COntos

  • CINZAS

    As cinzas dele

    “Espero que me perdoe, querida, pelo trabalho que lhe dou como meu último desejo.” Assim terminava a carta que ela leu com alguma indiferença. Era um pedido do marido (nem quando morto ele deixava de incomodar), que a essa altura estava convertido num montinho de cinzas. Saiu do crematório com a urna embaixo do braço. Pensou durante uns minutos. “Não vou dirigir duzentos quilômetros até o litoral nem morta.” Foi para casa. Parada no meio da cozinha, olhou em volta. Descartou de imediato, por uma questão de higiene, as panelas, a batedeira elétrica e o liquidificador. Pelo mesmo motivo não considerou a banheira nem o bidê. Decidida, foi até a área de serviço e jogou as cinzas na lavadora de roupas. Adicionou uma colher de sal. Escolheu um programa de lavagem rápida e ligou a máquina. Olhou o giro do tambor por alguns minutos, apreciando como as cinzas se misturavam à água salgada. Não era mar, mas parecia. Deu como cumprido o último desejo do marido. Que Deus ou Seja-Lá-O-Que-For o tenha. E pronto.

    As cinzas dela

    Tu tranquila aí, meu bem, que teu marido aqui ainda tem sangue, nervos e coração. Tô com um dilema, matutando aqui, mas vou resolver isso logo. Tu fica aí, quietinha e sem medo, que as coisas se ajeitam. Hum… O vaso grego, tá lembrada? Vai ser dentro dele, acabei de decidir. Sou muito rápido pra cuidar desses assuntos, tu me conhece. Tu quis comprar esse troço cafona porque combinaria com as almofadas do sofá, foi assim que tu disse, mas no mês seguinte tu trocou a estampa das almofadas, tem cabimento? Agora o vaso não combina com porcaria nenhuma nem tem serventia. Bem que pensei em usar a peça como bebedouro do Pipoca, ou então encher de terra e plantar margaridas, mas desisti. Fique sossegada, nada de terra aqui, que não sou um homem desalmado, ora bolas. Não me esqueci da paúra que tu tinha com a ideia de um monte de terra em cima de ti, por isso mandei te cremar. Agora tu é esse montinho de cinzas e não precisa temer mais nada. Tua última vontade foi cumprida: não vai ter terra em cima do teu corpo mirrado. No máximo, coloco na boca do vaso aquela toalhinha de crochê que tua mãe deu, que é pra não entrar bicho. Assunto enterrado, ops, encerrado.

  • O Sótão

    Se desejava chorar, a avó subia até o sótão. Ali cobria o rosto com as mãos para, inutilmente, conter as lágrimas, imaginando que ninguém a escutava. As crianças todas íamos devagar e colávamos o ouvido na porta. Ouvíamos quando ela suspirava, quando assoava o nariz no lencinho, quando ficava em silêncio, esperando que a calma secasse seus olhos. Se algum de nós ficasse com dó e fizesse menção de entrar para fazer um carinho em sua cabeça, a mãe nos impedia com um gesto de “deixe que isso logo passa”.

    Quando queria rir, a avó também subia para o sótão e gargalhava de quase se acabar. Também nessas ocasiões íamos pé ante pé e ficávamos escutando o riso atrás da porta. Mãe dizia que, se o caso era de riso, podíamos entrar no cômodo e rir junto com a avó, mas preferíamos ouvir as gargalhadas ali mesmo, diante da porta fechada.

    Um dia, a avó resolveu que nunca mais iria chorar ou rir, nem que tivesse vontade. Desde então, nós, em dias alternados da semana, subíamos até o sótão para rir ou para chorar. Ignoramos se a avó nos escutava atrás da porta.

  • A Pílula dos Sonhos Eróticos

    O nome do negócio é Reveride. Uma pílula azul-turquesa, lisinha, meio translúcida, parecendo bala de hortelã gourmet. E a promessa? Simplesmente esta: você escolhe com quem quer sonhar, o cenário, a trilha sonora — tudo sob medida, como um delivery de delírio.

    Na primeira noite, fui de Emmanuelle, interpretada por Sylvia Kristel, claro — aquela do olhar lânguido e voz de cigarro francês. Estávamos num hotel à beira-mar em Saint-Tropez, quando ela apareceu de biquíni, sentou no guidão da minha bicicleta e mandou eu pedalar devagar. E eu, obediente, pedalei como se o paraíso fosse logo ali na curva.

    Na noite seguinte, o algoritmo me leu por dentro e trocou a musa. Veio Mônica Bellucci, em carne, osso e vestido colado de “Malèna” — aquele filme que tirou minha virgindade cinematográfica e me deixou três dias sem conseguir olhar uma bicicleta sem tremer. Ela passou por mim em câmera lenta, cabelo ao vento, e eu senti na espinha a puberdade inteira voltar.

    Depois veio Leila Diniz. A de “Todas as Mulheres do Mundo”, claro — deusa absoluta dos meus delírios juvenis. Foi por causa dela que gastei pequenas fortunas na locadora do bairro, sem contar os atrasos e as multas acumuladas como pecados reincidentes. Só pra ver aquela cena outra vez, e mais uma, e só mais uma, juro que é a última.

    Mas, no sonho, a atriz favorita não tirava a roupa — me dava um biscoito, um abraço e um beijo na bochecha. E era isso. Nada de gemidos, só um cafuné e cheiro de bolacha de maizena.

    Ah, mas quer saber? Ruim não era. Tinha um conforto ali, meio bobo, meio materno, como cochilar no sofá com novela ao fundo. Era desejo reciclado em ternura.

    No outro dia, o cenário mudou. A filha do vizinho, aquela que nem me cumprimentava, apareceu de biquíni, com o olhar misterioso, e me levou para o quarto. Chegando lá, se transformava num gorila gigante, me arrastava para um circo bizarro e começava a me fazer correr em volta da lona, enquanto socos iam estourando nas paredes. Eu fugia, tentava me esconder, mas era como se ela estivesse sempre atrás, esperando o momento certo para me caçar. Quando eu acordava, suando frio, o som do punho batendo na parede ainda ecoava na minha cabeça.

    Por fim, larguei o Reveride e as fantasias. O desejo, esse touro bravo, recusa-se a ser domado, previsível, clichê. Eu, que nunca tive vocação para toureiro, prefiro hoje a vida real — imprevisível, cheia de surpresas. Algumas boas, outras nem tanto. Mas é a vida que se entrega, sem promessas, sem pílulas mágicas. Só o que é, e o que virá, para bem ou para mal.

  • Invenções

    Quando o primeiro homem pôs os pés na Terra e esticou os olhos em volta, viu que estava vazia e que era um desperdício tanto espaço ocioso. Passeou um pouco por ali até ficar entediado e cansado, já que, quanto mais andava, mais distância descobria. Aqui falta alguma coisa, pensou, uma coisa com quatro pés para uma pessoa se sentar em cima e descansar. Inventou a cadeira. Sentou-se e ficou horas admirando o horizonte. Wonderful. Mas não foi suficiente, ainda faltava alguma coisa. Falta uma coisa com quatro ângulos retos para esticar as pernas embaixo e descansar os cotovelos em cima. Inventou a mesa. Sentou-se na cadeira, esticou as pernas sob a nova invenção e apoiou os cotovelos em cima. Gastou mais horas apreciando o horizonte. Wonderful.

    Logo o homem percebeu que o vento começou a soprar mais forte e que o céu tinha se tornado escuro. Não demorou a sentir os primeiros pingos da chuva sobre a cabeça. Choveu muito. This is no wonderful. Pensou que ainda faltava alguma coisa, uma coisa com outra coisa em cima, que me proteja do vento e da chuva. Inventou a casa. E inventou as paredes, o telhado, a porta e a janela. Assim, confortável e seco, entrou e fechou a porta, sentou-se na cadeira, esticou as pernas sob a mesa, descansou os cotovelos em cima e admirou por horas a chuva pela janela. Wonderful. Foi então que viu outro homem caminhando sob a água, perto de sua casa. Ouviu as batidas na porta e correu para abrir.

    — Com licença, posso me abrigar aí dentro? — perguntou o visitante encharcado.

    — Please, come in. Entre, por favor.

    Enquanto admiravam a chuva pela janela, conversaram muito. O dono da casa falou sobre suas invenções: a cadeira para sentar, a mesa para esticar as pernas embaixo e descansar os cotovelos em cima, as paredes e o telhado para abrigar-se da chuva, a porta para abrir e a janela para olhar para fora. O visitante analisou todas as coisas inventadas e elogiou o trabalho de seu anfitrião, que perguntou:

    — E o que você tem feito ultimamente, my dear friend?

    O visitante ficou calado. Não se atreveu a dizer que tinha sido ele o inventor do vento e da chuva, porque lá longe, onde vivia, estava insuportavelmente quente e o sol queimava a sua pele. Então tratou de inventar o vento e a chuva para refrescar um pouco aquele verão que parecia ser eterno. Tinha inventado também o trovão e seu barulho assustador, porque o silêncio ao redor de onde morava era insuportável. E os raios para iluminar a escuridão, porque com a tempestade o céu ficava escuro e não se via mais nada. Mas o visitante não contou sobre suas invenções. E os dois homens ficaram quietos, admirando por horas a chuva e o horizonte pela janela.

  • Cecília, Paulo e Lucas

    Lucas tem sete anos e mora com Cecília. Cecília é sua mãe. Lucas passa os fins de semana na casa de Paulo. Paulo é seu pai.

    Paulo e Cecília não moram juntos há muito tempo, desde que Lucas tinha um ano. Ou desde que Paulo deu a primeira e única bofetada no rosto de Cecília. Cecília ficou três dias com o olho direito inchado. Saiu sangue de seus lábios. Paulo e Cecília brigaram na frente de um juiz pela guarda de Lucas. Cecília ganhou, era a mãe do menino e esse foi o desfecho natural. Cecília e Paulo quase não se falam, só o necessário e só quando o assunto é Lucas. A escola de Lucas, a saúde de Lucas, as roupas de Lucas, os sapatos de Lucas, o videogame novo de Lucas.

    Paulo vai à casa de Cecília toda sexta-feira à noite para pegar Lucas e todo domingo no fim da tarde para devolver Lucas. Lucas passa os fins de semana jogando videogame e vendo filmes com o pai. Os dois gostam de filmes com muita ação. Quando o bandido toma um tiro, Paulo grita Chupa! Lucas repete Chupa! Lucas se diverte muito vendo filmes com seu pai.

    No último domingo, quando devolveu Lucas para a mãe, Paulo falou: O menino tá com caspa e tem dificuldade com a matemática. Paulo falou essas coisas sem olhar nos olhos de Cecília, como se o problema fosse dela. Cecília passou a semana inteira tentando acabar com as caspas de Lucas. Comprou xampu anticaspa, loção anticaspa, creme anticaspa. Gritou com ele, atrás da porta fechada do banheiro, para esfregar bem a cabeça e o cabelo no banho. Também gastou toda a semana discutindo com Lucas para largar a porcaria de videogame e estudar matemática. Lucas detestava matemática e ficou com raiva de Cecília. Ficou com muita, muita raiva de Cecília.

    Nessa sexta à noite, enquanto Paulo o esperava no carro, Lucas não quis se despedir de Cecília com um beijo, como costumava fazer. Só falou: Estou com raiva de você, vou pedir pro meu pai te cobrir de porrada.

  • O meu amiguinho

    Sei que ele está indo embora, é só uma questão de tempo. Está mais fraquinho a cada dia, alimenta-se mal, come sem apetite. Cabisbaixo, calado, triste, tão diferente de outros tempos, não passa agora de uma sombra do que costumava ser. Sempre achei chato olhar para ele pelas grades da gaiola, mas com o tempo me habituei. Ainda que possa parecer egoísta, eu ficava reconfortado por saber que ele estava ali, pertinho de mim. Sua companhia me fazia bem e eu só posso agradecer por tanta generosidade. Com a presença dele, a solidão pesava menos. E, quando ele cantarolava, eu juntava minha voz à dele e éramos os dois mergulhados numa só melodia.

    A vida prática, porém, ensina que não é bom tomar-se de tanto carinho pelos bichinhos de estimação. Quando eles morrem, a gente fica só, desarvorado. A gente fica sem chão e tudo passa a não ter mais sentido. Como acontece agora. Meu amiguinho está indo embora e eu me sinto muito triste. Perdi a melodia, minha garganta secou. Minhas penas vão logo perder a cor e o brilho. Agora só penso com qual dos dois filhos do meu amiguinho eu vou ficar. O mais velho nunca se importou comigo. Talvez o mais novo queira me levar, não sei.

  • Rebentada

    Caminha ereta, embora isso custe e doa. Os dois meninos, de cabeças enormes e pernas finas, acompanham como podem o ritmo da mãe. Parecem frangos doentes, ciscando inutilmente num terreno seco. Andam os três sobre uma terra rachada e poeirenta. O horizonte continua distante, tão distante quanto no dia em que iniciaram a jornada a pé. O sol permanece no alto, maltratando os olhos, a pele e a esperança.

    O menor dos meninos, vencido pelo cansaço, senta-se numa pedra e curva a espinha para a frente, até que seu peito quase toque o chão. Visto de longe, parece uma fruta que apodrece aos poucos, mas de perto é só um menino cansado, sujo e com fome. A mãe o ajuda a se levantar e o carrega nos braços, como se levasse um punhadinho de folhas secas caídas de uma árvore, embora naquelas bandas não haja árvore, só deserto.

    Levam já quatro dias andando e ainda faltam mais quatro para chegarem ao campo de refugiados. O outro menino, mais velho e mais esperto, sabe que não vai aguentar. Resolve interromper a caminhada e põe-se de cócoras, as mãos sobre a cabeça. Neste caso não há diferença se visto de perto ou de longe: é um menino que desistiu.

    A mãe põe o pequeno no chão e pensa. Avalia que será impossível avançar com os dois no colo, não terá forças. Levanta os olhos para o céu e chora sem lágrimas, rebentada por dentro. Sabe que vai morrer sob o punhal afiado da escolha, mas não hesita. Olha para um, depois para o outro e recomeça a caminhar, puxando só um deles pela mão.

  • O homem da casa

    Eduardo acorda cedo e, como de costume, não faz a cama. Não tem de se trocar, dormiu de roupa. Toma um café preto e ralo e sai de casa tremendo de frio. Não calçou o Nike, preferiu o sapato velho, já que sabia bem aonde tinha de ir. Como companhia, um cajado pequeno como seu tamanho, dois sacos vazios de supermercado e um lenço que sua mãe lhe amarra no pescoço. Em determinado momento esse lenço vai servir para cobrir seu nariz e sua boca: lá há gases, cheiros, micróbios e outras porcarias. Era o lenço de seu pai, agora é seu, pois virou o homem da casa. A mãe grita da porta: “Não esquece de cobrir os olhos também e não respire a fumaça.”

    Depois de andar por mais de trinta minutos, Eduardo chega ao monte enorme. Percebe que está atrasado e quase não há onde fuçar: mais de cinquenta meninos chegaram antes e fuçaram primeiro. Mesmo assim, Eduardo cobre o rosto com o lenço, mete os pés no monturo e com o cajado espanta os urubus.

  • Padre no avião

    Tem mais de 20 anos eu estava em um vôo para os Estados Unidos. Ao meu lado estava um padre brasileiro que foi deslocado para a diocese de Chicago.

    Sujeito de conversa agradável e bom de copo. Cada vez que o carrinho de bebidas passava não menos que quatro pequenas garrafas ficavam ali com a gente, duas para cada um, é claro. Nesse ritmo nós dois nos igualamos ao avião e estávamos bem altos.

    Foi nessa hora que o papo ficou mais animado. Lá pelas tantas o padre me disse que na paróquia de onde ele vinha, lá na pontinha do mapa da zona Leste de São Paulo, ele tinha uma abordagem diferente quanto ao casamento.

    O padre disse que quando os moços, nas palavras dele, o procuravam querendo casar ele aconselhava que fossem morar juntos primeiro. Diante dessa revelação questionei-o.

    Perguntei se ele não percebia que estava estimulando a fornicação, o sexo antes do sagrado matrimônio.

    Ao que o padre replicou: meu filho, casamento é um contrato com Deus. Isso não se rompe.

    Fornicação é um mal menor. Se resolve com qualquer penitenciazinha, uma meia dúzia de ave-marias e fica tudo bem.

    Foi difícil não gargalhar naquele vôo.

  • A trama

    Assim que chega a manhã, as esposas dos pescadores se dirigem às docas e ali se sentam, os pés dentro d’água. Todas trazem linhas e agulhas de tamanhos variados e se dedicam à tarefa de fechar os buracos das redes que seus maridos utilizam no trabalho. Cantarolam enquanto cosem, e cosem com diligência e sem distração: ao entardecer, seus homens precisarão das redes prontas antes de saírem para o mar em busca do alimento e do sustento de todos os dias.

    Em determinados pontos da trama, que escolhem cuidadosamente tal qual um segredo bem urdido, elas substituem a linha de tecer por fios dos próprios cabelos, arrancados da cabeça num puxão seco e dolorido, e prosseguem a costura, embaladas pela cantoria que sai das dezenas de bocas em uníssono. Dessa maneira, um pequeno pedaço de cada uma — seus cabelos — acompanha o marido quando o barco em que ele está toma a direção do desconhecido, noite e mar adentro.

    Na manhã seguinte, repetem o ritual da costura e da cantilena e, quando necessário, em conjunto, solidárias, tratam de decapitar as sereias que, por atrevidas e insolentes, sem serem convidadas, aparecem na rede de vez em quando, no meio de centenas de milhares de sardinhas e outros peixes maiores. Deram-se mal, as tais, se tinham por objetivo alcançar a terra firme para seduzir homens que têm dona.

  • Carta para Maria Santa

    Maria Santa, preciso muito lhe dizer umas coisas. Coisas que andam acontecendo aqui em casa desde que você foi embora. Coisas incríveis, sabe? Os primeiros que vi estavam atrás da geladeira. Eu os encontrei numa manhã de setembro, justo naqueles dias de passagem do inverno para a primavera, quando a solidão fica mais pesada. Lembro-me de que fazia um mês que você tinha partido e eu estava me sentindo tão só, tão só, que resolvi limpar toda a casa para me ocupar. Arrastei a geladeira e os vi.

    Eram dois. Não fiquei muito surpreso quando os encontrei. Lembra-se de que falávamos que nossa casa era muito úmida? Além disso, tem chovido bastante nas últimas semanas. O barulho da água batendo na janela sempre me desperta de madrugada, e não pego mais no sono até amanhecer. Não consigo me acostumar a dormir sozinho, Maria Santa, e qualquer bobagem, como o barulho da chuva, faz com que meus olhos permaneçam abertos.

    Poucos dias depois vi mais alguns, debaixo da mesinha de canto e também sob o sofá. Estava arrumando os livros na estante, lembrando-me de como fazíamos isso juntos, e encontrei uma verdadeira colônia deles atrás do móvel, e já estavam se espalhando pelo rodapé. A casa está infestada de cogumelos. Como crescem rápido! Brotam do assoalho como se isso fosse natural. Não consigo compreender, Maria Santa. Parecem suculentos e apetitosos, e poderiam muito bem fazer parte de uma saborosa refeição. Aliás, pensei nisso: convidar você para jantar e conversar. Você ficaria surpresa com as habilidades culinárias que adquiri desde que você foi embora. Procurei na internet o melhor modo de preparar uma boa refeição com essas coisinhas, mas não encontrei nada sobre essa espécie que há aqui. E se forem venenosos?

    À noite, quando procurava meus chinelos, descobri outro grupo deles embaixo da cama. Eu sei, Maria Santa, esta casa sem você é um caos, não acho nada, onde estavam meus chinelos? Não consegui encontrar. E digo mais: na manhã seguinte, ao pegar uma camisa limpa, vi dezenas deles dentro do armário. Se você estivesse aqui, Maria Santa…

    Eles crescem em qualquer canto, sobre a escrivaninha, no teto, no banheiro, sob a pia da cozinha. Até comprei um livro que falava deles, mas, novamente, nenhuma informação sobre essa espécie. Acho que tenho aqui um tipo ainda desconhecido de cogumelo. Vou chamá-lo de “cogumelo do homem só”.

    São bonitinhos e quase não me dão trabalho. Eles não são como as plantas normais, que exigem cuidado e atenção. A essas eu me dediquei. Eu cuidei delas, sabe? Coloquei água e as deixei tomando sol para que, quando você voltasse, não as encontrasse murchas. Mas sempre me esquecia de que já havia regado, e punha água novamente. Um dia morreram afogadas pelo excesso de cuidado meu. Sob suas mãos, Maria Santa, seguramente isso não teria acontecido. Os cogumelos, não, eles não precisam de nada. Eles são assim, crescem em qualquer lugar sem ajuda, sem que lhes peçam. Apenas brotam. Gosto de acordar de manhã e ver os novos que surgiram durante a noite.

    Sempre converso com eles. Falo sobre você. Digo que, um dia desses, você cruzará a porta e os conhecerá. Também ponho músicas para tocar, aquelas que ouvíamos juntos. Às vezes leio poemas, principalmente os do Neruda, daquele livro que você me devolveu sem nunca ter lido. Eu sinto que eles gostam e estão agradecidos. E crescem. Um deles, que brotou no canto da sala, já está com quase meio metro de altura. Eu o utilizo como mesinha para o telefone e para o café. Olho para eles enquanto as horas correm. Mas as horas são lentas, Maria Santa. Desde que você me deixou, uma hora leva duas para passar.

