Domingo

  • Mundo natalino

    Bolas vermelhas, luzes piscando, pinheirinhos enfeitados, presentes. No Brasil, assim como em outros lugares de tradição católica, é hora de preparar a ceia de Natal para celebrar o nascimento de Jesus Cristo, o filho de Deus, ponto alto de todas as datas comemorativas do cristianismo. Envolta na mística religiosa, a data reafirma a fé de que o cordeiro de Deus veio para tirar os pecados do mundo, e esse é o momento de fazer uma retrospectiva do ano que passou, e pedir a absolvição dos pecados praticados.

    Assim como o Natal para os católicos, O Yom Kipur, ou Dia do Perdão, é a data mais importante do judaísmo. Comemorado no décimo dia após o Rosh Hashaná, o Ano Novo judaico, a data é marcada por jejum, reflexão, perdão e arrependimento dos erros cometidos no passado.

    Para fechar o círculo, da mesma forma que o Natal e o Yon Kipur, para os muçulmanos, o Ramadã é considerado o mês do perdão. Ele culmina com o Eid Al-Adha, momento em que os muçulmanos se reconectam com Allah a fim de terem seus pecados perdoados e se tornarem pessoas melhores.

    Catolicismo, judaísmo, islamismo, diferentes crenças que se conectam pela proposta de arrependimento e perdão pelos erros cometidos ao longo do ano, e elegem um dia para isso. Aliviados e com a alma elevada pelo sentimento de fraternidade, caridade e bondade que emana desse momento de confraternização e orações, seguem a vida da mesma forma como sempre seguiram, porém, até o próximo perdão.

    Imagino que, a essa altura, cada um dos leitores fiéis a essas ou outras crenças terá uma longa explicação para rebater esse meu ceticismo religioso, mas como justificar a barbárie que acontece nos intervalos entre um perdão e outro?

    Estamos assistindo a mais um período de exacerbação dos conflitos entre povos, nações, grupos sociais, com atrocidades cometidas por todos os lados envolvidos. Independentemente do que reza a Bíblia, o Torá ou o Alcorão, a violação do direito à vida é praticada sem dó nem piedade, muitas vezes até justificada pelos algozes como uma “limpeza étnica”.

    Em paralelo, essa “limpeza” ganha força também nos confrontos internos da sociedade, entre os que detém o poder e as populações mais vulneráveis, a quem deveriam proteger, respeitar, representar.

    Como observadores do que acontece ao nosso redor, não tenho dúvidas de que essa análise tem eco em uma grande parte dos leitores, mas o que diremos se a lente for voltada para dentro de cada um de nós? Conseguimos encarar com humildade o fato de que nos sentimos absolvidos a cada dia do perdão, arrancamos aquela página do nosso caderno e continuamos a praticar os mesmos “pecados” daí para frente, até a próxima redenção? 

    Ou preferimos fechar os olhos e cantar Jingle Bells?


  • Lugares imaginados: Madagascar

    É inevitável criar expectativas antes de viajar para novos destinos, o que rende algumas decepções. Um dia ainda vou falar sobre esse assunto, mas hoje fico só com Madagascar.

    Não posso dizer que conheci o país porque estive apenas em uma cidade, Nosy-be, no entanto posso dizer que não pretendo voltar para conhecer o resto. A culpa não é deles, é minha por deixar-me levar por uma visão cor-de-rosa inspirada no título de um filme homônimo da Disney que nem sequer vi. De qualquer forma gostei de ter ido até lá: conhecer a realidade de uma nova cultura nunca é demais.

    O local é pobre e o trânsito caótico, muitos taxis tuk-tuks e até carros de boi. Primeiro nos levaram para ver uma árvore sagrada de duzentos anos em um bosque fora da cidade. Uma bobagem. Como sinal de respeito tivemos, homens e mulheres, de vestir uma roupa estampada típica, o que fizemos com alguma alegria e curiosidade. Entretanto quando nos pediram para tirar os sapatos eu e outras pessoas nos recusamos porque significava pisar descalços em uma terra bastante suja. Percebendo que íamos desistir permitiram que percorrêssemos calçados o caminho até o local sagrado, uma trilha de cerca de cinquenta metros ladeada por panos, a maioria vermelha, ao final da qual estava uma árvore que nos pareceu bastante comum. Senti pena do guia porque aparentemente aquele espaço significava muito para ele, embora estivesse longe de ser uma atração turística.

