COntos

  • Os dedos de fogo de Angústias

    Angústias é uma menina com dedos de fogo e por isso é uma menina triste. Tudo o que toca arde. Vive longe do mar, num lugar parecido a um deserto, mas muito frio, com terra avermelhada como tingida de sangue. Pouco chove ali e, quando isso acontece, a terra se transforma num espelho e lança brilhos que chegam às nuvens. Só em ocasiões assim Angústias fica feliz, chora de alegria e passa horas admirando as poças d’água, tocando-as com a ponta dos dedos que, assim, ficam livres do fogo por algum tempo. Angústias é uma menina sem amigos.

    Agora é inverno onde Angústias mora e o frio tem sido impiedoso. As aves e os roedores foram embora em busca de paragens mais quentes. A menina sofre com o vento e o ar gelado, que lhe trincam os dentes, mas sai de casa mesmo assim, ao menor sinal dos primeiros e débeis raios de sol. Sai para admirar os montes esbranquiçados de geada e orvalho, as lágrimas que pendem do olho verde das folhas, a manada de búfalos correndo com elegância e fúria pelo descampado. É dessa forma que ameniza a tristeza que traz na testa franzida e no olhar que busca lonjuras. Mas hoje os búfalos não apareceram, e Angústias se fechou em melancolia profunda. Ficou sem sua pequena alegria. Teria gostado de escutar de novo o barulho do galope dos animais enormes tremendo na sola de seus pés e em seu coração, como se todo o seu corpo galopasse junto. Para a menina, os búfalos são força e poder, nada fica em pé na frente deles, ninguém consegue domá-los ou prendê-los. São bichos valentes, corajosos, truculentos, destemidos. Angústias queria um dia ser como eles.

    Mesmo sem querer, Angústias provoca fogo no que está ao seu redor. Por isso não pode fazer tarefas corriqueiras como colher uma flor ou ler um livro sem destruir o objeto sobre o qual se debruça. Não pode fazer nada sem luvas corta-fogo. Se não usá-las, tem que molhar os dedos o tempo todo. Até se vestir é arriscado, mas com as mãos protegidas, evita incendiar o vestido.

    Em sua cama de pedra, Angústias costuma sonhar com pássaros de grande envergadura, sobre os quais, agarrada ao pescoço delgado e duro, pode subir e subir e subir mais alto, planando sobre o descampado até chegar ao mar imenso. E essa imensidão líquida a acolhe e a abraça como faria uma mãe. É quando ela sente que nada mais pode representar perigo, nem mesmo a terra avermelhada do deserto, onde as florestas e bosques estão em risco permanente com sua presença. No sonho, Angústias está carregadinha de mar, as mãos ensopadas, e as árvores e toda a vegetação estão a salvo de seu toque: não arderão, não crepitarão como antes, quando bastava um leve roçar de seus dedos no tronco, nas ramas, nas folhas, nas flores, no sumo, e tudo virava labareda e, depois, cinza.

    É um sonho recorrente esse, que traz um pouco de felicidade ao rosto de Angústias. Quando acorda, percebe que as coisas não mudaram e seus dedos continuam quentes, faiscantes, capazes de provocar tragédias. Ainda assim, fica quieta e pensa nos búfalos. Todo dia espera vê-los em corrida destrambelhada pelo campo, só parando quando sentirem fome; então se aquietarão e comerão o almoço já servido ali mesmo, ao pé deles. A grama que pisotearam com fúria minutos antes é agora a sua refeição.

    Enquanto eles não vêm, a ela, Angústias, só resta passar as horas e brincar perto do rio que circunda a cidade (a cidade que mais parece um deserto): ali não há perigo de incendiar tudo e transformar um povoado inteiro num terreno devastado, cheio de fumaça e cheirando a queimado, como uma grande fogueira que lentamente perdesse labaredas, faíscas e brilhos e, no fim, se apagasse.

    Angústias já nasceu com as ilusões mortas. Sabe que não é como as outras meninas de sua idade. É perigosa. Desde cedo intuiu que era preciso ter coração de ferro para suportar o inferno, ou não ter coração. Enquanto houver água por perto, porém, ela ficará tranquila e seus dedos não causarão mal a nada nem a ninguém.

  • Rosa, verde e rosa

    Rosa. Apenas Rosa. Nascida e criada na Estação Primeira de Mangueira. Primeira estação do trem e do seu coração.

    Rosa ganhou esse nome por duas paixões do seu pai. O samba de Cartola e a Mangueira. Rosa nasceu em 1980, ano em que Cartola morreu e seu pai resolveu lhe prestar essa homenagem. Ele assobiava “As rosas não falam”, quando se lembrava da mulher, que havia lhe abandonado alguns anos após Rosa ter nascido. Dizem que sua mãe era uma mulher linda, sorridente, mas não tinha nascido para ser mãe. Depois de ter parido Rosa, ela estava sempre triste, pelos cantos, como se não gostasse mais de viver.

    Seu Reynaldo tentava de tudo. Fez até um canteiro de rosas para ela, inspirado por Cartola. Dizem que a letra de “As Rosa não falam” foi quase totalmente composta quando Cartola levou à Dona Zica, sua esposa, umas mudas de rosas que plantou no jardim. Dias depois, ao abrir a porta pela manhã, ela percebeu que muitos botões haviam desabrochado e ficou deslumbrada com tanta beleza e quantidade. Chamou seu amado e perguntou:

    – Cartola, venha aqui! Venha ver o jardim! Por que é que nasceu tanta rosa?

    E o sábio respondeu:

    – Não sei, Zica. As rosas não falam!

    Mas a mãe de Rosa parecia imune a qualquer beleza. Nada mais lhe interessava, lhe fazia sorrir, lhe animava. Sua última lembrança da mãe foi no desfile que consagrou a Mangueira, em 1984, na inauguração do Sambódromo. Quem puxava o samba era um tal Jamelão – puxava não, porque ele não gostava de ser chamado de puxador – um senhor mal-humorado com a voz de trovão, que assustou Rosa quando ela passou ao lado do carro de som. Ele parecia estar sempre bravo e a menina se agarrou ao pai com cara de choro, enquanto sua mãe se misturava ao mar verde e rosa da ala das passistas. Depois disso, ela nunca mais a viu. Nesse ano, aconteceu um dos feitos mais marcantes da história da escola: Depois de desfilar, a escola retornou pela Sapucaí, sendo aclamada pelo público. A comunidade toda ficou em festa, mas seu Reynaldo não conseguiu comemorar. Procurava sua amada em todos os cantos, parecia um louco a procura do nada. Só encontrava o vazio e se enfurecia gritando por ela.

    Mas será que alguém tinha perguntado para a sua mãe se era isso que ela queria? Mulher negra da favela, casou-se com o seu primeiro homem para sair de casa e da fúria do pai. Queria pôr fim ao ciclo de humilhação e violência que vivia com a mãe, que tinha um filho atrás do outro pelo simples motivo de que não apanhava enquanto estava grávida. Se tornou uma mulher fria, sem brilho. Paria como um bicho e fazia de tudo para engravidar novamente. O marido se gabava, enquanto ela só queria sobreviver.

    Nair era o contrário. Seu sorriso cativava a todos, seu brilho era natural. Mas precisava ser livre, desfilar, cantar seu amor pela vida. O casamento com Reynaldo ia muito bem até a notícia da gravidez. Apaixonados, nunca pensaram em evitar. Muito pelo contrário, Reynaldo sempre dissera que queria ter muitos filhos, um para cada ala da sua escola. Mas sua amada começou a se sentir como a mãe, presa pelo ventre, amarrada pela obrigação. Não falava sobre o bebê, não queria saber de pensar em nomes, não se importava se seria menino ou menina. Tinha pesadelos constantes e, por mais que Reynaldo lhe acalmasse e jamais tivera coragem de lhe erguer a mão, a barriga crescendo era muito mais um fardo do que um acalanto.

    Nesse dia em que ela sumiu na multidão, fazia 3 anos que ela não saia de casa. Depois de muita conversa de amigos e parentes, ela resolveu voltar para a sua escola. Seu Reynaldo imaginava que ela só precisava voltar a sorrir, voltar a brilhar. Como se todos os seus fantasmas fossem desaparecer na magia verde e rosa do Carnaval. Ela se aprontou com esmero especial. Vestiu-se como se fosse a última vez. Se despediu do marido e da filha com lágrimas nos olhos. Acharam que era a emoção. Mas era um adeus.

    Depois que a mãe de Rosa foi embora, Seu Reynaldo a criou do jeito que pode. Pedindo ajuda para a mãe e as irmãs que se revezavam enquanto ele trabalhava, fazendo bicos pela comunidade de pintor, eletricista e o que mais precisassem. Rosa cresceu cercada de amor, mas a falta da mãe parecia uma chaga aberta, um afago que nada conseguia substituir.

    Rosa foi se tornando uma bela moça e fazia vista pelas ladeiras da Mangueira. Mas enquanto todas as suas amigas sonhavam em desfilar na escola do coração, Rosa queria escrever o samba enredo. Queria cantar sua tristeza, colocar para fora a falta da mãe, as aflições do pai, o abraço que não encontrava parceria, o choro que só encontrava eco.

    Fazia versos como quem ama. Como quem padece. Mas não mostrava para ninguém, sabia que não tinha lugar no meio dos adultos, nem dos homens. Se deslumbrava quando seu pai entoava os clássicos da escola, imaginava novas rimas, corria para anotar suas ideias em um bloquinho cor de rosa estrategicamente guardado sob o seu travesseiro. Se escondia no barracão enquanto os homens bebiam e batucavam na mesa imaginando novas canções.

