Literatura

  • #08 – A Ilha

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    A ilha com seu silêncio
    me comunica a morte
    dos seres espectrais
    que nela vivem ou já viveram.

    A ilha cercada por mangues
    é um poço de lama e óleo.

    Os pescadores da ilha
    me comunicam o fim
    dos pescadores da ilha.

    Os pescadores da ilha
    me apresentam a pesca de um dia,
    nada.

    A ilha com sua morte
    me comunica o silêncio
    dos seres superiores
    que a mataram e matam.

    A ilha abandonada pelos banhistas
    é um deserto de espuma e água.

    Os frequentadores da ilha
    me comunicam o desastre
    das praias da ilha.

    Os frequentadores da ilha
    me apresentam o bronzeado de um dia,
    petróleo.

    A ilha com sua sorte
    me comunica o crime
    dos seres continentais
    que seguem impunes.

    Os pescadores da ilha
    me comunicam o fim dos peixes
    e voltam tarde para casa.

    O Acaso das Manhãs

  • Tâmaras, vinho branco e gatos

    Há algumas semanas a bandeja de tâmaras – com caroço, tal qual informava a identidade visual da embalagem – repousava paciente sobre a bancada da cozinha, no aguardo do momento especial que tanto se preparava Theobaldo. Amante de história e das descobertas da gastronomia dos tempos passados, planejava dar à fruta uma espécie de protagonismo em um quitute da Roma Antiga. Mas faltava-lhe o mel e as nozes, e com sua atual situação financeira não conseguia juntar todos os ingredientes ao seu carrinho de compras essenciais. Em um sábado à noite deste janeiro desconcertadamente quente, deu mil desculpas diferentes aos amigos, recusou educadamente um convite de festividade de aniversário e se deu ao luxo de matar a garrafa de vinho branco, um Chardonnay 2018, resfriado dentro de seu frigobar retrô. Theo ficou na ponta dos pés, com algum esforço, e alcançou a prateleiras das taças, no alto.

    Passou uma água rápida no delicado vidro, ajeitou-o sobre a bandeja de madeira e cortiça – herança do enxoval dos pais -, pôs a bandeja de tâmaras e a garrafa de vinho, já consumida além da metade. Apagou a luz, acendeu um abajur e um incenso de odor madeira do oriente, escolheu uma playlist de “músicas tradicionais japonesas” no celular, pareou com sua caixa portátil de som e sentou-se em seu decrépito sofá, pernas esticadas e apoiadas em um escabelo improvisado, de frente ao ventilador – que girava e girava, de um lado para o outro, incessantemente, desconcertado, ele também, com a quentura daquela noite.

    Com as mãos, rasgou a embalagem plástica de fina espessura e sentiu o peso daquele romance japonês, primeira publicação em português de renomada escritora oriental, e sorriu – ao fundo, tambores e flautas embalavam o momento infinitamente poderoso que é o de um leitor abrindo o portal do mundo de um novo livro. Rasgou também a película protetora das tâmaras, e levou tal fragmento de sol concentrado – e enrrugado – à boca.

    Eu sou um gato. Ainda não tenho nome.

    As duas primeiras sentenças impressas em papel de pólen estalaram na mente como onsabor da fruta pousou na língua, um segredo antigo, uma textura que desliza e adere – metáfora também para a movimentação própria dos felinos -, quase um veludo caramelado, mas com a resistência sutil de algo que já foi vivo e pleno.

    Um gole do vinho e a língua brinca com as sensações; a estória não é pura e simplesmente sobre um gato, mas uma narrativa pela perspectiva de um. Outra tâmara: o paladar, de pronto, é invadido por uma doçura profunda, quase envergonhada de si mesma, como se fosse uma afronta ser tão doce e, assim, guardasse um toque de terra no final, um sussurro de suas origens áridas.

    [Pausa para esticar pernas e braços, já que o vinho chegou ao fim; uma rápida caminhada até a bancada da cozinha e a garrafa é preenchida com água gelada, sem que o resíduo da bebida anterior fosse descartado – uma espécie de água saporizada].

