga aberta, um afago que nada conseguia substituir.

    Rosa foi se tornando uma bela moça e fazia vista pelas ladeiras da Mangueira. Mas enquanto todas as suas amigas sonhavam em desfilar na escola do coração, Rosa queria escrever o samba enredo. Queria cantar sua tristeza, colocar para fora a falta da mãe, as aflições do pai, o abraço que não encontrava parceria, o choro que só encontrava eco.

    Fazia versos como quem ama. Como quem padece. Mas não mostrava para ninguém, sabia que não tinha lugar no meio dos adultos, nem dos homens. Se deslumbrava quando seu pai entoava os clássicos da escola, imaginava novas rimas, corria para anotar suas ideias em um bloquinho cor de rosa estrategicamente guardado sob o seu travesseiro. Se escondia no barracão enquanto os homens bebiam e batucavam na mesa imaginando novas canções.

    Nas festas de família, todos gostavam de mostrar os seus talentos. Sua tia Ana cantava enquanto seu primo José tocava violão. A alegria era enredo fácil e as reuniões de família iam até o dia amanhecer. Era aí que o morro ficava mais bonito, com os tons de rosa inundando os becos e iluminando os corações.

    “Mangueira, teu cenário é uma beleza. Que a natureza criou…”

    Seu primo José era parte importante na vida de Rosa. Como um irmão mais velho, era ele quem a defendia dos outros meninos, fazia às vezes papel de pai quando seu Reynaldo viajava para fazer serviços em outras cidades e lhe dava sempre bons conselhos. Era mesmo um bom primo. Um dia, ao voltar da escola, deu de cara com ele deitado na sua cama com o bloquinho cor de rosa na mão. Ela deu um pulo e o arrancou da mão dele:

    O que você está fazendo aqui?

    Minha mãe mandou dar uma olhada em você, parece que seu pai vai voltar tarde. O que você escreve nesse caderno?

    Não interessa!

    Interessa sim. É lindo!

    Você acha mesmo?

    Acho sim. Para quem você escreve isso?

    Antes que José imaginasse que ela estava apaixonada por alguém, Rosa tratou de inventar algo. Ela não queria dizer da saudade da mãe, da tristeza do pai, mas também não queria fazer papel de boba dizendo que queria ser compositora de samba. Seu primo ia rir da sua cara.

    Fala, Rosa. Já sei, você está apaixonada!

    Claro que não! Só…escrevo.

    Pois eu acho que tem poesia aqui. Posso copiar algumas coisas? Vou hoje no barracão e acho que dá para fazer um samba.

    Os olhos de Rosa se iluminaram.

    Fazer um samba com as minhas letras?

    Claro. Mas, olha só. Melhor eu dizer que é meu. Você sabe, os coroas não iam aceitar uma menina na roda de samba.

    Pode fazer o que quiser. Será que eles vão gostar?

    Só podemos tentar.

    À noite, José foi se encontrar com os outros compositores já com um samba na ponta da língua.

    Vocês precisam escutar isso!

    E José foi, pouco a pouco, emendando frases, batucando aqui e acolá, falando mansinho…E as palavras foram se tornaram música e ganhando som. Seus companheiros de roda, já munidos com seus instrumentos, foram dedilhando acordes e cobrindo o silêncio. Era uma melodia triste, como todo samba deve ser.

    Rapaz, ou você está muito apaixonado ou sofrendo muito. O que, no fim, dá na mesma!

    Todos riram enquanto José não se aguentava:

    Gostaram mesmo?

    Falta um arranjo melhor, mas tem cheiro de sucesso!

    Rosa não tinha conseguido dormir. A todo momento esperava o retorno do primo que havia prometido lhe falar sobre o que acontecera no barracão. O pai, seu Reynaldo, abriu a porta da frente, cansado de mais um dia de labuta e Rosa estava lá de pé, achando que fosse José.