    Mesmo gostando dos cogumelos, às vezes fico angustiado com a casa desse jeito, inteiramente tomada por eles. Tenho de fazer contorcionismo para me movimentar e andar até o quarto. Não consigo mais sair para a rua, porque eles já bloquearam o corredor e a porta. E as janelas também. Às vezes, sem querer, piso num deles e ouço seu gemido de dor, parecido com o som que sai do meu peito.

    Não há mais espaço para mim aqui.

  • UM SUJEITO PECULIAR

    Silas Arruda é um sujeito peculiar, do tipo que, vagando pela cidade dentro do ônibus, observa pela janela as pessoas que andam apressadas pela calçada e tenta encontrar seus olhos, adivinhar sua história, criar-lhes uma vida. Registra tudo com o olhar silencioso. Não conversa com ninguém, fechado nos próprios pensamentos.

    Na padaria, enquanto aguarda sua vez, fixa os olhos na vitrine cheia de pães e escolhe dois do fundo, aqueles que — ele acredita — ainda não foram tocados pelo atendente. Vai se sentir mais seguro quando, ao preparar seu lanche habitual, colocar na boca um produto sobre o qual ninguém pôs as mãos. No miolo estenderá três fatias de queijo e duas de presunto, sobras da noite anterior. Se ainda houver tomate na geladeira, cortará duas fatias pequenas e as colocará nas extremidades do pão, nunca no meio. O copo de leite com chocolate amargo em pó será o complemento líquido de sua refeição noturna e solitária, degustada na frente da televisão.

    Costuma passear pelo bairro à noite, depois que assiste ao jornal de notícias. Não se olha no espelho antes de sair. Também não leva guarda-chuva, mesmo que esteja chovendo. Prefere se esgueirar pelas marquises das lojas e supermercados e até se molhar um pouco, se não houver outro jeito. Anda com as mãos nos bolsos, os passos ritmados, uma sombra com olhos de carcará que tudo vê e pouco é visto. Respeita os faróis e nunca atravessa fora da faixa de pedestres. Se decidir parar para tomar um café, ficará em pé na extremidade do balcão, de onde poderá observar, em silêncio, o movimento das pessoas; verá, por exemplo, quem passa por ele para ir ao banheiro sem se importar com sua presença.

    Trabalha vendendo seguro de vida de porta em porta, e não se incomoda nem um pouco quando lhe respondem secamente “Não me interessa” ou se apenas o espiam por trás da cortina e nem se dão ao trabalho de abrir a porta. Silas Arruda, o corretor, está acostumado com isso e não leva essas grosserias em consideração.

    Andando pelas ruas para fazer o seu trabalho, escolhe aleatoriamente a casa do próximo cliente. O instinto o guia e raramente o engana. Na maleta de mão, além de formulários e outros documentos, carrega sempre uma garrafa de vinho, porque lhe apraz comemorar com uma taça o fechamento de um negócio. Toca a campainha e espera. Hoje quem abre a porta e o atende com surpreendente gentileza é a Dona Jurema, viúva que mora sozinha. Silas põe os pés na sala e olha em volta. Enquanto a dona da casa lhe serve um café, avalia em pensamento, e por antecipação, o quão fácil será tudo.

    Antes de sair tem o cuidado de verificar se a sala continua do mesmo jeito, com tudo em seu lugar, e se o corpo está bem acomodado no sofá. Fecha a porta da frente e caminha devagar até o ponto de ônibus. Sobe no coletivo, senta-se no banco dos fundos e solta o nó da gravata. Pela janela, observa em silêncio as pessoas que andam apressadas pela calçada.

  • Carmen, a faxineira prática

    Os familiares da morta explicam que querem a casa limpa o mais breve possível, já há um comprador interessado. O imóvel precisa virar dinheiro logo e ser dividido entre eles. Perguntam a Carmen se não tem medo de entrar sozinha na residência de uma defunta. Ela responde que deixou o medo lá na terra dela, depois da chacina que matou seu pai e seus irmãos. Que necessita trabalhar, que trabalha desde criança e que não escolhe serviço. Que gente morta não faz mal a ninguém, só gente viva. Que faxina é faxina, não tem segredo nenhum, é só deixar limpo o que está sujo e pronto. Que pede a Deus para nunca lhe faltar trabalho, seja em casa de vivo ou de morto, tanto faz. Que, brinca ela, um leproso nunca reclama de uma ou duas feridas a mais num corpo todo cheio de chagas. Carmen não se mostra disposta a alongar a conversa fiada e trata logo de combinar dia, horário e pagamento para fazer o trabalho. Informa que levará o próprio material de limpeza. Dizem para voltar no dia seguinte, às dez horas.

    Carmen gira na fechadura a chave que lhe deram, empurra a porta de madeira escura e olha o ambiente por alguns segundos. Casa pequena, em dois palitos eu limpo isso aqui e recebo o pagamento, ela calcula. O silêncio lhe agrada. Morte recente, parece que ninguém da família mexeu em nada ainda. Devem ter medo de entrar aqui, pensa a faxineira. É a primeira vez que limpa casa de defunto. Isso é bom, avalia Carmen, não vai ter patroa enxerida e de mau humor vigiando o serviço nem espreitando se a gente rouba alguma coisa. Fecha a porta com o calcanhar. Veste o avental, prende os cabelos, coloca as luvas de borracha e começa a faxina pelo banheiro.

    A falecida deixou meio rolo de papel higiênico no suporte e um tubo de pasta de dente quase cheio em cima da pia. Carmen pega os dois e os guarda no bolso do avental. Os tempos não estão para se ter nojo de nada e ninguém vai notar a falta. Esfrega o vaso sanitário e a banheira com limpa-manchas abrasivo e depois aplica desinfetante perfumado. Passa pano no chão, que brilha. Fecha a porta e vai para outro cômodo.

    Na cozinha, encontra um saca-rolhas e uma garrafa de vinho pela metade sobre a mesa. Põe o saca-rolhas no bolso. Essas coisas custam barato no mercadinho, Carmen avalia, mas se não precisar pagar por elas, tanto melhor. Cheira a boca da garrafa e faz careta: O vinho azedou, que merda! Joga a bebida fora e lava a garrafa. Esfrega tudo com detergente antigordura. Enxuga a pia, recolhe o lixo, limpa o piso e sai.

    Na sala quase sem móveis, Carmen olha para a cortina listrada de tecido grosso. Decide levá-la, deve servir para alguma coisa. Sobe num banquinho para tirá-la do varão, sacode a poeira e a dobra. Pode virar uma toalha de mesa ou uma colcha de cama. Se alguém perguntar, ela dirá que não havia nenhuma cortina na janela. Na pressa de vender a casa ninguém vai reparar nesse detalhe.

    Por último, o quarto da falecida. Carmen encontra uma bonequinha de pano jogada no chão. Guarda-a no bolso do avental, porcarias assim sempre têm alguma utilidade. Decepciona-se ao ver a cama sem lençol e sem colcha. Avalia o colchão: pesado e grande demais, não teria como levar, a família daria pela falta. Suspira e se conforma. Vasculha as gavetas da cômoda à procura do que mais interessa: as pílulas. Essas mulheres remediadas são loucas por remedinhos tarja preta pra dormir, pra acordar, pra ficar alegre, pra ter energia, pra relaxar. Tomam remédio pra tudo, onde será que estão escondidos? Não tem nada aqui, vai ver algum parente já pegou, que azar! Passa o aspirador no piso e um pano com lustra-móveis nas portas do guarda-roupa. Ouve um ruído parecido com um gato arranhando a madeira, vindo de dentro do armário. Abre a porta. Uma menina de presumíveis três anos está encolhida e parece assustada. Carmen olha a criança e tem vontade de pegá-la no colo. Antes, porém, faz cálculos: é bonitinha e parece saudável, mas cuidar dela vai custar um bocado de dinheiro, além do tempo necessário até crescer, criar corpo e conseguir trabalhar. Não valia a pena. Empurra a menina de volta para o fundo do armário e fecha a porta. Termina de tirar o pó e limpar o chão do quarto. Dá a faxina por encerrada e sai para devolver a chave e receber o pagamento.

  • Silenciosa

    Toda noite uma mulher atravessa minha casa por dentro. Passa pela sala, alcança o corredor e sai pelo terraço dos fundos. Pede desculpas assim que me vê, diz que este é o seu caminho até o trabalho e que não conhece nenhum outro. Com o tempo me acostumei com sua presença. Ela é linda, e nem em sonho vi mulher igual. Espero-a todas as noites, e todas as noites ela vem. Algumas vezes cheguei a pedir que fizesse uma pausa e gastasse uns minutos comigo. Poderíamos beber algo juntos, rir sem preocupação, esquecer o mundo um pouco. Ela nunca aceitou.

    Hoje resolvi fazer-lhe uma surpresa. Preparei um jantar caprichado. Arrumei a mesa, acendi velas, arranjei flores. Ela não veio. Nem nessa noite nem nas seguintes. Talvez tenha descoberto um caminho diferente ou foi despedida do trabalho. Ou então retornou, tão silenciosa quanto viera, para o sonho do qual saiu.

  • Os dedos de fogo de Angústias

    Angústias é uma menina com dedos de fogo e por isso é uma menina triste. Tudo o que toca arde. Vive longe do mar, num lugar parecido a um deserto, mas muito frio, com terra avermelhada como tingida de sangue. Pouco chove ali e, quando isso acontece, a terra se transforma num espelho e lança brilhos que chegam às nuvens. Só em ocasiões assim Angústias fica feliz, chora de alegria e passa horas admirando as poças d’água, tocando-as com a ponta dos dedos que, assim, ficam livres do fogo por algum tempo. Angústias é uma menina sem amigos.

    Agora é inverno onde Angústias mora e o frio tem sido impiedoso. As aves e os roedores foram embora em busca de paragens mais quentes. A menina sofre com o vento e o ar gelado, que lhe trincam os dentes, mas sai de casa mesmo assim, ao menor sinal dos primeiros e débeis raios de sol. Sai para admirar os montes esbranquiçados de geada e orvalho, as lágrimas que pendem do olho verde das folhas, a manada de búfalos correndo com elegância e fúria pelo descampado. É dessa forma que ameniza a tristeza que traz na testa franzida e no olhar que busca lonjuras. Mas hoje os búfalos não apareceram, e Angústias se fechou em melancolia profunda. Ficou sem sua pequena alegria. Teria gostado de escutar de novo o barulho do galope dos animais enormes tremendo na sola de seus pés e em seu coração, como se todo o seu corpo galopasse junto. Para a menina, os búfalos são força e poder, nada fica em pé na frente deles, ninguém consegue domá-los ou prendê-los. São bichos valentes, corajosos, truculentos, destemidos. Angústias queria um dia ser como eles.

    Mesmo sem querer, Angústias provoca fogo no que está ao seu redor. Por isso não pode fazer tarefas corriqueiras como colher uma flor ou ler um livro sem destruir o objeto sobre o qual se debruça. Não pode fazer nada sem luvas corta-fogo. Se não usá-las, tem que molhar os dedos o tempo todo. Até se vestir é arriscado, mas com as mãos protegidas, evita incendiar o vestido.

    Em sua cama de pedra, Angústias costuma sonhar com pássaros de grande envergadura, sobre os quais, agarrada ao pescoço delgado e duro, pode subir e subir e subir mais alto, planando sobre o descampado até chegar ao mar imenso. E essa imensidão líquida a acolhe e a abraça como faria uma mãe. É quando ela sente que nada mais pode representar perigo, nem mesmo a terra avermelhada do deserto, onde as florestas e bosques estão em risco permanente com sua presença. No sonho, Angústias está carregadinha de mar, as mãos ensopadas, e as árvores e toda a vegetação estão a salvo de seu toque: não arderão, não crepitarão como antes, quando bastava um leve roçar de seus dedos no tronco, nas ramas, nas folhas, nas flores, no sumo, e tudo virava labareda e, depois, cinza.

    É um sonho recorrente esse, que traz um pouco de felicidade ao rosto de Angústias. Quando acorda, percebe que as coisas não mudaram e seus dedos continuam quentes, faiscantes, capazes de provocar tragédias. Ainda assim, fica quieta e pensa nos búfalos. Todo dia espera vê-los em corrida destrambelhada pelo campo, só parando quando sentirem fome; então se aquietarão e comerão o almoço já servido ali mesmo, ao pé deles. A grama que pisotearam com fúria minutos antes é agora a sua refeição.

    Enquanto eles não vêm, a ela, Angústias, só resta passar as horas e brincar perto do rio que circunda a cidade (a cidade que mais parece um deserto): ali não há perigo de incendiar tudo e transformar um povoado inteiro num terreno devastado, cheio de fumaça e cheirando a queimado, como uma grande fogueira que lentamente perdesse labaredas, faíscas e brilhos e, no fim, se apagasse.

    Angústias já nasceu com as ilusões mortas. Sabe que não é como as outras meninas de sua idade. É perigosa. Desde cedo intuiu que era preciso ter coração de ferro para suportar o inferno, ou não ter coração. Enquanto houver água por perto, porém, ela ficará tranquila e seus dedos não causarão mal a nada nem a ninguém.

  • Rosa, verde e rosa

    Rosa. Apenas Rosa. Nascida e criada na Estação Primeira de Mangueira. Primeira estação do trem e do seu coração.

    Rosa ganhou esse nome por duas paixões do seu pai. O samba de Cartola e a Mangueira. Rosa nasceu em 1980, ano em que Cartola morreu e seu pai resolveu lhe prestar essa homenagem. Ele assobiava “As rosas não falam”, quando se lembrava da mulher, que havia lhe abandonado alguns anos após Rosa ter nascido. Dizem que sua mãe era uma mulher linda, sorridente, mas não tinha nascido para ser mãe. Depois de ter parido Rosa, ela estava sempre triste, pelos cantos, como se não gostasse mais de viver.

    Seu Reynaldo tentava de tudo. Fez até um canteiro de rosas para ela, inspirado por Cartola. Dizem que a letra de “As Rosa não falam” foi quase totalmente composta quando Cartola levou à Dona Zica, sua esposa, umas mudas de rosas que plantou no jardim. Dias depois, ao abrir a porta pela manhã, ela percebeu que muitos botões haviam desabrochado e ficou deslumbrada com tanta beleza e quantidade. Chamou seu amado e perguntou:

    – Cartola, venha aqui! Venha ver o jardim! Por que é que nasceu tanta rosa?

    E o sábio respondeu:

    – Não sei, Zica. As rosas não falam!

    Mas a mãe de Rosa parecia imune a qualquer beleza. Nada mais lhe interessava, lhe fazia sorrir, lhe animava. Sua última lembrança da mãe foi no desfile que consagrou a Mangueira, em 1984, na inauguração do Sambódromo. Quem puxava o samba era um tal Jamelão – puxava não, porque ele não gostava de ser chamado de puxador – um senhor mal-humorado com a voz de trovão, que assustou Rosa quando ela passou ao lado do carro de som. Ele parecia estar sempre bravo e a menina se agarrou ao pai com cara de choro, enquanto sua mãe se misturava ao mar verde e rosa da ala das passistas. Depois disso, ela nunca mais a viu. Nesse ano, aconteceu um dos feitos mais marcantes da história da escola: Depois de desfilar, a escola retornou pela Sapucaí, sendo aclamada pelo público. A comunidade toda ficou em festa, mas seu Reynaldo não conseguiu comemorar. Procurava sua amada em todos os cantos, parecia um louco a procura do nada. Só encontrava o vazio e se enfurecia gritando por ela.

    Mas será que alguém tinha perguntado para a sua mãe se era isso que ela queria? Mulher negra da favela, casou-se com o seu primeiro homem para sair de casa e da fúria do pai. Queria pôr fim ao ciclo de humilhação e violência que vivia com a mãe, que tinha um filho atrás do outro pelo simples motivo de que não apanhava enquanto estava grávida. Se tornou uma mulher fria, sem brilho. Paria como um bicho e fazia de tudo para engravidar novamente. O marido se gabava, enquanto ela só queria sobreviver.

    Nair era o contrário. Seu sorriso cativava a todos, seu brilho era natural. Mas precisava ser livre, desfilar, cantar seu amor pela vida. O casamento com Reynaldo ia muito bem até a notícia da gravidez. Apaixonados, nunca pensaram em evitar. Muito pelo contrário, Reynaldo sempre dissera que queria ter muitos filhos, um para cada ala da sua escola. Mas sua amada começou a se sentir como a mãe, presa pelo ventre, amarrada pela obrigação. Não falava sobre o bebê, não queria saber de pensar em nomes, não se importava se seria menino ou menina. Tinha pesadelos constantes e, por mais que Reynaldo lhe acalmasse e jamais tivera coragem de lhe erguer a mão, a barriga crescendo era muito mais um fardo do que um acalanto.

    Nesse dia em que ela sumiu na multidão, fazia 3 anos que ela não saia de casa. Depois de muita conversa de amigos e parentes, ela resolveu voltar para a sua escola. Seu Reynaldo imaginava que ela só precisava voltar a sorrir, voltar a brilhar. Como se todos os seus fantasmas fossem desaparecer na magia verde e rosa do Carnaval. Ela se aprontou com esmero especial. Vestiu-se como se fosse a última vez. Se despediu do marido e da filha com lágrimas nos olhos. Acharam que era a emoção. Mas era um adeus.

    Depois que a mãe de Rosa foi embora, Seu Reynaldo a criou do jeito que pode. Pedindo ajuda para a mãe e as irmãs que se revezavam enquanto ele trabalhava, fazendo bicos pela comunidade de pintor, eletricista e o que mais precisassem. Rosa cresceu cercada de amor, mas a falta da mãe parecia uma chaga aberta, um afago que nada conseguia substituir.

    Rosa foi se tornando uma bela moça e fazia vista pelas ladeiras da Mangueira. Mas enquanto todas as suas amigas sonhavam em desfilar na escola do coração, Rosa queria escrever o samba enredo. Queria cantar sua tristeza, colocar para fora a falta da mãe, as aflições do pai, o abraço que não encontrava parceria, o choro que só encontrava eco.

    Fazia versos como quem ama. Como quem padece. Mas não mostrava para ninguém, sabia que não tinha lugar no meio dos adultos, nem dos homens. Se deslumbrava quando seu pai entoava os clássicos da escola, imaginava novas rimas, corria para anotar suas ideias em um bloquinho cor de rosa estrategicamente guardado sob o seu travesseiro. Se escondia no barracão enquanto os homens bebiam e batucavam na mesa imaginando novas canções.

    Nas festas de família, todos gostavam de mostrar os seus talentos. Sua tia Ana cantava enquanto seu primo José tocava violão. A alegria era enredo fácil e as reuniões de família iam até o dia amanhecer. Era aí que o morro ficava mais bonito, com os tons de rosa inundando os becos e iluminando os corações.

    “Mangueira, teu cenário é uma beleza. Que a natureza criou…”

    Seu primo José era parte importante na vida de Rosa. Como um irmão mais velho, era ele quem a defendia dos outros meninos, fazia às vezes papel de pai quando seu Reynaldo viajava para fazer serviços em outras cidades e lhe dava sempre bons conselhos. Era mesmo um bom primo. Um dia, ao voltar da escola, deu de cara com ele deitado na sua cama com o bloquinho cor de rosa na mão. Ela deu um pulo e o arrancou da mão dele:

    O que você está fazendo aqui?

    Minha mãe mandou dar uma olhada em você, parece que seu pai vai voltar tarde. O que você escreve nesse caderno?

    Não interessa!

    Interessa sim. É lindo!

    Você acha mesmo?

    Acho sim. Para quem você escreve isso?

    Antes que José imaginasse que ela estava apaixonada por alguém, Rosa tratou de inventar algo. Ela não queria dizer da saudade da mãe, da tristeza do pai, mas também não queria fazer papel de boba dizendo que queria ser compositora de samba. Seu primo ia rir da sua cara.

    Fala, Rosa. Já sei, você está apaixonada!

    Claro que não! Só…escrevo.

    Pois eu acho que tem poesia aqui. Posso copiar algumas coisas? Vou hoje no barracão e acho que dá para fazer um samba.

    Os olhos de Rosa se iluminaram.

    Fazer um samba com as minhas letras?

    Claro. Mas, olha só. Melhor eu dizer que é meu. Você sabe, os coroas não iam aceitar uma menina na roda de samba.

    Pode fazer o que quiser. Será que eles vão gostar?

    Só podemos tentar.

    À noite, José foi se encontrar com os outros compositores já com um samba na ponta da língua.

    Vocês precisam escutar isso!

    E José foi, pouco a pouco, emendando frases, batucando aqui e acolá, falando mansinho…E as palavras foram se tornaram música e ganhando som. Seus companheiros de roda, já munidos com seus instrumentos, foram dedilhando acordes e cobrindo o silêncio. Era uma melodia triste, como todo samba deve ser.

    Rapaz, ou você está muito apaixonado ou sofrendo muito. O que, no fim, dá na mesma!

    Todos riram enquanto José não se aguentava:

    Gostaram mesmo?

    Falta um arranjo melhor, mas tem cheiro de sucesso!

    Rosa não tinha conseguido dormir. A todo momento esperava o retorno do primo que havia prometido lhe falar sobre o que acontecera no barracão. O pai, seu Reynaldo, abriu a porta da frente, cansado de mais um dia de labuta e Rosa estava lá de pé, achando que fosse José.

