Crônicas

Botas, cavalos e moscas

Embora eu adore cavalos, nunca aprendi a montar. Como bom-senso e juventude nem sempre andam juntos, quase comprei um pangaré em Águas de Lindóia que fica a mais de quinhentos quilômetros do Rio. O preço não arruinaria completamente as minhas finanças, mas obviamente a distância entre mim e o cavalo não nos tornaria próximos. Foi mais um sonho do que um projeto viável.

Tempos depois uma amiga que também gostava de cavalos conseguiu comprar um e o colocou em um estábulo razoavelmente barato na Barra da Tijuca. Generosa, ofereceu o cavalo para que eu aprendesse a montar. Impôs uma única condição: que eu providenciasse botas adequadas.

Indicaram-me um sapateiro especializado dentro do Jockey Clube. Fui lá, ele tirou medidas dos meus pés e marcou data para a primeira prova. Voltei no dia combinado, nada estava pronto. O sapateiro era um senhor de muita idade, puxou conversa e, sabe-se lá porquê, o assunto foi parar no jogo do bicho, cujas regras mais avançadas sempre despertaram minha curiosidade.

O sapateiro era um pouco enrolado no seu ofício, nas explicações do jogo do bicho também, e marcou nova data para a prova das botas. Não estavam sequer cortadas quando voltei pela segunda vez. Mais conversa, mais jogo do bicho, mais enrolação, outra data. Depois de duas ou três vezes em que isso se repetiu, liguei para a minha amiga para justificar a demora em começar as tão sonhadas aulas de equitação. Ela tinha decidido vender o cavalo porque o preço das cenouras que o animal consumia era estratosférico! Nunca mais voltei ao sapateiro, creio que ele também nunca chegou a fazer as botas. E continuo sabendo apenas o básico sobre o jogo do bicho.

Em um dos muitos congressos dos quais participei conheci um professor argentino que afirmou ter um cavalo ali perto. Eu e outro professor nos entusiasmamos quando o cara perguntou se teríamos interesse em montar o animal durante um intervalo entre as conferências. Nosso entusiasmo desvaneceu-se quando chegamos ao local: esqueça qualquer fazenda ou clube equestre, era literalmente um terreno baldio com uma cerca de arame e um pangaré pastando. O argentino laçou o cavalo, colocou uma corda à guisa bridão e disse que estava pronto.

Nunca tínhamos imaginado montar um animal em pelo, contudo não quisemos dar o braço a torcer. Sem sela e sem estribo, subir no cavalo foi uma manobra difícil que precisou da ajuda do argentino. Cada um deu uma voltinha ao terreno e declarou-se satisfeito. Na minha vez morri de medo de cair, abracei o cavalo com as pernas, segurei-me o melhor que pude e deu certo. Mas era um intervalo entre duas conferências, lembram-se? De volta ao congresso, ao meu redor e do meu amigo começaram a acumular-se moscas atraídas pelo cheiro de cavalo que ficou em nossas roupas. Naquele ambiente sério fizemos nossa melhor cara acadêmica, mas vontade de rir não nos faltava. Ninguém ousou falar sobre as moscas; os humanos provavelmente sentiram o mesmo perfume, porém foram mais discretos.

Hoje já não tenho coragem de montar, nem mesmo em pangarés e muito menos sem sela. Vocês sabem: a idade, a coluna, os joelhos, a osteoporose… Vale a máxima antiga: certas coisas têm que ser feitas no tempo certo.


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Claudia Valle

Claudia Valle nasceu no Algarve, mas desde criança mora no Rio de Janeiro. Já foi professora, matemática, informática, administradora, agora é escritora nas horas vagas. Acredita que rir ainda é o melhor remédio e que o humor também é capaz de provocar reflexões profundas.

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