    O que você faz acordada, Rosa? Seu primo não lhe avisou que eu iria demorar?

    Sim, papai, mas não conseguia dormir. Estava preocupada com o senhor.

    Isso não era de todo mentira, mas Rosa queria mesmo era saber notícias do seu samba. Fingiu um bocejo, abraçou o pai e voltou para o quarto. Espiava a lua longe, se escondendo por nuvens finas que pareciam se desfazer com um sopro. De repente, um barulho na janela. Deu um pulo tão rápido que quase caiu da cama.

    Rosa…tá acordada?

    José, pelo amor de Deus! Como poderia dormir com tanta ansiedade no peito?

    Vou falar rápido para não acordar o seu pai. Eles adoraram a letra, vamos fazer os acordes e a música amanhã. Vai ser um sucesso! Agora vai dormir.

    Dormir? Como Rosa poderia dormir depois de uma notícia como aquela? Ela se revirou na cama até os primeiros raios de sol e não conseguia parar de sorrir e pensar e compor até na hora de fazer o café até chegar na escola e ainda depois. Tinha que dar um jeito de ir até o barracão naquela noite para ouvir – imaginem só! – o seu samba ser tocado, apreciado e amado pelos melhores músicos da escola. Tinha a sorte de ser sexta feira e não ter escola no dia seguinte. Seria mais fácil convencer o pai.

    O dia passou devagar, a tarde chegou preguiçosa e quando os últimos raios de sol inundaram o morro e todo o rosa que fazia a tristeza ir embora se dissipou, Rosa já estava pronta e faceira na espera do pai chegar para pedir autorização para ir ao barracão. Sorte das sortes, seu Reynaldo chegou cedo naquele dia e muito bem humorado, o que era novidade.

    Pai, que bom que chegou cedo. Preciso lhe pedir uma coisa.

    Onde você está pensando em ir tão arrumada assim? Não me diga que está namorando!

    Claro que não, pai! Só quero ir no barracão ver o meu primo tocar um samba novo.

    José voltou a compor? Essa eu quero ver. Podemos ir, mas tem certeza que não tem namorado por aí?

    Juro, papai!

    Esse comportamento da filha, ao mesmo tempo que deixava seu Reynaldo aliviado, também o deixava pensativo. Será que a menina tinha medo do amor?

    Os dois chegaram cedo no barracão e os músicos ia aparecendo aos poucos, vindos do trabalho, alguns ainda famintos, pois a vontade de chegar logo no local do samba era maior do que a de jantar em casa. Todos tinham um trabalho formal, pois viver de samba ainda não dava dinheiro. Mas eram tão apaixonados pelo que faziam, que talvez até se arriscassem.

    Uma figura diferente estava na roda naquele dia. Uma mulher sorridente, forte, com lenço colorido amarrado no cabelo. Seu pai correu para cumprimentá-la:

    Zica, quanta honra ter você aqui!

    Reynaldo, meu amigo…Como você está? E a pequena Rosa?

    Rosa não conseguia acreditar no que via. Era dona Zica, viúva de Cartola. E ainda sabia seu nome!

    De pequena ela não tem mais nada, Zica!

    Rosa foi se aproximando devagar como quem chega no fim de uma peregrinação. Como toda a sua vida se resumisse naquele momento.

    Mmmuiito pprazer, dona Zica. Sou muito sua fã!

    Reynaldo, sua filha já é uma mulher! Estamos ficando velhos! E ela sorriu, enquanto puxava Rosa para perto em um abraço com cheiro de peixe e cebola.

    Vieram para o meu vatapá? Ela era famosa pelo prato.

    Nem sabia, mas viemos também pelo samba novo do José.

    Samba novo? Essa eu quero ver.

    E no meio do preparativo para o vatapá, o barulho das latinhas de cerveja abrindo e os instrumentos se afinando, chegou José. Muito bem arrumado, penteado e perfumando, como um mestre sala à espera da sua porta bandeira.

