Lembro-me bem daquela noite. Minha família e eu íamos começar a jantar quando ele chegou. Abri a porta e ouvi sua voz sumida na boca murcha dizendo “Boa noite. Estou de passagem. Posso ficar uns dias? Serão poucos.” Eu tentei disfarçar a enorme surpresa, disse “Claro!” e fiz com que entrasse. Ele cumprimentou minha mulher e meus filhos, depois olhou para mim e eu indiquei a direção do corredor. Mostrei-lhe o quarto em que poderia ficar. Ele agradeceu. Eu disse “Largue sua mala aí. Venha jantar conosco.” Comemos em silêncio. Não estranhei: a lembrança mais forte que tinha era a de que meu pai nunca foi de falar muito mesmo.
Eu tinha treze anos quando ele nos abandonou e nunca mais o vi até aquela noite. Minha mãe nunca comentou sobre o motivo de ele ter saído de casa, deixando atrás de si mulher e filhos, e eu tampouco perguntei. Ela apenas disse para mim “Agora você manda na casa. Use a voz e a palavra que seu pai nunca teve.” Naquela época, àquela idade adolescente, eu também não tinha voz nem palavra, mas logo aprendi a ter. Cuidei de minha mãe e de minhas irmãs menores. Faz tempo que minha mãe morreu, minhas irmãs se casaram e foram para longe. E aconteceu que, tanto tempo depois, naquela noite, na minha frente, na mesma casa, jantando comigo e minha família, estava meu pai, silencioso, cabisbaixo e velho, que poucos minutos antes tinha me pedido abrigo vestindo um paletó esgarçado nos cotovelos e carregando uma mala parecida com a dos mascates de antigamente. Um estranho pai, um nunca carinhoso pai, um homem que naquela noite era todo fragilidade, que me surgiu assim, sem que eu pedisse, ao contrário, ele é que pediu. “Posso ficar uns dias? Serão poucos” foi o pedido que ele fez com a voz sumida e a boca murcha.
Nos dias em que ficou em casa, meu pai entrava e saía quase mudo. Falava menos do que o necessário, porque o necessário era muito para aquele homem de constantes olhos baixos. Eu não perguntava por onde tinha andado o dia todo nem com quem conversava. Minha impressão era que, se assim fizesse, iria invadir e quebrar a muralha que ele tinha construído em torno de si, e da qual parecia gostar e atrás da qual se sentia protegido. Hoje tenho consciência de que não ia a nenhum lugar definido nem conversava com ninguém. O que tinha acontecido era que as palavras sumiram de sua boca e que nesta cidade, que já foi dele um dia, se falava um idioma estranho, que ele não conseguia compreender.
Num dos dias em que não saiu e passou as horas conosco em casa, vi meu pai perto da porta da cozinha, olhando pela janelinha que dá para o quintal. Seu olhar acompanhava um passarinho que ia e voltava ao mesmo galho, na tarefa exaustiva de construir um ninho. Ele tinha os olhos mareados. Meu pai chorava. Não um pranto convulsivo, antes um choro silencioso como ele, em que as lágrimas desciam em câmera lenta, percorrendo sem pressa os sulcos do rosto até alcançar a boca e o queixo. Sua expressão era de profunda tristeza. Puxei-o com cuidado pelo braço e o coloquei numa cadeira. Sequei seu rosto com um pano de prato. Perguntei “Pai, o que te fez chorar?”
Ele não levantou os olhos para mim, mas percebi a enorme dor que havia neles. Tentou responder, não conseguiu. Moveu os lábios trêmulos e as palavras não saíram. Tinha ficado tanto tempo sem falar, que desaprendeu. Pôs uma das mãos em concha sobre o peito e voltou os olhos para a janelinha do quintal e para o passarinho. Então compreendi. Enterrei meu pai poucos dias depois.
Triste e belo… Profundamente dolorido. Lágrimas que por si só, falaram tudo e ainda bem que você entendeu. Encontros como esses são raros…! Não sei se te dou os parabéns, pois dor como essa , um ser nunca deveria sentir. 🥴🎶👏👏👏