    O que você faz acordada, Rosa? Seu primo não lhe avisou que eu iria demorar?

    Sim, papai, mas não conseguia dormir. Estava preocupada com o senhor.

    Isso não era de todo mentira, mas Rosa queria mesmo era saber notícias do seu samba. Fingiu um bocejo, abraçou o pai e voltou para o quarto. Espiava a lua longe, se escondendo por nuvens finas que pareciam se desfazer com um sopro. De repente, um barulho na janela. Deu um pulo tão rápido que quase caiu da cama.

    Rosa…tá acordada?

    José, pelo amor de Deus! Como poderia dormir com tanta ansiedade no peito?

    Vou falar rápido para não acordar o seu pai. Eles adoraram a letra, vamos fazer os acordes e a música amanhã. Vai ser um sucesso! Agora vai dormir.

    Dormir? Como Rosa poderia dormir depois de uma notícia como aquela? Ela se revirou na cama até os primeiros raios de sol e não conseguia parar de sorrir e pensar e compor até na hora de fazer o café até chegar na escola e ainda depois. Tinha que dar um jeito de ir até o barracão naquela noite para ouvir – imaginem só! – o seu samba ser tocado, apreciado e amado pelos melhores músicos da escola. Tinha a sorte de ser sexta feira e não ter escola no dia seguinte. Seria mais fácil convencer o pai.

    O dia passou devagar, a tarde chegou preguiçosa e quando os últimos raios de sol inundaram o morro e todo o rosa que fazia a tristeza ir embora se dissipou, Rosa já estava pronta e faceira na espera do pai chegar para pedir autorização para ir ao barracão. Sorte das sortes, seu Reynaldo chegou cedo naquele dia e muito bem humorado, o que era novidade.

    Pai, que bom que chegou cedo. Preciso lhe pedir uma coisa.

    Onde você está pensando em ir tão arrumada assim? Não me diga que está namorando!

    Claro que não, pai! Só quero ir no barracão ver o meu primo tocar um samba novo.

    José voltou a compor? Essa eu quero ver. Podemos ir, mas tem certeza que não tem namorado por aí?

    Juro, papai!

    Esse comportamento da filha, ao mesmo tempo que deixava seu Reynaldo aliviado, também o deixava pensativo. Será que a menina tinha medo do amor?

    Os dois chegaram cedo no barracão e os músicos ia aparecendo aos poucos, vindos do trabalho, alguns ainda famintos, pois a vontade de chegar logo no local do samba era maior do que a de jantar em casa. Todos tinham um trabalho formal, pois viver de samba ainda não dava dinheiro. Mas eram tão apaixonados pelo que faziam, que talvez até se arriscassem.

    Uma figura diferente estava na roda naquele dia. Uma mulher sorridente, forte, com lenço colorido amarrado no cabelo. Seu pai correu para cumprimentá-la:

    Zica, quanta honra ter você aqui!

    Reynaldo, meu amigo…Como você está? E a pequena Rosa?

    Rosa não conseguia acreditar no que via. Era dona Zica, viúva de Cartola. E ainda sabia seu nome!

    De pequena ela não tem mais nada, Zica!

    Rosa foi se aproximando devagar como quem chega no fim de uma peregrinação. Como toda a sua vida se resumisse naquele momento.

    Mmmuiito pprazer, dona Zica. Sou muito sua fã!

    Reynaldo, sua filha já é uma mulher! Estamos ficando velhos! E ela sorriu, enquanto puxava Rosa para perto em um abraço com cheiro de peixe e cebola.

    Vieram para o meu vatapá? Ela era famosa pelo prato.

    Nem sabia, mas viemos também pelo samba novo do José.

    Samba novo? Essa eu quero ver.

    E no meio do preparativo para o vatapá, o barulho das latinhas de cerveja abrindo e os instrumentos se afinando, chegou José. Muito bem arrumado, penteado e perfumando, como um mestre sala à espera da sua porta bandeira.

    Caprichou, hein?

    Todos os homens fizeram questão de brincar com a aparência de José, pois era o único que havia tido o cuidado de ir em casa antes de chegar no barracão.

    Só pode estar mesmo apaixonado!

    Mas a farra durou pouco. Eles queriam era escutar o samba. Até Dona Zica saiu da cozinha e pediu para outra pessoa ficar de olho no vatapá. Rosa se sentou perto do primo, que com um aceno carinhoso, a chamou para mais perto.

    A música falava de perda, de amor, mas também de esperança. Rimava a vida com alegria e Rosa a cantava baixinho, com aquela segurança de compositora. Seu Reynaldo tentava segurar as lágrimas, pois não conseguia parar de pensar na sua amada Nair. O “Jorge da Cuíca” fingia tirar um cílio do olho esquerdo que teimava em não cair. Seu Jair, no violão, viu uma lágrima descer pelas cordas e quase desafinou. Na verdade, todos os homens tentavam segurar alguma emoção escondida – homem não chora, afinal – mas Dona Zica estava atenta aos lábios de Rosa. Ela cantou a música toda transbordando de sentimentos. Quando a última nota entoou e todos aplaudiram José, Dona Zica perguntou?

    Quem fez essa letra linda?

    Fui eu, Dona Zica. – Respondeu, cheio de orgulho, José.

    E Rosa?

    A menina, que estava ainda celebrando em silêncio o seu sucesso, foi tirada daquele torpor pelo seu nome dito daquela maneira tão certa.

    O que eu fiz, Dona Zica?

    Eu que te pergunto. O que você fez? Esse samba?

    Todos se entreolharam como se aquilo fosse uma brincadeira. Seu Reynaldo, quase envergonhado, correu para intervir.

    Imagina Dona Zica. Rosa é uma criança, onde ia arrumar imaginação para isso?

    Rosa continuava calada, sem saber onde era o seu lugar naquela situação. Mas José, consciente do talento da prima, disse:

    Foi Rosa que escreveu sim, Dona Zica. Eu só dei uma ajeitada, meus parceiros fizeram a melodia, musicamos… Mas a letra é de Rosa.

    Seu Reynaldo não sabia se abraçava a filha ou a colocava de castigo, Quanta ousadia escrever aquele samba. Mas quanta tristeza também na vida dessa menina, meu Deus!

    Os outros sambistas também não sabiam como lidar com aquela menina que, de repente, se mostrava uma grande compositora. A filha do Reynaldo, quem diria! Mas ainda era uma menina, no fim das contas.

    Parabéns Rosa. Você foi aprovada no mundo do samba! – Disse Dona Zica como para dar um fim àquela confusão de valores – É isso o que você que fazer?

    É sim, Dona Zica.

    Então tem a minha benção e de todos aqui. Concorda Reynaldo?

    Mas é claro que sim. Se é isso o que ela quer!

    Ninguém iria discordar de Dona Zica e nem mesmo José ficou chateado por ter a prima alçada quase ao estrelato do samba em uma noite. Ficou feliz em não precisar mentir mais e prometeu ajudar Rosa nas próximas composições.

    Sempre falta alguma coisa, né?

    Rosa sorriu como estivesse em um sonho. Mal sentia o seu corpo, parecia levitar por entre todos. A música recomeçou e Dona Zica pediu a vez. Queria homenagear Rosa, com o seu segundo intérprete favorito.

    Que Cartola não me ouça, onde ele estiver. Mas eu sempre fui apaixonada pelo Orlando Silva! – Todos riram e ela entoou:

    Tu és divina e graciosa
    Estátua majestosa
    Do amor, por Deus esculturada
    E formada com ardor.


    Da alma da mais linda flor
    De mais ativo olor
    Que na vida é preferida
    Pelo beija-flor.


    Se Deus me fora tão clemente
    Aqui neste ambiente
    De luz, formada numa tela
    Deslumbrante e bela…

  • Quando o nosso nome estiver gravado na pedra

    Até os dez anos me chamei Donato, embora meus pais nunca tivessem gostado desse nome. Por que me batizaram assim é um mistério. “Não está com o rosto definido ainda”, diziam. “Quando for adulto e sua cara indicar que nome deve ter, mudaremos.” E assim foi. Aos doze, com a mudança de voz, decidiram que Donato já não combinava comigo, e que o melhor nome para meu rosto recém-estreado na adolescência seria Adalberto — Beto para os amigos. Esse nome durou até a noite de núpcias, quando, no momento crucial, minha mulher me chamou de César. “Céeeesar!”, gritou ela, antes de largar o corpo na cama, suada e satisfeita. “Ela se casou com o Beto e tirou a virgindade do César”, meus amigos faziam sempre a mesma piada.

    Desde então mudei de nome em outras três ocasiões: no escritório em que fui trabalhar eu me sentia Oswaldo, e assim me apresentava a todos; na faculdade, Péricles; na mesa de jogo, antes de bater o punho e gritar “Truco!”, Evanildo.

    Meus amigos se confundiam. Para facilitar a vida deles, aceitei que colocassem no meu pescoço uma tabuleta com o nome que eu usava no momento e, mesmo assim, ficavam pouco à vontade quando tinham de me chamar. Achavam essa mudança de nome uma bobagem. “A gente nasce, ganha um nome e fica com ele até o fim, até morrer, não é esse o normal?”, perguntavam sempre. Eu respondia que eles tiveram sorte, que o rosto deles se moldou ao nome que ganharam no batismo e não havia necessidade de mudar. Não era o meu caso, meu rosto não era sempre o mesmo e, por isso, o meu nome precisava se adequar. Para tranquilizá-los, eu acrescentava que, um dia, seríamos todos iguais, teríamos o mesmo rosto e o mesmo nome gravado na pedra.

  • Deus e o Diabo na Terra do Sol

    Uma antiga lenda indígena relata como se deu o surgimento da vida.

    No início, havia apenas trevas e do interior do nada, Tupã fez germinar a luz. No negro céu, em meio a um infindável vazio, o poderoso senhor dos trovões criou o sol, fonte incandescente de luminosidade, a lua e as estrelas com seu brilho ameno.

    Durante o dia, sob a égide do deus Guaraci, a vida pulsaria fulgurante, multicolorida. À noite, envoltos no manto da escuridão e da quietude, os seres viventes se recolheriam, repousariam e recuperariam suas forças, acolhidos pela terna proteção da deusa Jacy.

    Curupira e Caipora foram designados guardiões das matas e dos animais. À divina Yara, coube a missão de reger os mares, lagos, rios, pororocas, piracemas, igapós e igarapés, através dos quais a sabedoria perene das águas espalharia o sêmen da vida ao longo do Solimões para além das terras de Marajó.

    Rupave e Sypave, respectivamente o pai e a mãe de todos os humanos foram moldados no barro. Um sopro divino conferiu-lhes o dom da anima. E puderam assim gerar homens e mulheres que se multiplicariam pelos vales e colinas.

    Advertiu-lhes com severidade o sábio criador:

    “Deixo-vos este Eldorado para ser vossa morada, para que possais nele criar vossa prole com fartura. Que a terra fértil possa abastecer de tudo o que vossas necessidades rogarem.

    Os frutos da terra nutrirão a todos e dela emergirá o maná abençoado em profusão para os vossos filhos e para os filhos dos vossos filhos. As águas puras, frescas e cristalinas a brotar magicamente das pedras aplacarão prazerosamente vossa sede. As árvores exalarão bálsamos revigorantes e vos guarnecerão proteção contra os efeitos abrasivos do sol e um ninho acolhedor quando precisardes descansar vossos corpos. O fogo propiciará aquecimento para enfrentardes o frio e tornará palatáveis os alimentos.

    Essas oferendas a vós concedidas farão das terras um éden para usufruirdes de uma existência plena e radiante, ainda que efêmera. Confio que usareis sabiamente as dádivas para fazerdes jus à felicidade que elas vos proporcionarão.

    Tais bênçãos, todavia, não são privilégio de seres como vós, mas proverão as necessidades das demais formas de vida com quem convivereis, animais e plantas que convosco partilharão o espaço: borboletas, besouros, araras, andorinhas, arapongas, periquitos, tucanos, tamanduás, jaguatiricas, macacos, antas, capivaras, sucuris, sapos, jacarés, pirarucus, tucunarés, tambaquis, pacus, açaís, buritis, cupuaçus, ingás, jacarandás, ipês, cedros, jatobás…”

    E assim os primeiros homens e mulheres, deslumbrados com a abundância de cores e formas que o generoso deus lhes havia oferecido, sentiram-se gratos pela bem-aventurança de que foram beneficiários e preservaram com zelo o que lhes cercava.

    Essa harmonia entre entes tão distintos não chegou a ser gravemente abalada quando advieram aos humanos sentimentos de cobiça e rivalidade que colocaram irmão contra irmão e puseram em pé de guerra as tribos, surgindo os primeiros embates, sob o olhar reprovador de Tupã.

    Ainda assim, o misericordioso relevou tais transgressões e entendeu que os seres, imperfeitos e mortais que eram, não chegariam mesmo a um congraçamento universal como seria de seu agrado. E a vida manteve seu tênue equilíbrio por muitas e muitas luas.

    A situação não perdurou quando jovens guerreiros, tomados pela ambição, fizeram aliança com os espíritos malignos que sempre estiveram rondando, esperando a oportunidade para infundir a discórdia.

    Abdicando da coexistência pacífica, prepararam-se para a guerra em busca de maior poder. Para ampliar seu domínio, subjugaram as espécies mais dóceis e eliminaram diversas formas de plantas e animais, empobrecendo a diversidade.

    O boto rosa não mais foi avistado. A harpia alçou as asas em direção ao infinito. E o canto de Uirapuru nunca mais pôde ser ouvido.

    Ervas utilizadas secularmente pelos xamãs em seus preparos foram extirpadas. Foram abolidos os rituais de pajelança e desdenhada a sabedoria milenar dos ancestrais. Sem os elixires, os males e as pragas divinas se espraiaram.

    Rompido o equilíbrio, os mares ficaram revoltos, os ventos cada vez mais furiosos, a aridez da terra alastrou-se, a vida fragilizou-se.

    Com seu uso desvirtuado, o fogo transformou-se em arma de extermínio e a fumaça cobriu a luz do sol e o brilho das estrelas. O ar e a água foram envenenados. O vívido azul dos mares e o cintilante verde das matas tornaram-se cinzentos e opacos.

    Tupã assistiu tristonho o ocaso da vida que fizera brotar ao longo de rios, campos e montanhas. A obra da sagrada divindade fora corrompida pela ganância. As ruínas do seu reino foram apropriadas por Anhangá, o deus da morte que assumiu o comando.

    Conta-se que o criador ao ver sua obra desfeita pela criatura, não a castigou nem reagiu. Deixou o inexorável destino cumprir sua sina, sem impedir que as ações insanas dos humanos sobre eles próprios revertessem seus nefastos efeitos, provocando sua auto-destruição.

    Tupã se recolheu. Diz-se que se transmutou em espírito protetor de uma floresta distante, fora do alcance da insensatez. Sua voz grave porém ressurge retumbante e assustadora no ribombar dos trovões, quando as tempestades, cada dia mais fortes e avassaladoras, desabam sua fúria sobre os herdeiros da terra devastada.


  • Tatiana está sangrando

    Era perto do meio-dia quando Tatiana saiu correndo da escola. Ela tinha ainda que almoçar antes de se encontrar com a Ju. Estava atrasada, e isso a fazia suar mais. Passou no meio dos meninos a tempo de escutar “A gorda tá com pressa?” Olhou para a frente e correu mais. Não dava tempo de chorar. “Corre mesmo, gorda, pra ver se perde meia tonelada”, ela ouviu antes de cruzar o portão e ganhar a calçada. Subiu no ônibus e procurou um assento no fundo da condução, onde ninguém a visse. Olhou pela janela e aí, sim, chorou um pouquinho. Decidiu não ir na Ju, depois ligaria para a amiga. Faria sozinha hoje.

    Entrou em casa, gritou “Cheguei!” e foi direto para o banheiro. Trancou-se, pegou o estilete na mochila e começou. Doeu tanto, tanto, no corpo e no coração, mas vai cicatrizar. Tatiana sabe que todas as feridas cicatrizam mais cedo ou mais tarde. Fica a marca por um tempo, depois some — um fio de sangue que corre pelo joelho, uma trilha que nasce no ponto do corte e busca, pela gravidade, alcançar o chão. Uma gota maior e mais robusta dilata o fio vermelho e morre no meio da gaze que a mão aperta contra a pele, estancando a hemorragia. A água fria da torneira termina de limpar o resto, só permanece aquele tom avermelhado e difuso, a mancha que denuncia a mutilação, a identidade do flagelo imposto por ela própria.

    Tatiana sabe que isso está errado, mas não consegue parar de errar. A mãe chama “Almoço pronto. Tá morta aí dentro?” Tatiana quis gritar “Tô”, mas só disse “Já vou”. Não queria ver ninguém naquele momento, não precisava de testemunhas na hora de lavar e expiar o que os outros consideravam pecado. Tampouco precisava que mais uma vez, outra vez, a julgassem e lhe apontassem com o dedo. Seca as pernas com papel higiênico e puxa a saia para baixo, escondendo os sinais.

    Semana que vem, quando a marca de hoje já estiver velha, uma nova será feita, porque ela precisa de ajuda e, na hora da ajuda, ninguém aparece. Só aparece a Ju, tão gorda, tão vesga, tão infeliz como ela.


  • A casa de Cortázar, tomada

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    em homenagem ao conto “Casa Tomada”, de Julio Cortázar (1914-1984), escritor argentino

    Gostamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (mesmo que hoje as casas antigas sejam pouco valorizadas), guarda as recordações de avós e bisavós, pais e toda a nossa infância. As paredes sabem de nós, quem fomos, quem somos. O eco das vozes do passado ainda nos enchem de encantamento. Houve felicidade aqui — ainda há.

    Minha irmã Irene e eu nos acostumamos a viver sozinhos. Não há mais ninguém da família entre nós, só a lembrança deles. Temos nossa quieta solidão e isso nos basta. Chegamos à meia-idade com leveza e despreocupação. Em nenhum momento pensamos em sair daqui e viver em outro lugar. Isso nunca nos passou pela cabeça, já que nosso corpo e nossa alma não saberiam viver longe destas paredes. Esta casa é um celeiro de lembranças e somos dependentes delas. Também somos agradecidos pelo que elas nos proporcionam. Há recordações que, com o passar do tempo, se diluem na memória e não sabemos distinguir muito bem se foram reais ou se estiveram a ponto de sê-lo ou se foram fruto de nossa imaginação. Há outras, entretanto, que são tão nítidas que parece que aconteceram ontem mesmo. O que sabemos, Irene e eu, é que aqui é o nosso lugar e aqui ficaremos até o dia em que deixe de ter importância o que queremos ou não.

    A crise econômica que hoje assola a nação também nos pegou, e isso foi inevitável. O país inteiro sofre com a má administração do dinheiro público, por que conosco seria diferente? Decidimos vender alguns móveis, ainda que nos doesse. Tínhamos que incrementar nossa renda de aposentadoria para manter esta casa tão grande. Vieram uns homens para retirar algumas peças, deixando vazios vários cômodos. Sentimos muito, mas preferimos assim. Os vasos com as plantas ornamentais também renderam um bom dinheiro, assim como alguns quadros e uma parte das louças e dos objetos de prata e cristal. Nem vou falar dos livros franceses; separar-me deles doeu muito em mim. Eles eram como um tesouro que eu guardava com o máximo cuidado. Irene chorou quando tivemos que nos desfazer do genuflexório forrado com veludo roxo. Os carregadores passavam ao nosso lado com estantes, penteadeiras, poltronas e cômodas nos ombros. Ficamos desolados vendo a mobília sair da casa e ir sabe-se lá para onde. Sentimos que perdemos um pouco o chão; ficamos sem certezas, como aquela que se tem de encontrar o litro de leite na soleira da porta a cada manhã. Mas teve que ser assim, os dias modernos nos levaram a isso. Eu tentei animar minha irmã e ela me pediu que dissesse àqueles estranhos que os móveis podiam ir, mas a casa ficaria no lugar de sempre. A casa não estava à venda.

    As primeiras horas depois disso foram penosas. Ver a casa quase vazia era muito difícil, mas aos poucos deixamos para trás os dias ruins. Utilizamos as lembranças para superar a tristeza. Por exemplo, recordar o dia em que a casa passou a ser propriedade só nossa, minha e de Irene, por direito e herança. Eu dancei sozinho sobre o piso de madeira para celebrar o acontecimento e Irene, mais familiarizada com cálculos e contas, assinou o contrato, encerrando o caso. A casa era definitivamente nossa. Foi um dia memorável. Gostei de ver minha irmã enfim sorrindo, ainda que fosse um sorriso triste. Logo depois do jantar ela retomou o tricô e comentou que precisaria de mais lã azul para terminar o cachecol que fazia para mim. Eu disse que na manhã seguinte iria até o centro da cidade e compraria. Ela agradeceu com a delicadeza de sempre e voltou os olhos para o trabalho. Eu continuei mergulhado nos livros. Dormimos muito bem aquela noite.

    Quando Irene sonhava em voz alta, e chorava, eu acordava de imediato. Corria até seu quarto e a sacudia com delicadeza. Ela me perguntava, ainda dormindo, que carro era aquele que tinha passado perto da janela do quarto. Era uma voz estranha, que vinha do mais profundo de sua inconsciência e não de sua garganta. Eu respondia que não sabia, era apenas um carro, um automóvel qualquer que alguém dirigia na rua de nossa casa. Ela retrucava implorando que eu dissesse ao motorista que a casa não estava à venda. Eu a abraçava com força para acalmá-la.