    Caprichou, hein?

    Todos os homens fizeram questão de brincar com a aparência de José, pois era o único que havia tido o cuidado de ir em casa antes de chegar no barracão.

    Só pode estar mesmo apaixonado!

    Mas a farra durou pouco. Eles queriam era escutar o samba. Até Dona Zica saiu da cozinha e pediu para outra pessoa ficar de olho no vatapá. Rosa se sentou perto do primo, que com um aceno carinhoso, a chamou para mais perto.

    A música falava de perda, de amor, mas também de esperança. Rimava a vida com alegria e Rosa a cantava baixinho, com aquela segurança de compositora. Seu Reynaldo tentava segurar as lágrimas, pois não conseguia parar de pensar na sua amada Nair. O “Jorge da Cuíca” fingia tirar um cílio do olho esquerdo que teimava em não cair. Seu Jair, no violão, viu uma lágrima descer pelas cordas e quase desafinou. Na verdade, todos os homens tentavam segurar alguma emoção escondida – homem não chora, afinal – mas Dona Zica estava atenta aos lábios de Rosa. Ela cantou a música toda transbordando de sentimentos. Quando a última nota entoou e todos aplaudiram José, Dona Zica perguntou?

    Quem fez essa letra linda?

    Fui eu, Dona Zica. – Respondeu, cheio de orgulho, José.

    E Rosa?

    A menina, que estava ainda celebrando em silêncio o seu sucesso, foi tirada daquele torpor pelo seu nome dito daquela maneira tão certa.

    O que eu fiz, Dona Zica?

    Eu que te pergunto. O que você fez? Esse samba?

    Todos se entreolharam como se aquilo fosse uma brincadeira. Seu Reynaldo, quase envergonhado, correu para intervir.

    Imagina Dona Zica. Rosa é uma criança, onde ia arrumar imaginação para isso?

    Rosa continuava calada, sem saber onde era o seu lugar naquela situação. Mas José, consciente do talento da prima, disse:

    Foi Rosa que escreveu sim, Dona Zica. Eu só dei uma ajeitada, meus parceiros fizeram a melodia, musicamos… Mas a letra é de Rosa.

    Seu Reynaldo não sabia se abraçava a filha ou a colocava de castigo, Quanta ousadia escrever aquele samba. Mas quanta tristeza também na vida dessa menina, meu Deus!

    Os outros sambistas também não sabiam como lidar com aquela menina que, de repente, se mostrava uma grande compositora. A filha do Reynaldo, quem diria! Mas ainda era uma menina, no fim das contas.

    Parabéns Rosa. Você foi aprovada no mundo do samba! – Disse Dona Zica como para dar um fim àquela confusão de valores – É isso o que você que fazer?

    É sim, Dona Zica.

    Então tem a minha benção e de todos aqui. Concorda Reynaldo?

    Mas é claro que sim. Se é isso o que ela quer!

    Ninguém iria discordar de Dona Zica e nem mesmo José ficou chateado por ter a prima alçada quase ao estrelato do samba em uma noite. Ficou feliz em não precisar mentir mais e prometeu ajudar Rosa nas próximas composições.

    Sempre falta alguma coisa, né?

    Rosa sorriu como estivesse em um sonho. Mal sentia o seu corpo, parecia levitar por entre todos. A música recomeçou e Dona Zica pediu a vez. Queria homenagear Rosa, com o seu segundo intérprete favorito.

    Que Cartola não me ouça, onde ele estiver. Mas eu sempre fui apaixonada pelo Orlando Silva! – Todos riram e ela entoou:

    Tu és divina e graciosa
    Estátua majestosa
    Do amor, por Deus esculturada
    E formada com ardor.


    Da alma da mais linda flor
    De mais ativo olor
    Que na vida é preferida
    Pelo beija-flor.


    Se Deus me fora tão clemente
    Aqui neste ambiente
    De luz, formada numa tela
    Deslumbrante e bela…

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