    Em seguida visitamos o exterior de uma casa abandonada conhecida como ‘casa fantasma’. Outra bobagem. Era apenas uma construção em ruínas com árvores crescendo dentro e ao redor. Ouvimos a história, verdadeira ou não, de como a casa, que nada tinha de interessante, ganhara fama de mal-assombrada.

    O Grand Finale foi uma suposta antiga aldeia swahili. Havia barraquinhas vendendo produtos típicos (preços só em dólar ou euro) e um espaço com gente dançando e tentando arrastar os gringos para a pista. A cultura swahili continuou tão desconhecida para mim quanto antes.

    Ah, mas e os lêmures fofinhos? O único que consegui ver estava no colo de um homem que cobrava um dólar por cada foto com o bichinho aprisionado. Nem pensar em incentivar essa prática com um animal tão simpático e ameaçado de extinção. Apesar disso muitos turistas pagaram.

    Todo mundo levou na esportiva e acabou sendo motivo de risadas: no retorno da visita à árvore sagrada havia uma ladeira e o velho ônibus que nos transportava não teve forças para subir. O motor morreu e os passageiros foram obrigados a galgar a encosta a pé, esperançosos de que o veículo vazio pudesse vencer o obstáculo. Demorou um pouco, mas deu certo e pelo menos desta vez não foi preciso empurrar a viatura.


  • A minha pátria

    Quando escrevo sobre a minha pátria, eu fico confuso. Penso em tudo que amo e, ao mesmo tempo, penso em tudo que odeio.

    Quando escrevo sobre a minha pátria, sinto calor, arrepio, felicidade, dor, enjoo, sinto frio…

    Quando escrevo sobre a minha pátria, a palavra evidente é contradição!

    A minha pátria é o paraíso, o céu azul, o mar aberto e profundo, o olhar da moça cor de cobre, o lugar mais lindo do mundo.

    A minha pátria é o embuste, o ridículo, os patéticos engravatados, o abuso, o homicídio, a insensatez, a brutalidade, o conflito armado na cidade.

    A minha pátria é pão de queijo, goiabada, aconchego, o doce beijo, o gostoso café e a palavra cafuné…

    A minha pátria é a maior mentira que se tem contado, o país que não tem futuro, o país das grades e dos muros, o país das cracolândias e a morte das muitas infâncias.

    Brasil, terra dos esfomeados e dos fartos, espaço de mendigos e de reis, lugar de iletrados e doutores…

    A minha pátria é isso: o sim e o não, o bonito e o feio, o certo e o errado, a preguiça e a luta, o cansaço e a perseverança, a desilusão e a esperança…

    Eis o meu país, eis a minha pátria: uma colcha de retalhos, uma porção de cacos que ora se juntam, formando um espetáculo, um carnaval… ora se espalham, criando o caos.


  • Folhas ao vento

    Entro no parque e na primeira curva avisto o Soprano, nome que atribui a um funcionário do parque. Fácil identificar o Soprano de longe, mesmo que vestindo o mesmo uniforme dos outros funcionários – ele anda com seu companheiro fiel, o soprador de folhas, sempre a tira-colo.

    Conforme chego perto, umas nuvens de folhas secas, sob o comando de Soprano, vão voando para a calha do meio fio e, de lá, graciosamente, se acomodam na beira do jardim, embaixo das árvores.

    Soprano segue o caminho, ora soprando para a direita, ora para a esquerda, impávido e concentrado na tarefa de direcionar as folhas para seu devido lugar.

    Sim, pois ali, em descanso, elas permanecerão até que uma brisa, ou quem sabe um vendaval, as mande de volta para povoar o caminho e exija o retorno de Soprano. Uma missão diária que justifica sua presença no parque, visto que é um soprador, não um catador de folhas.

    Ali, caminhando, após cumprimentar Soprano e receber seu sorriso agradecido, (talvez porque muitos passam e o ignoram como se fizesse parte do equipamento), meu pensamento se volta para esse movimento de ida e volta das folhas secas de nossa vida.

    Tudo o que somente sopramos, espantamos momentaneamente porque está perturbando o caminho, mas não eliminamos, não solucionamos, ao primeiro ou último vento retorna para nos atormentar.

    Hora de mudar o job description do meu amigo Soprano, incluindo a tarefa de sugar as folhas secas sopradas.

    Hora de buscar as nossas próprias folhas secas que ficaram pelo caminho e dar a elas um destino.