    Os casais jovens e as famílias mais ou menos numerosas que vinham ver a casa se admiravam com a beleza e a sobriedade da construção. Passeavam pelos cômodos olhando as paredes, o teto, as portas, os rodapés. Iam do saguão com piso de mármore até a sala de jantar forrada com gobelinos, passando pela biblioteca e pelos amplos dormitórios, que ficavam na parte mais afastada da casa, aquela que dá para a rua Rodríguez Peña — perguntavam coisas, suspiravam em alta voz, faziam comentários de admiração. Irene, a todo instante, me pedia que lhes dissesse que a casa não estava à venda, nunca estaria. Eu respondia que estava tudo bem, que podíamos nos cobrir com lençóis brancos e fingir que éramos fantasmas e mandá-los para longe daqui. Ela ria, mas seu riso continuava triste.

    Pensamos em sair à rua, trancar a porta e jogar a chave num buraco de esgoto qualquer, para que estranhos não invadissem a casa, mas não conseguíamos nos afastar de lá. E então gritávamos às pessoas que fossem embora, que deixassem de tagarelar, que não tomassem nossa casa, que ela não estava à venda. Ninguém nos ouvia. Continuavam passeando pelos cômodos, comentando sobre os poucos quadros pendurados, a cor das paredes e a altura do pé direito. “Uma casa magnífica”, diziam. Irene chorava e eu tentava mantê-la calma dizendo “Esta casa, a nossa casa, nunca será tomada.”


  • VALDIR E FONSECA

    Valdir e Fonseca trabalhavam na mesma empresa. Estavam na casa dos 50 anos bem vividos, um talvez mais do que o outro. Eram também vizinhos, o que não significava que eram amigos. Todos os dias saíam no memos horário, mas Valdir nem sempre voltava para casa antes do Jornal Nacional. Tinham algumas outras tantas diferenças. Valdir era quase mau humorado. Quase. Alto, magro, parecia estar sempre com fome. Mas preservava a cabeleira intacta, motivo de inveja de Fonseca. Quem o conhecia bem, dizia que era uma dama. Mas tinha cara de poucos amigos, talvez para se defender de puxas saco ou de gente chata mesmo. O que dá no mesmo. Ninguém sabia muito da sua vida particular. Muito não, quase nada. Nem mesmo Fonseca.

    Fonseca era quase o oposto. Estatura mediana, um pouco mais gordinho, quase careca. Era casado e achava que não precisava se cuidar muito mais do que um banho de manhã e outro antes de dormir e fazer a barba todos os dias. Não entendia como o vizinho estava sempre bonito e arrumado. E solteiro. Mas o que mais intrigava Fonseca era porque Valdir nunca lhe oferecera carona. Saíam religiosamente no mesmo horário, trabalhavam no mesmo local e provavelmente fariam o mesmo trajeto se Fonseca também tivesse carro. Se. Mas Fonseca ia de metrô, lotado, esmagado, suado, todos os dias. Se casou cedo, teve filhos logo, e, entre estar em casa com a família e estudar ou viajar para aproveitar as oportunidades que a empresa oferecia, preferiu a primeira opção. Não se arrependia. Gostava de ser um homem de família, com uma rotina fixa e a oportunidade de ver os filhos crescerem. Mas agora, com eles crescidos e a mulher cheia de hobbies que não lhe incluíam, sentia falta de algo mais.

    Já Valdir era diretor, só faltava ser presidente. Tinha galgado todos os degraus, de acordo com a cartilha da empresa. Fez todos os cursos, foi para todos os cantos que mandaram e hoje, ia com seu carro reluzente para a empresa. Era um modelo antigo, clássico e charmoso. Não tinha filhos e Fonseca não se lembrava se um dia ele fora casado. Parecia um lobo solitário. Mesmo assim, com todas as diferenças, eles se cumprimentavam todas as manhãs e cada um partia para o seu destino à sua maneira. Enquanto Valdir entrava no seu carro reluzente, Fonseca caminhava 3 quadras até o metrô, pensando o porquê desse comportamento do colega de trabalho. Seria timidez? Não queria se misturar com a ralé? Ou seria puro egoísmo mesmo?

    Resolveu puxar conversa na hora do cafezinho. Trabalhavam também próximos e resolveu esperar o vizinho sair de sua sala para tentar uma deixa. Ao chegar na copa onde todos se reuniam para tomar café, Fonseca atacou sem piedade:

    — Dia quente, hoje, hein?

    — Muito! Nem parece que não estamos mais no verão.

    — Pois é… o metrô estava lotado. Parecia uma sauna!

    — Imagino…

    E Valdir terminou seu café com a mesma cara de poucos amigos de sempre, deu meia volta e foi para a sua sala, sem antes dizer a Fonseca:

    — Até amanhã!

    — Até!

    Mas era muito cara de pau mesmo! O sujeito não tinha nem pena do ser humano que se espremia no metrô lotado. Não podia ser mesmo boa pessoa! Quem seria tão frio assim? Custava oferecer uma simples “caroninha”?

    Fonseca passou o dia todo com raiva de si. Chegava a ficar furioso toda vez que se lembrava da tentativa de amizade frustrada. Amizade não, carona. Chegou em casa praguejando:

    — Você acredita, Janete, que o sr. Valdir se acha muito bom para andar comigo?

    Nessa altura do campeonato, Fonseca já tinha formulado uma história na qual Valdir se achava superior e não consideraria ser amigo dele.

    — Que gritaria é essa, Fonseca? E que Valdir é esse?

    — O nosso vizinho, que trabalha comigo. Está se achando demais!

    — Eu, hein? Muito me admira você querer ser amigo dele. Aquele homem é muito estranho…

    — Estranho como?

    — Nunca reparou? Ele sai sempre no mesmo horário que você, mas nunca volta no mesmo horário. O apartamento fica com as luzes acesas até de madrugada e sempre tem barulho de música ou conversa até tarde. Mas ele nunca aparece com ninguém. Sei não…

    — Como você sabe disso tudo?

    — Às vezes eu acordo de madrugada com o seu…Quer dizer, tenho insônia, e vou beber alguma coisa. Sempre tem movimento por lá, isso as 3, 4 horas da manhã.

    Janete ia dizer que acordava com o ronco do marido, mas preferiu deixar para lá. Fonseca já estava nervoso demais.

    — Mas se ele vai dormir tão tarde, como acorda tão cedo?

    — Deve ser um zumbi! Janete levantou as mãos para dramatizar a sua opinião e Fonseca se benzeu de maneira instintiva:

    — Vade retro, Janete! Para de falar besteira!

    Mas aquilo ficou martelando na cabeça de Fonseca. Seu vizinho era, no mínimo, muito estranho. Não falava sobre a família – se é que tinha alguma – não ia nas festas da firma, não oferecia carona…não fazia nada de normal. Ele, Fonseca, ofereceria carona se tivesse um carro, por que não?

    No outro dia, no escritório, depois de mais uma saga no metrô, Fonseca resolveu tirar aquilo a limpo:

    — Você sabe por que o Valdir não oferece carona para ninguém?

    — Como assim?

    Fonseca ficou obcecado com o tema Valdir. Começou a achar que tinha mesmo algo estranho com o seu vizinho zumbi e resolveu perguntar para os colegas mais chegados o que eles achavam do chefe. Dona Telma, que era secretária de Valdir desde sempre, com certeza poderia esclarecer:

    — Ele já me deu carona uma vez, sim. Mas já tem algum tempo. Por quê?

    Hummmm…Então o vizinho zumbi oferecia caronas para mulheres e não para homens. Podia ser uma pista. Ou era só mais um clichê: chefe dá carona para a secretária na hora do almoço e acaba indo parar no motel. Não, era muito cliché, mesmo para Valdir.

    — Seu Lupércio, me responde uma coisa: O que o senhor acha do Valdir?

    — Seu Valdir é uma dama! Por que o senhor quer saber?

    — É por quê…Porque vamos fazer uma festa surpresa para ele e estamos pensando no que ele gostaria de ganhar. Alguma sugestão?

    — Para o senhor Valdir? Ele merece muita coisa! Pode contar comigo para o presente!

    Agora essa. Nem pegava carona com o dito e agora ia ter que fazer uma festa surpresa. Nem ao menos sabia a data do aniversário de Valdir. Vizinhos há quase 30 anos e nunca se parabenizaram por nada. Nem quando Fonseca se casou, teve filhos…Por que nunca foram próximos? A voz de Janete parecia ressoar no fundo da sua mente: É porque ele é um zumbiiiiii!!!!!!!

    Teria que dar uma olhada no mural da empresa, lá com certeza tinha o aniversário de todos os funcionários. Chegou até a letra V: Vagner, Valentina, Valdir…02 de março de 1964. 02 de março de 1964? Eles faziam aniversário praticamente no mesmo dia, Fonseca era do dia 04. Que coincidência. E nem assim eles eram amigos? Aniversário aproxima as pessoas, ora essa. Fonseca estava sentimental. Poderiam ser irmãos gêmeos praticamente. Precisava corrigir isso. Ia fazer uma festa surpresa para Valdir. Foi para casa cheio de ideias:

    — Janete, vou precisar de sua ajuda. Vamos fazer uma festa surpresa para o Valdir!

    — Ah, pronto…Agora que o homem endoidou de vez!

    — Não escutei, Janete!

    — Nada não, meu marido…Do que você precisa? – Tem horas que é melhor não contrariar.

    — Bolo, balão, salgadinho, brigadeiro…Será que ele gosta de brigadeiro?

    — Alguém não gosta?

    — Tem razão Janete. Todo mundo gosta de brigadeiro. Vamos fazer uma festa de arromba para Valdir.

    Janete só resmungava: Eu, hein?

    No dia seguinte, no mesmo horário, os dois se encontraram como de costume na porta do prédio. Valdir, todo elegante e cheiroso — chegava exatamente assim no escritório, sem nada fora do lugar — e Fonseca com ar de criança travessa, falando apressado:

    — Tá chegando, hein?

    — O que que está chegando?

    — Deixa pra lá…Rs… Melhor não estragar a surpresa!

    Valdir deu de ombros, um pouco confuso com essa mudança repentina do vizinho, enquanto Fonseca caminhou suas três quadras rotineiras de uma maneira quase eufórica. Se sentia leve, como se estivesse prestes a um grande feito. Tinha certeza de que seriam, afinal, grandes amigos. Com direito a carona!

    Dona Telma já estava de prontidão quando Fonseca chegou no escritório. Ela estava responsável por encomendar os salgadinhos e docinhos e queria algumas sugestões:

    — Kibe ou coxinha?

    — Eu adoro os dois!

    — Eu também, mas o Valdir é vegetariano. Talvez uma empada de palmito?

    — Vegetariano? Desde quando?

    — Sei lá. Só sei que é.

    Um zumbi vegetariano? E lá vinha a voz da Janete: Ele é um zummmmbiiiiiiiii!!!!!

    — Chega!

    — Eu, hein? Tá estressado Fonseca?

    — Não, desculpa, dona Telma. Vamos escolher empada de palmito. Mais alguma coisa?

    — Refrigerantes e sucos já forma comprados e deixei na geladeira do refeitório, todas com etiqueta para ninguém mexer.

    — Não vai ter uma cervejinha? Afinal, já será no fim do expediente…

    — O Valdir não bebe, Fonseca! Eu, hein? Por que você quer fazer uma festa para alguém que você nem sabe se bebe ou não?

    — Isso não importa Dona Telma. Mais uma coisa…O Valdir já foi casado?

    — Não acredito, Fonseca. Valdir é viúvo, já tem muito tempo. Sério mesmo que você não sabia nem disso?

    — A senhora há de convir que o Valdir é um tanto reservado, né? Mas depois dessa festa tudo vai mudar, a senhora vai ver. Nós não somos amigos ainda. Mas vamos ser!

    — Tem certeza?

    — Claro, Dona Telma. Seremos melhores amigos, a senhora vai ver! Seu olhar era quase vidrado. Pobre Fonseca.

    Mas o que ninguém sabia, muito menos Fonseca, era que Valdir, nessa vida, não gostava de 2 coisas: aniversários e de dar carona. Não gostava de festa, ficava ranzinza, se achava mais velho e não fazia questão nenhuma de ser lembrado da idade que avançava a cada ano. E a carona…Era mania mesmo. Tinha um carinho especial pelo carro: foi nele que ensinou a esposa a dirigir, aos trancos e barrancos. Ela não gostava, ficava tensa, mas no fim riam de suas inseguranças e da sua total falta de atenção. Como ela sabia rir de si mesma! E como era sensível…Uma vez quase atropelou um cachorrinho e chegou chorando em casa.

    — Mas foi quase, querida, ele não morreu!

    — Mas podia ter morrido Valdir… Não iria me perdoar nunca!

    E ele a consolava em seus braços e nada mais parecia importar. Sua sensibilidade e bom humor eram suas maiores qualidades e conquistavam Valdir todos os dias. Então, ele nem poderia imaginar alguém maculando aquele carro. Além disso, era uma negação pela manhã. Tinha verdadeiro horror, falta de paciência mesmo para conversas matutinas. Dormia pouco, pois adorava ver filmes até tarde – seu único prazer depois de ter ficado viúvo – e se achava péssima companhia pela manhã. Evitava que o outro também lhe achasse chato e ainda preservava seu carro de caronistas que teimavam em bater as portas sem a menor sensibilidade. Não era um zumbi. Era um cricri. Mas também uma dama, segundo seu Lupércio.

    Em casa, Fonseca ficou pensando na mulher de Valdir. Não se lembrava dela, nunca tinha visto uma foto no escritório de Valdir. Estranho…

    — Janete, você se lembra da mulher do Valdir?

    — Mulher do Valdir?

    — Sim. A secretária dele, Dona Telma, me disse hoje que ele é viúvo. Você se lembra de algo?

    — Agora que você falou, acho que a vi algumas vezes. Ana…não, Ângela. Mas isso tem muito tempo…O que aconteceu, eles se separaram?

    — Não, Janete. Ela faleceu.

    — Faleceu? Gente, mas…Fomos à missa, ao enterro?

    — Não lembro, Janete. Isso não é estranho? Será que somos tão insensíveis assim? Nem me lembro do rosto dela. E no escritório do Valdir não tem nenhuma foto, nada que lembre a mulher.

    — Isso sim é estranho… Zuuumbiiiiiiiiiiii!!!!

    Claro que Valdir tinha uma foto de sua Ângela. Uma foto linda, de close, tirada na lua de mel em Veneza. Os melhores dias de sua vida. Ela ficava estrategicamente guardada na segunda gaveta a esquerda da sua mesa de trabalho. Ninguém precisava vê-la além dele. E eles se viam várias vezes durante o dia. Sempre que algo novo acontecia, quando Valdir estava preocupado, sem saber como resolver um problema ou quando queria apenas fofocar. Sim, eles fofocavam muito:

    — Você acredita, Ângela, que a Telma insiste em voltar para aquele tal de Roberto? Já avisei que ele não presta, mas ele parece que não me ouve. Ah, se você estivesse aqui, com certeza saberia como falar com ela. Sinto tanto a sua falta…

    Valdir sorria um sorriso triste e Ângela lhe sorria de volta, como sempre. Seu melhor sorriso, registrado na sua melhor foto. Talvez por isso permanecesse no escritório até altas horas, entre conversas com sua amada e os problemas do dia a dia. Gostava do silêncio pós expediente, conseguia pensar melhor. Era um mundo só dele, como todos os outros. Em casa ou em qualquer outro lugar, era um homem absolutamente só.

    Pela manhã, no escritório, o clima era tenso. Muitos estavam se perguntando por que fazer uma festa para aquele chefe que não gostava de festas, não dava carona e não tinha amigos no escritório. Ou melhor, só tinha um: Seu Lupércio. Ele era o mais animado com os preparativos, junto com Dona Telma, que já tinha até pegado uma carona com Valdir. Vai saber o que aconteceu naquela carona! Chegaram a questionar Fonseca:

    — Por que essa festa em cima da hora para aquele chato do Valdir?

    — Quem disse que ele é chato? Ele é meu amigo, respeito é bom e eu gosto! – Rebatia Fonseca batendo no peito com orgulho.

    — Amigo? Nunca vi ele te dando nem ao menos uma carona…E sei que vocês são vizinhos!

    De novo aquele maldito assunto da carona. Por que raios o Valdir era daquele jeito? Não é possível que não tivesse nenhuma qualidade. Resolveu apelar para seu Lupércio, que insistia em dizer que “Valdir era uma dama.”

    — Você não sabe, Fonseca? Sr. Valdir é um homem muito bom, muito culto…Quando entrei para empresa, era um simples faxineiro. Ele conversava comigo todos os dias, perguntava sobre os estudos, sobre a minha família…Um dia, disse-lhe que gostaria de fazer uma faculdade de administração para ter alguma chance de crescer, melhorar de vida. Ele pagou o meu cursinho e a minha faculdade. Hoje, já sou gerente e pude dar ao meu filho a melhor educação, a que eu não tive. Quando meu filho entrou na faculdade no ano passado o Sr. Valdir fez questão de lhe dar um belo presente. Devo tudo a ele!

    Isso tudo deixava Fonseca ainda mais intrigado. Se ele era uma pessoa tão boa, por que fazia questão de andar de cara fechada e não dar muita bola para ninguém? Para Dona Telma ele dava, ah se dava…

    As perguntas de Fonseca sobre Valdir foram repercutindo na empresa e a insatisfação geral com esse puxa-saquismo repentino dele também. Claro que, mais cedo ou mais tarde, aquilo ia acabar chegando nos ouvidos de Valdir. E chegou.

    — Nunca vi ninguém fazer festa nessa empresa, e de repente o doido do Fonseca inventou de comemorar aniversário do Valdir. Justo daquela “mala”!

    — Pelo amor de Deus, nem me fala! Pior que todo mundo vai ter que ir, vai ser no horário do expediente… Até isso!

    Valdir sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao ouvir essa conversa. Estava chegando na salinha do café quando dois colegas acabavam de ter o diálogo. Eles se entreolharam rapidamente e tentaram disfarçar, falando sobre o jogo do Botafogo na noite anterior, que andava mal das pernas, mesmo com o novo técnico e um elenco estrelado. Mas o mal já tinha sido feito. Ele escutara tudo, mas fingiu que não tinha, digamos, entendido:

    — Vergonha, né? Tanto dinheiro investido e o Fogão não ganha uma!

    — O senhor gosta de futebol, Sr. Valdir?

    — Pode me chamar de Valdir, amigão!

    Amigão? Valdir nunca tinha dado nenhum tipo de intimidade para ninguém no escritório. Os dois sorriram meio sem graça e, ainda desconfiados com a amizade repentina, continuaram a conversa com o “amigão.”

    — Então, amigão, estamos combinando de ir ao FLA x FLU no final de semana. Vamos?

    — Mas é claro! Contem comigo!

    Valdir não sabia de onde essas palavras tinham saído. Não ia a um jogo há anos e não sabia nem onde comprar um ingresso. Mas depois que foi praticamente crucificado pelos dois colegas, se sentiu na obrigação de tentar reverter essa impressão. Será que todos pensavam o mesmo? Meu Deus, estava tão envolvido em mostrar autoridade e ser competente, que tinha se esquecido do social. Desde que sua esposa morreu, tinha se esquecido também de si.

    — Dona Telma, preciso falar com a senhora urgente!

    — O que aconteceu, Valdir?

    Dona Telma era sua secretária desde que ele tinha chegado ao cargo de gerente e o acompanhara na ascensão à diretoria e à nova sala, muito maior e elegante. Eles se conheceram quando entraram para a empresa, há quase 30 anos, e se tornaram grandes amigos, confidentes até. Valdir foi o ombro amigo de Dona Telma quando ela perdeu os pais, o seu primeiro gato e depois de todos os foras dos canalhas que ela insistia em namorar. Depois de tanta decepção, resolveu, por fim, adotar outro gato e está feliz e solteira desde então. Da mesma forma, foi Dona Telma que esteve ao lado de Valdir quando a esposa morreu, cuidando de todos os trâmites cabíveis e, também, do coração do amigo, que se despedaçou de tantas formas que até hoje ele não tinha conseguido colar.

    — A senhora sabe que as pessoas me odeiam?

    Dona Telma fez uma expressão que ele conhecia bem: franziu a testa, levou a boca para o lado esquerdo e abaixou a cabeça. Se virou, fechou a porta e voltou-se para ele séria. Começou a frase com um sussurro:

    — Não é que eles te odeiam, Valdir…

    — Você sabia disso e nunca me disse nada? – gritou Valdir exasperado.

    — Fala baixo, pelo amor de Deus.

    — Falar baixo por quê? Eu sou o chefe dessa joça!

    — Valdir, olha só…

    — Conheço o seu “olha só”. Não quero saber de olha só!

    — Não é que eles te odeiam. Na verdade, acho que ninguém aqui te conhece bem. Você não vai aos happy hours, não oferece carona, não conversa muito…Até o Fonseca, que está preparando a festinha surpresa do seu aniversário, não sabia que você era vegetariano, por exemplo. Talvez, se vo…

    — Como é que é? O Fonseca está organizando uma festa surpresa para mim?

