Domingo

  • PALAVRAS E ARTE

    Mesmo que palavras sejam uma paixão e ferramenta de trabalho, as palavras não são naturais; vejam, me explico.

    Natural seria o canto dos pássaros e os latidos dos cachorros. Os sons guturais com que nos comunicamos na fase primeira de nossas vidas, o amamentar, o fazer sexo. Depois que o homem descobriu o fogo, inventou a roda e pintou o interior das cavernas – a cores! -, as ações modificaram-se; era o princípio do artifícios, a pedra fundamental da Era das inteligências artificiais, as IAs, tanta tecnologia resumida em duas vogais maiúsculas.

    Tendo este ponto crucial em mente, toda inteligência humana, a despeito daquela emocional, é um artifício frágil e brilhante, uma película adiamantada para conter o que não quer ser contido. Cachorros, por outro lado, são inteligência bruta, expressão do puro; nós, não mais. Somos nós os adestrados, muito mais do que eles. Adestrados adestradores – adestramos porque tememos; criamos uma sociedade que nos aprisiona em moldes e imposições. Domesticamos não só animais, mas a nós mesmos, numa educação das horas e vontades: choros devem ser silenciados, fomes enquadradas nos horários das refeições e das prescrições das dietas; os desejos, contidos, o dormir e os sonhos adiados para horários plausíveis. Isto é certo; aquilo, errado. Condensamo-nos na teia da comunicação de um mundo codificado, como escreveu, traduziu e reescreveu Vilém Flusser. Por quê? Para caber nos moldes que inventamos. Tudo em prol do que chamamos civilidade – mas que, no fundo, é tão somente a condenação e a camuflagem dos instintos.

    Esta semana tive a honra de encenar pela segunda vez uma peça de Dias Gomes, chamada O Santo Inquérito, sob a forma de leitura dramatizada. Um texto denso, de uma verdade sobre as imposições dos homens, sobre a negligência e reprimendas de palavras e de nossas ações – inocentes e naturais. Também tive a ocasião de encabeçar a produção da pré-estreia de um Festival de Cinema Italiano, uma obra-prima de organização com dedicação 100% voluntária de descendentes e apreciadores da cultura italiana e da sétima arte; uma sessão fechada para convidados em um equipamento cultural local de prestígio e pequeno porte (leia-se capacidade de público limitada), com coquetel e um debate – riquíssimo – entre um cineasta chefe de um cineclube muito atuante na região e um artista multitalentoso com uma experiência artística na África Diáspora. O evento, para convidados, era dependente de confirmações que, ironicamente, muitas vezes foram tão frágeis quanto as palavras de aceitação social. A natureza com que as pessoas atualmente dizem sim  por um simples ‘compromisso’ social muito me assusta. O filme escolhido, Io Capitano (Eu Capitão), com indicações ao Óscar, conta a história de dois senegaleses em busca de melhores condições de vida. A busca por dignidade desmonta todas as ilusões; uma travessia que nos dá um baita soco no estômago sobre como transformamos, pelo fato de sermos criaturas “poderosas” a realidade natural do mundo e de todos os seres.

    Pessoalmente, não consigo entender como a população de uma cidade de médio porte, como Nova Friburgo, pode reclamar de não ter o que fazer quando há tanto, de uma qualidade enorme à disposição e as ausências manifestem uma posição política, até, contrária às suas próprias contestações. Talvez as ausências digam mais do que gostaríamos: um descompasso, um eco da nossa desconexão. Palavras não são naturais.

    Ainda ontem, para compor o cenário de um espetáculo teatral chamado Dedé Show, do imenso André Mattos, cuja direção de arte é do meu mestre José Dias, quem me orientou no projeto final da minha graduação, – e de quem fui logo em assistente em alguns projetos -, me vi de uma quase assistente a componente da banda e, como intercâmbio cultural proposto pelo grande artista e sua performance brechtiniana, ainda declamei Eça de Queiroz, após ser apresentada do palco, em pleno espetáculo. E me encantei com sua história de vida, sua encenação brilhante e palavras, tão naturalmente impactantes.

