Nesse armário guardo minha alma. Entre paletós, camisas e calças repousa, num cabide só seu, lavada e passada, a alma que é minha. É uma coisa preciosa, única, e por essa razão só a levo comigo em ocasiões especiais. Uma alma é para toda a vida, é artigo que não se dá, não se empresta, não se esquece. Quebrada, não haverá outra para reposição.
Só vou com ela a lugares aonde não se deve ir sem alma. À literatura, por exemplo. A um roseiral, atraído pelo perfume. A um copo de bom vinho, erguido em brinde entre amigos. Em eventos assim minha alma está sempre comigo. Em outros, não.
É diferente de meu tempo de criança, quando não ia a nenhum lado sem alma. Não a tirava de mim nem para dormir. Era minha companhia constante nos brinquedos, nas descobertas, nos espantos, nas felicidades. Hoje em dia quase não saio com minha alma para a rua. Apavora-me pensar que as pessoas, ao me verem com ela, vão me enxergar pelo avesso e descobrir tudo sobre mim. É um risco que não quero correr.
Não posso negar que, quando visto minha alma, cresço em profundidade. Fico mais brilhante que o Sossego, mais transparente, mais espiritual. Com alma, ganho altura e me dilato e me expando em todas as direções. Sossego é o meu cachorro.
Ocorre que hoje, quando, com minha alma posta, me preparei para cruzar a cidade, olhei para o Sossego, sentado e algo melancólico perto da porta de entrada, quieto com sua alma peluda de cachorro, desconfiando que ficará sozinho por algumas horas. Justo nesse instante me deu um não sei quê de tristeza por deixá-lo ali, sem ninguém para lhe dar um carinho ou para quem latir. Então dou meia-volta e subo até meu quarto, abro o armário e devolvo minha alma ao cabide de sempre. Assim, sem minha alma própria, por não ser necessária agora, assovio para o Sossego e os dois saímos para passear. Com o Sossego ao lado, não se precisa de alma própria.