    Tóquio é a paisagem trazida pelas palavras que ganham vida através da conexão mente e olhos; os dentes recebem a tâmara com um pequeno estranhamento inicial – há maciez, sim, mas também uma firmeza discreta, um lembrete de que algo precisa ser rompido antes do banquete. E então gato e seu mestre entram em uma van prata, simbólico objeto de seu encontro, e iniciam uma viagem por vias expressas, mar, plantações e diferentes cidades, aventura de evolução e descobertas de desventuras que não afetaram a leveza de vida de um solitário japonês adulto, cuja única companhia é a de seu gato, batizado então por Nana, que significa 7, o literal formato de seu rabo.

    É nesse instante que a tâmara revela seu truque: a densidade da sua carne, que não cede de imediato, mas se entrega aos poucos, num misto de resistência e rendição. Como mastigar um poema, cada pedaço é uma linha que se dissolve, doce e incomensurável, até desaparecer.

    E assim, entre o degustar das tâmaras, do vinho branco que humanamente é transformado em água, o romance também vai desaparecendo da brochura, dissolvendo-se na construção da essência de quem o lê.

    Há quem diga que sábado à noite é momento fértil para mudanças. No entanto, nem sempre são as grandes epopeias que nos moldam: pode ser em uma cerimônia íntima, ou ritual de solitude – o abrir de um livro, o degustar de uma modesta refeição – que o doce e a esperteza das coisas penetra a carne e nos devolve ao mundo mais humanos – e, quem sabe, muito mais inteiros.

  • O óbvio como argumento

    Ao escrever, deve-se em princípio fugir do óbvio. Nada irrita mais o leitor do que se deparar com informações que ele já conhece ou pode facilmente deduzir. Elas parece que estão no texto para “encher linguiça” e completar o número de linhas.

    O óbvio está para o conteúdo assim como o clichê está para a forma. É um lugar-comum mental. Indica pobreza de ideias mais do que de estilo e concorre para baixar a informatividade. Dizendo o que todos já sabem, o redator dá a entender que não tem um pensamento próprio. É uma espécie de “maria vai com as outras” (escrito agora sem hífen, em razão dessa esdrúxula reforma ortográfica).

    São óbvias afirmações como as de que “o Estado deve promover o bem-estar dos cidadãos”, “o capitalismo aumenta a desigualdade social”, “o homem precisa continuamente rever os seus conceitos” etc. etc. Informações desse tipo, de tão batidas, nada acrescentam ao que o leitor já sabe.

    Mas nem tudo no óbvio é inútil. A evidência que ele representa pode ter valor argumentativo, ou seja, servir de reforço a um ponto de vista. Existe um nome para esse recurso: argumento de presença. Por meio dele se realça uma verdade indiscutível, um conceito ou ideia que as pessoas devem ou deveriam ter em mente.   

    Esse tipo de argumento aparece, por exemplo, nesta passagem da redação de um aluno: “A adolescência é uma idade de conflitos e insegurança, por isso o adolescente deve ser orientado em suas escolhas”. O que ele afirma na primeira oração não é novidade. Psicólogos, pedagogos, terapeutas (e os pais, pelo que experimentam em casa!) sabem que os conflitos e a insegurança em boa medida caracterizam o universo mental dos adolescentes.   

    Geralmente quem formula o argumento de presença não o faz apenas para “dizer de novo” o que já se sabe. Procura associá-lo a outros recursos argumentativos. No exemplo que acabamos de mostrar, a verdade enfatizada pelo estudante serve de reforço ao apelo que ele faz na segunda oração (no sentido de que se devem orientar os indivíduos nessa faixa de idade).

    Por que precisamos trazer à tona o óbvio? Porque o ser humano comumente se alheia de princípios que não poderia nem deveria esquecer. Isso o leva a negligenciar deveres, distorcer valores, praticar injustiças contra si ou contra os outros. Repetir antigas verdades é sempre uma forma de chamá-lo à razão.

  • Desde aquele dia

    Em 2010 eu morava em Gaurama e não sabia o que fazer da vida dali pra frente. Aos vinte anos a gente acha que pode tudo e acredita cegamente que as questões da vida têm soluções simples, num otimismo nada mais que adolescente. Eu estava perdido e assim fiquei talvez por mais um ano ou dois, pois tinha abandonado uma faculdade, concluído dois cursos técnicos dos quais pouco aproveitei e seguia vivendo na crença de que teria um futuro promissor como baterista. Embora hoje, década e meia depois, me orgulhe de uma empreitada ou outra, ando com a certeza de que jamais me dediquei tão fortemente a algo como ao instrumento.