    Foi um instante em que tudo caiu por terra; a palavra, desnuda, voltou à sua forma mais próxima do que poderia ser natural: uma centelha. E talvez seja isso que a arte faça por nós: devolva-nos a selvageria esquecida, o grito que a forma das palavras tanto tentam domesticar. Sob a luz da arte, a palavra não se molda, mas chama, um convite à integridade perdida, ao pulso humano que nos faz, mais que civilizados, artistas por essência.

    E mesmo que palavras sejam uma paixão e ferramenta de trabalho, as palavras não são naturais. Mas podem… não acham?


  • Arte da imperfeição

    Perfeito vem do Latim “perfectus”, que na cultura grego-latina significa acabar, terminar, completar sem faltar nada. Nós, os que, como eu, fomos criados com esse modo de ver ocidental e dicotômico de ver o mundo, tendemos a buscar essa perfeição em tudo o que nos cerca.

    Cultuamos o prazer imediato, a busca do melhor, a valorização do maior – temos necessidade do completo. Maiores prazeres, melhores oportunidades, o desejo como valor que impulsiona o progresso. Nesse modus vivendi não há espaço para imperfeição, para o menos, o quase, o em parte.

    Esticamos a régua na medida da perfeição, do superlativo, muitas vezes inatingível. Se tropeçamos na jornada, muitas vezes preferimos mudar totalmente de caminho a diminuir as expectativas e se sentir bem com o incompleto.

    Nas relações, não nos acostumamos a aceitar os defeitos alheios nem as nossas fragilidades.  A conviver com o que é dissonante, com o que não atinge o padrão que esperamos.

    Se ampliarmos essa observação para o modo como lidamos com as coisas em geral, perceberemos uma tendência a descartar tudo o que, de alguma maneira, não atingiu a perfeição, envelheceu, perdeu o viço, se rompeu ou quebrou.

    Para não ter que conviver com a frustração do não perfeito, o caminho que adotamos com frequência é abandonar os cacos, que é mais fácil do que tentar aproveitá-los para fazer nascer algo novo.

    Quem consegue ver nesses fragmentos do que foi desfeito a possibilidade de reconstrução em um novo formato de relações, um novo arranjo de forças ou uma nova estética, é quem saiu em busca de um elemento de amálgama que unisse os cacos e fosse capaz de reinventar a beleza, na imperfeição.

    Abraçar a arte da imperfeição é abandonar os limites impostos pela ditadura do perfeito, para adotar um ensinamento oriental que vem conquistando mais e mais adeptos, e pode ser exemplificado pelo Kintsugi. Seguindo uma tradição milenar japonesa, o Kintsugi consiste em realçar as fissuras dos objetos que se quebraram, envelheceram ou estragaram por meio da aplicação de ouro para juntar as peças.

    O resultado é uma verdadeira obra de arte, a arte da reconstrução de algo que tem valor para quem consegue enxergar beleza na imperfeição – das coisas, das pessoas, das relações e da própria vida. Para quem cultivou esse amálgama de ouro dentro de si.


  • A nossa vida dos outros

    Queremos mais que uma vida. Queremos viver várias vidas. Desejamos ser piratas, mouros, cantores famosos, astros do cinema, reis e cavaleiros. Desejamos ser o outro e nunca nós mesmos. Não reparamos no espelho o nosso rosto… Em que espelho ficou perdida a minha face? Deixamos o tempo passar. Deixamos nossas coisas para deslumbrar outra vida, outras vidas. Nos assustamos depois com o que vemos: velhice.

    O pior de tudo é quando nos metemos na vida do outro. Somos os donos do conhecimento. Entendemos todos os males e problemas alheios e não sabemos resolver os nossos.

    No entanto, possuímos apenas uma única e delicada vida. Se há ou não há aventuras ou tesouros, grandes batalhas ou fantásticos enigmas, não importa. Importa a vida. A nossa.

    É cotidiana e tributável e a mesma e a mesma e a mesma continuamente? O que fazer? Somos humanos. Somos falhos. Somos loucos e controversos. Somos o próprio conflito e o próprio caos. E quando amamos, tudo piora. Tudo alcança dimensões maiores e mais dramáticas. E morremos sem morrer. E perdemos e ganhamos e continuamos a jogar seja qual for o jogo. E é assim e sempre será. Estamos vivos e este fato, por si só, possui um valor incalculável.