    Naquele instante, quem gelou foi Dona Telma. Ela mesma havia se esquecido que o seu chefe e grande amigo DETESTAVA aniversário, muito mais festa surpresa. Tentou se justificar:

    — A culpa é sua! Ele veio com uma conversa estranha se você oferecia carona, depois descobriu que o seu aniversário é colado no dele e agora resolveu que vocês serão grandes amigos depois da grande festa que ele está organizando. Quem mandou ser assim?

    — Telma, eu não acredito que você deixou isso chegar nesse ponto!

    — Ou era isso ou eu teria que contar que você é uma dama, que me deu carona várias vezes para eu visitar o meu pai no hospital e aí a sua fama de mal ia para o brejo. Qual vai ser?

    Valdir respirou fundo. Contou até 10…100…Parecia que ia explodir. Dona Telma fechou os olhos institivamente esperando a bronca homérica que estava por vir. Mas Valdir foi se acalmando quando chegou no 99. Seu rosto voltou a cor normal e o sangue parecia ter voltado a circular pelo resto do corpo. Estava em uma verdadeira encruzilhada da vida. Aquele momento em que você precisa tomar uma atitude drástica: Ou se mantinha durão e antipático, ou se tornava um chefe descolado e sociável, com direito a dar carona e a sorrir na festa surpresa.

    Quando finalmente abriu a boca para falar, nem mesmo Valdir se reconheceu. A fala veio mansa, suave, e ele disse:

    — Ajude Fonseca a fazer uma bela festa. E vamos pensar em uma maneira dos vizinhos darem carona uns aos outros. É isso.

    Dona Telma foi abrindo os olhos devagar, tentado enxergar aquilo que seus ouvidos não acreditavam. Parecia pronta para receber um grande impacto, mas seu corpo todo foi saindo da defensiva e voltando ao estado normal. Ainda sem acreditar, apenas respondeu:

    — Pode deixar.

    E saiu da sala ainda querendo entender o que havia acontecido lá dentro.

    Finalmente, o dia da grande festa chegou. Fonseca não se aguentava mais, quase havia deixado escapar para Valdir alguma pista nas várias vezes que se encontraram na hora do café, mas respirava fundo e dizia apenas:

    — Tá chegando!

    Esse “tá chegando”, que antes havia deixado Valdir apenas confuso, hoje lhe dava cólicas de aflição. Por já saber da festa, teria que fingir a surpresa, e mais: fingir que havia adorado a surpresa. ADORADO, como aconselhara Dona Telma, para que ele mudasse a sua má fama na empresa. Até treinar na frente do espelho Valdir estava treinando. Mas o seu maxilar parecia ter se esquecido de como era sorrir. Cada tentativa parecia mais falsa do que a outra e ele tinha medo de que a sua expressão se congelasse e ele nunca mais pudesse se mexer. Era como um botox eterno. Por que precisava tanto da aceitação do outro? Tudo estava tão bem do jeito que ele já estava acostumado!

    O dia foi passando normalmente. Valdir almoçou sozinho como de costume e, ao escovar os dentes, treinou mais algumas expressões que pudessem alegrar Fonseca. Teve medo daquelas caretas e tentou relaxar, dizendo um “Seja o que Deus quiser’. Tentou se concentrar nos problemas da empresa que não eram poucos, mas o relógio parecia ter se tornado seu inimigo: As horas se arrastavam da maneira que ele tanto havia pedido em outros momentos da sua vida. Quando descobriu a doença terminal da mulher. Quando escutava seu riso já fraco. Quando seus lábios não queriam se desgrudar e o abraço se fazia ninho. Como queria ter mais um minuto ao lado dela. Como sentia falta da sua companheira de vida!

    — Vamos?

    Era Dona Telma, toda faceira, despertando Valdir de suas lembranças. Ela estava toda arrumada, parece que a festa ia mesmo ser boa.

    — Tem certeza que preciso mesmo ir?

    — A festa é para você, tem graça se não for, né?

    — Delicada, hein?

    Eles riram juntos daquela cumplicidade boa. De repente, Telma parou seu sorriso com as mãos e disse:

    — É isso! Faz assim que será perfeito.

    — Obrigado amiga. E me lembra de ligar para a oficina depois, tenho que buscar meu carro.

    — Sim senhor! Ela esboçou uma continência, ele lhe deu um abraço. Foram juntos para o salão nobre da empresa, que já estava todo enfeitado.

    Assim que se aproximaram, Fonseca abriu a porta de repente e gritou:

    — SURPRESA!!!!!

    Talvez tenha sido a cara de felicidade de Fonseca ou o primor que tudo tinha sido feito. Mas a questão é que Valdir conseguiu dar um belo sorriso. Daqueles que veem do coração mesmo. Dona Telma enxugou uma lágrima teimosa.

    — O senhor gostou?

    — Está uma maravilha!

    Fonseca não se aguentou e partiu para o abraço. Aquilo era a glória. Meio desajeitados, acabaram preferindo um aperto de mão.

    — Excelente trabalho Fonseca, parabéns!

    — Parabéns para você, amigão! Na cabeça de Fonseca, já eram íntimos.

    E todos começaram a bater palmas e se aproximaram do chefe para cumprimentá-lo. Era uma bela festa, e Valdir realmente estava gostando. Era como um sopro de alegria em tantos anos de uma quase clausura. Finalmente parecia achar graça em algo que não tinha a ver com a sua casa e as suas lembranças da esposa. Desde o seu falecimento, só queria saber de trabalhar e rever os filmes que tinham visto juntos. Ele gostava de imaginar que ela estava ao seu lado, dando sua risada gostosa ou chorando das cenas bobas. Falava sozinho, tentava lembrar do que ela havia dito em cada cena, ria da mania que ela tinha de adivinhar em qual filme aquele ator italiano tinha atuado. Como sentia falta desses momentos…

    — Continue sorrindo assim que amanhã muitos já vão te adorar!

    Era Telma novamente o aconselhando. Mal sabia ela o motivo dos seus sorrisos. Mas é claro, estava se sentindo bem com toda aquela atenção e sabia que poderia ser uma pessoa melhor ao se aproximar dos seus colegas de trabalho. Resolveu começar por Fonseca:

    — Muito obrigada por essa festa, Fonseca. Realmente não tenho palavras para lhe agradecer. Faço questão de te dar uma carona hoje. Somos vizinhos, afinal!

    Fonseca mal se conteve na frente de Valdir. Lhe deu uns tapinhas nas costas e foi correndo para o banheiro. Chorou um choro de menino, aquele que finalmente teve aprovação do pai, mas ao mesmo tempo não quer que ele lhe veja emocionado.

    A festa fez tanto sucesso que entrou noite adentro. Alguns compraram cerveja, pessoas de outros setores acabaram dando uma passadinha, tudo ia às mil maravilhas. Valdir circulava entre todos, sempre ao lado de Dona Telma, que lhe dava um resumo rápido antes dele se aproximar de alguém:

    — Esse é o Ricardo, do Financeiro. Acabou de ter um filho.

    — Ricardo, parabéns! Ser pai é uma grande alegria, aproveite!

    E Valdir convertia mais um. Dona Telma seguia firme:

    — Essa é a Carolina, começou há pouco na empresa e já tem se destacado.

    — Carol, já estou sabendo que você está bombando!

    E recebia um ou outro beliscão de Dona Telma quando passava do ponto:

    — Carol, Valdir? Que intimidade é essa?

    — Me deixa, Telma. Sou iniciante nessa arte!

    E eles riam e voltavam à missão de fazer Valdir ser um ser social.

    Depois de vários abraços, comentários amigáveis e excesso de socialização, Valdir estava pronto para voltar ao seu refúgio. Não sem antes chamar Fonseca para a tão esperada carona.

    — Vamos Fonseca? Te deixo em casa!

    Era tudo que ele sempre sonhara. Foram juntos até o elevador e Valdir apertou o G. Estava mesmo acontecendo. Fonseca ia entrar no carro de Valdir. Iam trocar figurinhas, falar da festa, quem sabe eles não falavam um pouco de trabalho? Não, hoje não, hoje era dia de festa. Falariam sobre coisas amenas. Fonseca iria convidar Valdir para jantar na sua casa no dia do seu aniversário. Jantar não, ia fazer um churrasco no salão de festas, isso. Eles entrariam no carro e Fonseca talvez dissesse que estava pensando em comprar aquele modelo. Valdir lhe daria as dicas, quem sabe até lhe desse um aumento para lhe ajudar? Seria o começo de uma grande amizade, tinha certeza disso.

    Assim que o elevador se abriu, Valdir começou a procurar as chaves do carro. Colocou as mãos nos bolsos da calça, do paletó, da camisa. Pediu para Fonseca esperar enquanto abria a maleta e procurava as chaves dentro dela, em cada cantinho da sua bela maleta de couro. Fonseca achava tão elegante ter uma maleta de couro. Um dia teria a sua, tinha certeza. Quem sabe Valdir não lhe daria uma de aniversário?

    — Meu Deus, onde foi que deixei as minhas chaves?

    — Será que, por descuido, você não deixou dentro do carro?

    — Será? Do jeito que estou distraído ultimamente, pode até ser.

    — Onde ele está estacionado?

    — F1

    — Estamos no E, deve ser logo ali.

    E foram seguindo a direção que o dedo de Valdir apontava.

    — F0, F1… é aqui?

    — É. Ou melhor. Deveria ser.

    — Não tem carro nenhum aqui, Valdir.

    — Sim, estou vendo. Mas não estou entendendo.

    — Como assim? Você me faz vir até aqui, promete me dar uma carona, mas não tem carro nenhum estacionado?

    — Devem ter me roubado!

    — Ah, tá. Você passa a vida toda me esnobando, nunca me oferece carona, e no dia que eu faço uma megafesta para comemorar o seu aniversário, você me vem com uma pegadinha?

    — Que pegadinha, Fonseca? Você realmente acha que eu iria perder meu tempo mentindo para você? Se ofereci carona é porque sabia que meu carro estaria aqui. Ou pelo menos achei que sabia.

    — Ah, conta outra…

    — Meu Deus do céu, Fonseca. Juro que a minha intenção era te dar carona, mas que diabos! E outra: não te pedi festa nenhuma, você fez porque quis!

    — Ah, mas é claro! Estava só faltando essa! Eu pelo menos gosto das pessoas, e se tivesse carro daria carona para todo mundo!

    — Chega, Fonseca. Vou ligar para Dona Telma, perguntar se tem segurança por aqui e ver o que podemos fazer. Já parou para pensar que posso ter sido roubado? Tenha dó!

    — Aham…

    Já arrependido de ter oferecido a tal carona, Valdir liga para Dona Telma:

    — Telma, olha só. A vaga do meu carro sempre foi a F1, não foi?

    — Claro, desde que você se tornou diretor. Por quê?

    — Porque estou olhando para ela e meu carro não está aqui.

    — Claro que não está. Você o levou para a oficina hoje de manhã. Até pediu para que eu lhe lembrasse de ligar para lá amanhã.

    Valdir quis soltar um palavrão, mas ficou com medo da reação de Fonseca. Ele jamais iria acreditar naquela história.

    — Isso mesmo, Dona Telma. A senhora tem toda razão. Vou lá agora mesmo.

    — Ficou doido?

    — Boa noite, Dona Telma. Bom descanso.

    — O que aconteceu? Vai dar carona para Dona Telma e está disfarçando comigo?

    — Só me faltava essa agora, Fonseca. Dona Telma também acha que meu carro foi roubado e devo ir à delegacia dar parte. Vou pegar um táxi até lá, posso pedir um para você também.

    — Não preciso que você me peça nenhum táxi. Vou para casa da mesma forma que venho trabalhar todos os dias, de metrô. E não pense que eu caí nessa história para boi dormir não. Relações cortadas!

    E Fonseca foi andando duro, como se tivesse sido magoado pelo grande amor da sua vida. Pegou o cartão do metrô e encarou o seu destino. Nunca iria andar no carro de Valdir.

    Ainda parado ao lado da vaga, sem saber como pedir um táxi àquela hora, Valdir praguejava:

    — É por isso que nunca dou carona!!!


  • Elástico infinito – a natureza e a sua sabedoria

    Um alce, no alto de uma floresta densa, olha para cima, por um momento fugaz. No mesmo instante, ouve-se o murmurar do léxico perceptível – numa onda para nós, humanos, intangível -: e o alce o distingue pelo encontrar das superfícies de uma folha na outra, obrigadas a ter tal conexão corporal por um simples capricho do vento, senhor de todos os movimentos.

    Lentamente, do alto da mesma floresta densa, formigas passam destemidas por detrás das patas dianteiras do alce. Carregam as mesmas folhas que balançam lá no alto, há átimos escassos, e pousam, vencidas, em solo fértil. Tomam um movimento menos intenso, porém direcionado, ao transformarem-se, de copa, em cobiçadas mercadoria de transporte.

    Lesmas alimentam-se das mesmas folhas, logo adiante. O alce pisca. O vento continua o sopro travesso de sua fúria adocicada. O sol brilha e, através de feixes de luz, pousa no rosto do quadrúpede, no alto daquela floresta. Por entre as frestas de folhas que acobertam toda a vida nas sombras, a luz irradia o parar e o perceber.

    No topo da floresta ainda intocada pela indecência humana, o tempo não é contado pelo movimento automático dos ponteiros. Tampouco pela trajetória do sol ao redor da terra. Os espaços não são medidos por número de cômodos ou alturas sobrepostas. Aqui os inquilinos são todos, todos entendem, sem ser racionais, o quanto sua vida é passageira. Ninguém tem documentos de posse ou tecnologias que aletam para a finitude das coisas. Portanto não acumulam móveis ou obras de arte, deslocam-se sem apegos para outros abrigos, dividem comidas, usam o necessário. O tempo é o tempo de uma vida, são instintos, o saciar das necessidades primordiais. Inexiste o planejamento estratégico de papéis rascunhados. Inexiste a indecisão. Tudo é o agora, não existe o que se foi ou o que virá.

    O Alce, ao olhar para cima, entendeu tudo. E ao sentir a carícia do sol em seu rosto, um instante torna-se infinito.


  • Clementina

    Este ano toca plantar e colher milho, já deram a ordem. Antes já foi feijão e trigo. Milho agora. A gente ouve, a gente cumpre. Mas não vai chover uma gota, disseram. Outra colheita perdida. Apesar de tudo, Clementina segue na lavoura, cavucando a terra seca com a enxada sempre à mão, fazendo valas, eliminando as ervas daninhas, arrancando cogumelos e caracóis, preparando o terreno.

    Edimburgo, que preciosidade, como veio gordinho e perfeito! Clementina viu a foto do pôr do sol na vitrine de uma agência de viagens antes de entrar no mercado para vender seus legumes e frutas. Estava para cumprir os nove meses e Edimburgo veio uma semana depois, que a natureza sabe agir como deve. No dia seguinte estava em casa e todos bateram palmas. O menino dormia.

    Clementina se lembra, seu casamento foi feito às pressas porque logo ia chegar a temporada dos tomates, depois a das azeitonas e em seguida seria o tempo dos morangos, e tempo era o que ela não podia perder. Foi quando Tereza chegou. De sete meses e meio, apesar dos três quilos bem pesados e de quase arrebentar a balança — era isso o que a avó fazia questão de contar naqueles tempos, sempre que via a neta arrumadinha para a escola. Depois Clementina percebeu que Tereza tinha vindo antes do tempo para abrir e apressar o caminho. A fila já estava preparada, era só descer.

    Foi um por ano. Marcelino, Isaura, Tomás, Percival, Marrocos, João Clemente e Célia Maria, sem contar os gêmeos, que chegaram feito duas folhas de papel transparente e até se via cada uma das veias das perninhas. Clementina quase nem percebeu, eles escorregaram de seu entrepernas quando ela estendia as roupas no varal. Não vingaram. Enterrou os dois lado a lado no canto do quintal, onde nunca falta flor.

    Clementina está cerzindo meias, entretida nesses pensamentos. Daqui a pouco vai fazer o cálculo de quantos braços dispõe para oferecer mão de obra ao dono da terra e incrementar o orçamento da casa. Célia Maria, apesar de muito nova, pode cuidar do Edimburgo, que é bebê ainda. Os demais, cada um já ganhou de presente a sua própria enxada. Não tem homem, não tem mulher: é todo mundo, sem distinção. Disseram que não vai ter chuva, mas o trabalho será feito. Clementina é quem garante.


  • Um leão na beira da estrada

    Vi-o de longe e identifiquei o leão parado na beira da estrada. A juba grisalha e rebelde não podia ser de outra pessoa. Era ele no acostamento, apoiado em seu carro com o capô levantado. Tinha nas mãos um galão de plástico vazio e parecia aguardar uma carona. Eu passei de moto, capacete posto, só os olhos à mostra. Meu pai não me reconheceu.

    — Sem gasolina?”, perguntei.

    — Sim, que azar!, ele respondeu.

    — Sobe — indiquei com a cabeça o assento traseiro — Eu levo o senhor, tem um posto logo ali na frente.

    Meu pai ajeitou-se na moto, agarrou minha cintura com uma das mãos e, com a outra, segurou a alça do galão. Arranquei. Fazia mais de dez anos que não nos víamos ou nos falávamos. A última vez que trocamos um abraço foi no enterro de minha mãe. Depois, sem que tivesse acontecido nada relevante, fomos espaçando os telefonemas e os encontros, até que deixamos de nos comunicar. Filho único de um pai quase ausente, desisti de procurá-lo. Ele, pouco afeito a carinhos e movido por outros interesses, esqueceu-se de mim. Tudo muito natural, sem brigas ou discussões, só indiferença.

    Não tirei o capacete em nenhum momento. Não sabia qual seria sua reação ao me reconhecer. Melhor que pensasse que eu era apenas um rapaz que lhe prestava um favor na estrada. Percebi pelo espelho retrovisor como ele abaixava a cabeça para se proteger do vento, a juba dançando livremente sobre sua cabeça. O rosto de meu pai estava envelhecido, mas seu corpanzil — forte, vigoroso, saudável — mostrava outra realidade. Vi quando ele olhou para as minhas botas e percebeu que o salto do pé direito era mais alto do que o do esquerdo. Algumas vezes no passado, quando eu já era adolescente, meu pai me falara, num de seus rompantes de sinceridade, do desgosto que sentiu quando o médico, ainda na maternidade, contou sobre o meu defeito de nascença: uma perna mais curta do que a outra. Isso nunca me incomodou além das chacotas dos meninos do colégio, mas ele e minha mãe se sentiam envergonhados — talvez culpados — por esses centímetros a menos, ou a mais, segundo o ponto de vista de quem me olhava. Jamais consegui descobrir qual das minhas pernas era a defeituosa, se a mais curta ou a outra.

    Dirigi com habilidade e cautela, não me aproximando demais dos carros que iam à nossa frente. Notei que meu pai, em que pese o pudor de estar em contato físico tão próximo com outro homem, agarrava-se com firmeza à minha cintura com uma das mãos. Seus olhos não saíam do meu pé direito. Não conversamos durante o trajeto. Quem sabe ele não estava se perguntando se eu não poderia ser seu filho? Talvez estivesse se lembrando da série de médicos a que me levou quando eu era pequeno, as intermináveis radiografias, a sucessão de opiniões sobre a provável causa do meu defeito físico, até a sugestão feita por um especialista, afinal adotada, de colocar um salto maior que o outro nos meus sapatos, de maneira a compensar a diferença de comprimento entre as minhas duas pernas. Ou então estava revivendo o olhar de decepção que me dirigia quando me observava coxeando pelo chão da sala, eu menino, ainda ignorante do preconceito que sofreria vida afora.

    Ao parar no sinal vermelho, já perto do posto de gasolina, senti sua mão pressionando minha barriga, como uma demonstração de afeto. Não esbocei reação. Estacionei a moto ao lado de uma das bombas do posto, e ele desceu do assento traseiro. Falei, sem tirar o capacete e sem olhar em seu rosto, que não poderia levá-lo de volta, estava atrasado para um compromisso. Ele respondeu que encontraria sem dificuldade outra carona para voltar até seu carro. Percebi que tentava ver meus olhos e meu rosto pela viseira do capacete.

    — Muito obrigado, moço, você me fez um grande favor — disse meu pai, seus olhos insistentes na busca dos meus.

    — Não tem de quê — respondi e fui embora.

    À noite, já em casa, meu telefone tocou várias vezes.


  • A filha do Frankenstein

    Quando minha mãe ficou grávida de novo, meu pai me disse que, dali em diante, eu teria que ir sozinho à escola, pra que ela pudesse descansar. No começo, tive nojo dos vômitos dela, sempre na hora em que estávamos comendo, depois me acostumei. Ela vomitava numa toalha felpuda que logo era jogada na máquina de lavar. Depois os enjoos diminuíram conforme a barriga crescia. Passou a devorar tudo o que encontrava pela frente, até os meus salgadinhos. Por sorte meu pai sempre comprava mais, então não senti tanta falta. Minha mãe comia escondido dele, pra não levar bronca.

    Com o passar dos meses fui perdendo minha mãe. Aquela pata que andava pela casa arrastando os chinelos, com as pernas inchadas e a barriga como se tivesse engolido a lua cheia, não era a minha mãe. Ela parecia estar em outro mundo e já não se importava mais comigo. Não fazia a minha vitamina de manhã nem o bifinho do almoço. Estava sempre nervosa e deixou de corrigir minha lição de casa. Eu tirava nota alta, mas ela não me dava parabéns nem beijo como antes. Meu pai comprava comida congelada na mercearia do seu Jaime, e eu tinha que comer aquilo, mesmo quando eu falava que tinha vontade da comida que minha mãe fazia antes.