    Nas festas de família, todos gostavam de mostrar os seus talentos. Sua tia Ana cantava enquanto seu primo José tocava violão. A alegria era enredo fácil e as reuniões de família iam até o dia amanhecer. Era aí que o morro ficava mais bonito, com os tons de rosa inundando os becos e iluminando os corações.

    “Mangueira, teu cenário é uma beleza. Que a natureza criou…”

    Seu primo José era parte importante na vida de Rosa. Como um irmão mais velho, era ele quem a defendia dos outros meninos, fazia às vezes papel de pai quando seu Reynaldo viajava para fazer serviços em outras cidades e lhe dava sempre bons conselhos. Era mesmo um bom primo. Um dia, ao voltar da escola, deu de cara com ele deitado na sua cama com o bloquinho cor de rosa na mão. Ela deu um pulo e o arrancou da mão dele:

    O que você está fazendo aqui?

    Minha mãe mandou dar uma olhada em você, parece que seu pai vai voltar tarde. O que você escreve nesse caderno?

    Não interessa!

    Interessa sim. É lindo!

    Você acha mesmo?

    Acho sim. Para quem você escreve isso?

    Antes que José imaginasse que ela estava apaixonada por alguém, Rosa tratou de inventar algo. Ela não queria dizer da saudade da mãe, da tristeza do pai, mas também não queria fazer papel de boba dizendo que queria ser compositora de samba. Seu primo ia rir da sua cara.

    Fala, Rosa. Já sei, você está apaixonada!

    Claro que não! Só…escrevo.

    Pois eu acho que tem poesia aqui. Posso copiar algumas coisas? Vou hoje no barracão e acho que dá para fazer um samba.

    Os olhos de Rosa se iluminaram.

    Fazer um samba com as minhas letras?

    Claro. Mas, olha só. Melhor eu dizer que é meu. Você sabe, os coroas não iam aceitar uma menina na roda de samba.

    Pode fazer o que quiser. Será que eles vão gostar?

    Só podemos tentar.

    À noite, José foi se encontrar com os outros compositores já com um samba na ponta da língua.

    Vocês precisam escutar isso!

    E José foi, pouco a pouco, emendando frases, batucando aqui e acolá, falando mansinho…E as palavras foram se tornaram música e ganhando som. Seus companheiros de roda, já munidos com seus instrumentos, foram dedilhando acordes e cobrindo o silêncio. Era uma melodia triste, como todo samba deve ser.

    Rapaz, ou você está muito apaixonado ou sofrendo muito. O que, no fim, dá na mesma!

    Todos riram enquanto José não se aguentava:

    Gostaram mesmo?

    Falta um arranjo melhor, mas tem cheiro de sucesso!

    Rosa não tinha conseguido dormir. A todo momento esperava o retorno do primo que havia prometido lhe falar sobre o que acontecera no barracão. O pai, seu Reynaldo, abriu a porta da frente, cansado de mais um dia de labuta e Rosa estava lá de pé, achando que fosse José.

    O que você faz acordada, Rosa? Seu primo não lhe avisou que eu iria demorar?

    Sim, papai, mas não conseguia dormir. Estava preocupada com o senhor.

    Isso não era de todo mentira, mas Rosa queria mesmo era saber notícias do seu samba. Fingiu um bocejo, abraçou o pai e voltou para o quarto. Espiava a lua longe, se escondendo por nuvens finas que pareciam se desfazer com um sopro. De repente, um barulho na janela. Deu um pulo tão rápido que quase caiu da cama.

    Rosa…tá acordada?

    José, pelo amor de Deus! Como poderia dormir com tanta ansiedade no peito?

    Vou falar rápido para não acordar o seu pai. Eles adoraram a letra, vamos fazer os acordes e a música amanhã. Vai ser um sucesso! Agora vai dormir.

    Dormir? Como Rosa poderia dormir depois de uma notícia como aquela? Ela se revirou na cama até os primeiros raios de sol e não conseguia parar de sorrir e pensar e compor até na hora de fazer o café até chegar na escola e ainda depois. Tinha que dar um jeito de ir até o barracão naquela noite para ouvir – imaginem só! – o seu samba ser tocado, apreciado e amado pelos melhores músicos da escola. Tinha a sorte de ser sexta feira e não ter escola no dia seguinte. Seria mais fácil convencer o pai.

    O dia passou devagar, a tarde chegou preguiçosa e quando os últimos raios de sol inundaram o morro e todo o rosa que fazia a tristeza ir embora se dissipou, Rosa já estava pronta e faceira na espera do pai chegar para pedir autorização para ir ao barracão. Sorte das sortes, seu Reynaldo chegou cedo naquele dia e muito bem humorado, o que era novidade.

    Pai, que bom que chegou cedo. Preciso lhe pedir uma coisa.

    Onde você está pensando em ir tão arrumada assim? Não me diga que está namorando!

    Claro que não, pai! Só quero ir no barracão ver o meu primo tocar um samba novo.

    José voltou a compor? Essa eu quero ver. Podemos ir, mas tem certeza que não tem namorado por aí?

    Juro, papai!

    Esse comportamento da filha, ao mesmo tempo que deixava seu Reynaldo aliviado, também o deixava pensativo. Será que a menina tinha medo do amor?

    Os dois chegaram cedo no barracão e os músicos ia aparecendo aos poucos, vindos do trabalho, alguns ainda famintos, pois a vontade de chegar logo no local do samba era maior do que a de jantar em casa. Todos tinham um trabalho formal, pois viver de samba ainda não dava dinheiro. Mas eram tão apaixonados pelo que faziam, que talvez até se arriscassem.

    Uma figura diferente estava na roda naquele dia. Uma mulher sorridente, forte, com lenço colorido amarrado no cabelo. Seu pai correu para cumprimentá-la:

    Zica, quanta honra ter você aqui!

    Reynaldo, meu amigo…Como você está? E a pequena Rosa?

    Rosa não conseguia acreditar no que via. Era dona Zica, viúva de Cartola. E ainda sabia seu nome!

    De pequena ela não tem mais nada, Zica!

    Rosa foi se aproximando devagar como quem chega no fim de uma peregrinação. Como toda a sua vida se resumisse naquele momento.

    Mmmuiito pprazer, dona Zica. Sou muito sua fã!

    Reynaldo, sua filha já é uma mulher! Estamos ficando velhos! E ela sorriu, enquanto puxava Rosa para perto em um abraço com cheiro de peixe e cebola.

    Vieram para o meu vatapá? Ela era famosa pelo prato.

    Nem sabia, mas viemos também pelo samba novo do José.

    Samba novo? Essa eu quero ver.

    E no meio do preparativo para o vatapá, o barulho das latinhas de cerveja abrindo e os instrumentos se afinando, chegou José. Muito bem arrumado, penteado e perfumando, como um mestre sala à espera da sua porta bandeira.

    Caprichou, hein?

    Todos os homens fizeram questão de brincar com a aparência de José, pois era o único que havia tido o cuidado de ir em casa antes de chegar no barracão.

    Só pode estar mesmo apaixonado!

    Mas a farra durou pouco. Eles queriam era escutar o samba. Até Dona Zica saiu da cozinha e pediu para outra pessoa ficar de olho no vatapá. Rosa se sentou perto do primo, que com um aceno carinhoso, a chamou para mais perto.

    A música falava de perda, de amor, mas também de esperança. Rimava a vida com alegria e Rosa a cantava baixinho, com aquela segurança de compositora. Seu Reynaldo tentava segurar as lágrimas, pois não conseguia parar de pensar na sua amada Nair. O “Jorge da Cuíca” fingia tirar um cílio do olho esquerdo que teimava em não cair. Seu Jair, no violão, viu uma lágrima descer pelas cordas e quase desafinou. Na verdade, todos os homens tentavam segurar alguma emoção escondida – homem não chora, afinal – mas Dona Zica estava atenta aos lábios de Rosa. Ela cantou a música toda transbordando de sentimentos. Quando a última nota entoou e todos aplaudiram José, Dona Zica perguntou?

    Quem fez essa letra linda?

    Fui eu, Dona Zica. – Respondeu, cheio de orgulho, José.

    E Rosa?

    A menina, que estava ainda celebrando em silêncio o seu sucesso, foi tirada daquele torpor pelo seu nome dito daquela maneira tão certa.

    O que eu fiz, Dona Zica?

    Eu que te pergunto. O que você fez? Esse samba?

    Todos se entreolharam como se aquilo fosse uma brincadeira. Seu Reynaldo, quase envergonhado, correu para intervir.

    Imagina Dona Zica. Rosa é uma criança, onde ia arrumar imaginação para isso?

    Rosa continuava calada, sem saber onde era o seu lugar naquela situação. Mas José, consciente do talento da prima, disse:

    Foi Rosa que escreveu sim, Dona Zica. Eu só dei uma ajeitada, meus parceiros fizeram a melodia, musicamos… Mas a letra é de Rosa.

    Seu Reynaldo não sabia se abraçava a filha ou a colocava de castigo, Quanta ousadia escrever aquele samba. Mas quanta tristeza também na vida dessa menina, meu Deus!

    Os outros sambistas também não sabiam como lidar com aquela menina que, de repente, se mostrava uma grande compositora. A filha do Reynaldo, quem diria! Mas ainda era uma menina, no fim das contas.

    Parabéns Rosa. Você foi aprovada no mundo do samba! – Disse Dona Zica como para dar um fim àquela confusão de valores – É isso o que você que fazer?

    É sim, Dona Zica.