    Queremos outras vidas, mas temos uma, uma só para gastar e para amar e para chorar. Não percamos tempo.

    O que se há para viver, viva. O que se há para gastar: gaste. O que se há para amar: ame. O que se há para chorar: chore. Tudo no seu tempo…

    Encontre-se e perca-se e deixe-se levar. Aprume-se, endireite-se e siga o que há de significante. Veja ou não veja. Sinta ou não sinta. Escreva ou leia ou faça os dois ou nenhum dos dois. Faça o que é importante para a sua vida.

    Queremos mais que uma vida. Queremos viver várias vidas. Queremos viver a vida dos outros.

    No entanto, a melhor e mais valiosa a ser vivida, definitivamente, será a nossa…


  • Treinamento para habilitados

    Dois dias atrás, o carro da frente do meu exibia uma placa: Em Treinamento para Habilitados. Achei fantástico esse serviço – dar um treinamento para os já habilitados. Isso pressupõe que, mesmo tendo sido considerada apta para a função a que se propõe, a criatura não tem domínio do assunto.

    Incrível, não? Como será, então, que foi considerada apta a exercer essa atividade? Quando se trata de carteira de habilitação de condutor, a nossa tão conhecida CNH, é fácil de entender – o candidato a condutor passa por um curso rápido em que decora algumas regras de trânsito, e faz, se não me engano, umas 40 horas de treino sobre como se portar ao entrar no veículo: regular os espelhos, o banco, a partida, freio de mão, as setas, etc. Aí vem o percurso, a baliza, sair na ladeira (que é o mais temido) e, salvo alguma barbeiragem muito grande, a esperada aprovação.

    Orgulhosamente com seu atestado na mão, o novo condutor começa a enfrenta a vida real – trânsito, cruzamentos, se aventurar a mudar de faixa visto que tem que entrar à direita logo mais, estar preparado para os sinais que mudam de repente, enfrenar alguém que corta a frente subitamente, ficar calmo diante da pressão de outro que buzina para que ande mais depressa, enfim – o estresse de qualquer iniciante ao volante.

    Alguns tem pendor nato, logo dirigem super bem, com tranquilidade e segurança. Outros vivem um verdadeiro martírio ao enfrentar esse desafio. Para esses, foi criado o curso de treinamento para habilitados – super louvável, apesar de que não acredito muito que o resultado seja transformar patinho feio em príncipe.

    Esse assunto ficou, de alguma forma, na minha cabeça. À noite tive um sonho delirante – esse serviço poderia ser aplicado a um outro certificado de habilitação – a certidão de casamento. No meu devaneio noturno, as coisas aconteciam assim:

    Os candidatos a sacramentar uma união passavam por uma prévia para aprender algumas regras de como se comportar ao volante de sua nova vida: regular os espelhos para não enxergar o outro de forma distorcida, escolher um banco que seja confortável e suficiente para os dois; não fazer questão de dar a partida, deixar espaço para o parceiro iniciar o contato; puxar o freio de mão quando vem aquela raiva; dar setas para que o outro perceba quando é para mudar o rumo da conversa etc. Aí vão para o percurso, tentando acertar a baliza, sair na ladeira quando o clima esquenta (que é o mais temido) e, salvo alguma barbeiragem muito grande, chegam para pegar a esperada certidão.

    Certos de que já estavam habilitados, começavam a enfrentar a vida real a dois – trânsito com congestionamentos desgastantes; cruzamentos que provocam colisões; insegurança para pegar a direita e retornar quando a conversa foi na direção errada; dificuldade para captar os sinais de alerta se o humor muda de repente; sabedoria para driblar um triângulo amoroso que corta o caminho subitamente; paciência para manter a calma quando a sogra buzina no ouvido pedindo que apareça um filho mais depressa … Resultado – uma crise de estresse do casal iniciante, que ainda não tinha competência para lidar com a situação.

    Diante disso, será que um treinamento pós habilitação ao casamento funcionaria? Acordei rindo, com essa pergunta no ar.


