Crônicas

Flashes, vazios e universos paralelos: Leila

Em meio a um comercial de televisão de sábado à tarde, coisa que não lhe é por nada usual assistir – excetuando-se as ocasiões em que se encontra à casa de seus pais -, algo que Leila não se recorda ao certo acendeu umas memórias preguiçosas, episódios de infância, o cheiro da sua lancheira do maternal (que sente como se a estivesse segurando agora mesmo, uma maleta plástica de proporções retangulares na cor amarela, com alça branca); lembranças várias e disformes, como a de momentos que precederam fotos que jazem, em um sono nada profundo, no interior de uma caixa dentro de um armário, fechado em um cômodo abarrotado de móveis aposentados e poeira. Um simples gatilho para uma viagem neurólogica que rompeu as barreiras do tempo, como a contemporaneidade o dita aos quatro ventos, flashes mais rápidos que o piscar dos olhos. Em diminutos instantes, toda uma vida se descortinou dentro das íris esverdeadas de seus olhos: um processo estroboscópico que alternava a dilatação e a miose de suas pupilas com o acenar sorridente de tantas recordações inesperadas. Abruptamente a realidade, sob a forma quase aveludada do tom na voz de sua mãe alertando para o esfriar do desjejum, ascendeu a luz do cômodo infinito e o espetáculo dissipou-se – tão ligeiro como quando emergiu. Não estava ali, à mesa do almoço; tampouco em qualquer outro lugar.

Tal acontecimento seria a última aparição de outras pequenas recorrências, como quem faz questão de deixar rastros nos dias. Sete, para sermos exatos; a semana se embrenhou na rotina com a atitude de quem tem pressa. Cada hora tropeçava na outra, uma correria danada que só ela, a semana, entendeu. E o episódio dos flashes deu as mãos às estruturas escritas e reescritas de Vilém Flusser em seu “O mundo codificado”* para comprovar que Leila era mais do que três seres humanos dentro de um só corpo e registro de CPF, onipresente como o “Eterno (louvado seja o seu nome)”** ou a  mais intrincada das redes já criadas, a Internet. Dentro das horas previstas para o espaço de uma semana, além de cuidar do seu filho ainda criança, Leila decorou textos e passos para um espetáculo teatral, ensaiou virtualmente para outro; entregou medalhas em eventos sociais, foi a lançamento de livros, organizou um evento de cinema. Fez orçamentos para clientes, entregou a tempo a documentação para participar de um edital de projeto cultural, redigiu listas de compras, deu conta da louça na cozinha, de 70% da relação roupas sujas/máquina de lavar, fez aulas de costura, as próprias unhas, tomou dois cafés e um chai sem lactose com uma prima, transformou seu melhor amigo no tema de sua dissertação de Mestrado, foi à missa, ao pilates e ainda conseguiu almoçar, no sábado, na casa dos pais. Enquanto o número de mortos ultrapassou 205 devido a inundações devastadoras na Espanha, a ONU avisou sobre o risco iminente de morte a todos no norte de Gaza, cientistas do MIT e Caltech anunciaram a descoberta de um sistema triplo de buracos negros, a inflação brasileira continua sendo uma preocupação e o Flamengo encontra dificuldades no Brasileirão (ao contrário da maré de sorte da qual se empregnou no Botafogo). O mundo caminha a passos rápidos, cada ser humano no seu ritmo, almejando cumprir a agenda ou trocar o físico pelo home office “mutado” enquanto maratona qualquer coisa sem um foco total na Netflix; as noites de Leila se esparramaram por sobre as manhãs. Enquanto todos dormem, o universo explode estrelas que não se apegam ao seu brilho e Leila se esmera em dedicar a todas as tarefas uma atenção específica que todo bom perfeccionista demanda para si mesmo. Em sua exaustão, há paz e um ácido prazer, que atende pela alcunha satisfação. Como já sentenciou a canção: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”***. Enquanto o  Brasil lida com a inflação, o Flamengo cai nas graças do Botafogo. Os buracos negros tornam-se triplos, quiçá, a ONU monitora Gaza, inundações são grandes assassinas na Espanha, Leila tem necessidade de um corretivo – para as olheiras e suas atitudes frente à sociedade.

E nada faz sentido, sendo complexo ou simplório: tudo é vazio preenchido em universos paralelos.

* leitura que, a despeito de filosoficamente complexa, se revela simplificada em sua essência, carregando uma significância magistral que transcende as barreiras do mundo privativo que cada um de nós constrói a partir de suas experiências.
** citação do próprio Vilém no capítulo ‘Sobre formas e fórmulas’
*** trecho da canção “Dom de Iludir”, de Caetano, Gilberto e Ivete.


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Bia Mies

BIA MIES é carioca da Serra Fluminense, autointitula-se "do mundo" e reflete em sua escrita um olhar sensível sobre a vida do seu "entremeio": cada crônica torna-se uma interação entre o trivial e a reflexão poética, uma tapeçaria de influências e insights. Tece pontes entre arquitetura, urbanismo, artes visuais e cênicas, moda, leituras, cafés, viagens, família, amores, Zeca (seu fiel companheiro de quatro patas), amigos, Itália e "experiências dos usuários", área na qual atualmente se especializa. Cada percepção transforma-se em texto, numa busca exploratória de pensamentos e emoções, através de uma visão pessoal do cotidiano e do extraordinário. Celebra a beleza da imperfeição e convida o leitor a uma jornada introspectiva, onde cada palavra é cuidadosamente escolhida para ressoar e provocar. Como o sopro das vivências que se entrelaçam pelo seu caminho, Bia Mies homenageia quase duas décadas de exploração literária no Crônicas Cariocas.

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