    A bateria me era uma religião. Estudava como se apostasse todas as fichas numa única jogada e criei uma rotina que ultrapassava dez horas de prática por dia. Lia todas as revistas, buscava referências, bandas e músicos, fazia aulas com os bateristas mais experientes da região e viajava seguidamente para workshops em Porto Alegre e Caxias do Sul. Vez ou outra, além disso, compunha músicas para a banda da qual fazia parte, chamada General Lee.

    Nessas idas e vindas, conheci muita gente e sempre foi comum a surpresa quando falava sobre a minha cidade. Acredito que era, e ainda é, relativamente estranho viajar de um lugar com seis mil habitantes para um grande centro por conta de um workshop de bateria, que tem duração de, quando muito, duas ou três horas.

    Numa dessas o Rubens, baterista que encontrava nos workshops pelo estado e com quem converso até hoje, liga no telefone fixo de casa ao meio dia. Eu almoçava com a minha avó. Jamais soube como ele conseguiu aquele número. O fato é que não tive tempo para me surpreender com a ligação porque ele foi direto ao ponto. Um conhecido músico gaúcho acabara de entrar numa polêmica das brabas e tinha de sumir por uns dias. Gaurama seria o lugar perfeito. Concordei sem pensar e só quando desliguei percebi que não sabia o nome do fugitivo. Ao ser indagado, segundos depois, disse apenas: “vamos esconder alguém”.

    Pelo extinto MSN, combinamos o restante. Na sexta de tarde, eles viriam com um Punto preto, eu aguardaria sua chegada em frente ao posto de combustíveis na entrada da cidade e os guiaria até a minha casa. Soube quem era o tal músico só quando estacionamos. A minha avó era cúmplice e até gostou da história, acabou preparando uma macarronada para o jantar.

    Organizamos um quarto isolado, no sótão, com vários cobertores, pois aquela foi uma das semanas mais frias do ano. Ansioso e um tanto tenso porque, afinal, mal conhecia o Rubens, e, sejamos sinceros, aquilo tinha tudo para dar errado, quase mijei nas calças quando vi o Humberto Gessinger saindo do carro. Trazia uma mochila e uma edição antiga do Crônica da casa assassinada, do Lúcio Cardoso. Ao me ver, no looping de uma surpresa paralisante. gargalhou e agradeceu a parceria.

    A sensação de pânico não me abandonou naquela noite. O Humberto e a minha avó conversavam sobre os mais variados assuntos como velhos amigos. Eu mal acreditava no que via. Na manhã seguinte, mostrei a cidade ao forasteiro que, de touca e óculos escuros, fazia várias perguntas. De tarde descemos ao porão de casa, onde estavam os equipamentos da General Lee. Ele olhou tudo com calma e, ao ver o baixo na parede, pediu de quem era. Eu respondi que era do Joel, o baixista da banda, que geralmente o deixava ali para os ensaios. O Humberto o mirou por mais alguns instantes e, com a mão no queixo, sem virar para mim, disse: “Será que ele se importaria se fizéssemos um som?”. Aquele era um dos raros fins de semana em que não ensaiaríamos e, não preciso dizer que ficamos por horas, Humberto e eu, tirando um som no porão de casa. Só paramos quando a minha avó nos chamou para o jantar.

    Depois, por sugestão dele, fomos ao Maruag Pub. Ele estava de touca, manta e óculos, tapando quase completamente o rosto. Naquela noite, o Pub promoveu o show de uma banda de Passo Fundo, mas teve pouco público. O frio assustava. Assistimos sentados, num canto meio escondido, tomando seguidas latinhas de Coca-Cola, com raros comentários, pois o Humberto não tirava os olhos da banda. Quando a apresentação acabou, o vi escrevendo um SMS no celular, pagamos a conta e voltamos para casa, em silêncio.