  • Botas, cavalos e moscas

    Embora eu adore cavalos, nunca aprendi a montar. Como bom-senso e juventude nem sempre andam juntos, quase comprei um pangaré em Águas de Lindóia que fica a mais de quinhentos quilômetros do Rio. O preço não arruinaria completamente as minhas finanças, mas obviamente a distância entre mim e o cavalo não nos tornaria próximos. Foi mais um sonho do que um projeto viável.

    Tempos depois uma amiga que também gostava de cavalos conseguiu comprar um e o colocou em um estábulo razoavelmente barato na Barra da Tijuca. Generosa, ofereceu o cavalo para que eu aprendesse a montar. Impôs uma única condição: que eu providenciasse botas adequadas.

    Indicaram-me um sapateiro especializado dentro do Jockey Clube. Fui lá, ele tirou medidas dos meus pés e marcou data para a primeira prova. Voltei no dia combinado, nada estava pronto. O sapateiro era um senhor de muita idade, puxou conversa e, sabe-se lá porquê, o assunto foi parar no jogo do bicho, cujas regras mais avançadas sempre despertaram minha curiosidade.

    O sapateiro era um pouco enrolado no seu ofício, nas explicações do jogo do bicho também, e marcou nova data para a prova das botas. Não estavam sequer cortadas quando voltei pela segunda vez. Mais conversa, mais jogo do bicho, mais enrolação, outra data. Depois de duas ou três vezes em que isso se repetiu, liguei para a minha amiga para justificar a demora em começar as tão sonhadas aulas de equitação. Ela tinha decidido vender o cavalo porque o preço das cenouras que o animal consumia era estratosférico! Nunca mais voltei ao sapateiro, creio que ele também nunca chegou a fazer as botas. E continuo sabendo apenas o básico sobre o jogo do bicho.

    Em um dos muitos congressos dos quais participei conheci um professor argentino que afirmou ter um cavalo ali perto. Eu e outro professor nos entusiasmamos quando o cara perguntou se teríamos interesse em montar o animal durante um intervalo entre as conferências. Nosso entusiasmo desvaneceu-se quando chegamos ao local: esqueça qualquer fazenda ou clube equestre, era literalmente um terreno baldio com uma cerca de arame e um pangaré pastando. O argentino laçou o cavalo, colocou uma corda à guisa bridão e disse que estava pronto.

    Nunca tínhamos imaginado montar um animal em pelo, contudo não quisemos dar o braço a torcer. Sem sela e sem estribo, subir no cavalo foi uma manobra difícil que precisou da ajuda do argentino. Cada um deu uma voltinha ao terreno e declarou-se satisfeito. Na minha vez morri de medo de cair, abracei o cavalo com as pernas, segurei-me o melhor que pude e deu certo. Mas era um intervalo entre duas conferências, lembram-se? De volta ao congresso, ao meu redor e do meu amigo começaram a acumular-se moscas atraídas pelo cheiro de cavalo que ficou em nossas roupas. Naquele ambiente sério fizemos nossa melhor cara acadêmica, mas vontade de rir não nos faltava. Ninguém ousou falar sobre as moscas; os humanos provavelmente sentiram o mesmo perfume, porém foram mais discretos.

    Hoje já não tenho coragem de montar, nem mesmo em pangarés e muito menos sem sela. Vocês sabem: a idade, a coluna, os joelhos, a osteoporose… Vale a máxima antiga: certas coisas têm que ser feitas no tempo certo.


  • Não existem mais heróis

    Não Existem mais heróis…

    Estes, ficaram em fotos, figuras coloridas ou desbotadas, ficaram nas páginas de um livro velho, ou então, são relembrados de maneira torpe e fragmentada por aqueles que contam histórias antigas, mas têm já uma memória vaga das coisas.

    Hoje, o tempo é de homens perversos. Tempos de perversidade!

    Hoje, o tempo é de guerra e divisão, de discurso copiado na rede e de arma na mão!

    Hoje é o tempo de imbecis! É o tempo do fim da nação!

    Nas fronteiras do mundo, homens rasgados, mulheres cortadas, crianças interrompidas tentam fugir do caos.

    No entanto, apenas prolongam a agonia do desterro…

    Não existem mais heróis.

    Estes, enganaram a troco de pouco, por trinta moedas ou menos…

    Hoje, o tempo é de muros mais altos, dedos em riste, cercas e arame farpado.

