Jabuti descalço
Estão abertas as inscrições para o Prêmio Jabuti 2025, a estatueta mais cobiçada pelos escritores brasileiros. Não pude deixar de me lembrar que, ano passado, assisti à cerimônia de premiação pela televisão, curiosa para saber quem seriam os ganhadores, uma vez que, desde 2019, tenho acompanhado mais de perto as publicações literárias de autores brasileiros.
Enquanto aguardava a divulgação dos premiados em cada categoria, me veio à cabeça uma curiosidade: por que o nome “jabuti” foi escolhido para nomear um prêmio literário? Numa rápida pesquisa, descobri que a escolha do nome foi influenciada, sobretudo, pela valorização da cultura popular brasileira, das raízes indígenas e africanas e de suas figuras míticas. Entre o final do século XIX e o início do século XX, grandes figuras como Sílvio Romero, Mário de Andrade, Luís da Câmara Cascudo e Monteiro Lobato, entre outros, foram responsáveis por transmitir esse legado de uma geração a outra.
Monteiro Lobato foi, provavelmente, o mais prolífico na recriação literária das histórias desses personagens meio enigmáticos, meio reveladores e sempre sedutores do folclore nacional. Um deles, como se sabe, é o jabuti.
O pequeno quelônio, já familiar no imaginário das culturas indígenas tupi, ganhou vida e personalidade nas fabulações do autor das “Reinações de Narizinho”, como uma tartaruga vagarosa, mas obstinada e esperta, cheia de tenacidade para vencer obstáculos, para superar concorrentes mais fortes e chegar à frente ao final da jornada. Com essas credenciais, o jabuti ganhou também a simpatia e a preferência dos dirigentes da CBL (Câmara Brasileira do Livro), que o elegeram para inspirar e patrocinar um prêmio que
homenageia e promove a literatura.
Meu pensamento voou para a figura desse jabuti com sua carapaça lustrosa, por onde saem pequenas e desajeitadas patas. Tive um pouco de pena… elas parecem fazer um enorme esforço para sustentar o peso do casco.
Tive um pouco de pena…elas parecem fazer um enorme esforço para sustentar o peso do casco. Não sei por que motivo me surgiu, como por uma lente invertida, a imagem de pés diminutos levantando, a cada passo, enormes tamancos de madeira.
Enquanto me divertia com essa alegoria, fui observando a subida dos premiados ao palco. Os ganhadores nas diversas categorias literárias, e suas subcategorias de crônica, poesia e romance, foram galgando as escadas para receber o prêmio, os abraços, as palmas e a foto oficial.
A câmera registrava, com um zoom preciso, os passos dados pelos felizes escolhidos rumo ao palco, de um ângulo em que era possível notar o que estavam calçando.
Comecei a perceber uma regularidade nos pés femininos que me deixou perplexa — um após outro foram desfilando calçados robustos, escuros, com solados ora de couro, ora de borracha, a maioria fechados até o tornozelo, mas sempre em um mesmo padrão estético.
Deles saiam pernas finas ou largas, não importa, sempre desproporcionais à calota que tocava o solo — a figura do jabuti imediatamente povoou minha lente, e a cada passo eu só conseguia ver aquele simpático cágado com pequenas variações de cor, seguindo rumo à fama.
De imediato, tive a certeza de que esse é um “dress code” de quem pretende entrar para o seleto círculo de escritores com potencial ao prêmio. Olhei para os meus pés, fiz uma vistoria no meu armário, dei uma olhada no site das lojas de calçados que conheço.
Nunca, jamais, um exemplar como esse habitou o meu guarda-roupa, e mesmo que quisesse ser aceita nessa confraria do calcante, nem saberia onde encontrá-los.
Minha conclusão foi simples — nunca entrarei para o rol dos ganhadores da cobiçada estatueta, independentemente de ter ou não talento literário. Eu não preencho o requisito básico dos pés de Jabuti.