    Então tem a minha benção e de todos aqui. Concorda Reynaldo?

    Mas é claro que sim. Se é isso o que ela quer!

    Ninguém iria discordar de Dona Zica e nem mesmo José ficou chateado por ter a prima alçada quase ao estrelato do samba em uma noite. Ficou feliz em não precisar mentir mais e prometeu ajudar Rosa nas próximas composições.

    Sempre falta alguma coisa, né?

    Rosa sorriu como estivesse em um sonho. Mal sentia o seu corpo, parecia levitar por entre todos. A música recomeçou e Dona Zica pediu a vez. Queria homenagear Rosa, com o seu segundo intérprete favorito.

    Que Cartola não me ouça, onde ele estiver. Mas eu sempre fui apaixonada pelo Orlando Silva! – Todos riram e ela entoou:

    Tu és divina e graciosa
    Estátua majestosa
    Do amor, por Deus esculturada
    E formada com ardor.


    Da alma da mais linda flor
    De mais ativo olor
    Que na vida é preferida
    Pelo beija-flor.


    Se Deus me fora tão clemente
    Aqui neste ambiente
    De luz, formada numa tela
    Deslumbrante e bela…

  • Quando o nosso nome estiver gravado na pedra

    Até os dez anos me chamei Donato, embora meus pais nunca tivessem gostado desse nome. Por que me batizaram assim é um mistério. “Não está com o rosto definido ainda”, diziam. “Quando for adulto e sua cara indicar que nome deve ter, mudaremos.” E assim foi. Aos doze, com a mudança de voz, decidiram que Donato já não combinava comigo, e que o melhor nome para meu rosto recém-estreado na adolescência seria Adalberto — Beto para os amigos. Esse nome durou até a noite de núpcias, quando, no momento crucial, minha mulher me chamou de César. “Céeeesar!”, gritou ela, antes de largar o corpo na cama, suada e satisfeita. “Ela se casou com o Beto e tirou a virgindade do César”, meus amigos faziam sempre a mesma piada.

    Desde então mudei de nome em outras três ocasiões: no escritório em que fui trabalhar eu me sentia Oswaldo, e assim me apresentava a todos; na faculdade, Péricles; na mesa de jogo, antes de bater o punho e gritar “Truco!”, Evanildo.

    Meus amigos se confundiam. Para facilitar a vida deles, aceitei que colocassem no meu pescoço uma tabuleta com o nome que eu usava no momento e, mesmo assim, ficavam pouco à vontade quando tinham de me chamar. Achavam essa mudança de nome uma bobagem. “A gente nasce, ganha um nome e fica com ele até o fim, até morrer, não é esse o normal?”, perguntavam sempre. Eu respondia que eles tiveram sorte, que o rosto deles se moldou ao nome que ganharam no batismo e não havia necessidade de mudar. Não era o meu caso, meu rosto não era sempre o mesmo e, por isso, o meu nome precisava se adequar. Para tranquilizá-los, eu acrescentava que, um dia, seríamos todos iguais, teríamos o mesmo rosto e o mesmo nome gravado na pedra.

  • Deus e o Diabo na Terra do Sol

    Uma antiga lenda indígena relata como se deu o surgimento da vida.

    No início, havia apenas trevas e do interior do nada, Tupã fez germinar a luz. No negro céu, em meio a um infindável vazio, o poderoso senhor dos trovões criou o sol, fonte incandescente de luminosidade, a lua e as estrelas com seu brilho ameno.

    Durante o dia, sob a égide do deus Guaraci, a vida pulsaria fulgurante, multicolorida. À noite, envoltos no manto da escuridão e da quietude, os seres viventes se recolheriam, repousariam e recuperariam suas forças, acolhidos pela terna proteção da deusa Jacy.

    Curupira e Caipora foram designados guardiões das matas e dos animais. À divina Yara, coube a missão de reger os mares, lagos, rios, pororocas, piracemas, igapós e igarapés, através dos quais a sabedoria perene das águas espalharia o sêmen da vida ao longo do Solimões para além das terras de Marajó.

    Rupave e Sypave, respectivamente o pai e a mãe de todos os humanos foram moldados no barro. Um sopro divino conferiu-lhes o dom da anima. E puderam assim gerar homens e mulheres que se multiplicariam pelos vales e colinas.

    Advertiu-lhes com severidade o sábio criador:

    “Deixo-vos este Eldorado para ser vossa morada, para que possais nele criar vossa prole com fartura. Que a terra fértil possa abastecer de tudo o que vossas necessidades rogarem.

    Os frutos da terra nutrirão a todos e dela emergirá o maná abençoado em profusão para os vossos filhos e para os filhos dos vossos filhos. As águas puras, frescas e cristalinas a brotar magicamente das pedras aplacarão prazerosamente vossa sede. As árvores exalarão bálsamos revigorantes e vos guarnecerão proteção contra os efeitos abrasivos do sol e um ninho acolhedor quando precisardes descansar vossos corpos. O fogo propiciará aquecimento para enfrentardes o frio e tornará palatáveis os alimentos.

    Essas oferendas a vós concedidas farão das terras um éden para usufruirdes de uma existência plena e radiante, ainda que efêmera. Confio que usareis sabiamente as dádivas para fazerdes jus à felicidade que elas vos proporcionarão.

    Tais bênçãos, todavia, não são privilégio de seres como vós, mas proverão as necessidades das demais formas de vida com quem convivereis, animais e plantas que convosco partilharão o espaço: borboletas, besouros, araras, andorinhas, arapongas, periquitos, tucanos, tamanduás, jaguatiricas, macacos, antas, capivaras, sucuris, sapos, jacarés, pirarucus, tucunarés, tambaquis, pacus, açaís, buritis, cupuaçus, ingás, jacarandás, ipês, cedros, jatobás…”

    E assim os primeiros homens e mulheres, deslumbrados com a abundância de cores e formas que o generoso deus lhes havia oferecido, sentiram-se gratos pela bem-aventurança de que foram beneficiários e preservaram com zelo o que lhes cercava.

    Essa harmonia entre entes tão distintos não chegou a ser gravemente abalada quando advieram aos humanos sentimentos de cobiça e rivalidade que colocaram irmão contra irmão e puseram em pé de guerra as tribos, surgindo os primeiros embates, sob o olhar reprovador de Tupã.

    Ainda assim, o misericordioso relevou tais transgressões e entendeu que os seres, imperfeitos e mortais que eram, não chegariam mesmo a um congraçamento universal como seria de seu agrado. E a vida manteve seu tênue equilíbrio por muitas e muitas luas.

    A situação não perdurou quando jovens guerreiros, tomados pela ambição, fizeram aliança com os espíritos malignos que sempre estiveram rondando, esperando a oportunidade para infundir a discórdia.

    Abdicando da coexistência pacífica, prepararam-se para a guerra em busca de maior poder. Para ampliar seu domínio, subjugaram as espécies mais dóceis e eliminaram diversas formas de plantas e animais, empobrecendo a diversidade.

    O boto rosa não mais foi avistado. A harpia alçou as asas em direção ao infinito. E o canto de Uirapuru nunca mais pôde ser ouvido.

    Ervas utilizadas secularmente pelos xamãs em seus preparos foram extirpadas. Foram abolidos os rituais de pajelança e desdenhada a sabedoria milenar dos ancestrais. Sem os elixires, os males e as pragas divinas se espraiaram.

    Rompido o equilíbrio, os mares ficaram revoltos, os ventos cada vez mais furiosos, a aridez da terra alastrou-se, a vida fragilizou-se.

    Com seu uso desvirtuado, o fogo transformou-se em arma de extermínio e a fumaça cobriu a luz do sol e o brilho das estrelas. O ar e a água foram envenenados. O vívido azul dos mares e o cintilante verde das matas tornaram-se cinzentos e opacos.

    Tupã assistiu tristonho o ocaso da vida que fizera brotar ao longo de rios, campos e montanhas. A obra da sagrada divindade fora corrompida pela ganância. As ruínas do seu reino foram apropriadas por Anhangá, o deus da morte que assumiu o comando.

    Conta-se que o criador ao ver sua obra desfeita pela criatura, não a castigou nem reagiu. Deixou o inexorável destino cumprir sua sina, sem impedir que as ações insanas dos humanos sobre eles próprios revertessem seus nefastos efeitos, provocando sua auto-destruição.

    Tupã se recolheu. Diz-se que se transmutou em espírito protetor de uma floresta distante, fora do alcance da insensatez. Sua voz grave porém ressurge retumbante e assustadora no ribombar dos trovões, quando as tempestades, cada dia mais fortes e avassaladoras, desabam sua fúria sobre os herdeiros da terra devastada.


  • Tatiana está sangrando

    Era perto do meio-dia quando Tatiana saiu correndo da escola. Ela tinha ainda que almoçar antes de se encontrar com a Ju. Estava atrasada, e isso a fazia suar mais. Passou no meio dos meninos a tempo de escutar “A gorda tá com pressa?” Olhou para a frente e correu mais. Não dava tempo de chorar. “Corre mesmo, gorda, pra ver se perde meia tonelada”, ela ouviu antes de cruzar o portão e ganhar a calçada. Subiu no ônibus e procurou um assento no fundo da condução, onde ninguém a visse. Olhou pela janela e aí, sim, chorou um pouquinho. Decidiu não ir na Ju, depois ligaria para a amiga. Faria sozinha hoje.

