Jogo contra jogo
Era para ser xadrez. Um jogo elegante e íntimo. Como se as mentes por instantes se vaporizassem se entrelaçando no espaço entre os dois.
Peças brancas e pretas, com dois reis impávidos e duas rainhas poderosas. Ao redor seus respectivos exércitos prontos para matar e morrer. Sem contudo faltar a admiração mútua, parte integrante da relação dos dois. Elegante.
Mas de uma hora para outra vira pôquer. As rainhas e os reis permanecem mas as cores foram alteradas.
Onde antes havia um par de monarcas agora existem quatro pares. As peças se transmutaram quase em sua totalidade em números, a exceção de mais uma figura humana.
As três dimensões do xadrez foram trocadas pela bidimensionalidade do carteado.
A tensão e o raciocínio do jogo aumentaram nos dois motivados pela competição. Antes havia observação e tentativa de entender as jogadas do outro. Agora instalou-se outra forma de raciocínio ditado pela sorte.
Cada ação do passado, as cartas que se vão, ganha mais intensidade no presente como forma de prever o futuro. A capacidade de memorizar os descartes é fundamental para tentar prever o que ainda está por vir. Incontrolável. A sorte tomou lugar da ação consciente.
Quase que instantaneamente vem a necessidade de camuflar suas intenções. É preciso mascarar quem é você. E o que antes era para ser um ballet suave a dois se torna a meticulosa arte de dissimular. Sai o passo sincronizado e entra o blefe.
A verdade passou a ser rara. Duvidar tornou-se regra.
As palavras se tornaram cartas que são posicionadas cuidadosamente de forma a manipular as reações da outra pessoa.
Cada descarte, uma reação. Cada reação, um blefe, um engano.
A intensidade da troca de cartas do jogo afasta da lembrança os movimentos suaves das peças deslizando no tabuleiro. Sem perceber, os dois se distanciam.
O tempo apagou os rastros do caminho que eles percorreram entre o tabuleiro de xadrez e a mesa de pôquer. O caminho de volta, se perdeu. Onde um dia foram duas pessoas próximas e íntimas agora são somente mais duas pessoas. Sem nada de especial, nem nada que os identifique. Mais dois na multidão.