  • Crônica Burocrática

    A crônica começaria agora, mas é preciso antes que o leitor e o cronista paguem a taxa necessária ao andamento das crônicas. A TADC. Parágrafos são caros. Quando saem do mundo real então! Cada palavra tem seu preço tabelado. Cada figura de linguagem uma alíquota a mais. Por isso, cuidado com as vias! Uma para o leitor, outra para o cronista.

    E, depois disso tudo, ainda hão de enfrentar, cronista e leitor, uma fila no Banco da Estupidez, uma passada na Seção das Inutilidades e ainda retirar novos recibos no Departamento da Embromação.

    A crônica recomeçaria agora, contudo, ainda há a taxa para a liberação da crônica, a TLC. Os juros estão pela hora da morte. Pensar custa caro! Escrever o que se pensa… Mais caro! E precisa de carimbo, de selos, de revisão, de anotação, novas filas e seções e recibos. Cartão.

    E não adianta reclamar. Caso contrário, nada de crônica, nada de leitura. Nas orelhas de ambos um puxão.

    Cronista e leitor avançam, com papéis de variados tamanhos nas mãos, moedas nos bolsos e paciência e mansidão. Mansidão?

    Insatisfação.

    E pegam outras folhas e envelopes. E precisam de assinatura e maiores carimbos. E correm contra o tempo. Contratempo. Aflição.

    Afinal, vivemos no país da burocracia! Nada se faz sem papel, sem carimbo, sem vias e mais vias… idas e vindas de seção em seção!

    E não adianta reclamação!!!

    A crônica recomeçaria agora…

    Mas, com as redes sociais, ainda há a taxa de verificação de autenticidade. Autenticidade? Vai que esse texto tenha sido escrito pelo Luis Fernando Veríssimo? Nessas terras tão complexas da internet, a cópia e a manipulação dão o tom! E olha que, mesmo fazendo a tal verificação, corre-se o risco de não poder publicar! De não poder escrever! Sei lá… E ainda tem a “Inteligência Artificial” … Será que a “Inteligência Artificial” tem capacidade para escrever uma crônica? O que será dos cronistas?

    A crônica recomeçaria agora…

    No entanto, antes que uma multa chegue à redação é melhor que se dê cabo ao pretenso texto… Imaginação? Não!

    Que tal um ponto final?


  • Crônica biografia do mundo de hoje

    Tenho sobre a minha mesa de canto all’aperto1 (como gosto de mesclar palavras e expressões das minhas duas línguas de fluência, o português e o italiano, a minha rotina! É uma forma de sintetizá-las numa só coisa, o meu eu real, a configuração amorfa do que sou enquanto um ser em constante expansão) cerca de duas dezenas de livros, referências de uma vida “pré” graduação e especializações várias. Me preparo para um estudo de caso que validará mais um diploma ao rol das coisas que vira e mexe me proponho a aprofundar-me – ou abrir sob meus pés um abismo de questionamentos profundos, quiçá sem respostas, que, como curiosa intensa e exploradora de mundo, me dedico numa corrida sem fim. Em tais exemplares, o assunto, se sintetizarmos, pontua-se, sempre nas recônditas zonas do espírito humano: das codificações de mundo que criamos à ideia da extinção das nossas mortes, passando pelas transformações dos desenhos das cidades e por nossas interações com artefatos e com as nossas casas, reflexo material do que pensamos e do modo como agimos – consequente demonstração de como o desenho urbano atua sobre nossas atitudes.

    Um destes exemplares, publicado em 1967, foi presente de meu pai (como sempre, em tudo na minha vida, ele me presenteou com referências de todas as formas possíveis – e como me tornei essa parte dele, que agora me acompanha em espírito já que não é mais possível tê-lo fisicamente). “A crise das cidades”, de Wolf von Eckardt com prefácio do então administrador de recreação e assuntos culturais da Cidade de Nova York, August Heckscher, é um marco na minha existência, pois, além de me batizar como a cronista que sou (Bia Mies nasceu de um ‘apelido’ extraído do meu nome “oficial”, Nú Bia, acrescido de um “pseudo sobrenome”, Mies2, originado do nome de um dos arquitetos que mais aprecio, o Mies Van der Rohe, que conheci através das páginas deste livro), reforçou minha escolha pela graduação em Arquitetura e Urbanismo, numa época em que as dúvidas me jogavam para o jornalismo, para as artes cênicas e para essa inenarrável responsabilidade e comprometimento de vida que é titular-se arquiteta e manter-se firme em tal posição com todas as provações da vida profissional. Reforçarei uns recortes do prefácio, que julgo ser de interesse educacional geral:

    (…) Aliás, a influência da Arquitetura sobre nossa vida – Arquitetura
    compreendida nos termos mais amplos, incluindo o planejamento e
    preocupação com o ambiente total – pode ser tão grande que
    quase ficamos estarrecidos com as responsabilidades que cabem a
    essa profissão. Não faz muito tempo, bastava que o arquiteto
    tivesse a habilidade de desenhar prédios individuais, elegantes ou
    utilitários, conforme o caso. Agora, ele concebe e planeja cidades e
    regiões e pensa em termos da filosofia do homem e dos seus
    valores fundamentais. Portanto, é essencial que se desenvolvam
    bons críticos de Arquitetura (…) Também é indispensável que o
    público possa compreender plenamente o que o arquiteto está
    procurando fazer. (…) também falar sobre limites num sentido mais
    exato – o ponto além do qual os arquitetos não podem ir sem ousar
    fazer o trabalho de estadistas – ou mesmo de deuses. (…) este livro
    deixa claro, o arquiteto não é apenas um construtor; ele também é
    um artista e, como artista, arca com o peso da profecia e da
    compulsão por nos dizer o que é o bem-viver.”

    A crônica de hoje começa quase biográfica, mas hei de traçar o paralelo com o todo, fora de mim: se compreendemos o mundo a partir de uma leitura pela íris de nossas bagagens pessoais de experiências, todos os textos são um tanto quanto biográficos, mas ao passo que se transformam em publicação, destinam-se aos que os leem, e, portanto, tornam-se públicos, sem domínio direto de seu conteúdo, um descolamento do pessoal por trás da escrita. Enquanto a minha vida assemelha-se cada vez mais ao
    casamento entre uma esponja e um liquidificador, tento gerar filhos que sejam produtos das receitas que pelos seus progenitores se misturem, e assim, ser crítica, ser artista, ser técnica e ser humana, colocando-me a serviço da sociedade, em tempo integral. Habilidade ou loucura?

    Uma busca constante, um eterno esforço a caminho de algo que nunca chega; é sobre o tempo que eu gostaria de dissertar: o que somos, não basta. O presente é constantemente tratado como o momento em que devemos viver; mas a condição humana que nos difere dos outros animais é ter a noção da finitude. E seria essa uma habilidade adquirida com a educação? De quando passamos da fase em que tudo é plena novidade e tentamos nos comunicar através de gestos, sorrisos, choros ou sons incipientes e sem nexo, Kairós é derrotado por Chronos, dois deuses da mitologia grega que simbolizam, em breves palavras, o tempo eterno – sem quaisquer referências ao passado ou futuro, sinônimo de qualidade – e o tempo cronológico e implacável – passagem do tempo, o presente constante que esquece de si mesmo,
    sinônimo de quantidade.

    Se cada um de nós é formado, independente do seu grau de instrução – basta viver em sociedade -, para agir, adquirir, aprender e tantos outros verbos de A a Z, como é que conseguimos dar conta de puramente ser, no fim das contas? Na filosofia é comum aproximar ambos os deuses à ideia do estado de flow, esse tempo distorcido da realidade que nos permite ter espaço para a consciência. O que somos não basta, repito. Se temos um intenso contato conosco, somos, provavelmente, improdutivos. Se não produzimos, somos excluídos; se produzimos elevamo-nos a um estado de esforço profundo que afrouxa as presilhas da nossa identidade. Mas todos esses esforços em favor da vida levam-nos à morte. E a morte é o que devemos combater, acima de qualquer coisa. Então construímos sociedades, cidades, casas, famílias, seres humanos. Quantidades. E nos baseamos em leis – palavras formuladas para ‘um todo’, acessível universalmente à ideia imperativa do que seja isso, a cada época -, que procuram ser democráticas, mas que excluem. Ontem assisti a um filme contemporâneo do cinema italiano intitulado Nata per te3, que narra a história verídica de um jovem homossexual católico que tenta adotar uma bebê com síndrome de Down (disponível a todo público brasileiro pelo link CLIQUE AQUI do Festival de Cinema Italiano até 08 de dezembro). Na prática, o abandono de um ser deveria ser julgado com mais profundidade do que a tentativa de criá-lo, com todos os percalços que a vida irá impor – além da dialética Kairós e Chronos, obviamente. Mas percebe-se como o peso das culturas, construções humanas de grupos, e as leis são de maior relevância do que a vida, em si. Como nossas habilidades são poderosas demais perante o que realmente é de vital importância. Quantidade ou qualidade? Como é a verdadeira face do tempo se nos vestirmos com qualidades reais, uma roupagem de amor, a nós mesmos e aos próximos, nossas habilidades qualitativas? O que somos, não basta?