    Entrou em casa, gritou “Cheguei!” e foi direto para o banheiro. Trancou-se, pegou o estilete na mochila e começou. Doeu tanto, tanto, no corpo e no coração, mas vai cicatrizar. Tatiana sabe que todas as feridas cicatrizam mais cedo ou mais tarde. Fica a marca por um tempo, depois some — um fio de sangue que corre pelo joelho, uma trilha que nasce no ponto do corte e busca, pela gravidade, alcançar o chão. Uma gota maior e mais robusta dilata o fio vermelho e morre no meio da gaze que a mão aperta contra a pele, estancando a hemorragia. A água fria da torneira termina de limpar o resto, só permanece aquele tom avermelhado e difuso, a mancha que denuncia a mutilação, a identidade do flagelo imposto por ela própria.

    Tatiana sabe que isso está errado, mas não consegue parar de errar. A mãe chama “Almoço pronto. Tá morta aí dentro?” Tatiana quis gritar “Tô”, mas só disse “Já vou”. Não queria ver ninguém naquele momento, não precisava de testemunhas na hora de lavar e expiar o que os outros consideravam pecado. Tampouco precisava que mais uma vez, outra vez, a julgassem e lhe apontassem com o dedo. Seca as pernas com papel higiênico e puxa a saia para baixo, escondendo os sinais.

    Semana que vem, quando a marca de hoje já estiver velha, uma nova será feita, porque ela precisa de ajuda e, na hora da ajuda, ninguém aparece. Só aparece a Ju, tão gorda, tão vesga, tão infeliz como ela.


  • A casa de Cortázar, tomada

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    em homenagem ao conto “Casa Tomada”, de Julio Cortázar (1914-1984), escritor argentino

    Gostamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (mesmo que hoje as casas antigas sejam pouco valorizadas), guarda as recordações de avós e bisavós, pais e toda a nossa infância. As paredes sabem de nós, quem fomos, quem somos. O eco das vozes do passado ainda nos enchem de encantamento. Houve felicidade aqui — ainda há.

    Minha irmã Irene e eu nos acostumamos a viver sozinhos. Não há mais ninguém da família entre nós, só a lembrança deles. Temos nossa quieta solidão e isso nos basta. Chegamos à meia-idade com leveza e despreocupação. Em nenhum momento pensamos em sair daqui e viver em outro lugar. Isso nunca nos passou pela cabeça, já que nosso corpo e nossa alma não saberiam viver longe destas paredes. Esta casa é um celeiro de lembranças e somos dependentes delas. Também somos agradecidos pelo que elas nos proporcionam. Há recordações que, com o passar do tempo, se diluem na memória e não sabemos distinguir muito bem se foram reais ou se estiveram a ponto de sê-lo ou se foram fruto de nossa imaginação. Há outras, entretanto, que são tão nítidas que parece que aconteceram ontem mesmo. O que sabemos, Irene e eu, é que aqui é o nosso lugar e aqui ficaremos até o dia em que deixe de ter importância o que queremos ou não.

    A crise econômica que hoje assola a nação também nos pegou, e isso foi inevitável. O país inteiro sofre com a má administração do dinheiro público, por que conosco seria diferente? Decidimos vender alguns móveis, ainda que nos doesse. Tínhamos que incrementar nossa renda de aposentadoria para manter esta casa tão grande. Vieram uns homens para retirar algumas peças, deixando vazios vários cômodos. Sentimos muito, mas preferimos assim. Os vasos com as plantas ornamentais também renderam um bom dinheiro, assim como alguns quadros e uma parte das louças e dos objetos de prata e cristal. Nem vou falar dos livros franceses; separar-me deles doeu muito em mim. Eles eram como um tesouro que eu guardava com o máximo cuidado. Irene chorou quando tivemos que nos desfazer do genuflexório forrado com veludo roxo. Os carregadores passavam ao nosso lado com estantes, penteadeiras, poltronas e cômodas nos ombros. Ficamos desolados vendo a mobília sair da casa e ir sabe-se lá para onde. Sentimos que perdemos um pouco o chão; ficamos sem certezas, como aquela que se tem de encontrar o litro de leite na soleira da porta a cada manhã. Mas teve que ser assim, os dias modernos nos levaram a isso. Eu tentei animar minha irmã e ela me pediu que dissesse àqueles estranhos que os móveis podiam ir, mas a casa ficaria no lugar de sempre. A casa não estava à venda.

    As primeiras horas depois disso foram penosas. Ver a casa quase vazia era muito difícil, mas aos poucos deixamos para trás os dias ruins. Utilizamos as lembranças para superar a tristeza. Por exemplo, recordar o dia em que a casa passou a ser propriedade só nossa, minha e de Irene, por direito e herança. Eu dancei sozinho sobre o piso de madeira para celebrar o acontecimento e Irene, mais familiarizada com cálculos e contas, assinou o contrato, encerrando o caso. A casa era definitivamente nossa. Foi um dia memorável. Gostei de ver minha irmã enfim sorrindo, ainda que fosse um sorriso triste. Logo depois do jantar ela retomou o tricô e comentou que precisaria de mais lã azul para terminar o cachecol que fazia para mim. Eu disse que na manhã seguinte iria até o centro da cidade e compraria. Ela agradeceu com a delicadeza de sempre e voltou os olhos para o trabalho. Eu continuei mergulhado nos livros. Dormimos muito bem aquela noite.

    Quando Irene sonhava em voz alta, e chorava, eu acordava de imediato. Corria até seu quarto e a sacudia com delicadeza. Ela me perguntava, ainda dormindo, que carro era aquele que tinha passado perto da janela do quarto. Era uma voz estranha, que vinha do mais profundo de sua inconsciência e não de sua garganta. Eu respondia que não sabia, era apenas um carro, um automóvel qualquer que alguém dirigia na rua de nossa casa. Ela retrucava implorando que eu dissesse ao motorista que a casa não estava à venda. Eu a abraçava com força para acalmá-la.

    Os casais jovens e as famílias mais ou menos numerosas que vinham ver a casa se admiravam com a beleza e a sobriedade da construção. Passeavam pelos cômodos olhando as paredes, o teto, as portas, os rodapés. Iam do saguão com piso de mármore até a sala de jantar forrada com gobelinos, passando pela biblioteca e pelos amplos dormitórios, que ficavam na parte mais afastada da casa, aquela que dá para a rua Rodríguez Peña — perguntavam coisas, suspiravam em alta voz, faziam comentários de admiração. Irene, a todo instante, me pedia que lhes dissesse que a casa não estava à venda, nunca estaria. Eu respondia que estava tudo bem, que podíamos nos cobrir com lençóis brancos e fingir que éramos fantasmas e mandá-los para longe daqui. Ela ria, mas seu riso continuava triste.

    Pensamos em sair à rua, trancar a porta e jogar a chave num buraco de esgoto qualquer, para que estranhos não invadissem a casa, mas não conseguíamos nos afastar de lá. E então gritávamos às pessoas que fossem embora, que deixassem de tagarelar, que não tomassem nossa casa, que ela não estava à venda. Ninguém nos ouvia. Continuavam passeando pelos cômodos, comentando sobre os poucos quadros pendurados, a cor das paredes e a altura do pé direito. “Uma casa magnífica”, diziam. Irene chorava e eu tentava mantê-la calma dizendo “Esta casa, a nossa casa, nunca será tomada.”


  • VALDIR E FONSECA

    Valdir e Fonseca trabalhavam na mesma empresa. Estavam na casa dos 50 anos bem vividos, um talvez mais do que o outro. Eram também vizinhos, o que não significava que eram amigos. Todos os dias saíam no memos horário, mas Valdir nem sempre voltava para casa antes do Jornal Nacional. Tinham algumas outras tantas diferenças. Valdir era quase mau humorado. Quase. Alto, magro, parecia estar sempre com fome. Mas preservava a cabeleira intacta, motivo de inveja de Fonseca. Quem o conhecia bem, dizia que era uma dama. Mas tinha cara de poucos amigos, talvez para se defender de puxas saco ou de gente chata mesmo. O que dá no mesmo. Ninguém sabia muito da sua vida particular. Muito não, quase nada. Nem mesmo Fonseca.

    Fonseca era quase o oposto. Estatura mediana, um pouco mais gordinho, quase careca. Era casado e achava que não precisava se cuidar muito mais do que um banho de manhã e outro antes de dormir e fazer a barba todos os dias. Não entendia como o vizinho estava sempre bonito e arrumado. E solteiro. Mas o que mais intrigava Fonseca era porque Valdir nunca lhe oferecera carona. Saíam religiosamente no mesmo horário, trabalhavam no mesmo local e provavelmente fariam o mesmo trajeto se Fonseca também tivesse carro. Se. Mas Fonseca ia de metrô, lotado, esmagado, suado, todos os dias. Se casou cedo, teve filhos logo, e, entre estar em casa com a família e estudar ou viajar para aproveitar as oportunidades que a empresa oferecia, preferiu a primeira opção. Não se arrependia. Gostava de ser um homem de família, com uma rotina fixa e a oportunidade de ver os filhos crescerem. Mas agora, com eles crescidos e a mulher cheia de hobbies que não lhe incluíam, sentia falta de algo mais.

    Já Valdir era diretor, só faltava ser presidente. Tinha galgado todos os degraus, de acordo com a cartilha da empresa. Fez todos os cursos, foi para todos os cantos que mandaram e hoje, ia com seu carro reluzente para a empresa. Era um modelo antigo, clássico e charmoso. Não tinha filhos e Fonseca não se lembrava se um dia ele fora casado. Parecia um lobo solitário. Mesmo assim, com todas as diferenças, eles se cumprimentavam todas as manhãs e cada um partia para o seu destino à sua maneira. Enquanto Valdir entrava no seu carro reluzente, Fonseca caminhava 3 quadras até o metrô, pensando o porquê desse comportamento do colega de trabalho. Seria timidez? Não queria se misturar com a ralé? Ou seria puro egoísmo mesmo?

