O maquinista
Na quarta-feira de cinzas, levantou às cinco da manhã e encontrou um braço de sua mãe estendido no sofá. Ubiratã Odorico Araújo Souza e Silva, ou Bira do Trem, como era chamado, tinha horário para cumprir. Era maquinista de um dos poucos trens que ainda funcionavam na região. Sua primeira viagem iniciava às seis. Não teve muito tempo para conjecturar o que fazer, então puxou o braço para o canto do sofá e o deixou por ali mesmo.
Naquele dia não conseguiu desviar o pensamento dos acontecimentos matutinos. Em plena quarta-feira de cinzas. Não fosse ele um maquinista exemplar, sem ter uma única vez faltado ao trabalho em quarenta anos, talvez tomasse alguma atitude. Quando chegou em casa, por volta das oito horas da noite, antes de preparar o seu sanduíche, se sentou ao lado daquele braço, mirando-o por um longo tempo, sem tocá-lo. Naquela noite não leu as colunas esportivas do jornal que trazia da estação, nem ouviu o seu velho disco do Amado Batista. Dormiu sem sonhos até o despertador tocar.
Na quinta-feira, levantou às cinco da manhã e encontrou a perna do seu pai estendida no sofá. De novo ficou a conjecturar o que faria com aquilo. Desta vez, inclusive, quase se atrasou, mas o trem partiu exatamente no horário previsto, conduzido por um maquinista esbaforido e preocupado com esses deslizes. Nunca foi disso, não seria agora, com quarenta anos de Companhia, que sujaria sua ficha. Era devoto do trabalho. Jamais ficara aborrecido ali, mesmo quando pedia a contratação de um maquinista auxiliar ao chefe, que invertia a situação com vários elogios, batia em suas costas e o levava à porta. Um camarada gentil, apesar de tudo.
Naquela noite forrou um canto da casa com papelão velho e colocou ali o braço da mãe e a perna do pai. Gostava de ler as colunas esportivas no sofá, aqueles membros tiravam-lhe a atenção. Na sexta-feira, levantou às cinco da manhã e encontrou os olhos de sua mãe estendidos no sofá. Não perdeu tempo com eles, deixou-os com os outros pedaços no papelão velho e partiu no horário para a estação. O dia correu normalmente.
No sábado, levantou às cinco da manhã e encontrou a caixa torácica do seu pai estendida no sofá. No domingo, foi a outra perna, depois a mão, o pé, as orelhas, e assim os dias seguiram trazendo pedaços grandes e pequenos que pareciam se completar. Na manhã em que nenhuma peça apareceu sobre o sofá, Bira comprou linhas reforçadas numa loja de artigos para pesca. A páscoa estava logo ali, ele mesmo costuraria o seu presente.
Achou o espectro parecido consigo. Tamanho e peso semelhantes, não precisaria comprar roupas porque as suas serviriam. As roupas ocultariam inclusive as genitálias do pai, que se negou a cerzir, deixando ali um espaço vazio encoberto pelas calças, presas por um cinto bem apertado. Pensou em chamá-lo de Frank, mas desistiu e deu-lhe o nome do irmão, Álvaro. Passou o feriado contando ao irmão sua história de vida e o orgulho que sentia por ser o mais velho maquinista da Companhia. A vida, no fim das contas, tinha lhe sido generosa. O irmão era um bom ouvinte.
Resolveu, por fim, levá-lo para conhecer os trilhos. A cadeira ao seu lado nunca fora ocupada nos quarenta anos de empresa. Álvaro, certamente, gostaria de ver as belas paisagens, os túneis e as pontes pelas quais o trem passava todos os dias. Enquanto viajavam, Bira relatava as histórias de cada trecho, contando inclusive sobre quando acabava por esmagar cachorros amarrados por ali. Não omitiu sequer as quatro vezes em que pessoas se jogaram nos trilhos, bem na sua frente, nada podendo fazer, a não ser deixá-los em pedaços. São coisas do ofício, o chefe dizia, às vezes passamos por situações complicadas no trabalho.
Com o irmão por perto, Bira optou por requerer a aposentadoria, algo que nunca antes lhe passara pela cabeça. Gostava do trabalho. Sentia orgulho de si mesmo. Ensaiou em casa, mesmo na presença de Álvaro, o discurso que faria na Companhia. O chefe não gostou da ideia, mas acabou aceitando e pedindo apenas para que Bira gentilmente permanecesse por mais uma semana e ensinasse o ofício ao novo maquinista. Bira concordou de pronto, afinal, tinha muita experiência e gostaria de passá-la adiante, embora estivesse ansioso pelo tempo livre com o irmão. Foi no terceiro dia, ao acompanhar o novo maquinista, que o trem descarrilhou. O irmão o aguardou sentado no sofá e nem sequer estranhou a demora. Ficou por ali, dias e dias, esperando, sempre esperando.