    Minha pilha de livros tende sempre a aumentar; eu não sei basear-me em pouco para ser uma pessoa só. Culpa do tempo (in)visível que nos molda, culpa dos meus pais, que fizeram o melhor frente ao que a sociedade sempre os impôs. Culpa de ser humana, imperfeita e performática. Culpa da arte pela qual extravaso meus dilemas, e com a qual as coisas – palavra mais significativa e influente deste tempo – nos vulgarizam.

    Termino com a tradução e letra original da música Il mio canto libero4, de Lucio Battistini, que foi base do filme aqui comentado (e cujo link do QR CODE).

    Em um mundo que
    In un mondo che
    Não nos quer mais
    Non ci vuole più
    O meu canto livre é você
    Il mio canto libero sei tu
    E a imensidade
    E l’immensità
    Se abre ao nosso redor
    Si apre intorno a noi
    Além do limite dos seus olhos
    Al di là del limite degli occhi tuoi
    Nasce o sentimento
    Nasce il sentimento
    Nasce em meio aos prantos
    Nasce in mezzo al pianto
    E se levanta bem alto e vai
    E s’innalza altissimo e va
    E voa sobre as acusações das pessoas
    E vola sulle accuse della gente
    Sobre todos os seus legados indiferentes
    A tutti I suoi retaggi indifferente
    Apoiado em um anseio de amor
    Sorretto da un anelito d’amore
    De verdadeiro amor
    Di vero amore
    Em um mundo que – Pedras um dia casas
    In un mondo che – pietre un giorno case
    Prisioneiro é – recobertas pelas rosas selvagens
    Prigioniero è – ricoperte dalle rose selvatiche
    Respiramos livres eu e você – revivem, nos chamam
    Respiriamo liberi io e te – rivivono ci chiamano
    E a verdade – Bosques abandonados
    E la verità – boschi abbandonati
    Se oferece nua a nós e – por isso virgens sobreviventes
    Si offre nuda a noi e – perciò sopravvissuti vergini
    E límpida é a imagem – abrem-se
    E limpida è l’immagine – si aprono
    Agora – nos abraçam
    Ormai – ci abbracciano
    Novas sensações
    Nuove sensazioni
    Jovens emoções
    Giovani emozioni
    Exprimem-se puríssimas
    Si esprimono purissime
    Em nós
    In noi
    A roupa dos fantasmas do passado
    La veste dei fantasmi del passato
    Caindo deixa o quadro imaculado
    Cadendo lascia il quadro immacolato
    E se levanta um vento quente de amor
    E s’alza un vento tiepido d’amore
    De verdadeiro amor
    Di vero amore
    E te redescubro
    E riscopro te
    Doce companhia que
    Dolce compagna che
    Não sabes pedir, mas sabes
    Non sai domandare ma sai
    Que aonde quer que irás
    Che ovunque andrai
    Ao teu lado me terás
    Al fianco tuo mi avrai
    Se tu o queres
    Se tu lo vuoi
    Pedras um dia casas
    Pietre un giorno case
    Recobertas pelas rosas selvagens
    Ricoperte dalle rose selvatiche
    Revivem
    Rivivono
    Nos chamam
    Ci chiamano
    Bosques selvagens
    Boschi abbandonati
    E por isso virgens sobreviventes
    E perciò sopravvissuti vergini
    Se abrem
    Si aprono
    Nos abraçam
    Ci abbracciano
    Em um mundo que
    In un mondo che
    Prisioneiro é
    Prigioniero è
    Respiramos livres
    Respiriamo liberi
    Eu e você
    Io e te
    E a verdade
    E la verità
    Se oferece nua a nós
    Si offre nuda a noi
    E límpida a imagem
    E limpida è l’immagine
    Agora
    Ormai
    Novas sensações
    Nuove sensazioni
    Jovens emoções
    Giovani emozioni
    Exprimem-se puríssimas
    Si esprimono purissime
    Em nós
    In noi
    A roupa dos fantasmas do passado
    La veste dei fantasmi del passato
    Caindo deixa o quadro imaculado
    Cadendo lascia il quadro immacolato
    E se levanta um vento quente de amor
    E s’alza un vento tiepido d’amore
    De verdadeiro amor
    Di vero amore
    E te redescubro
    E riscopro te