    Resolveu puxar conversa na hora do cafezinho. Trabalhavam também próximos e resolveu esperar o vizinho sair de sua sala para tentar uma deixa. Ao chegar na copa onde todos se reuniam para tomar café, Fonseca atacou sem piedade:

    — Dia quente, hoje, hein?

    — Muito! Nem parece que não estamos mais no verão.

    — Pois é… o metrô estava lotado. Parecia uma sauna!

    — Imagino…

    E Valdir terminou seu café com a mesma cara de poucos amigos de sempre, deu meia volta e foi para a sua sala, sem antes dizer a Fonseca:

    — Até amanhã!

    — Até!

    Mas era muito cara de pau mesmo! O sujeito não tinha nem pena do ser humano que se espremia no metrô lotado. Não podia ser mesmo boa pessoa! Quem seria tão frio assim? Custava oferecer uma simples “caroninha”?

    Fonseca passou o dia todo com raiva de si. Chegava a ficar furioso toda vez que se lembrava da tentativa de amizade frustrada. Amizade não, carona. Chegou em casa praguejando:

    — Você acredita, Janete, que o sr. Valdir se acha muito bom para andar comigo?

    Nessa altura do campeonato, Fonseca já tinha formulado uma história na qual Valdir se achava superior e não consideraria ser amigo dele.

    — Que gritaria é essa, Fonseca? E que Valdir é esse?

    — O nosso vizinho, que trabalha comigo. Está se achando demais!

    — Eu, hein? Muito me admira você querer ser amigo dele. Aquele homem é muito estranho…

    — Estranho como?

    — Nunca reparou? Ele sai sempre no mesmo horário que você, mas nunca volta no mesmo horário. O apartamento fica com as luzes acesas até de madrugada e sempre tem barulho de música ou conversa até tarde. Mas ele nunca aparece com ninguém. Sei não…

    — Como você sabe disso tudo?

    — Às vezes eu acordo de madrugada com o seu…Quer dizer, tenho insônia, e vou beber alguma coisa. Sempre tem movimento por lá, isso as 3, 4 horas da manhã.

    Janete ia dizer que acordava com o ronco do marido, mas preferiu deixar para lá. Fonseca já estava nervoso demais.

    — Mas se ele vai dormir tão tarde, como acorda tão cedo?

    — Deve ser um zumbi! Janete levantou as mãos para dramatizar a sua opinião e Fonseca se benzeu de maneira instintiva:

    — Vade retro, Janete! Para de falar besteira!

    Mas aquilo ficou martelando na cabeça de Fonseca. Seu vizinho era, no mínimo, muito estranho. Não falava sobre a família – se é que tinha alguma – não ia nas festas da firma, não oferecia carona…não fazia nada de normal. Ele, Fonseca, ofereceria carona se tivesse um carro, por que não?

    No outro dia, no escritório, depois de mais uma saga no metrô, Fonseca resolveu tirar aquilo a limpo:

    — Você sabe por que o Valdir não oferece carona para ninguém?

    — Como assim?

    Fonseca ficou obcecado com o tema Valdir. Começou a achar que tinha mesmo algo estranho com o seu vizinho zumbi e resolveu perguntar para os colegas mais chegados o que eles achavam do chefe. Dona Telma, que era secretária de Valdir desde sempre, com certeza poderia esclarecer:

    — Ele já me deu carona uma vez, sim. Mas já tem algum tempo. Por quê?

    Hummmm…Então o vizinho zumbi oferecia caronas para mulheres e não para homens. Podia ser uma pista. Ou era só mais um clichê: chefe dá carona para a secretária na hora do almoço e acaba indo parar no motel. Não, era muito cliché, mesmo para Valdir.

    — Seu Lupércio, me responde uma coisa: O que o senhor acha do Valdir?

    — Seu Valdir é uma dama! Por que o senhor quer saber?

    — É por quê…Porque vamos fazer uma festa surpresa para ele e estamos pensando no que ele gostaria de ganhar. Alguma sugestão?

    — Para o senhor Valdir? Ele merece muita coisa! Pode contar comigo para o presente!

    Agora essa. Nem pegava carona com o dito e agora ia ter que fazer uma festa surpresa. Nem ao menos sabia a data do aniversário de Valdir. Vizinhos há quase 30 anos e nunca se parabenizaram por nada. Nem quando Fonseca se casou, teve filhos…Por que nunca foram próximos? A voz de Janete parecia ressoar no fundo da sua mente: É porque ele é um zumbiiiiii!!!!!!!

    Teria que dar uma olhada no mural da empresa, lá com certeza tinha o aniversário de todos os funcionários. Chegou até a letra V: Vagner, Valentina, Valdir…02 de março de 1964. 02 de março de 1964? Eles faziam aniversário praticamente no mesmo dia, Fonseca era do dia 04. Que coincidência. E nem assim eles eram amigos? Aniversário aproxima as pessoas, ora essa. Fonseca estava sentimental. Poderiam ser irmãos gêmeos praticamente. Precisava corrigir isso. Ia fazer uma festa surpresa para Valdir. Foi para casa cheio de ideias:

    — Janete, vou precisar de sua ajuda. Vamos fazer uma festa surpresa para o Valdir!

    — Ah, pronto…Agora que o homem endoidou de vez!

    — Não escutei, Janete!

    — Nada não, meu marido…Do que você precisa? – Tem horas que é melhor não contrariar.

    — Bolo, balão, salgadinho, brigadeiro…Será que ele gosta de brigadeiro?

    — Alguém não gosta?

    — Tem razão Janete. Todo mundo gosta de brigadeiro. Vamos fazer uma festa de arromba para Valdir.

    Janete só resmungava: Eu, hein?

    No dia seguinte, no mesmo horário, os dois se encontraram como de costume na porta do prédio. Valdir, todo elegante e cheiroso — chegava exatamente assim no escritório, sem nada fora do lugar — e Fonseca com ar de criança travessa, falando apressado:

    — Tá chegando, hein?

    — O que que está chegando?

    — Deixa pra lá…Rs… Melhor não estragar a surpresa!

    Valdir deu de ombros, um pouco confuso com essa mudança repentina do vizinho, enquanto Fonseca caminhou suas três quadras rotineiras de uma maneira quase eufórica. Se sentia leve, como se estivesse prestes a um grande feito. Tinha certeza de que seriam, afinal, grandes amigos. Com direito a carona!

    Dona Telma já estava de prontidão quando Fonseca chegou no escritório. Ela estava responsável por encomendar os salgadinhos e docinhos e queria algumas sugestões:

    — Kibe ou coxinha?

    — Eu adoro os dois!

    — Eu também, mas o Valdir é vegetariano. Talvez uma empada de palmito?

    — Vegetariano? Desde quando?

    — Sei lá. Só sei que é.

    Um zumbi vegetariano? E lá vinha a voz da Janete: Ele é um zummmmbiiiiiiiii!!!!!

    — Chega!

    — Eu, hein? Tá estressado Fonseca?

    — Não, desculpa, dona Telma. Vamos escolher empada de palmito. Mais alguma coisa?

    — Refrigerantes e sucos já forma comprados e deixei na geladeira do refeitório, todas com etiqueta para ninguém mexer.

    — Não vai ter uma cervejinha? Afinal, já será no fim do expediente…

    — O Valdir não bebe, Fonseca! Eu, hein? Por que você quer fazer uma festa para alguém que você nem sabe se bebe ou não?

    — Isso não importa Dona Telma. Mais uma coisa…O Valdir já foi casado?

    — Não acredito, Fonseca. Valdir é viúvo, já tem muito tempo. Sério mesmo que você não sabia nem disso?

    — A senhora há de convir que o Valdir é um tanto reservado, né? Mas depois dessa festa tudo vai mudar, a senhora vai ver. Nós não somos amigos ainda. Mas vamos ser!

    — Tem certeza?

    — Claro, Dona Telma. Seremos melhores amigos, a senhora vai ver! Seu olhar era quase vidrado. Pobre Fonseca.

    Mas o que ninguém sabia, muito menos Fonseca, era que Valdir, nessa vida, não gostava de 2 coisas: aniversários e de dar carona. Não gostava de festa, ficava ranzinza, se achava mais velho e não fazia questão nenhuma de ser lembrado da idade que avançava a cada ano. E a carona…Era mania mesmo. Tinha um carinho especial pelo carro: foi nele que ensinou a esposa a dirigir, aos trancos e barrancos. Ela não gostava, ficava tensa, mas no fim riam de suas inseguranças e da sua total falta de atenção. Como ela sabia rir de si mesma! E como era sensível…Uma vez quase atropelou um cachorrinho e chegou chorando em casa.

    — Mas foi quase, querida, ele não morreu!

    — Mas podia ter morrido Valdir… Não iria me perdoar nunca!

    E ele a consolava em seus braços e nada mais parecia importar. Sua sensibilidade e bom humor eram suas maiores qualidades e conquistavam Valdir todos os dias. Então, ele nem poderia imaginar alguém maculando aquele carro. Além disso, era uma negação pela manhã. Tinha verdadeiro horror, falta de paciência mesmo para conversas matutinas. Dormia pouco, pois adorava ver filmes até tarde – seu único prazer depois de ter ficado viúvo – e se achava péssima companhia pela manhã. Evitava que o outro também lhe achasse chato e ainda preservava seu carro de caronistas que teimavam em bater as portas sem a menor sensibilidade. Não era um zumbi. Era um cricri. Mas também uma dama, segundo seu Lupércio.