    Eu não gostei de ver minha mãe barriguda. Outro dia ela perguntou se eu queria ter um irmãozinho ou irmãzinha, e eu disse que pouco me importava e que era melhor que nem nascesse. Ou que nascesse com cabeça grande como uma bola de capotão, assim eu ia chutar ela no campinho atrás de casa.

    Uma noite, depois de comer sozinha uma lasanha inteira, minha mãe se levantou e viu que na cadeira tinha uma mancha de sangue. Meu pai correu com ela até o hospital e me deixaram com a Dolores, a empregada. Quando voltaram, disseram que era uma irmãzinha, mas que tinha nascido morta. Depois minha mãe foi pra cama descansar e meu pai falou pra eu ficar quieto e não fazer barulho. Eu matutei bastante, mas ainda não sei se fiquei feliz ou não. Já tinha me acostumado com a ideia de dividir o colo de minha mãe com essa outra coisa que estava pra chegar. Mas agora não vinha ninguém, e tudo ia continuar como antes. Acho que foi melhor assim.

    Comecei a imaginar que cara minha irmãzinha teria, mas no meu pensamento só apareceu a imagem da filha do Frankenstein, que eu vi num gibi e era a única menina morta que eu conhecia. Se minha irmãzinha fosse assim, seria muito feia. Ainda bem que ela não nasceu.


  • Por trás do muro azul

    Todos os dias ela saia às 16 horas em ponto. Seu destino era certo, mas ninguém sabia suas motivações. Nem mesmo seu marido, que nunca desconfiou dessas saídas no meio da tarde de Ana Maria. Ela nunca lhe deu motivo para desconfiança, mesmo sendo ainda muito bonita e com corpo esbelto. Devota, mulher prendada e dedicada a ele, Rogério saia tranquilo todos os dias para o trabalho sem nunca imaginar o que acontecia no íntimo de sua quase santa esposa.

    Ana se olhava no espelho de novo, querendo enxergar através dos seus olhos azuis que pareciam estar ficando cinza. Será que ela estava perdendo o brilho? A vida não tinha sido fácil, afinal. Nada a reclamar, pois tinha um bom marido, um belo lar… Ou melhor, uma bela casa. Um lar, para ela, era um lugar repleto de alegria e barulho. E filhos. Coisa que Deus não a permitiu ter. Teria sido mesmo Deus?

    Depois de três abortos eles finalmente desistiram. Seu corpo não aguentava mais, sua alma se dilacerava a cada perda e seus olhos perdiam aquela luz que se acendia a cada resultado positivo. Seu imaginário dançava novamente pensando em nomes, comprando roupinhas, pintando paredes do quarto, mobiliando sonhos. Tinha algo errado com seu útero, alguma doença com nome estranho e nada ficava por ali. Ela sorria por três meses, no máximo. Ficava de repouso, fazia promessas, evitava até beijar o marido para não ter vontades e colocar tudo a perder. Mas nada adiantava. Ela não tinha sido feita para ser mãe.

    Depois da dor quase enterrada, Rogério veio com a ideia de adotar. Tanta gente adota, afinal. Mas não seria a mesma coisa. Ana queria sentir a barriga crescer, seu filho ou filha mexer dentro dela, ter todo um processo de espera, de escolhas, do amor que cresce e transborda junto com a barriga e o leite que escorre quente pelos seios. Por que justo ela não poderia passar por todas as dores e delícias de parir? Será que era seca, como dizia a sua avó? Gente seca normalmente é ruim, pensou ela. Será que sou tão ruim assim?

    Esse pensamento a despertou para a hora. Não poderia chegar atrasada, por favor! Ela precisava estar presente ao seu compromisso, presente e inteira. Tentou se distrair pela rua, pensando em coisas boas. Mas estava especialmente melancólica naquele dia. Vendo flores e enxergando apenas flores, não o perfume, as cores e até os pássaros que cantam ao seu redor como percebem os apaixonados. Era como se previsse algo, com o coração apertado e o pensamento longe. Quase foi atropelada por uma bicicleta, tamanha a sua distração. Ouviu resignada o rapaz raivoso a mandar para lugares inomináveis e seguiu seu caminho. Tinha certeza que no próximo quarteirão se sentiria melhor. Seu compromisso ficava por trás de um grande muro azul e, lá, tudo era perfeição.

    Rogério chegou em casa como de costume às 19 horas e um cheiro bom de feijão vinha da cozinha. Ana Maria estava de costas e ele vislumbrou o corpo da esposa, um típico violão. Belas ancas, cintura ainda finas, os ombros delicados e penugens louras descendo pelo pescoço. Ela prendia os longos cabelos ao cozinhar e sua nuca, nua, ainda arrepiava Rogério como no começo do namoro. Ele a enlaçou pela cintura e lhe deu uma mordida leve no pescoço. Ana se assustou, mas deixou o corpo solto nas mãos do marido. Que susto, querido!

    Voltando seu rosto para ele, o beijo foi inevitável e parecia que o feijão ia queimar também. Há tempos eles não se amavam e a fome se transformou em ação. Talvez já fosse hora de esquecer um pouco as amarguras e deixar a vida mais leve. O corpo de Ana pedia esse carinho, mas as lembranças a impediam de gozar. O sexo era quase sempre um martírio, pois ela nutria esperanças vãs e o fato de não mais poder engravidar tornava tudo estranho ao seu olhar. Não se sentia mãe, mulher, nada. Não se achava nada mais.

    Rogério fechou os olhos e colocou a mão por debaixo da saia de Ana. Com movimentos doces, levou sua mulher a um gozo que ela há muito não sentia. Ficou quase constrangida com o líquido que escorria pela sua perna e tentou se segurar. Mas precisava de mais e trouxe Rogério para dentro de si. No chão da cozinha, como uma adolescente. Ele se espantou com tamanha impetuosidade e foi ainda mais doce, demorando a gozar e fazendo Ana se desmanchar agarrando seus seios com força enquanto jorrava entre suas pernas. Exaustos e satisfeitos, gargalharam com toda a situação: nus, no chão, mal conseguiam se levantar sem o apoio do fogão. Não temos mais idade para isso! Riu Rogério.

    Recomposta, Ana colocou a mesa e começaram a conversar sobre o dia. Ele, todo satisfeito com o trabalho, novos colegas chegando da filial de Salvador e Ana notou uma entonação diferente quando ele comentou sobre uma tal Larissa. Moça nova, trabalhadora e esforçada, dizia ele. É bonita? Ela pensou, mas não perguntou. Bobagem, devo estar na TPM e inventando coisas. Queria contar também sobre o seu dia, mas se restringiu a falar como os preços subiram no supermercado. Daqui a pouco, vamos comer farinha com água, dramatizou. Pratos recolhidos, se aconchegaram no sofá para ver o jornal. Ele, conferindo números e fazendo conjecturas como se o apresentador lhe ouvisse. Ela, pensando em como a noite seria longa até seu compromisso de amanhã.

    No meio da tarde, Rogério liga com a voz histérica querendo respostas. Ana, minha filha, você não pode acreditar. Vamos nos mudar! Mudar como, homem? A filial de Salvador precisava de um bom gerente e nada melhor do que alguém com larga experiência como ele. Acostumada com sua vida em São Paulo, Ana Maria declinou. Não vou mesmo. O que tem pra fazer em Salvador? Rogério se segurou para não dizer: o mesmo que tu faz aqui, mas não queria ofender a esposa. Sabia de toda a sua dor e sempre preferiu que ela ficasse em casa cuidando de tudo. Não por machismo, mas como o dinheiro sobrava, dava para manter muito bem os dois. Quando Ana teve o último aborto, pensou até em sugerir que ela voltasse a ser professora, mas achou que ela talvez fosse ficar deprimida perto de crianças. Ela se fechou no seu mundo, ele teve medo de entrar e dois deixaram as coisas caminharem por si. Mas agora a vida ia mudar!

    Ana desligou o telefone e ficou pensando em como iria tirar essa ideia maluca da cabeça do marido. Que se dane a empresa, ele pode muito bem se recusar a um pedido deles! Não poderia estar tão longe do seu compromisso, da alegria por trás do muro azul. Não aguentaria mais uma perda, não mais. Ia se separar, pronto. Ele que fosse e deixasse ela lá. Tirou logo a ideia da cabeça. Amava Rogério, sem dúvida que amava. E imagina ele em Salvador, solto. Deus me livre! Pensou em esfriar a cabeça e foi tomar banho. Sentiu a água quente descendo pelo corpo. Lembrou-se da noite anterior, os dois no chão da cozinha e seu gozo escorrendo pelas pernas. Sorriu para si. Sim, amava Rogério. Resolveu relaxar e se masturbou. Sentiu cada pedaço do seu corpo como há muito tempo não sentia. Se sentiu bonita. Seu corpo continuava firme, com curvas delicadas, penugens louras nas coxas e se tocou com ardor. Fez amor com ela mesma.

    O muro azul continuava ali, mas ela achava que ele tinha ido embora. Para Salvador, junto com ela, dentro da mala. Chegou no local às lágrimas, como se fosse mudar no outro dia. Que desespero, meu Deus. O que vou fazer? Contar a Rogério? Ele não entenderia. Talvez risse de mim. Por mais encantador e compreensivo que ele fosse, era homem. E como todo homem, era prático. Sentimentos e apegos não eram com ele. Nada que ela falasse ou que precisasse seria suficiente para ele desistir da ideia de Salvador. Será que essa tal Larissa também vai estar lá? Será que é por isso que ele quer se mudar? Que louca eu sou, meu Deus. Pra que pensar tanto? Às vezes queria ter um botão de liga e desliga para simplesmente parar de pensar. Claro que não acreditava que seu marido era 100% fiel. E foi ensinada a entender isso. Homens têm necessidades que as mulheres não têm, aconselhava a sua mãe. Se ele te der uma casa, te sustentar e não te bater, já se de por satisfeita.

    Sua mãe apanhou a vida inteira e é claro que seus pré-requisitos para um homem ideal eram bem baixos. Quando Ana começou a namorar, o único conselho que recebeu da mãe foi para casar virgem. Homem não respeita mulher que já deu. Nem que goste de sexo. Putaria ele faz com as putas. Seja uma mulher direita e uma boa dona de casa. Lhe dê filhos e o resto você finge que não vê. Ana conseguiu se segurar até o casamento, por mais que quisesse muito se entregar para aquele homem que mexia nos seus seios dentro do carro e fazia suas coxas umedecerem. Aquilo era gozar? Toda vez que ela molhava o vestido sentia uma culpa imensa e ficava com medo dele perceber. Tinha vergonha de querer ele tanto e medo dele achar que ela gostava de sexo. Custou a se segurar e fez de tudo para apressar o casamento. Queria Rogério dentro dela, sobre ela, para sempre.

    Na noite de núpcias, Ana Maria se fez a mais bela das mulheres. Depois do casamento na igreja, com direito ao seu pai levá-la no altar com um orgulho besta por ela ainda ser virgem, se refastelaram na festa oferecida pelo seu padrinho, fazendeiro rico do sul de Minas. Sua mãe, mais aliviada do que exatamente feliz – Ana era a última das filhas a se casar, suas irmãs já estavam parindo netos sem parar – eles finalmente foram para o hotel. Ela preferiu assim, passar a noite na cidade antes de embarcar para Buenos Aires. Não se aguentava mais e ficou com medo de morrer virgem no avião. Deus me livre! Colocou a camisola preta que havia comprado escondida – preto e vermelho eram cores de puta – e mais nada. Teve a coragem de não colocar a calcinha que vinha junto e apenas perfumou seus seios e suas coxas para quando Rogério finalmente a tomasse para si. Não tinha mais vergonhas nem pudores. Queria apenas ser do seu homem.

    Rogério continuava imaginando a nova vida em Salvador com um sorriso besta no rosto. Quem sabe Ana não se animava, tomava uma cor e toda noite seria como a anterior? Tinha tempo que eles não faziam amor e Rogério estava quase desistindo da mulher. Pensou até em pagar uma puta, tamanha era sua aflição. Resistiu bravamente às investidas de Larissa, que há tempos debruçava sobre a sua mesa mostrando muito mais do que documentos. Acabou falando o nome dela por puro problema de consciência, como se fosse uma novata. Que Deus me perdoe, mas não queria magoar a esposa. Era o estilo pijamão com muito orgulho. Os amigos até tentavam apresentar mulheres para ele, levar para a caça, mas Rogério era fiel a Ana. Até em pensamento. Desde o primeiro dia que se viram. Ele nunca imaginou sentir aquele amor todo por alguém, mas quando deu de cara com Ana imaginou: Essa mulher vai ser a mãe dos meus filhos.

    Pena que nem tudo que ele pensou para os dois se concretizou. Rogério ficou casto até o casamento, por mais que quisesse dar suas escapadas. Você é muito trouxa, diziam os amigos. A Ana, tudo bem, se guardar para você. Mas tu, Rogério, que já pegou metade de Saquarema? Faça-me o favor! Trouxa! Mas Rogério não queria nem ao menos outro perfume. Dormia e acordava com o cheiro de jasmim de Ana no seu travesseiro e imaginava aquele corpo branco deitado na sua cama. Imaginava a boca de Ana se abrindo para ele, os cabelos deslizando nos seus lençóis e suas pernas longas com aquelas penugens louras se cruzando em suas costas. Como amar outra mulher se ela era tudo que ele um dia imaginou ter? Filha caçula de pai militar, Ana havia sido muito bem criada, frequentado ótimos colégios e tinha um caráter inabalável. Sua mãe sempre se gabava da filha, apesar de levantar suspeitas por várias marcas roxas pelo corpo. A mãe de Rogério dizia que ela bebia até cair, mas ninguém nunca viu nada e Ana continuava sendo o melhor partido da cidade. E foi gostar justamente dele. Que sorte maior ele poderia ter?

    O telefone tocou estridente despertando Rogério das lembranças. Deve ser Ana, mudando de ideia, tão boa ela é. Vai me pedir desculpas por ter pensado o contrário e vai acatar a minha decisão, como sempre. Mas era uma voz de homem, rouca, ameaçadora. Você sabe onde a sua mulher está agora? É melhor ficar de olho! Um frio absoluto passou pela espinha de Rogério. O que seria isso? Uma brincadeira de mau gosto? Mal teve tempo de retrucar e a voz do outro lado havia sumido. Estava tão perdido que nem ouviu o clique do desligar. Estava zonzo, como se houvesse tomado de uma vez só a dose da cachaça da fazenda do seu primo de Minas. Ela desce arranhando a garganta e abre o chão que a gente pisa. Se apoiou na mesa e tentou raciocinar. Que bobagem era aquela? Desconfiar de Ana? Nunca! Olhou para o telefone e pensou em ligar para casa. Claro que ela estava lá, pensando no que fazer para a janta daquela noite, talvez até mesmo pensando em colocar uma lingerie nova para ele, surpresa das surpresas! Mas não custava conferir. Pegou o telefone. Discou. Ridículo, Rogério, ridículo. Não vou ceder ao jogo desse cretino que me ligou, é isso que ele quer. Ridículo. Mas não resistiu. Discou tremendo os números e começou a ouvir angustiado o som do telefone. Chamando uma, duas, 10 vezes. Deve estar tomando banho, pensou. Ligou de novo. Mais uma eternidade. Só pode ter ido ao supermercado. Claro! Rogério já suava frio e começou a imaginar Ana na cama com outro, como em um filme de Luis Buñel. Catherine Deneuve, a bela da tarde, olhava para ele de rabo de olho e dava uma piscada, alisando a perna de penugem loura de Ana enquanto esperavam o próximo cliente. Louco, só posso estar ficando louco.

    Ana Maria saía finalmente pelo muro azul e foi apreciando, de verdade, a paisagem. Como uma apaixonada pela vida. Como quem voltar a respirar. Se sentia bem todas as vezes que saía de lá e o trajeto para casa sempre era mais colorido, mais perfumado, mais feliz. Abriu a porta de casa cantarolando alguma daquelas canções que grudam na cabeça da gente e deu de cara com um Rogério transtornado. O rosto vermelho, como um lobo furioso, começou a pedir explicações. Por onde ela andava, afinal? Pega de surpresa, Ana gaguejou e sentiu o primeiro tapa na cara. Com a força, caiu no chão e começou a chorar. Rogério, ainda mais transtornado e sem saber o porquê de ter batido com tanta força na mulher, não sabia se a ajudava a levantar ou se dava outro tapa. Perguntou de novo onde ela estava, mas Ana mal conseguia mexer o maxilar. Ele se aproximou, e sentindo o cheiro do perfume e o vermelho do batom da mulher, não titubeou. Deu outro tapa e saiu. Vagabunda!

    Ana ainda segurava o rosto quando percebeu que o marido havia saído e se levantou. Ela tinha sangue nos lábios, talvez tivesse mordido a boca durante a briga. Não reconheceu naquele monstro o marido que havia passado por tanta coisa com ela. Um homem bom, educado, quase casto, como sua mãe mesmo dizia. Rogério era de família rica, nunca precisou se esforçar muito para ter o que queria. Seu pai, médico paulista renomado, sempre fez gosto com o casamento, enquanto a mãe teimava em achar defeitos em Ana. Como não conseguia nada, começou a atacar sua mãe. Inventava que a Dona Vivi bebia até cair, por isso vivia roxa. Mal sabia ela que cada roxo era um soco que o pai de Ana desferia quando ela se recusava a algo. Ou simplesmente por existir. Militar reformado, comandante Reis era duro com as filhas e insuportável com a mulher. Queria tudo perfeito, da cama até os pratos na cozinha. A comida tinha hora marcada, tempero certo e a hora da refeição era sagrada. Não podia ter conversa, barulho, os cotovelos para fora da mesa e até o jeito de pegar no talher era inspecionado por ele. Todas as filhas o temiam e nenhuma se lembra do seu abraço. Dona Vivi se resignava pela vida, dando desculpas pelo roxos, ouvindo maledicências e descobrindo, aqui e ali, os casos do marido pelos puteiros de Carmo do Rio Claro. Ela e todas as esposas da época.

    Ainda zonza, Ana Maria resolveu se levantar e entender o que havia acontecido. Aonde ela estava, era isso que ele queria saber? Meu Deus, será que alguém havia descoberto? Mas, se sim, seria motivo para tanto ódio de Rogério? Ficou com medo do retorno dele e resolveu sair de casa, pelo menos até entender o que havia acontecido. Juntou algumas roupas, calcinhas e cremes, ligou para uma das poucas amigas que ainda tinha e se foi. Nem um bilhete deixou, ele realmente não merecia. Ou melhor, ia deixar o número da casa da amiga. Melhor. Melhor? Não, não ia deixar nada. Ligaria no outro dia para o escritório, isso sim. Bateu a porta e pegou um ônibus até a Vila Mariana. Assim que entrou no pequeno apartamento, deu de cara com o rosto boquiaberto da amiga. Ela havia esquecido o quanto deveria estar roxa, pois a sua pele branca havia sido alvo de dois fortes tapas. Meu Deus, é por isso que todos me olhavam no ônibus, pensou. Vamos agora mesmo para uma delegacia, ele não pode fazer isso com você! Não, não precisa. Ele estava fora de si. Ainda não sei o que aconteceu. Deve haver uma explicação. Para isso? Acredito que não!

    Depois de andar como um zumbi pelas ruas, Rogério tomou coragem de voltar para casa. Meu Deus, porque tinha batido em Ana? Nem ao menos perguntou nada, nem esperou ela se defender. Talvez se ela não tivesse chegado cantando, toda feliz como uma mulher no cio, ele tivesse conseguido pensar. Mas ela estava linda, cheirosa, satisfeita…Claro que estava me traindo, claro! E voltou sem compras, então nada de supermercado. Vagabunda, era o que ela era. Meu Deus, mas não era possível. Eles tinham se amado na noite anterior, era real aquilo. E Ana nunca gostou muito de sexo, não teria porque trair. Será que ela estava apaixonada por outro? Mas quem, meu Deus, quem? Agora que ela está acuada, vai ser difícil descobrir alguma coisa. Por isso que ela não queria ir para Salvador, claro. Que burro eu fui, achando que ela era apegada a cidade, as amigas…Tinha macho na parada, é claro! Burro, meu Deus, burro. E ainda sendo fiel, resistindo a Larissa, sem pegar nenhuma puta, respeitando uma vagabunda…Burro!!!

    A noite, Ana não conseguiu dormir. Ainda tinha muita dor no rosto, por mais que sua amiga tivesse lhe dado 2 analgésicos. A dor era muito mais profunda e ela estava tentando montar as peças de um quebra cabeças bizarro. Tinha certeza que alguém deveria ter feito fofoca com Rogério, inventado algo para lhe desmoralizar. Quem? E porque? Rogério deveria estar pensando que ele o estava traindo, mas nunca poderia ter tido aquela reação, meu Deus. Ela, que sempre foi uma esposa devota, nunca lhe deu motivo para desconfiar de nada. Como ele poderia ter pensado isso dela? Ia ligar, com certeza, para o escritório. Com calma, tentar entender tudo. Depois? Não sei. Estava muito confusa ainda. Será que ele sentia falta dela? Será que já tinha voltado para casa? Deve ter ido pegar mulher, claro. E ainda ia se justificar, inventando uma traição dela. Canalha. Bruto. Preciso dormir. Ainda não sei se vou ligar.