    1 = ao ar livre, tradução da autora.
    2 Mies é um real sobrenome; através do Crônicas Cariocas, em 2008, “ingressei” para a família Mies
    através do querido Paulo (saudosos abraços, espero que conheça meu pai aí no céu), que me encontrou
    através dos meus textos neste nosso portal Crônicas Cariocas e me enviou mensagens perguntando se
    éramos parentes próximos.
    3 “Nascida para você”, versão do título da película em português.
    4 O meu canto livre


  • Arear as panelas

    Tenho na lembrança uma função doméstica sempre presente na casa de minha mãe – o dia de arear as panelas. O esfrega-esfrega com palha de aço e sapólio ia desgrudando as crostas formadas pelos alimentos ali preparados, que sedimentavam nos cantos, nas beiradas, no fundo das panelas.

    Sabores da vida que se desenrolava, impregnados nas marcas das panelas. Aquele cozido de emoções apuradas no fogo baixo ao longo dos anos, os embates passados nas frigideiras a estalar, a doçura necessária para baixar os ânimos até o ponto de fio.

    Caldo de um tempo que seguiu, continua seguindo e hoje pede outro espaço nas panelas.

    Tempo de uma Nouvelle Cuisine, de sentir o frescor, a leveza, a delicadeza de um novo cardápio. É chegado o momento de arear nossas panelas. Despregar lá do fundo aquilo que algum dia teve sabor, consistência, colorido, mas deixou resíduos cinzentos que só servem para tirar seu brilho.

    É hora de lustrar nosso caldeirão para receber as cozeduras que a vida nos reserva.


  • A crônica de todos nós

    A crônica tem todos os rostos: brancos, pretos, asiáticos e mais!

    A crônica tem todas as cores, odores e sabores que podemos imaginar!

    A crônica é, como diria o poeta, uma janela para o mar!

    A crônica tem todas as linguagens e gestos e sinais!

    A crônica é simplesmente a crônica. Assim leve como um sorriso, quente como um abraço, demorado como um beijo apaixonado.

    A crônica tem todos os rostos e olhares. Rostos redondos ou retangulares… olhares de canto, olhares de ressaca como os de Capitu

    Rostos e olhares… alguns perdidos e achados no meio do caminho.

    E no meio do caminho pode haver poesia sim!

    Mas muitas vezes tem pedra, poeira e sal.

    Mas qual o mal?

    Se não fossem as pedras ou a poeira ou o sal, o que seriam de tantas histórias que se fizeram no labor das coisas?

    A crônica segue a vida. Em caminhos e descaminhos. Em subidas e descidas. Dia ou noite. Choro ou riso.

    A crônica tem todos os rostos. E cada rosto um dom, um amor, um sonho e uma decepção. Cada rosto uma memória, um perfume e uma canção.

    O cronista avança pelas ruas e avenidas e escreve. Escreve sobre o tempo e todas as coisas que ele deixa e leva. Escreve sobre as luzes e os cartazes que apontam e vendem e prometem tantas coisas. Escreve sobre o movimento intenso de tudo. Fluxo.

    O cronista escreve sobre os rostos que vê ou imagina. João, Maria, José. Bernardo, Miguel e Adelaide. Será que Antônio reclama de um amor? Ou será que a Laura não para de sonhar e tem dificuldade de aterrissar? Ou então o Carlos, a Helena e o Simão? O próximo passo entre felicidade e a solidão?

    São tantos os nomes e tantas as vidas que passam…

    A crônica? A crônica passa e não passa. Muda e não muda! Avança e fica no mesmo lugar!

    A crônica segue como testemunho de todos os homens e mulheres que todos os dias vivem a vida.

    A vida? Seja nas tragédias urbanas ou nas histórias de amor, é o melhor material para qualquer cronista.


  • Deus abençoe esta bagunça

    Tive um chefe muito desorganizado com quem dividi a sala de trabalho. Ninguém conseguia limpar aquela balbúrdia, cada vez mais empoeirada. Quem tentava era desencorajado pela advertência de se tornar o principal suspeito pelo extravio e/ou danos a documentos importantes (É claro que ele possuía outras qualidades, que não a organização, que o tornavam benquisto e capacitado para o cargo).