    Em casa, Fonseca ficou pensando na mulher de Valdir. Não se lembrava dela, nunca tinha visto uma foto no escritório de Valdir. Estranho…

    — Janete, você se lembra da mulher do Valdir?

    — Mulher do Valdir?

    — Sim. A secretária dele, Dona Telma, me disse hoje que ele é viúvo. Você se lembra de algo?

    — Agora que você falou, acho que a vi algumas vezes. Ana…não, Ângela. Mas isso tem muito tempo…O que aconteceu, eles se separaram?

    — Não, Janete. Ela faleceu.

    — Faleceu? Gente, mas…Fomos à missa, ao enterro?

    — Não lembro, Janete. Isso não é estranho? Será que somos tão insensíveis assim? Nem me lembro do rosto dela. E no escritório do Valdir não tem nenhuma foto, nada que lembre a mulher.

    — Isso sim é estranho… Zuuumbiiiiiiiiiiii!!!!

    Claro que Valdir tinha uma foto de sua Ângela. Uma foto linda, de close, tirada na lua de mel em Veneza. Os melhores dias de sua vida. Ela ficava estrategicamente guardada na segunda gaveta a esquerda da sua mesa de trabalho. Ninguém precisava vê-la além dele. E eles se viam várias vezes durante o dia. Sempre que algo novo acontecia, quando Valdir estava preocupado, sem saber como resolver um problema ou quando queria apenas fofocar. Sim, eles fofocavam muito:

    — Você acredita, Ângela, que a Telma insiste em voltar para aquele tal de Roberto? Já avisei que ele não presta, mas ele parece que não me ouve. Ah, se você estivesse aqui, com certeza saberia como falar com ela. Sinto tanto a sua falta…

    Valdir sorria um sorriso triste e Ângela lhe sorria de volta, como sempre. Seu melhor sorriso, registrado na sua melhor foto. Talvez por isso permanecesse no escritório até altas horas, entre conversas com sua amada e os problemas do dia a dia. Gostava do silêncio pós expediente, conseguia pensar melhor. Era um mundo só dele, como todos os outros. Em casa ou em qualquer outro lugar, era um homem absolutamente só.

    Pela manhã, no escritório, o clima era tenso. Muitos estavam se perguntando por que fazer uma festa para aquele chefe que não gostava de festas, não dava carona e não tinha amigos no escritório. Ou melhor, só tinha um: Seu Lupércio. Ele era o mais animado com os preparativos, junto com Dona Telma, que já tinha até pegado uma carona com Valdir. Vai saber o que aconteceu naquela carona! Chegaram a questionar Fonseca:

    — Por que essa festa em cima da hora para aquele chato do Valdir?

    — Quem disse que ele é chato? Ele é meu amigo, respeito é bom e eu gosto! – Rebatia Fonseca batendo no peito com orgulho.

    — Amigo? Nunca vi ele te dando nem ao menos uma carona…E sei que vocês são vizinhos!

    De novo aquele maldito assunto da carona. Por que raios o Valdir era daquele jeito? Não é possível que não tivesse nenhuma qualidade. Resolveu apelar para seu Lupércio, que insistia em dizer que “Valdir era uma dama.”

    — Você não sabe, Fonseca? Sr. Valdir é um homem muito bom, muito culto…Quando entrei para empresa, era um simples faxineiro. Ele conversava comigo todos os dias, perguntava sobre os estudos, sobre a minha família…Um dia, disse-lhe que gostaria de fazer uma faculdade de administração para ter alguma chance de crescer, melhorar de vida. Ele pagou o meu cursinho e a minha faculdade. Hoje, já sou gerente e pude dar ao meu filho a melhor educação, a que eu não tive. Quando meu filho entrou na faculdade no ano passado o Sr. Valdir fez questão de lhe dar um belo presente. Devo tudo a ele!

    Isso tudo deixava Fonseca ainda mais intrigado. Se ele era uma pessoa tão boa, por que fazia questão de andar de cara fechada e não dar muita bola para ninguém? Para Dona Telma ele dava, ah se dava…

    As perguntas de Fonseca sobre Valdir foram repercutindo na empresa e a insatisfação geral com esse puxa-saquismo repentino dele também. Claro que, mais cedo ou mais tarde, aquilo ia acabar chegando nos ouvidos de Valdir. E chegou.

    — Nunca vi ninguém fazer festa nessa empresa, e de repente o doido do Fonseca inventou de comemorar aniversário do Valdir. Justo daquela “mala”!

    — Pelo amor de Deus, nem me fala! Pior que todo mundo vai ter que ir, vai ser no horário do expediente… Até isso!

    Valdir sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao ouvir essa conversa. Estava chegando na salinha do café quando dois colegas acabavam de ter o diálogo. Eles se entreolharam rapidamente e tentaram disfarçar, falando sobre o jogo do Botafogo na noite anterior, que andava mal das pernas, mesmo com o novo técnico e um elenco estrelado. Mas o mal já tinha sido feito. Ele escutara tudo, mas fingiu que não tinha, digamos, entendido:

    — Vergonha, né? Tanto dinheiro investido e o Fogão não ganha uma!

    — O senhor gosta de futebol, Sr. Valdir?

    — Pode me chamar de Valdir, amigão!

    Amigão? Valdir nunca tinha dado nenhum tipo de intimidade para ninguém no escritório. Os dois sorriram meio sem graça e, ainda desconfiados com a amizade repentina, continuaram a conversa com o “amigão.”

    — Então, amigão, estamos combinando de ir ao FLA x FLU no final de semana. Vamos?

    — Mas é claro! Contem comigo!

    Valdir não sabia de onde essas palavras tinham saído. Não ia a um jogo há anos e não sabia nem onde comprar um ingresso. Mas depois que foi praticamente crucificado pelos dois colegas, se sentiu na obrigação de tentar reverter essa impressão. Será que todos pensavam o mesmo? Meu Deus, estava tão envolvido em mostrar autoridade e ser competente, que tinha se esquecido do social. Desde que sua esposa morreu, tinha se esquecido também de si.

    — Dona Telma, preciso falar com a senhora urgente!

    — O que aconteceu, Valdir?

    Dona Telma era sua secretária desde que ele tinha chegado ao cargo de gerente e o acompanhara na ascensão à diretoria e à nova sala, muito maior e elegante. Eles se conheceram quando entraram para a empresa, há quase 30 anos, e se tornaram grandes amigos, confidentes até. Valdir foi o ombro amigo de Dona Telma quando ela perdeu os pais, o seu primeiro gato e depois de todos os foras dos canalhas que ela insistia em namorar. Depois de tanta decepção, resolveu, por fim, adotar outro gato e está feliz e solteira desde então. Da mesma forma, foi Dona Telma que esteve ao lado de Valdir quando a esposa morreu, cuidando de todos os trâmites cabíveis e, também, do coração do amigo, que se despedaçou de tantas formas que até hoje ele não tinha conseguido colar.

    — A senhora sabe que as pessoas me odeiam?

    Dona Telma fez uma expressão que ele conhecia bem: franziu a testa, levou a boca para o lado esquerdo e abaixou a cabeça. Se virou, fechou a porta e voltou-se para ele séria. Começou a frase com um sussurro:

    — Não é que eles te odeiam, Valdir…

    — Você sabia disso e nunca me disse nada? – gritou Valdir exasperado.

    — Fala baixo, pelo amor de Deus.

    — Falar baixo por quê? Eu sou o chefe dessa joça!

    — Valdir, olha só…

    — Conheço o seu “olha só”. Não quero saber de olha só!

    — Não é que eles te odeiam. Na verdade, acho que ninguém aqui te conhece bem. Você não vai aos happy hours, não oferece carona, não conversa muito…Até o Fonseca, que está preparando a festinha surpresa do seu aniversário, não sabia que você era vegetariano, por exemplo. Talvez, se vo…

    — Como é que é? O Fonseca está organizando uma festa surpresa para mim?

    Naquele instante, quem gelou foi Dona Telma. Ela mesma havia se esquecido que o seu chefe e grande amigo DETESTAVA aniversário, muito mais festa surpresa. Tentou se justificar:

    — A culpa é sua! Ele veio com uma conversa estranha se você oferecia carona, depois descobriu que o seu aniversário é colado no dele e agora resolveu que vocês serão grandes amigos depois da grande festa que ele está organizando. Quem mandou ser assim?

    — Telma, eu não acredito que você deixou isso chegar nesse ponto!

    — Ou era isso ou eu teria que contar que você é uma dama, que me deu carona várias vezes para eu visitar o meu pai no hospital e aí a sua fama de mal ia para o brejo. Qual vai ser?

    Valdir respirou fundo. Contou até 10…100…Parecia que ia explodir. Dona Telma fechou os olhos institivamente esperando a bronca homérica que estava por vir. Mas Valdir foi se acalmando quando chegou no 99. Seu rosto voltou a cor normal e o sangue parecia ter voltado a circular pelo resto do corpo. Estava em uma verdadeira encruzilhada da vida. Aquele momento em que você precisa tomar uma atitude drástica: Ou se mantinha durão e antipático, ou se tornava um chefe descolado e sociável, com direito a dar carona e a sorrir na festa surpresa.

    Quando finalmente abriu a boca para falar, nem mesmo Valdir se reconheceu. A fala veio mansa, suave, e ele disse:

    — Ajude Fonseca a fazer uma bela festa. E vamos pensar em uma maneira dos vizinhos darem carona uns aos outros. É isso.