    Em casa, Rogério só encontrou o vazio. Nada de Ana, de jantar, de nada. No quarto, poucas roupas e o cheiro de jasmim na penteadeira. Levou o perfume para o outro, vagabunda. Nenhum bilhete dava conta do paradeiro de Ana e Rogério entrou em desespero. Poderia estar sendo estúpido o bastante perdendo sua mulher sem nenhum motivo? Mas, por que então, ela havia saído de casa? Deve ter montado casa com amante, claro! Meus Deus, estou ficando louco. Preciso encontrar minha mulher. E se tudo tiver sido um grande mal entendido, como ela poderá me perdoar? Eu bati na minha mulher, meu Deus. A noite ia ser longa e Rogério nem tinha certeza se gostaria que o dia chegasse.

    Mas o dia veio e com ele novas dores no rosto de Ana. Com as bochechas inchadas e o coração aos pulos, ela ainda não sabia ao certo o que fazer. Olhou no relógio. 07:15. Dormiu mais do que achou que conseguiria. Com certeza foram os analgésicos. Pensou em fazer o café para amiga, se vestir e ir de encontro a Rogério, ainda em casa. Mas teve medo. Não sabia se ele ainda estava com raiva e nem ao menos o porquê. Imaginou o marido no puteiro, chegando em casa com cheiro de álcool e perfume barato de mulher, como tantas vezes viu seu pai entrar em casa de manhã antes de alvejar sua mãe, que ainda se dava ao trabalho de fazer o café para o seu carrasco. Tentou apagar a imagem suja da cabeça e pegou o telefone. Vou ouvir a voz dele primeiro, para sentir o seu ânimo. Seria melhor assim.

    Do outro lado da cidade, Rogério, ainda de camisa e gravata, se revirava no sofá. Não teve coragem de dormir na cama que foi, durante tantos anos, o local de encontro com Ana. Do amor com ela. Das negativas e tentativas frustradas durante os meses após os abortos. Ele sempre respeitou a dor da mulher, ficava imaginando a sua tristeza, o seu sofrimento. Até parava de pensar em sexo. Burro! O telefone tocava ao fundo e ele levantou ainda cambaleante com a cabeça zonza de raiva e culpa. Quem poderia ser tão cedo? Será que aconteceu alguma coisa com ?Ana? Meu Deus, o que ele teria feito? Era ela. A voz calma, perguntou com ele estava. Falsa, vagabunda. Como poderia estar o novo corno da cidade? Ótimo, claro! Ana não riu e ignorou o sarcasmo do marido. Ele parecia mais calmo, mas talvez fosse ainda pelo efeito do sono. A voz estava embargada e é claro que ele passou a noite na gandaia. Filho da puta. De qualquer maneira, precisamos conversar. Conversar? Pra que? Acho que devemos explicações. Podemos almoçar como pessoas civilizadas. Cretina, quer me contar o caso e ainda levar meu dinheiro. Claro, vamos almoçar, mas já vou avisando: Já falei com meu advogado.Tanto faz. E Ana desligou.

    Rogério tomou um banho rápido e foi para o escritório. Não tinha cabeça para nada, mas notou um burburinho incomum quando chegou na empresa. Não sabe o que aconteceu? Larissa foi encontrada morta em casa. Estão desconfiando do ex marido. Ele era muito ciumento, parece que nunca aceitou o fim do casamento e jurou acabar com a vida de todo mundo que ela dava em cima. Rogério sentiu o mesmo frio que gelou a sua espinha no momento do tal telefonema. Seria a mesma voz? Lembrou do tal ex marido de Larissa, um homem alto, forte, com jeito de poucos amigos. De vez em quando ele dava um perdido na porta da empresa, esperava Larissa sair e a pegava pelo braço, tentando colocá-la no carro. Ela esperneava e as vezes apelava para Rogério, que saia em defesa da menina, dando um chega pra lá no armário em forma de gente. Invariavelmente o grandão cedia, mas nunca sem antes soltar, em tom ameaçador: Vai cuidar da sua mulher, senão eu cuido! A voz, era sim, a mesma do tal telefonema. Será que ele estava seguindo Ana? Meu Deus, que loucura! Será que ele desconfiava dos dois? Rogério correria perigo? Mais essa,agora. Já não bastava ser corno agora era alvo. Nem teve tempo de ficar consternado pela morte de Larissa. Era um problema a menos afinal.

    Na hora do almoço, Ana se dirigiu para a porta do escritório do marido. Marido, ainda? A cabeça estava confusa e não sabia se conseguiria perdoar Rogério. Será que suportaria seu toque novamente? Será que ele ainda a desejaria? Que idiota, meu Deus. Ela havia apanhado, ele era um escroto, porque se sentia culpada? Não tinha feito nada, nunca fez. Pensou, claro. Se sentiu atraída várias vezes por outros homens, mas nem se sentia mais tão pecadora assim, apesar de ter aprendido a pedir perdão até por pensamentos impuros durante a catequese com dona Ondina. Quase freira, Maria Ondina desistiu de entrar para o convento para ensinar crianças a amar e respeitar a Deus sobre todas as coisas. Será que ainda estaria viva? Meu Deus, precisava ir a Carmo do Rio Claro visitar as pessoas, sua família, sua mãe. Será que iria ao túmulo do seu pai? Vontade não tinha, acho que jamais havia rezado nem ao menos pela sua alma. Duvido que ele tivesse uma também.

    Com um cumprimento estranho, dois beijinhos desajeitado, eles se uniram por poucos segundos e foram caminhando até o restaurante mais próximo. A comida era só um pretexto, Ana queria mesmo era um local público para se sentir segura. Rogério estava aparentemente calmo, talvez até dopado. Será que ele bebeu cedo assim? Mas não, parecia um torpor infantil, como quando adormecemos após chorar por horas a fio. Como que acomodado, resignado com um fato. Pediram os pratos, ele pediu cerveja e ela, água Queria estar sóbria, lúcida pra falar e ouvir. Tomou coragem e começou com um por quê? Ele a olhou como quem tem vergonha de si e contou tudo que tinha passado nas últimas horas. Falou da desconfiança, do ódio, do arrependimento, das lembranças boas, do medo de perder a mulher da sua vida. Pediu perdão com as mãos sobre as dela e chorava feito uma criança perdida dos pais. Mas em momento algum perguntou o que ela estava fazendo no dia anterior. Não se sentia digno de saber algo além do que ela quisesse contar. Entendeu que foi vítima de uma cilada e não queria mais sofrer. De repente, Ana se sentiu mãe do seu próprio marido. Nunca o tinha visto tão frágil, tão bobo, tão desprotegido. Era como os fetos que ela colecionava nas estantes da sua dor, cada um com um nome e sexo. Seus filhos e filhas que ela nunca pode colocar no colo, ninar, amamentar. De repente, ela se deu conta que só queria ir para casa com Rogério, se despir para o marido e deixar ele sugar seu leite e seu gozo como em sua noite de núpcias. E dormir feliz esperando o dia trazer o que há por trás do seu muro azul.


  • A cena vencedora

    Um casal de velhinhos com a roupa encharcada de merda e vergonha caminha com esforço pela calçada, esgueirando-se pelas paredes. Os dois vão para casa e querem chegar logo. As pernas não ajudam e eles percebem isso. Olham para os lados, que ninguém os veja no estado em que estão. Balbuciam palavras um ao outro, procurando entender o que tinha acontecido. O operário da prefeitura, responsável pela obra, ia atrás deles explicando, quase em prantos, o lamentável acidente: o cano do esgoto estourou, eles estavam passando justo naquele momento, a merda se espalhou, a culpa não foi dele nem de ninguém, ele sentia muito, estava com a alma e o coração destroçados, pediu perdão. Juntou gente para olhar.

    O jato de merda inundou o rosto e o cabelo da velhinha, manchou os óculos e as calças do velhinho, merda e mais merda pelo corpo inteiro dos dois, mãos e bengalas. Eles olharam para o vazio e pensaram numa maldição ou num castigo que tivesse caído do céu em forma de sujeira. Não merecemos, ela disse. Não se faz isso com gente da nossa idade, ele ecoou. Desorientados, sentiam-se incapazes de cuidar um do outro. E essa casa que não chega nunca?

    A filha os recebeu com o espanto na boca aberta e no nariz tapado. A gente vinha do médicotinha reforma no prédio da prefeitura, balbuciou a velha. Não precisa dizer nada, filha, pediu o velho, a gente já vai se limpar. Foram os dois para o quarto, passo a passo sob o peso insuportável da vergonha. Lá dentro, sozinhos, sentaram-se na beira da cama e abaixaram a cabeça, humilhados. Começaram a se livrar das roupas fedorentas com a dificuldade e a lentidão que só os velhos muito velhos têm. Houvesse em algum lugar do mundo um concurso de tristeza, essa cena certamente seria a vencedora.


  • A poeira branca

    O professor mandou que eu entregasse um bilhete pra minha mãe. Antes li o que estava escrito: dizia que precisava falar com ela porque eu estava com as notas baixas, não sabia a lição, estava com dificuldade para aprender e andava muito distraído. Deixei o papelzinho sobre o criado-mudo, perto do copo de leite que eu tinha posto lá de manhã. Ela não bebeu. Olhei pra minha mãe jogada na cama, o cabelo sem lavar e o rosto amarelado, e pensei em quanto tempo ela ainda ficaria desse jeito.

    Esquentei no micro-ondas a lasanha congelada que comprei no supermercado e comi a metade. Coloquei a outra metade ao lado do copo de leite, mas eu sabia que ela não iria comer.

    Minha mãe segue igual, com os olhos vermelhos, que olham sem ver, e com o cabelo, que não brilha mais, esparramado em cima do travesseiro. O quarto tem cheiro de suor. Disse que iria abrir a janela para entrar ar fresco, ela gritou que não, não queria, que deixasse como estava. Que era melhor não ver o sol. Que, se não visse o sol, seria como se o tempo não tivesse passado e tudo estivesse como antes. Não achei isso certo.

    Eu sei que os dias passam, vejo no calendário, vejo quando saio de manhã pra ir à escola, vejo as pessoas na rua. Então eu sei que o tempo não para nunca e um dia sempre vem depois do outro. Eu vejo que a máquina de lavar tá cheia de roupa suja e que na pia não cabe mais nem um prato, e por isso eu sei que o tempo passou e não aconteceu nada. Mas a minha maior certeza dessa passagem é quando percebo a tristeza que tá em cima dos móveis. A tristeza é uma poeira branca que dança no ar e se deita sobre qualquer superfície. Tá nas paredes da casa, nos lustres e nas cortinas. No começo achei divertido, eu podia escrever sobre o tampo da mesa com a ponta do dedo, minha mãe tá triste, mas, no dia seguinte, não se podia ler as palavras escritas porque havia mais tristeza em cima delas, quer dizer, mais poeira.

    Não me lembro do último dia que minha mãe fez comida, que me ajudou a fazer os deveres, que conversou comigo ou que vimos juntos um filme na televisão à tarde, esperando meu pai chegar do trabalho. Desde que ele foi viajar com aquela colega do escritório ela só fica deitada, dormindo ou olhando pro teto sem falar nada. O professor falou que tiro notas baixas porque eu me distraio muito na sala de aula. É que não consigo deixar de pensar que um dia essa poeira branca vai cobrir a casa inteira, vai cobrir minha mãe deitada na cama e vai me cobrir também. E, quando meu pai chegar da viagem, a tristeza vai ser tanta e vai estar por todo lado, cobrindo tudo, que ele não poderá ler volta, pai que escrevi ontem com o dedo na tela escura da televisão desligada.

  • Sérgio e a coroa de flores

    Nem eram tão amigos assim. Colegas de trabalho, se cumprimentavam cordialmente, participavam das mesmas rodinhas de café, talvez tenham se encontrado em um ou dois “happy hours.” E só. Mas o desespero e a dor têm o dom de aproximar os desavisados e foi nesse momento que Sérgio assinou o seu destino.

    Ficou sabendo que o tio de Cleide havia falecido no dia anterior e foi prestar condolências. Ela, ainda com os olhos inchados do choro da véspera, tentava se fazer de forte. Talvez pela distância da família – o falecido morava em uma cidadezinha na Paraíba – ou por ter o tio em alta consideração – Era como um pai para mim, ela repetia – que o rosto ainda não tinha se recuperado de todo o sofrimento.

    – Se puder fazer algo pela senhora, conte comigo!

    – Jura, sr. Sérgio?

    Claro! Amigos são para essas coisas.

    Não era amigo, mas não podia ver uma mulher fragilizada.

    – Então vou pedir! Sei que o senhor está indo para a Campina Grande e o enterro do meu tio será em uma cidadezinha ao lado. Será que o senhor pode levar uma encomenda? É de toda família!

    – Claro, dona Cleide. Mas embarco amanhã cedo.

    – Encontro com o senhor no aeroporto, pode ser?

    – Claro. Mas não posso ir nessa cidadezinha…

    – Minha tia vai encontrá-lo no aeroporto, pode ficar despreocupado!

    Pelo menos ele não precisaria passar na casa dela para buscar a tal encomenda. Tem tanto folgado por aí!

    Sérgio planejava essas férias há muitos anos. Tinha o sonho de conhecer o São João de Campina Grande. Sempre via na TV aquelas roupas coloridas, as danças frenéticas, a animação do povo. Mas sua mulher nunca quis saber de viajar tanto para ver o tal arraiá. Agora, separado, não se fez de rogado. Ia passar os 30 dias do mês de junho se inebriando de quitutes e São João. Sua mala estava repleta de camisas xadrez e ele até tinha ensaiado uns passinhos.

    Às 7 da manhã Cleide já o esperava no portão para a sala de embarque, sem chance para negativas. A encomenda era uma coroa de flores, “SAUDADES ETERNAS DA FAMÍLIA SILVA”, para o tio falecido na Paraíba. Sérgio achou que era o sono que estava lhe pregando uma peça, mas a imagem de repente se formou em toda a sua plenitude de cores e letras douradas.

    – Muito obrigada Seu Sérgio. Nem sei como agradecer.

    Virou as costas e se foi, por pressa ou por medo da recusa de Sérgio, que ficou lá parado sem entender como iria carregar aquele trambolho. Pensou em jogar fora e comprar outra ao chegar no destino, mas ficou com medo de ter o pé puxado pelo defunto, Seu Ismael.

    Resolveu encarar a missão e os olhares dos outros passageiros. Virou os dizeres para si, como se acreditasse em mau agouro e foi andando na fila como se os cochichos não fossem para ele. Quando finalmente chegou na entrada do avião, teve que se explicar para a aeromoça, que exclamou, assustada:

    – Em 20 anos de carreira nunca vi ninguém tão pessimista!

    Sérgio sorriu, constrangido:

    – Não, minha senhora. Isso é um favor que fui praticamente obrigado a fazer. É para o enterro do tio de uma conhecida. Nem amiga é. Mas não tive como negar. Ou não pude, já nem sei mais.

    – Não sei se ela vai caber no bagageiro.

    – Levo na mão, no colo, sei lá. Só quero chegar logo em Campina Grande e ficar livre disso.

    A aeromoça usou todos os seus anos de treinamento para conseguir deixar a coroa de flores em um lugar que não incomodasse nem assustasse ninguém. Foi em vão. Ela parecia querer escapar do bagageiro e quase acertou uma senhora que ia se sentar na poltrona confort. Quando a coroa de flores se abriu exibindo todos os lírios e girassóis, metade dos passageiros se levantou. Queriam embarcar em outro voo imediatamente, que brincadeira era aquela? A outra metade, talvez a dos mais corajosos, começaram a rezar.

    Finalmente, ânimos acalmados, coroa de flores ajeitada, levantaram voo para Campina Grande. Com toda a sua experiência em viagens de avião, Sérgio poderia dizer tranquilamente que aquela talvez tivesse sido a mais tranquila. Sem turbulência, céu de brigadeiro do começo ao fim e nem ao menos uma criança para chutar a sua cadeira ou uma senhora nervosa para lhe pedir que segurasse a sua mão. Paz, absoluta paz. Chegou a cogitar que a coroa de flores, era, na verdade, um amuleto da sorte. Teria certeza logo mais.

    O avião pousou no horário marcado sem maiores problemas. Sérgio esperou todos saírem para tirar a coroa de flores já amassadas e não atrapalhar mais ninguém. Despediu-se com um muito obrigado a todos da tripulação e quase se esqueceu que ainda teria que entregar o trambolho para a tia de Cleide. Qual era mesmo o nome dela?

    Nem precisou se lembrar. Assim que saiu do portão de desembarque se deparou com uma senhora que era a cópia de Cleide em tamanho reduzido. Tinha o mesmo rosto inchado da sobrinha, onde o choro tinha feito morada havia pouco. Só algumas rugas a mais e maquiagem de menos.

    – Seu Sérgio?

    – Sou sim. A senhora é a tia da Cleide?

    – Sim senhor. Prazer, Antônia. Nem sei como agradecer por trazer essa coroa de flores. Meu marido ia ser enterrado sem nada, não fosse a minha sobrinha.

    Se sentiu quase um santo ao perceber a importância do seu favor. Passou a coroa de flores para Antônia e segurou o riso quando elas ficaram praticamente na mesma altura. Despediram-se com um aceno cordial e Sérgio ficou observando aquela senhora, já idosa, levar aquela coroa de flores como se fosse um fardo.

    – Dona Antônia, deixa eu te ajudar!

    Pegou a coroa com uma das mãos e viu o corpo de dona Antônia se endireitar. E lá se foram dois completos desconhecidos para o local do velório de Seu Ismael em uma cidade chamada Coxixola. Pertinho, segundo ela.

    Duas horas mais tarde, algumas trocas de palavras sobre o tempo, a vida no Sul – para os do norte, Rio de Janeiro é o Sul – e o excesso de calor, estavam no único cemitério da cidade. Lá os esperavam um coveiro sonolento, um cachorro caramelo e talvez toda a cidade de Coxixola, que não tinha mais do que mil habitantes. Parecia que o tal Ismael era um homem muito bom, querido por todos. Parecia.

    Só que na verdade, Ismael tinha três famílias e todas estavam presentes, com as referidas viúvas, seus filhos, netos e até um bisneto! Dona Antônia parecia ser a matriz, pois foi a única que teve o direito a rezar e a colocar a coroa de flores sobre o caixão de madeira clara. As outras duas viúvas, um pouco mais novas, estavam ao seu lado, em sinal de respeito. Uma chorava alto, pedia para ir junto, dizia que a vida não tinha mais sentido. A outra, que Sérgio descobriu ser a preferida, era mais contida, quase elegante.

    Em torno desse núcleo de mulheres, outras pessoas choravam e se lembravam das façanhas do Seu Ismael. Bom violeiro, não perdia uma festa. Era bom de gole e de dança. Cantava como ninguém. Torcedor fanático do Campinense, não perdia uma final do Paraibão. Tratava a todos com o mesmo respeito e dizia que só traia por amor. E como amou seu Ismael!

    Sérgio foi ficando. Estava gostando de ouvir os casos, beber uma para o santo, espantar as muriçocas. Sem perceber, ele estava já na procissão para o enterro, o adeus final a Ismael, segurando uma das alças do caixão. Se envolveu com aquela gente, com o sofrimento misturado com o calor e as lembranças. Lembranças que eram também suas, de tantos velórios e despedidas. Seu pai, que se foi ainda novo, deixando expectativas demais e presença de menos. Sua mãe, que o criou sozinha e que talvez tenha
    sobrevivido apenas pela responsabilidade que lhe caiu de repente nas costas. Seus avôs, alguns amigos, tanta coisa que ficou sem aquele depois que esperamos, sem nunca ter a certeza de que irá mesmo acontecer…

    O enterro aconteceu ao pôr do sol, uma cena linda e comovente. O sol desaparecia ao mesmo tempo em que seu Ismael deixava a superfície e voltava para a terra, sob o choro desesperado de todas as suas mulheres. Dizem que nesse momento a certeza da perda é avassaladora e não teve elegância que segurasse a dor. Os choros. De todos. Alguns amigos estavam com uma camisa que trazia o rosto sorridente do amigo e a frase

    – “Eu bebo sim, estou vivendo” na frente e “Tem gente que não bebe e está morrendo” nas costas. Seria irônico se não fosse trágico.

    O dia se findou e só aí Sérgio se deu conta de que estava longe de onde havia reservado o hotel. Duas horas, para ser exato. E em uma cidade com mil habitantes, quais seriam as opções de hospedagem? Precisou interromper dona Antônia na fila dos cumprimentos e pedir informações.

    – Imagina, seu Sérgio. O senhor fica lá em casa!

    – Não quero incomodar, a senhora está de luto. Nem fica bem.

    – Então fica na casa da minha sobrinha. Joana, chega aqui!

    Ainda sem entender como não tinha reparado naquele pedaço de mau caminho, Sérgio deve ter ficado um bom tempo de boca aberta até a tal sobrinha se apresentar. Tanto que Antônia lhe deu um cutucão e um aviso:

    – É bonita, mas não é desfrutável. Tome tento!

    – Claaaaaro, dona Antônia. Por quem me toma?

    – Não te tomo por ninguém, nem lhe conheço. Mas quem faz a lei aqui é o pai dela, o delegado Tonhão, meu irmão. Então, avisar não ofende. E faz bem para os dentes.