    Um dia ele fez um comentário do qual se arrependeu instantaneamente: aquela papelada constituía uma prova da inutilidade da burocracia. Não era bem assim: ele tinha razão quanto ao excesso de burocracia, muitos dos documentos ali esquecidos nunca foram reclamados por ninguém, mas, não raro, funcionários desesperados vinham examinar as pilhas de papel na esperança de encontrar um processo perdido. Às vezes eram bem-sucedidos embora na maioria das ocasiões desanimassem só de olhar para as prateleiras atulhadas e de ouvir os resmungos do superior. Em casos extremos acampavam na sala até que ele despachasse alguma demanda urgente.

    Eu, que sou razoavelmente organizada, aturei calada a situação durante um par de meses; ciosa de minha posição subalterna, nada ousava dizer quanto aos papéis acumulados. No entanto, como a intimidade induz a falta de respeito, um dia resolvi dar uma sacudidela naquele estado de coisas.

    As primeiras tentativas foram tímidas. Ofereci-me para separar o joio do trigo, diminuindo o volume de papéis e, consequentemente, de poeira. Ele retrucou que eu não era qualificada para a tarefa, pois desconhecia as nuances da burocracia. Em resposta ofereci-me para selecionarmos juntos o que realmente interessava naquele matagal burocrático. Foi quando ele fez o tal comentário do qual se arrependeu porque eu retruquei, cheia de coragem, que nesse caso o problema tinha uma solução simples: jogar tudo fora.

    Minha reação o assustou de verdade. Percebi que avaliava a possibilidade de que isso fosse um ameaça real e recuou dizendo que para cada processo existia alguém interessado no resultado e que não queria ser responsabilizado pelo sumiço de algum documento relevante.

    Propus limpar só a poeira. Ele respondeu que isso fatalmente mudaria a ordem em que os papéis estavam colocados, o que dificultaria o seu trabalho. Uma afirmativa bizarra, porque ele nunca leria aqueles papéis, nem fazia a menor ideia de como estavam dispostos. Uma resposta que ilustrava exemplarmente a falta de lógica humana.

    Em desespero, ameacei desfazer-me sumariamente de tudo que estivesse amarelado de tão velho e em seguida sacudir a estante jogando fora, aleatoriamente, o que caísse no chão. Diante dessa nova ameaça ele ainda titubeou um pouco, mas não cedeu. O máximo que consegui foi livrar-me de alguns papéis de importância periférica e plantar na cabeça do meu chefe a dúvida: seria eu capaz de cumprir as ameaças que fazia?

    Bagunça à parte, tínhamos ótimo relacionamento, éramos amigos. Infelizmente o perdi muito cedo para um infarto traiçoeiro, uma perda que me marcou e até hoje me entristece.

    Ele já tinha falecido quando conheci meu marido. Adivinhem! Ele é um bagunceiro! A ‘decoração’ do apartamento de solteiro em que morava lembrava a arrumação antiga da minha sala de trabalho, agora dividida com um colega muito mais organizado do que eu.

    Percebi imediatamente que tentar arrumar o tal apartamento seria uma missão impossível. E acrescentei uma cláusula ao namoro: quem casa, quer casa, com território demarcado para cada um. Funcionou. Em todos os locais que moramos sempre existe um quarto interditado que é quase uma reprodução da sala de trabalho que dividi com o meu chefe. Contas velhas, cartas sem abrir, jornais acumulados, pilhas de revistas, sacolas vazias, cartões de visita, anotações esparsas. Só falta a poeira, mas, sinceramente, não sei como a faxineira consegue esse milagre. Eu evito entrar lá, porque a briga é certa.

    Agradeço ao meu falecido amigo pelo treinamento que me permitiu conviver com a desorganização. Se não fosse por ele talvez não tivesse me casado ou talvez estivesse divorciada. Somos moldados pelas pessoas que passam pelas nossas vidas, para o bem e para o mal.

    Como protesto contra a existência desse cômodo que me enlouquece, pendurei em uma de suas paredes, uma placa de madeira comprada na feira hippie, onde se lê: ‘Deus abençoe esta bagunça’. Fazer o quê? Nem sempre as coisas são como desejamos. E o que importa vem primeiro.


  • PALAVRAS E ARTE

    Mesmo que palavras sejam uma paixão e ferramenta de trabalho, as palavras não são naturais; vejam, me explico.