    Dona Telma foi abrindo os olhos devagar, tentado enxergar aquilo que seus ouvidos não acreditavam. Parecia pronta para receber um grande impacto, mas seu corpo todo foi saindo da defensiva e voltando ao estado normal. Ainda sem acreditar, apenas respondeu:

    — Pode deixar.

    E saiu da sala ainda querendo entender o que havia acontecido lá dentro.

    Finalmente, o dia da grande festa chegou. Fonseca não se aguentava mais, quase havia deixado escapar para Valdir alguma pista nas várias vezes que se encontraram na hora do café, mas respirava fundo e dizia apenas:

    — Tá chegando!

    Esse “tá chegando”, que antes havia deixado Valdir apenas confuso, hoje lhe dava cólicas de aflição. Por já saber da festa, teria que fingir a surpresa, e mais: fingir que havia adorado a surpresa. ADORADO, como aconselhara Dona Telma, para que ele mudasse a sua má fama na empresa. Até treinar na frente do espelho Valdir estava treinando. Mas o seu maxilar parecia ter se esquecido de como era sorrir. Cada tentativa parecia mais falsa do que a outra e ele tinha medo de que a sua expressão se congelasse e ele nunca mais pudesse se mexer. Era como um botox eterno. Por que precisava tanto da aceitação do outro? Tudo estava tão bem do jeito que ele já estava acostumado!

    O dia foi passando normalmente. Valdir almoçou sozinho como de costume e, ao escovar os dentes, treinou mais algumas expressões que pudessem alegrar Fonseca. Teve medo daquelas caretas e tentou relaxar, dizendo um “Seja o que Deus quiser’. Tentou se concentrar nos problemas da empresa que não eram poucos, mas o relógio parecia ter se tornado seu inimigo: As horas se arrastavam da maneira que ele tanto havia pedido em outros momentos da sua vida. Quando descobriu a doença terminal da mulher. Quando escutava seu riso já fraco. Quando seus lábios não queriam se desgrudar e o abraço se fazia ninho. Como queria ter mais um minuto ao lado dela. Como sentia falta da sua companheira de vida!

    — Vamos?

    Era Dona Telma, toda faceira, despertando Valdir de suas lembranças. Ela estava toda arrumada, parece que a festa ia mesmo ser boa.

    — Tem certeza que preciso mesmo ir?

    — A festa é para você, tem graça se não for, né?

    — Delicada, hein?

    Eles riram juntos daquela cumplicidade boa. De repente, Telma parou seu sorriso com as mãos e disse:

    — É isso! Faz assim que será perfeito.

    — Obrigado amiga. E me lembra de ligar para a oficina depois, tenho que buscar meu carro.

    — Sim senhor! Ela esboçou uma continência, ele lhe deu um abraço. Foram juntos para o salão nobre da empresa, que já estava todo enfeitado.

    Assim que se aproximaram, Fonseca abriu a porta de repente e gritou:

    — SURPRESA!!!!!

    Talvez tenha sido a cara de felicidade de Fonseca ou o primor que tudo tinha sido feito. Mas a questão é que Valdir conseguiu dar um belo sorriso. Daqueles que veem do coração mesmo. Dona Telma enxugou uma lágrima teimosa.

    — O senhor gostou?

    — Está uma maravilha!

    Fonseca não se aguentou e partiu para o abraço. Aquilo era a glória. Meio desajeitados, acabaram preferindo um aperto de mão.

    — Excelente trabalho Fonseca, parabéns!

    — Parabéns para você, amigão! Na cabeça de Fonseca, já eram íntimos.

    E todos começaram a bater palmas e se aproximaram do chefe para cumprimentá-lo. Era uma bela festa, e Valdir realmente estava gostando. Era como um sopro de alegria em tantos anos de uma quase clausura. Finalmente parecia achar graça em algo que não tinha a ver com a sua casa e as suas lembranças da esposa. Desde o seu falecimento, só queria saber de trabalhar e rever os filmes que tinham visto juntos. Ele gostava de imaginar que ela estava ao seu lado, dando sua risada gostosa ou chorando das cenas bobas. Falava sozinho, tentava lembrar do que ela havia dito em cada cena, ria da mania que ela tinha de adivinhar em qual filme aquele ator italiano tinha atuado. Como sentia falta desses momentos…

    — Continue sorrindo assim que amanhã muitos já vão te adorar!

    Era Telma novamente o aconselhando. Mal sabia ela o motivo dos seus sorrisos. Mas é claro, estava se sentindo bem com toda aquela atenção e sabia que poderia ser uma pessoa melhor ao se aproximar dos seus colegas de trabalho. Resolveu começar por Fonseca:

    — Muito obrigada por essa festa, Fonseca. Realmente não tenho palavras para lhe agradecer. Faço questão de te dar uma carona hoje. Somos vizinhos, afinal!

    Fonseca mal se conteve na frente de Valdir. Lhe deu uns tapinhas nas costas e foi correndo para o banheiro. Chorou um choro de menino, aquele que finalmente teve aprovação do pai, mas ao mesmo tempo não quer que ele lhe veja emocionado.

    A festa fez tanto sucesso que entrou noite adentro. Alguns compraram cerveja, pessoas de outros setores acabaram dando uma passadinha, tudo ia às mil maravilhas. Valdir circulava entre todos, sempre ao lado de Dona Telma, que lhe dava um resumo rápido antes dele se aproximar de alguém:

    — Esse é o Ricardo, do Financeiro. Acabou de ter um filho.

    — Ricardo, parabéns! Ser pai é uma grande alegria, aproveite!

    E Valdir convertia mais um. Dona Telma seguia firme:

    — Essa é a Carolina, começou há pouco na empresa e já tem se destacado.

    — Carol, já estou sabendo que você está bombando!

    E recebia um ou outro beliscão de Dona Telma quando passava do ponto:

    — Carol, Valdir? Que intimidade é essa?

    — Me deixa, Telma. Sou iniciante nessa arte!

    E eles riam e voltavam à missão de fazer Valdir ser um ser social.

    Depois de vários abraços, comentários amigáveis e excesso de socialização, Valdir estava pronto para voltar ao seu refúgio. Não sem antes chamar Fonseca para a tão esperada carona.

    — Vamos Fonseca? Te deixo em casa!

    Era tudo que ele sempre sonhara. Foram juntos até o elevador e Valdir apertou o G. Estava mesmo acontecendo. Fonseca ia entrar no carro de Valdir. Iam trocar figurinhas, falar da festa, quem sabe eles não falavam um pouco de trabalho? Não, hoje não, hoje era dia de festa. Falariam sobre coisas amenas. Fonseca iria convidar Valdir para jantar na sua casa no dia do seu aniversário. Jantar não, ia fazer um churrasco no salão de festas, isso. Eles entrariam no carro e Fonseca talvez dissesse que estava pensando em comprar aquele modelo. Valdir lhe daria as dicas, quem sabe até lhe desse um aumento para lhe ajudar? Seria o começo de uma grande amizade, tinha certeza disso.

    Assim que o elevador se abriu, Valdir começou a procurar as chaves do carro. Colocou as mãos nos bolsos da calça, do paletó, da camisa. Pediu para Fonseca esperar enquanto abria a maleta e procurava as chaves dentro dela, em cada cantinho da sua bela maleta de couro. Fonseca achava tão elegante ter uma maleta de couro. Um dia teria a sua, tinha certeza. Quem sabe Valdir não lhe daria uma de aniversário?

    — Meu Deus, onde foi que deixei as minhas chaves?

    — Será que, por descuido, você não deixou dentro do carro?

    — Será? Do jeito que estou distraído ultimamente, pode até ser.

    — Onde ele está estacionado?

    — F1

    — Estamos no E, deve ser logo ali.

    E foram seguindo a direção que o dedo de Valdir apontava.

    — F0, F1… é aqui?

    — É. Ou melhor. Deveria ser.

    — Não tem carro nenhum aqui, Valdir.

    — Sim, estou vendo. Mas não estou entendendo.

    — Como assim? Você me faz vir até aqui, promete me dar uma carona, mas não tem carro nenhum estacionado?

    — Devem ter me roubado!

    — Ah, tá. Você passa a vida toda me esnobando, nunca me oferece carona, e no dia que eu faço uma megafesta para comemorar o seu aniversário, você me vem com uma pegadinha?

    — Que pegadinha, Fonseca? Você realmente acha que eu iria perder meu tempo mentindo para você? Se ofereci carona é porque sabia que meu carro estaria aqui. Ou pelo menos achei que sabia.

    — Ah, conta outra…

    — Meu Deus do céu, Fonseca. Juro que a minha intenção era te dar carona, mas que diabos! E outra: não te pedi festa nenhuma, você fez porque quis!

    — Ah, mas é claro! Estava só faltando essa! Eu pelo menos gosto das pessoas, e se tivesse carro daria carona para todo mundo!

    — Chega, Fonseca. Vou ligar para Dona Telma, perguntar se tem segurança por aqui e ver o que podemos fazer. Já parou para pensar que posso ter sido roubado? Tenha dó!

    — Aham…

    Já arrependido de ter oferecido a tal carona, Valdir liga para Dona Telma:

    — Telma, olha só. A vaga do meu carro sempre foi a F1, não foi?

    — Claro, desde que você se tornou diretor. Por quê?

    — Porque estou olhando para ela e meu carro não está aqui.

    — Claro que não está. Você o levou para a oficina hoje de manhã. Até pediu para que eu lhe lembrasse de ligar para lá amanhã.

    Valdir quis soltar um palavrão, mas ficou com medo da reação de Fonseca. Ele jamais iria acreditar naquela história.