    É o tempo do discurso do ódio, da banalização da morte e da miséria, da mediocridade como solução!

    Não existem mais heróis nem cavalos pra montar.

    Não existe mais o final feliz, não há mais aprendiz. O que há é a marca. O que fica é a cicatriz!

    Hoje, o tempo é de revolver cascalhos, olhar os escombros, contar os mortos…

    É o tempo de filósofos desbocados, de agressivos comentários, de loucos pra todos os lados!

    É o tempo dos flagelados, dos desnudados, dos milhões de desempregados…

    Não existem mais heróis…

    E já já não existirão mais poetas.

    Haverá a necessidade de expulsá-los porque teimam frequentemente em pensar, porque teimam absurdamente em enxergar…

    Mas isso tudo não importa, pois as pessoas já não pensam e não enxergam…

    Nas fronteiras do mundo, a despeito da dor, bandeiras continuam delimitando espaços, marcando territórios, desumanizando vidas…

    Nas fronteiras do mundo, a despeito da dor, bombas são jogadas e preparadas e alimentadas sem qualquer pudor.

    As ideologias, rotas e desfiguradas, ainda teimam em dizer o que é bom é o que não é.

    Ainda fazem pessoas saírem de suas casas sem destino e sem a certeza do pão.

    Nas fronteiras do mundo, duas bandeiras se misturam, se interpenetram, mas não se fundem, ao contrário, criam um vazio, uma incógnita… um entrelugar…

  • Equilibristas!

    Somos equilibristas! E fazemos isso com muita eficiência e profissionalismo!

    Não sabemos o tamanho da nossa força até que somos forçados, por circunstâncias várias, a viver a vida nas suas complexas contradições!

    Como não falar da vida e dos seus altos e baixos!?

    Na verdade, vivemos entre o riso e as lágrimas, o sol e a chuva, o sabor do tempero e o insosso.

    Vivemos entre dias quentes e dias frios, oscilando agudos e graves, pagando as contas, sonhando os sonhos e seguindo o fluxo!

    Em um momento estamos subindo, subindo… quase voamos!

    No momento seguinte, descemos e descemos… quase um túnel em direção ao centro do planeta! Transitamos entre o silêncio e a lentidão de um lugar remoto e o nervosismo e o caos da civilização! E assim, como perfeitos equilibristas, andamos por um fio, com passos ora leves e ligeiros, ora pesados e trêmulos.

    E assim, como desconcertados equilibristas, estamos sempre por um fio: os compromissos, as urgências, o sim e o não! A eterna fila do pão!

    Com ou sem luz, com ou sem mar, vamos seguindo…

    Com ou sem dinheiro, com ou sem energia, vamos seguindo…

    Na luta intensa de todo dia, escrevemos e apagamos, abrimos e fechamos os olhos diante da profusão de coisas e seres ao nosso redor!

    O grande problema disso tudo é que, muitas vezes, na explosão de sentimentos e momentos, muitas criaturas acabam por cometer o maior erro, o irreparável erro: o de perceber a vida quando já não há mais tempo…


  • Flashes, vazios e universos paralelos: Leila

    Em meio a um comercial de televisão de sábado à tarde, coisa que não lhe é por nada usual assistir – excetuando-se as ocasiões em que se encontra à casa de seus pais -, algo que Leila não se recorda ao certo acendeu umas memórias preguiçosas, episódios de infância, o cheiro da sua lancheira do maternal (que sente como se a estivesse segurando agora mesmo, uma maleta plástica de proporções retangulares na cor amarela, com alça branca); lembranças várias e disformes, como a de momentos que precederam fotos que jazem, em um sono nada profundo, no interior de uma caixa dentro de um armário, fechado em um cômodo abarrotado de móveis aposentados e poeira. Um simples gatilho para uma viagem neurólogica que rompeu as barreiras do tempo, como a contemporaneidade o dita aos quatro ventos, flashes mais rápidos que o piscar dos olhos. Em diminutos instantes, toda uma vida se descortinou dentro das íris esverdeadas de seus olhos: um processo estroboscópico que alternava a dilatação e a miose de suas pupilas com o acenar sorridente de tantas recordações inesperadas. Abruptamente a realidade, sob a forma quase aveludada do tom na voz de sua mãe alertando para o esfriar do desjejum, ascendeu a luz do cômodo infinito e o espetáculo dissipou-se – tão ligeiro como quando emergiu. Não estava ali, à mesa do almoço; tampouco em qualquer outro lugar.