    Natural seria o canto dos pássaros e os latidos dos cachorros. Os sons guturais com que nos comunicamos na fase primeira de nossas vidas, o amamentar, o fazer sexo. Depois que o homem descobriu o fogo, inventou a roda e pintou o interior das cavernas – a cores! -, as ações modificaram-se; era o princípio do artifícios, a pedra fundamental da Era das inteligências artificiais, as IAs, tanta tecnologia resumida em duas vogais maiúsculas.

    Tendo este ponto crucial em mente, toda inteligência humana, a despeito daquela emocional, é um artifício frágil e brilhante, uma película adiamantada para conter o que não quer ser contido. Cachorros, por outro lado, são inteligência bruta, expressão do puro; nós, não mais. Somos nós os adestrados, muito mais do que eles. Adestrados adestradores – adestramos porque tememos; criamos uma sociedade que nos aprisiona em moldes e imposições. Domesticamos não só animais, mas a nós mesmos, numa educação das horas e vontades: choros devem ser silenciados, fomes enquadradas nos horários das refeições e das prescrições das dietas; os desejos, contidos, o dormir e os sonhos adiados para horários plausíveis. Isto é certo; aquilo, errado. Condensamo-nos na teia da comunicação de um mundo codificado, como escreveu, traduziu e reescreveu Vilém Flusser. Por quê? Para caber nos moldes que inventamos. Tudo em prol do que chamamos civilidade – mas que, no fundo, é tão somente a condenação e a camuflagem dos instintos.

    Esta semana tive a honra de encenar pela segunda vez uma peça de Dias Gomes, chamada O Santo Inquérito, sob a forma de leitura dramatizada. Um texto denso, de uma verdade sobre as imposições dos homens, sobre a negligência e reprimendas de palavras e de nossas ações – inocentes e naturais. Também tive a ocasião de encabeçar a produção da pré-estreia de um Festival de Cinema Italiano, uma obra-prima de organização com dedicação 100% voluntária de descendentes e apreciadores da cultura italiana e da sétima arte; uma sessão fechada para convidados em um equipamento cultural local de prestígio e pequeno porte (leia-se capacidade de público limitada), com coquetel e um debate – riquíssimo – entre um cineasta chefe de um cineclube muito atuante na região e um artista multitalentoso com uma experiência artística na África Diáspora. O evento, para convidados, era dependente de confirmações que, ironicamente, muitas vezes foram tão frágeis quanto as palavras de aceitação social. A natureza com que as pessoas atualmente dizem sim  por um simples ‘compromisso’ social muito me assusta. O filme escolhido, Io Capitano (Eu Capitão), com indicações ao Óscar, conta a história de dois senegaleses em busca de melhores condições de vida. A busca por dignidade desmonta todas as ilusões; uma travessia que nos dá um baita soco no estômago sobre como transformamos, pelo fato de sermos criaturas “poderosas” a realidade natural do mundo e de todos os seres.

    Pessoalmente, não consigo entender como a população de uma cidade de médio porte, como Nova Friburgo, pode reclamar de não ter o que fazer quando há tanto, de uma qualidade enorme à disposição e as ausências manifestem uma posição política, até, contrária às suas próprias contestações. Talvez as ausências digam mais do que gostaríamos: um descompasso, um eco da nossa desconexão. Palavras não são naturais.

    Ainda ontem, para compor o cenário de um espetáculo teatral chamado Dedé Show, do imenso André Mattos, cuja direção de arte é do meu mestre José Dias, quem me orientou no projeto final da minha graduação, – e de quem fui logo em assistente em alguns projetos -, me vi de uma quase assistente a componente da banda e, como intercâmbio cultural proposto pelo grande artista e sua performance brechtiniana, ainda declamei Eça de Queiroz, após ser apresentada do palco, em pleno espetáculo. E me encantei com sua história de vida, sua encenação brilhante e palavras, tão naturalmente impactantes.

    Foi um instante em que tudo caiu por terra; a palavra, desnuda, voltou à sua forma mais próxima do que poderia ser natural: uma centelha. E talvez seja isso que a arte faça por nós: devolva-nos a selvageria esquecida, o grito que a forma das palavras tanto tentam domesticar. Sob a luz da arte, a palavra não se molda, mas chama, um convite à integridade perdida, ao pulso humano que nos faz, mais que civilizados, artistas por essência.

    E mesmo que palavras sejam uma paixão e ferramenta de trabalho, as palavras não são naturais. Mas podem… não acham?


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