    — Isso mesmo, Dona Telma. A senhora tem toda razão. Vou lá agora mesmo.

    — Ficou doido?

    — Boa noite, Dona Telma. Bom descanso.

    — O que aconteceu? Vai dar carona para Dona Telma e está disfarçando comigo?

    — Só me faltava essa agora, Fonseca. Dona Telma também acha que meu carro foi roubado e devo ir à delegacia dar parte. Vou pegar um táxi até lá, posso pedir um para você também.

    — Não preciso que você me peça nenhum táxi. Vou para casa da mesma forma que venho trabalhar todos os dias, de metrô. E não pense que eu caí nessa história para boi dormir não. Relações cortadas!

    E Fonseca foi andando duro, como se tivesse sido magoado pelo grande amor da sua vida. Pegou o cartão do metrô e encarou o seu destino. Nunca iria andar no carro de Valdir.

    Ainda parado ao lado da vaga, sem saber como pedir um táxi àquela hora, Valdir praguejava:

    — É por isso que nunca dou carona!!!


  • Elástico infinito – a natureza e a sua sabedoria

    Um alce, no alto de uma floresta densa, olha para cima, por um momento fugaz. No mesmo instante, ouve-se o murmurar do léxico perceptível – numa onda para nós, humanos, intangível -: e o alce o distingue pelo encontrar das superfícies de uma folha na outra, obrigadas a ter tal conexão corporal por um simples capricho do vento, senhor de todos os movimentos.

    Lentamente, do alto da mesma floresta densa, formigas passam destemidas por detrás das patas dianteiras do alce. Carregam as mesmas folhas que balançam lá no alto, há átimos escassos, e pousam, vencidas, em solo fértil. Tomam um movimento menos intenso, porém direcionado, ao transformarem-se, de copa, em cobiçadas mercadoria de transporte.

    Lesmas alimentam-se das mesmas folhas, logo adiante. O alce pisca. O vento continua o sopro travesso de sua fúria adocicada. O sol brilha e, através de feixes de luz, pousa no rosto do quadrúpede, no alto daquela floresta. Por entre as frestas de folhas que acobertam toda a vida nas sombras, a luz irradia o parar e o perceber.

    No topo da floresta ainda intocada pela indecência humana, o tempo não é contado pelo movimento automático dos ponteiros. Tampouco pela trajetória do sol ao redor da terra. Os espaços não são medidos por número de cômodos ou alturas sobrepostas. Aqui os inquilinos são todos, todos entendem, sem ser racionais, o quanto sua vida é passageira. Ninguém tem documentos de posse ou tecnologias que aletam para a finitude das coisas. Portanto não acumulam móveis ou obras de arte, deslocam-se sem apegos para outros abrigos, dividem comidas, usam o necessário. O tempo é o tempo de uma vida, são instintos, o saciar das necessidades primordiais. Inexiste o planejamento estratégico de papéis rascunhados. Inexiste a indecisão. Tudo é o agora, não existe o que se foi ou o que virá.

    O Alce, ao olhar para cima, entendeu tudo. E ao sentir a carícia do sol em seu rosto, um instante torna-se infinito.


  • Clementina

    Este ano toca plantar e colher milho, já deram a ordem. Antes já foi feijão e trigo. Milho agora. A gente ouve, a gente cumpre. Mas não vai chover uma gota, disseram. Outra colheita perdida. Apesar de tudo, Clementina segue na lavoura, cavucando a terra seca com a enxada sempre à mão, fazendo valas, eliminando as ervas daninhas, arrancando cogumelos e caracóis, preparando o terreno.

    Edimburgo, que preciosidade, como veio gordinho e perfeito! Clementina viu a foto do pôr do sol na vitrine de uma agência de viagens antes de entrar no mercado para vender seus legumes e frutas. Estava para cumprir os nove meses e Edimburgo veio uma semana depois, que a natureza sabe agir como deve. No dia seguinte estava em casa e todos bateram palmas. O menino dormia.

    Clementina se lembra, seu casamento foi feito às pressas porque logo ia chegar a temporada dos tomates, depois a das azeitonas e em seguida seria o tempo dos morangos, e tempo era o que ela não podia perder. Foi quando Tereza chegou. De sete meses e meio, apesar dos três quilos bem pesados e de quase arrebentar a balança — era isso o que a avó fazia questão de contar naqueles tempos, sempre que via a neta arrumadinha para a escola. Depois Clementina percebeu que Tereza tinha vindo antes do tempo para abrir e apressar o caminho. A fila já estava preparada, era só descer.

    Foi um por ano. Marcelino, Isaura, Tomás, Percival, Marrocos, João Clemente e Célia Maria, sem contar os gêmeos, que chegaram feito duas folhas de papel transparente e até se via cada uma das veias das perninhas. Clementina quase nem percebeu, eles escorregaram de seu entrepernas quando ela estendia as roupas no varal. Não vingaram. Enterrou os dois lado a lado no canto do quintal, onde nunca falta flor.

    Clementina está cerzindo meias, entretida nesses pensamentos. Daqui a pouco vai fazer o cálculo de quantos braços dispõe para oferecer mão de obra ao dono da terra e incrementar o orçamento da casa. Célia Maria, apesar de muito nova, pode cuidar do Edimburgo, que é bebê ainda. Os demais, cada um já ganhou de presente a sua própria enxada. Não tem homem, não tem mulher: é todo mundo, sem distinção. Disseram que não vai ter chuva, mas o trabalho será feito. Clementina é quem garante.


  • Um leão na beira da estrada

    Vi-o de longe e identifiquei o leão parado na beira da estrada. A juba grisalha e rebelde não podia ser de outra pessoa. Era ele no acostamento, apoiado em seu carro com o capô levantado. Tinha nas mãos um galão de plástico vazio e parecia aguardar uma carona. Eu passei de moto, capacete posto, só os olhos à mostra. Meu pai não me reconheceu.

    — Sem gasolina?”, perguntei.

    — Sim, que azar!, ele respondeu.

    — Sobe — indiquei com a cabeça o assento traseiro — Eu levo o senhor, tem um posto logo ali na frente.

    Meu pai ajeitou-se na moto, agarrou minha cintura com uma das mãos e, com a outra, segurou a alça do galão. Arranquei. Fazia mais de dez anos que não nos víamos ou nos falávamos. A última vez que trocamos um abraço foi no enterro de minha mãe. Depois, sem que tivesse acontecido nada relevante, fomos espaçando os telefonemas e os encontros, até que deixamos de nos comunicar. Filho único de um pai quase ausente, desisti de procurá-lo. Ele, pouco afeito a carinhos e movido por outros interesses, esqueceu-se de mim. Tudo muito natural, sem brigas ou discussões, só indiferença.

    Não tirei o capacete em nenhum momento. Não sabia qual seria sua reação ao me reconhecer. Melhor que pensasse que eu era apenas um rapaz que lhe prestava um favor na estrada. Percebi pelo espelho retrovisor como ele abaixava a cabeça para se proteger do vento, a juba dançando livremente sobre sua cabeça. O rosto de meu pai estava envelhecido, mas seu corpanzil — forte, vigoroso, saudável — mostrava outra realidade. Vi quando ele olhou para as minhas botas e percebeu que o salto do pé direito era mais alto do que o do esquerdo. Algumas vezes no passado, quando eu já era adolescente, meu pai me falara, num de seus rompantes de sinceridade, do desgosto que sentiu quando o médico, ainda na maternidade, contou sobre o meu defeito de nascença: uma perna mais curta do que a outra. Isso nunca me incomodou além das chacotas dos meninos do colégio, mas ele e minha mãe se sentiam envergonhados — talvez culpados — por esses centímetros a menos, ou a mais, segundo o ponto de vista de quem me olhava. Jamais consegui descobrir qual das minhas pernas era a defeituosa, se a mais curta ou a outra.

    Dirigi com habilidade e cautela, não me aproximando demais dos carros que iam à nossa frente. Notei que meu pai, em que pese o pudor de estar em contato físico tão próximo com outro homem, agarrava-se com firmeza à minha cintura com uma das mãos. Seus olhos não saíam do meu pé direito. Não conversamos durante o trajeto. Quem sabe ele não estava se perguntando se eu não poderia ser seu filho? Talvez estivesse se lembrando da série de médicos a que me levou quando eu era pequeno, as intermináveis radiografias, a sucessão de opiniões sobre a provável causa do meu defeito físico, até a sugestão feita por um especialista, afinal adotada, de colocar um salto maior que o outro nos meus sapatos, de maneira a compensar a diferença de comprimento entre as minhas duas pernas. Ou então estava revivendo o olhar de decepção que me dirigia quando me observava coxeando pelo chão da sala, eu menino, ainda ignorante do preconceito que sofreria vida afora.

    Ao parar no sinal vermelho, já perto do posto de gasolina, senti sua mão pressionando minha barriga, como uma demonstração de afeto. Não esbocei reação. Estacionei a moto ao lado de uma das bombas do posto, e ele desceu do assento traseiro. Falei, sem tirar o capacete e sem olhar em seu rosto, que não poderia levá-lo de volta, estava atrasado para um compromisso. Ele respondeu que encontraria sem dificuldade outra carona para voltar até seu carro. Percebi que tentava ver meus olhos e meu rosto pela viseira do capacete.

    — Muito obrigado, moço, você me fez um grande favor — disse meu pai, seus olhos insistentes na busca dos meus.

    — Não tem de quê — respondi e fui embora.

    À noite, já em casa, meu telefone tocou várias vezes.


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