    Tal acontecimento seria a última aparição de outras pequenas recorrências, como quem faz questão de deixar rastros nos dias. Sete, para sermos exatos; a semana se embrenhou na rotina com a atitude de quem tem pressa. Cada hora tropeçava na outra, uma correria danada que só ela, a semana, entendeu. E o episódio dos flashes deu as mãos às estruturas escritas e reescritas de Vilém Flusser em seu “O mundo codificado”* para comprovar que Leila era mais do que três seres humanos dentro de um só corpo e registro de CPF, onipresente como o “Eterno (louvado seja o seu nome)”** ou a  mais intrincada das redes já criadas, a Internet. Dentro das horas previstas para o espaço de uma semana, além de cuidar do seu filho ainda criança, Leila decorou textos e passos para um espetáculo teatral, ensaiou virtualmente para outro; entregou medalhas em eventos sociais, foi a lançamento de livros, organizou um evento de cinema. Fez orçamentos para clientes, entregou a tempo a documentação para participar de um edital de projeto cultural, redigiu listas de compras, deu conta da louça na cozinha, de 70% da relação roupas sujas/máquina de lavar, fez aulas de costura, as próprias unhas, tomou dois cafés e um chai sem lactose com uma prima, transformou seu melhor amigo no tema de sua dissertação de Mestrado, foi à missa, ao pilates e ainda conseguiu almoçar, no sábado, na casa dos pais. Enquanto o número de mortos ultrapassou 205 devido a inundações devastadoras na Espanha, a ONU avisou sobre o risco iminente de morte a todos no norte de Gaza, cientistas do MIT e Caltech anunciaram a descoberta de um sistema triplo de buracos negros, a inflação brasileira continua sendo uma preocupação e o Flamengo encontra dificuldades no Brasileirão (ao contrário da maré de sorte da qual se empregnou no Botafogo). O mundo caminha a passos rápidos, cada ser humano no seu ritmo, almejando cumprir a agenda ou trocar o físico pelo home office “mutado” enquanto maratona qualquer coisa sem um foco total na Netflix; as noites de Leila se esparramaram por sobre as manhãs. Enquanto todos dormem, o universo explode estrelas que não se apegam ao seu brilho e Leila se esmera em dedicar a todas as tarefas uma atenção específica que todo bom perfeccionista demanda para si mesmo. Em sua exaustão, há paz e um ácido prazer, que atende pela alcunha satisfação. Como já sentenciou a canção: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”***. Enquanto o  Brasil lida com a inflação, o Flamengo cai nas graças do Botafogo. Os buracos negros tornam-se triplos, quiçá, a ONU monitora Gaza, inundações são grandes assassinas na Espanha, Leila tem necessidade de um corretivo – para as olheiras e suas atitudes frente à sociedade.

    E nada faz sentido, sendo complexo ou simplório: tudo é vazio preenchido em universos paralelos.

    * leitura que, a despeito de filosoficamente complexa, se revela simplificada em sua essência, carregando uma significância magistral que transcende as barreiras do mundo privativo que cada um de nós constrói a partir de suas experiências.
    ** citação do próprio Vilém no capítulo ‘Sobre formas e fórmulas’
    *** trecho da canção “Dom de Iludir”, de Caetano, Gilberto e Ivete.


  • Papilas gustativas do viver 

    Na última semana, por ocasião do aniversário de uma grande amiga, me deparei com o desafio de escrever um cartão de felicitação. Não me servia aquele que já vem com a mensagem pronta e só precisamos assinar. Tampouco queria escrever apenas: Parabéns! Saúde e Paz.

    Muito embora essas palavras, por si só, já representem as joias raras da sorte, queria desejar algo a mais. É certo que dependemos da saúde para realizarmos qualquer feito e da paz para desfrutarmos de qualquer situação, mas há que se ter outros requisitos para a magia do sorriso solar acontecer.

