Crônicas

Mirtes, a traça

Fazia tempo que eu vinha notando, mas o prudente era fingir ignorância. Durante a época de aulas, tudo bem, foi possível manter-me indiferente. Mas não agora, que longos ócios me obrigam a horas no gabinete. Agora tenho de enfrentar Mirtes e a sua ronha, sua reima de tisanuro roaz.

De noite sinto que me espreita por detrás de uma lombada. Às vezes, sutil, entre linhas ou nalgum subtítulo. Fora isso polvilha infólios e avaria vade-mécuns, Quando não, renitente, rói erra tas. E não gosta do passado, Mirtes. Também não quer o futuro. Com a mesma fome devora alfarrábios e ceifa a science fiction. Despreza tanto o nouveau roman, que nenhum bem lhe fez à garganta, quanto as irrupções de neo-realismo latino-americano, que devora a partir das epígrafes. Com uma espécie de deleite reacionário.

Na estante ela prefere o primeiro andar – a família se distribui pelo resto; pois Mirtes é a família, todos com a mesma fome no focinho atávico. Mirtes se posta entre os livros de iniciação. Por algum motivo que não alcanço, detesta propedêutica; já fez em pedacinhos uma Introdução à Filosofia escrita por um grupo de estruturalistas. Também dilacerou, embora com menor sanha, um guia para o estudo e a compreensão da Semiótica. Não sei o que espere. Mirtes quer me privar de alimento e sentido, eis a verdade. Numa etapa em que não posso voltar atrás, quer me deixar num ermo sem rumo – a traça!

Conforme já disse, ela não é única – é toda uma família. E o traço comum à grei é um dentinho ávido como uma broca, a perfurar como uma ideia fixa. A legião microscópica se dissemina por igual, no intuito bíblico de fazer o homem – seu tesouro de papel – voltar ao nada.

Embora igualitária no seu afã destrutivo, Mirtes demonstra às vezes preferências incompreensíveis. Como entender, por exemplo, que ela tenha destruído o “Idade, sexo e tempo”, de Alceu, e preservado as “Lições de abismo” – do Corção? Pois fez. E o seu gosto pelo passado se confirmou um pavimento abaixo; ali arruinou dois livros de Leonardo Boff e poupou as Confissões de Santo Agostinho, estando um ao lado do outro. Também pulverizou o Ulisses moderno, de Joyce, recusando-se a descosturar o que Homero urdiu há milênios.

Além de passadista, imprevisível. Com Descartes agiu sem método, iniciando a trituração ora pelos cantos, ora pelo meio das páginas. Diferente do que fez com Sartre, o velho bruxo, que preferiu atacar somente pelo âmago, inoculando-lhe por assim dizer a morte na alma.

Ainda não sei contra quê ou contra quem trabalha Mirtes. Será tão-só inimiga do papel, suporte físico das ideias humanas? Também da disposição gráfica, combinação voluptuosa de tinta e talhe? Talvez dos dois
e de alguma coisa mais.

Importa é que Mirtes faz sempre a refeição completa, jantando no concreto o abstrato, no corpo a alma. Nos livros, o homem.


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Chico Viana

Chico Viana é professor aposentado da UFPB e doutor em Teoria da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou artigos em periódicos nacionais e internacionais, como a revista da Associação Nacional de Pós-Graduação em Letras e Linguística (Anpoll) e a da Associação Brasileira de Estudos Medievais (Abrem). Publicou “O evangelho da podridão: culpa e melancolia em Augusto dos Anjos” e outros títulos à venda na Amazon. Atualmente dá aulas virtuais de Português e Redação no curso que leva o seu nome. Entre seus blogues, destacam-se chviana.blogspot.com e chicoviananapontadolapis.blogspot.com.

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