Crônicas

Sobre quando os negócios vão bem (ou nem tanto)

Não é novidade para ninguém: a Burrice está em alta. Tão em alta como nunca antes. Embora existam os alienados que afirmem o contrário, nenhum argumento contorna a verdade, mesmo sendo complexo e recheado de palavras bonitas, técnicas e pomposas. E a verdade é que a Burrice cresce rápido. E é moda.

Correndo sério risco de extinção, a Inteligência tem se escondido nas vielas pouco movimentadas e andado, quando necessário, camuflada na multidão, de cabeça coberta e passos ligeiros, se esguelhando entre um e outro, sem dar chances para o azar nem cogitar paradinhas despreocupadas em frente às chamativas vitrines que ornam a realidade. Não tem sido fácil a sua jornada.

A morada da Inteligência é desconhecida há muito. Ao que tudo indica, nas últimas duas ou três décadas fez seguidas mudanças. Talvez tenha incorporado uma veia um tanto desbravadora e passou a buscar novos horizontes de tempos em tempos, talvez tenha se enfastiado ou assustado com a evolução da concorrente, optando pela reclusão.

A concorrente, de fato, decolou. Diferente de alguns analistas mais afobados, não acho que seu crescimento foi abrupto, tampouco acredito que tenha sido por acaso. Minha teoria defende a evidência de um planejamento milimétrico e execução perfeita de cada passo dessa evolução. Não impressiona ter construído um império multinacional, aniquilando ou incorporando todo e qualquer corajoso opositor.

Antigamente a Inteligência estava sempre disponível nos corredores das bibliotecas, mas até ali passou a se sentir ameaçada. Aos poucos foi se isolando e se apertando nos cantos mal iluminados. A chegada de caminhões de best-sellers, livros de autoajuda com palavrões no nome, livros de autoajuda sem palavrões no nome, livros de autoajuda financeira, livros de influencers e livros de religião rasa, diferentes dos antigos, com quem costumava conversar, a deixaram enclausurada e restrita a uma lateral, depois a uma estante, depois a uma prateleira, depois a um quartinho reservado nos fundos e então teve de devolver as chaves. Aquele não era mais o seu lugar.

Sejamos razoáveis. A Inteligência tem vivido um verdadeiro inferno nos últimos tempos. Sempre que achada é rapidamente trucidada. Nem sequer lhe dão o benefício de um interrogatório. Não há hipótese nem cogitação de anistia. Trata-se vulgarmente de uma condenação sem crime. Há alguns dias, encontrada dentre os livros da biblioteca do poeta Jorge de Lima, foi logo levada à reciclagem, junto com todos os que a acompanhavam. Sem tempo para uma resposta, um argumento ou mesmo a fuga. E assim se desfez. Ninguém ousou se interpor ao martírio.

Achar os outros poucos exemplares da Inteligência é uma tarefa para Sherlock e Watson, talvez para Poirot quando inspirado ou, em terras tupiniquins, para o elegante Espinosa. Mas também é tarefa complicada e um tanto sem sentido. No mundo do TikTok só faz doutorado quem não sabe rebolar. É o novo real. A Burrice domina os meios de atuação, produção e distribuição. Buscar a Inteligência é encargo difícil, por princípio desmotivador.

A Inteligência cambaleia escondida enquanto os negócios da Burrice vão bem, obrigado. A Inteligência míngua, fingindo demência em buracos. Não bastasse o extermínio sem prerrogativas nem repreensões de qualquer espécie, a Burrice ainda vende cursos na internet, a custo baixíssimo e, vez ou outra, com um descontinho supimpa. É a fatia que lhe convém, já que todos querem estar com ela e ser como ela. Um exemplo vivo de sucesso, um exemplo perfeito do triunfo, da prosperidade e da felicidade. E, além disso, seguir os seus conselhos é mais fácil que aguentar as nuances, os devaneios, as angústias e os poréns da Inteligência. E, vamos falar sério, quem não gosta de uma recompensa fácil?

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Alexandre Leidens

Alexandre Leidens é um cronista nascido em Gaurama/RS radicado no Paraná, leitor compulsivo, cínico e pessimista. Retrata os meandros do cotidiano com o desdém tragicômico dos velhos ranzinzas. Também trabalha com coisas sérias, mas gosta mesmo é da reclamação e da fofoca. Hipócrita assumido, rouba livros sempre que possível e sem culpa. Adepto do chope gelado e da conversa fiada, só gosta do verão quando vai à praia. Escreve quinzenalmente para o site Crônicas Cariocas.

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