    Ciente da situação e dos limites, Sérgio foi para casa de Joana com pensamento fixo em uma só questão: o celibato. Era isso. Durante toda essa noite, seria como um padre. Se tantos conseguem durante anos,
    como ele não conseguiria durante algumas poucas horas?

    Mas não era bem assim. Joana iria no dia seguinte para Campina Grande, trabalhava – adivinha onde? – no mesmo hotel que Sérgio iria se hospedar. Claro que ele não sabia de nada disso e dormiu feito um bebê, feliz por resistir àquela tentação e já planejando a sua maratona de festas em Campina Grande.

    No dia seguinte, tomaram café juntos. Ela com uma camisola rosa, rendada, com lacinhos em lugares estratégicos. Ele, rezando baixinho um Pai Nosso e o credo, já estava todo vestido e de mala em punho para não dar sorte para o azar.

    – Já vai? – a deusa disse com aquele sotaque delicioso e arrastado, como se nem mesmo as palavras tivessem acordado ainda.

    – Sim. Na verdade, nem era para estar aqui.

    – Ah, diga isso não…Quem sabe era aqui mesmo que o senhor deveria estar?

    A lógica do povo do nordeste era mesmo diferenciada. Eles simplesmente aceitavam as coisas como eram entregues. Ai dele se pensasse assim.

    – Querer eu queria, mas já perdi um dia de reserva do hotel.

    – Qual hotel?

    – Estou no Garden.

    – Coincidência…Trabalho lá.

    Jesus, só podia ser uma provação.

    – Que bom…então, obrigada pela hospedagem, já vou.

    – Vá não…espere um pouco que vou com o senhor.

    Sérgio começou um Salve Rainha e embalou uma Ave Maria, porque no desespero quem salva é Nossa Senhora. Joana foi tomar banho com aquela calma que lhe era peculiar e o cheiro de alfazema inundou a casa. Ela saiu do banheiro envolta em uma tolha também rosa como se ninguém estivesse por perto e seus cabelos molhados pareciam envolver todo o seu corpo e o mundo todo. Sérgio apenas ficou sentado em uma das cadeiras dispostas em volta da mesa como uma criança de castigo. Não conseguia largar a mala e sua mão suava tanto quanto a sua testa. Não era mais calor, era desespero.

    Mas, se já está no inferno, que abrace o capeta. Sérgio então esperou a moça se arrumar, levando o seu pensamento para qualquer coisa que não fosse a imagem de Joana nua escolhendo uma roupa no armário ou passando um batom nos lábios. Ou apenas nua, o que já era suficiente para tirar Sérgio e qualquer outro homem do prumo.

    Depois de alguns minutos que pareciam eternos, Joana apareceu ainda mais linda e perfumada. O carro que Sérgio havia pedido já esperava lá fora e nem mesmo o motorista, que buzinava inquieto, conseguiu ficar imune ao encantamento que era ver Joana envolta em alfazema e cor de rosa. Parecia que tudo que ela vestia e usava tinha aquela cor.

    Entraram no carro e foram os dois, no banco de trás, trocando palavras soltas. Sérgio tentava contemplar a paisagem, fazer planos em cadernos imaginários. Pensava em planilhas com datas e horas para as festas, as roupas, o que iria comer e beber. Queria esquecer que Joana estava bem ao seu lado, ainda com os cabelos molhados e a perna roçando na dele a cada curva da estrada. De repente, um cachorro cruzou na frente do carro e a parada brusca fez Joana ir inteira para o seu colo. Seu vestido se levantou, alcinhas saíram do lugar e coxas e seios pularam como pedindo abrigo. A voz de Dona Antônia parecia ecoar em seus ouvidos:

    – Não é desfrutável!

    Joana se recompôs, o cachorro seguiu seu caminho e Sérgio voltou a fazer planos em notas imaginárias, mas os seios de Joana agora já eram uma realidade e nada mais conseguiria ter mais a sua atenção.

    Na entrada do hotel se despediram. Ele foi rapidamente para o seu quarto enquanto Joana foi se trocar para começar o dia de trabalho. Sérgio tomou um longo banho e deitou-se na cama espaçosa. Ainda não se acostumara a dormir sozinho, mas acreditou que seria uma questão de tempo. O fim do casamento ainda era uma ferida aberta, mas como toda cicatrização, só precisava de tempo para acontecer. “O tempo cura tudo” é uma das maiores verdades que a gente escuta por aí.

    Consultou a programação do dia e viu que as festas juninas só começariam depois das 18 horas. Resolveu então conhecer o hotel, tomar um banho de piscina, relaxar. Ainda era cedo, depois pensaria no almoço. Não queria ter hora para nada. Estava de férias, afinal.

    Assim que chegou na área de lazer do hotel, reconheceu aquele cheiro de alfazema. Joana estava a postos, com seu uniforme de camareira, entregando toalhas para os hóspedes. O hotel estava lotado, famílias inteiras estavam lá pelo mesmo motivo de Sérgio: conhecer o famoso São João de Campina Grande. Tentou disfarçar e procurou uma cadeira bem longe da confusão e de Joana. Que eram praticamente sinônimos. Tirou o roupão e tentou relaxar. Pegou o livro da vez e começou a se concentrar
    na história, enquanto crianças de todas as idades pulavam incessantemente na piscina a sua frente. Ele não teve filhos e naquele momento achou a decisão bem acertada. Era um show de descontrole
    quase animal. E os pais pareciam ignorar as crias, bebendo e conversando a uma distância segura. Para eles!

    Enquanto pensava no que fazer para se ver livre daquele barulho, Sérgio não percebeu Joana se aproximando com uma toalha nas mãos. Ela conseguia ficar linda até de uniforme e disse, com aquele sotaque preguiçoso e ardente:

    – Trouxe uma toalha para o senhor. Quer mais alguma coisa?

    Ele queria, ah como ele queria! Queria Joana inteira, com cheiro de alfazema e calcinha rosa na sua cama, todos os dias e para sempre. Queria encarar delegado, dona Antônia, padre e polícia por causa daquela doçura endiabrada. Mas não podia, não podia…Não queria!

    – Quero não – ele respondeu, já imitando o sotaque de Joana sem querer.

    – Querendo, é só chamar.

    Vou ficar querendo, ele pensou.

    Depois do almoço farto e de uma cochilada revigorante, Sérgio estava pronto para a sua primeira festa de São João em Campina Grande. A tão sonhada noite que ele planejava desde a sua separação. A atração da festa seria Elba Ramalho, que subiria ao palco depois da primeira apresentação de quadrilha da cidade. Estava eufórico como criança em noite de Natal. Tinha medo de que suas expectativas fossem maiores do que as realidade que lhe aguardava logo mais. Mas se surpreendeu mais do que poderia
    imaginar. Aprendeu que era “estribado”, mesmo com outros homens “mangando” do seu sotaque. Só os homens. De pura inveja mesmo.

    Pois Sérgio era um belo carioca, com sotaque malando e olhos verdes do mar de Copacabana em dia de ressaca. Fazia esportes na praia diariamente antes do trabalho e mantinha um belo bronzeado. O banho
    de mar era sua religião e seu estilo de vida só não era mais descolado porque tinha que bater ponto. Tirando isso, era o mais belo exemplar de toda ginga esperada de alguém nascido na cidade maravilhosa. E é claro que tudo isso foi detectado pelas mulheres de Campina Grande. Por onde Sérgio passava, ganhava mais do que comprava. A cerveja vinha com um carinho na mão, o espetinho com um olhar malicioso, o curau com um bilhetinho, o mungunzá com o telefone da menina que servia o quitute, o beijinho com a promessa de mais…Era tanto sucesso que Sérgio já nem se lembrava mais de Joana. Ou pensava que não.

    Em 28 dias de festa, Sérgio conheceu tantas mulheres, beijou tantas bocas, se fartou entre tantas pernas, se inebriou em tanto cangote, dançou tanto xote, que o cheiro de alfazema parecia ter desaparecido entre os mais variados cachos e ventres. Ele aparecia apenas na hora da toalha, na piscina, onde a cada dia Joana abria mais um botão da blusa e se curvava com mais empenho, sabendo exatamente o que mostrava e o que ainda queria esconder.

    Mas no último dia de festa, Joana apareceu cedo no quarto de Sérgio. Bateu na porta oferecendo serviço de quarto, que ele não pedira. Mas abriu a porta mesmo assim, sonolento, exausto, ainda com o gosto da
    mulher da noite anterior na boca. Manuela era seu nome. Manu. Talvez a mais fogosa que ele já tinha conhecido. Quase certeza.

    – Bom dia Seu Sérgio. Pediu café da manhã no quarto?

    Ele nem teve tempo de pensar na resposta e Joana já foi entrando no quarto empurrando o carrinho com os mais variados e exóticos quitutes. Seu cheiro de alfazema se misturava aos aromas daquelas delícias e Sérgio não sabia o que o estava deixando mais louco.

    – Joana, eu não pedi nada.

    – Mas eu lhe trouxe mesmo assim. Tem quase um mês que lhe quero e toda noite lhe vejo bulindo outra rapariga na festa. Tudo garapeira amostrada! O que lhe fiz, homem?

    Sérgio ficou sem ação e sem entender metade das palavras que ela dizia nervosa e com raiva. Ela lhe queria?

    – Sua tia me disse para não encostar a mão em você, Joana. Precisava lhe respeitar, você é donzela.

    – Que donzela nada! Sou moça de família, mas já perdi o cabaço tem tempo. E o senhor tá me deixando abilolada fugindo de mim assim.

    O rosto de Joana enfurecido de tesão, aqueles aromas invadindo o quarto, o calor que ele não sabia mais distinguir de onde vinha, os seios que ela mostrava pouco a pouco todos os dias…Sérgio simplesmente não queria mais resistir.

    Se aproximou de Joana como se estivesses prestes a cometer a maior loucura de sua vida. A encarou como quem desiste de viver e simplesmente se entregou ao beijo. Seus lábios pareciam arder e Joana, rainha agora do seu servo, não se fez de rogada. Terminou de abrir os botões da blusa e deu a Sérgio tudo que ele esperava há quase um mês. Ela, de calcinha cor de rosa e encharcada de alfazema. Sérgio não reagiu. Travou no meio daquele furacão moreno e cor de rosa e brochou. Miseravelmente. Não sabia o que fazer. Talvez o cansaço pela noite anterior, talvez o excesso de desejo por Joana. Simplesmente brochou.

    Joana não podia acreditar no que via. Aquilo nunca tinha acontecido com ela e, até aquele dia, também não tinha acontecido com Sérgio. Tentaram de tudo. Joana rebolou, brincou, inventou. Nada. Desolado e constrangido, Sérgio não sabia mais o que falar ou fazer. Joana, revoltada com aquela desfeita homérica, se recompôs e foi embora batendo a porta levando com ela seu cheiro de alfazema.

    Com todo aquele fuzuê, Sérgio tinha perdido a noção do tempo e precisou se apressar para não perder o avião. Fez rapidamente a mala, com a certeza de que não teria surpresas na bagagem para levar de volta ao Rio. No trajeto até o aeroporto, foi pensando no que poderia ter acontecido. Cansaço, só podia ser. Talvez medo do que poderia acontecer, de dona Antônia contando para o delegado, contando para Cleide, seu Ismael voltando para lhe puxar o pé por ter comido sua sobrinha…Enfim. Talvez tenha sido melhor assim.

    O tempo estava perfeito para uma viagem de avião até o momento em que Sérgio colocou os pés no aeroporto. Nuvens negras surgiram como um presságio e o tempo fechou de repente. Todos os voos foram cancelados e ninguém sabia dar alguma previsão de retorno.

    Ao seu lado uma menina brincava distraída com sua boneca toda em cor de rosa. A mãe falava com alguém no celular e, mesmo sem querer, Sérgio não pode deixar de ouvir:

    – Perdi o voo, amor. Não tenho a menor ideia do que vai acontecer. Talvez tenha que voltar para Coxixola, vamos esperar para ver.

    Mais essa, agora. Deveria ser algum carma, só podia. De todas as pessoas no aeroporto, tinha que ter alguém de Coxixola?

    – Me desculpe, a senhora é de Coxixola?

    – Sim, senhor. Por quê?

    – Não, nada. Conheci a sua cidade há um mês. Quente…

    – Foi fazer o que em Coxixola? Lá não tem nada!

    – Fui ao enterro do Seu Ismael. Conheceu?

    – Seu Ismael…Pessoa massa! Todo mundo ficou borocoxô quando ele se foi.

    – Pois é. Fui eu quem levou a coroa de flores. Encomenda da Cleide.

    – Cleidinha? Minha amiga de infância. A gente era pixototinha e já andava encangada. Quando comecei a namorar com meu marido, ela segurava muita vela pra gente poder ir ao cinema. Naquele tempo…

    Mas é claro. O que mais poderia acontecer? Ela, por telepatia, saber que ele tinha brochado? Achou melhor encerrar o assunto de maneira educada antes que ela também fosse também amiga de Joana.

    – Trabalhamos juntos. Muito prazer, sou Sérgio.

    – Vixe Maria! O senhor é o Sérgio de Joana?

    – Como assim, Sérgio de Joana?

    – Joana, prima de Cleide. Ela me contou do senhor…Sim, disse que estava apaixonada. Ih…nem sei se devia contar tudo isso.

    – Joana, apaixonada por mim?

    – Bem, se for o mesmo Sérgio que ela me contou…Sim. é o senhor mesmo! Lembro dos olhos verdes que ela ficou caidinha.

    Não era possível. Joana, apaixonada por ele e ele brocha? Tinha que resolver isso. Tinha que ver Joana, entender aquela paixão que ele também sentia. Não tinha nada a perder, afinal. Como parecia mesmo que nenhum voo deveria decolar mais naquele dia do aeroporto, estava com tudo a favor. A previsão era de mais chuva e Sérgio resolveu voltar para o hotel.

    – Vou voltar para a cidade. A senhora aceita uma carona?

    – Mas o senhor não vai esperar? E se conseguirem colocar a gente em algum outro voo?

    Sérgio não queria mais esperar. Não podia mais.

    – Não me interessa o que eles vão dizer. Preciso resolver uma coisa e agora.

    – Bem, se não for dar trabalho. De lá, acho que volto para Coxixola. Não tenho onde ficar em Campina Grande.

    Já estava se acostumando a essas caronas. Pegaram as malas e rumaram para o Garden. Sérgio logo perguntou por Joana:

    – Saiu logo cedo, hoje é dia de folga dela. Já deve estar em casa.

    Ou seja, em Coxixola. Claro.

    – A senhora está com sorte. Tenho que ir para Coxixola, vamos?

    – O senhor tem certeza?

    – Não sei se tenho toda a certeza do mundo ou se estou fazendo a maior bobagem da minha vida. Mas saberei assim que chegar na sua cidade. Nem ao menos perguntei seu nome, me desculpe.

    – Sou Joelma e a mina filha, essa delícia, é a Ana.

    Era demais. Jo e Ana. Seria Deus lhe mandando sinais? Começou a acreditar em absolutamente tudo. Só não sabia ao certo o que falar para Joana. – Ei, encontrei uma amiga da sua prima que disse que você está
    apaixonada por mim. Posso tentar não brochar dessa vez? Beirava o ridículo.

    Duas horas mais tarde, chegaram em Coxixola. Já estava começando a gostar do lugar. Até cumprimentou um e outro que estavam no bar. Amigos de velório são para sempre, como não? Joelma e Ana ficaram na casa dos parentes. Se encantou pela menina de tal forma que quase começou a querer ser pai. Já imaginava uma filha com Joana, com cheiro de alfazema e pele de romã. Quando o carro parou em frente à casa de sua musa, respirou fundo para tomar coragem. Pagou e parou em frente a porta. Não tinha ensaiado nada, mas resolveu bater antes que ficasse encharcado. Coxixola também estava debaixo de chuva.

    – Quem é?

    – Sou eu, Sérgio!

    Joana abriu a porta em um rompante, como sem acreditar.

    – Arre-égua! O que tu tá fazendo aqui?

    – Bem, meu voo foi cancelado e… não te encontrei no Garden e… não queria que você achasse que eu…e aí, encontrei Joelma…

    – Tu encontraste Joelma aonde?

    – No aeroporto. Ela e a filha, que também perderam o voo e…

    – Oxi…E elas estão bem?

    – Sim, as deixei em casa.

    – O senhor as trouxe?

    – Pois é. Olha Joana, só voltei porque você me disse aquelas coisas que a sua tia mentiu e que você me queria e tal…

    – Desembuche logo, homem, que chego a tá com gastura! Sérgio respirou fundo mais uma vez e conseguiu encará-la:

    – Quero você Joana. Não consigo parar de pensar no que aconteceu, não consigo parar de pensar em você. Mas, olhe…

    Joana abriu seu sorriso mais doce, mexendo os cabelos e espalhando todo seu cheiro de alfazema pela varanda. Olhou Sérgio bem nos olhos e disse:

    – Emburaque de uma vez! Lhe lascou um beijo na boca e o colocou para dentro de sua casa e de si.

    De ambos os lugares, Sérgio nunca mais saiu. Dona Antônia deu a benção ao casal, enquanto Cleide e Joelma foram madrinhas no casamento. A primeira filha do casal se chamou Ana. E, até onde se sabe, a vida de Sérgio continua cor de rosa e com cheiro de alfazema. E em Coxixola.


  • Réveillon

    Comprou vestido branco e sapatos novos porque quis e a ocasião exigia. A ocasião é hoje, o último dia do ano. A calcinha também é nova, ela sempre ouviu dizer que é assim que se deve receber o ano novo. Fez tudo o que disseram para fazer e estava ansiosa. Na sala, os doze bagos roxos de uva brilhavam no prato sobre a mesinha de centro. Ao lado, a taça de champanhe já cheia e, no fundo, a aliança dada pela avó, anos atrás. Celina decidiu usá-la hoje, precisamente na passagem do ano, para atrair as mudanças que desejava. Não que um novo casamento, depois de dois fracassados, estivesse em seus planos, mas porque, quando a ganhou, sua avó dissera:

    — Use quando concluir que você não precisa de marido pra ser feliz.

    Achou graça e prometeu colocá-la no dedo na primeira ocasião especial. Que é hoje. Estava no quarto, quase terminando de se arrumar, quando ouviu, vindo da televisão lá da sala, o anúncio de que ia começar a contagem regressiva. Celina correu com os sapatos de salto 15 na mão e o zíper do vestido branco ainda aberto — não perderia por nada o ritual da meia-noite comandado pelo eufórico homem de paletó brilhante na telinha. Superstição ou não, queria mandar o ano velho para o lixo e receber o novo com estilo. Estava cheia de esperança e otimismo.

    Largou os sapatos no chão e sentou-se na borda do sofá. Puxou o prato de uvas para perto de si e pegou o primeiro bago. Pensou que o pior ano de sua vida estava quase dobrando a esquina, e já ia tarde. Engoliu as uvas uma a uma com devoção e urgência, os olhos fechados: um bago para cada número da contagem regressiva, como uma cerimônia — 10, 9, 8, 7, um bago para cada um, até o último. Celina estava eufórica, a noite se mostrava perfeita e desta vez ela tinha feito tudo no tempo exato, em sintonia com o relógio da Avenida Paulista, que via da janela, e com a contagem do homem da televisão.

    Celina estranhou que o prato de uvas já estivesse vazio no momento em que gritaram “Zero!” e a barulheira começou. Será que, durante a contagem, ela engoliu dois bagos em vez de um? O estouro dos rojões e dos fogos logo a distraiu e ela começou a dançar: era a trilha sonora que ela queria ouvir naquele momento. Os fogos brilhando no céu pintaram sua sala de todas as cores. Ela pegou a taça de champanhe e a ergueu acima da cabeça, animada para brindar com o apresentador da tevê, e bebeu tudo de um gole só, refestelada no sofá. Arregalou os olhos quando ouviu o locutor falando:

    — Não estranhem, queridos telespectadores, se lhes faltou um bago de uva durante o brinde. Esta noite, por algum sortilégio que ainda não conhecemos, nosso velho relógio marcou treze vezes em vez de doze. Logo daremos notícias sobre o que aconteceu. Feliz ano novo a todos!

    Celina pulou do sofá, a taça de champanhe vazia na mão, no rosto uma máscara de horror. “Treze vezes? Isso dá azar, o número treze dá azar!”, pensou, apavorada. Subitamente teve dificuldade para respirar. Sentiu sua traqueia fechada e desesperou-se. “A aliança, engoli a aliança!”, quis gritar, mas a voz não saiu. Tateou os móveis para se manter em pé. Boqueando como um náufrago antes do afogamento, começou a correr pela sala buscando ar para os pulmões, tropeçou nos sapatos jogados no chão e caiu com estrondo. Fraturou a bacia e o fêmur esquerdo. A brusquidão da queda liberou suas vias respiratórias e a aliança pulou para fora de sua garganta. Foi então que, mais calma e respirando, deitada no tapete, Celina apalpou o corpo e soube que as mudanças chegaram com o novo ano. “Eu não morri ainda, que sorte!”, pensou. Sorriu de tanta dor, chorou de tanta dor.

    Na televisão deram sequência aos festejos e estavam agora transmitindo um show de pagode. Ninguém falou sobre as treze badaladas em vez das doze, e tudo ficou por isso mesmo. Celina se arrastou pelo chão para procurar a aliança, colocou-a no dedo e depois ligou para o hospital. Pediu para mandarem uma ambulância com urgência e desejou feliz ano-novo para a atendente.


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