    Visando garantir a minha amiga o melhor dos mundos, achei de bom tom incluir a coragem. A vida depende desse impulso, dessa força propulsora que quebra a potência destruidora do medo de errar e de ser quem se é.

    Caprichei na letra e nas palavras para que a mensagem carregasse em si o poder magnético do afeto, da amizade e do pensamento positivo.

    Já estava pronta para assinar quando algo me inquietou por dentro. Tudo estava dito, o novo ciclo seria perfeito, repleto de bons acontecimentos, sonhos e conquistas. Mas, nesses termos, pareceu inverossímil o meu voto de felicidade.

    Necessitava alertar minha amiga de que essa expectativa de sucesso e vitórias infindas era uma arrumação ilusória de belas palavras. Decidi avisar sobre a possibilidade de momentos difíceis, porque a vida é real e um pouquinho injusta, mas para isso temos a esperança, agasalho dos dias frios de sofrimento.

    De imediato, achei indigesto falar de tristeza, decepção num cartão de aniversário… todavia, sem isso também não se experimenta as papilas gustativas do viver.

    Por fim, escrevi:

    “Amiga, que a vida lhe sorria muito, mas se lhe fizer chorar, não lhe falte garras para seguir em frente, lanhando a cara do infortúnio. Nos dias nublados, toque uma flor, abrace uma árvore. Jamais se esqueça: as nuvens carregadas trazem a chuva que rega a terra.”


  • Tirando a máscara todo mundo é fantasma

    Outubro me lembra Halloween, até porque, como uma bruxa legítima, nasci no dia 31 à meia-noite. Bruxas, vassouras, abóboras e todas as figuras fantasmagóricas que povoam o imaginário popular são inspiração para as mais diversas fantasias: esqueletos, vampiros, mulas sem cabeça, ao lado de figuras famosas como o Conde Drácula, Morgana, Cruella, Freddy Krueger e outras encarnações do mal.

    Para as crianças, 31 de outubro é um dia de alegria, pois significa a possibilidade de comer doces sem nenhum policiamento dos pais, por conta da brincadeira de “Trick or Treat”. Esse hábito remonta a uma prática celta do Samhain, uma festa que marcava o fim da colheita e o começo do inverno. Daí o costume de ir de casa em casa pedindo contribuições em alimentos, hoje adaptadas para guloseimas. Reza a lenda que, durante a noite do Samhain, a fronteira entre o nosso mundo e o “outro mundo”, o dos mortos, podia ser cruzada, permitindo que espíritos maus vagassem pela Terra. Por esse motivo, os celtas usavam máscaras para não serem reconhecidos, originando o uso de fantasias no Halloween.

    Esse uso de máscaras como forma de esconder a identidade me fez lembrar de Erik, o personagem criado por Gaston Leroux em seu livro de 1910, que deu origem ao musical “The Phantom of the Opera”, de Sir Andrew Lloyd Webber, um sucesso que encanta plateias até hoje.

    Erik, o Fantasma, que usa uma máscara para esconder sua figura deformada, se tornou um símbolo de amores não correspondidos, mas a mensagem dessa história vai muito além disso. Ela explora uma batalha interior entre dois aspectos importantes de nossa psique: a coragem e o medo, enfrentados pelos protagonistas. Não é à toa que esse musical atrai o público há muitas gerações.

    Do ponto de vista do Fantasma, o medo da rejeição muitas vezes nos faz usar uma máscara para esconder traços da nossa verdadeira identidade. Tentamos ocultar o que escancara nossas falhas de caráter, nossos desejos proibidos, invejas, ódios, frustrações. Acreditamos que ninguém poderá nos amar se tirarmos essa proteção, assim como o Fantasma não conseguia se mostrar à sua amada.

    Do lado de Christine, a reflexão é sobre a coragem de escutar sua voz interior e seguir Erik, seu mentor abrigado nas trevas. Renunciar ao que é fácil, confortável, belo e aceito por todos, representado no musical pela figura de Raoul. Assim como ela, na vida nem sempre conseguimos optar por nossa melhor versão e deixar fluir quem realmente somos, escolhendo o caminho que não será aplaudido, mas que nos fará mais felizes.

    Talvez porque, afinal, tirando a máscara, todo mundo é um fantasma, não é mesmo?


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