    Jamais pensei em revelar essa história, mas creio que o Humberto já não se importe. Ninguém o reconheceu naquele fim de semana e não houve aborrecimentos posteriores. Acho até que o pedido de sigilo tenha jubilado. No domingo bem cedo ele partiu. Autografou alguns discos e pediu para que não contasse da visita a ninguém. A minha avó o convidava seguidamente para retornar enquanto se despedia. Eu via aquele Punto saindo pela estrada sem entender o que havia acontecido, com a certeza de que ninguém acreditaria caso contasse. Pouco me lembro dos dias subsequentes, mas fui alvo de piadas no ensaio da banda por estar feliz. E nunca pude contar o porquê. No fim das contas, a vida é mesmo cheia dessas coisas difíceis de explicar.


  • Cento e vinte e duas folhas

    122 folhas caíram sem aviso prévio, de um dia para outro, do Manacá que resiste às intempéries da vida, aos seus altos e baixos, junto a outras tantas plantas, que já somam mais de 4 dezenas espalhadas pelas varandas e cômodos de um apartamento situado em rua tranquila, que nem parece centro de cidade média. Cercado por árvores urbanas, cujas copas privatizam a vizinhança, garantem a qualidade de vida e o cantar dos pássaros a um sem número de pessoas e situações, o número de folhas parece um número pequenino: cento e vinte e duas — não cento e vinte, nem cento e vinte e cinco: exatamente cento e vinte e duas. Seria tal montante uma mensagem do acaso ou um capricho da própria planta, que, desconfiada da mão humana que a cuida – aquela que escolheu tê-la em sua rotina, pelo prazer de cuidar e ver seus frutos como recompensa – decidiu ensaiar uma pequena rebelião?

    O verde da paisagem predomina. Mas são as folhas pontiagudas, firmes – de maioria idosa, outras que sequer chegaram ao seu tamanho final – que, mesmo jazendo no piso frio, transformados os seus verdes, vistosos e habituais, em amarelentas folhas, enrugadas folhas, são o foco da atenção – não as copas vibrantes do entorno, mas estas formas já amorfas ao rés-do-chão da varanda da casa de quem é responsável por as fazer florescer, e assim ter sombra, e receber a visita de pássaros, a bagunça causada pela passagem do vento, ambientando mais natureza ao lugar cinzento que configura as construções do homem, que tanto destrói pela simples ganância em criações. A morte ou a interrupção do que é esperado é instantaneamente mais interessante do que toda a beleza vivente ao redor. Colhidas na palma de uma das mãos enquanto a outra pinça as recém defuntas folhas, o subconsciente humano se questiona;

    – Foi o vento, foi o calor, foi a falta d’água?

    O Manacá então, com tantos galhos desfolhados, que casou-se com um copo de leite branco e anda trançando sua copa aos pecíolos da samambaia – no auge de sua fase esporófita – vai acabar perdendo a esposa para o jovem pé de café, destemido e energizado, que cresce aumentando vagarosamente suas folhas – sem as perdê-las – enquanto não tira os olhos das formosas folhas alongadas que já não tem forças para fazer brotar sequer um único copo de leite.

    – Um bom café com leite é uma combinação das mais perfeitas!

    – Sussurra o pé de uma das bebidas mais consumidas do mundo a sua amada, ao enxergar a traição injusta.

    A queda concomitante de cento e vinte e duas folhas pode ser por culpa. Não necessariamente excesso de vento, o sopro de uma consciência superior, ou do calor intenso deste verão (metáfora de uma paixão desmedida de férias): há o equilíbrio das chuvas, há o zelo da rega constante. A culpa, ou melhor, sua confissão, pode ser porque, quanto menos folhas, menos consegue o Manacá esticar seus braços em direção à amante. No fundo, a culpa pode ser por um ímpeto natural, cuja consciência o faz sofrer.

    As percepções podem ser tantas que, não fosse a necessidade do funcionamento humano de fazer sentido, o copo de leite poderia ser o adúltero, e a perda das folhas um sintoma de depressão do Manacá sofredor. A samambaia poderia apenas tentar ajudar um amigo, sendo sua confidente. O café poderia ser o grande vilão, disfarçado de herói.

    Ou, simplesmente, poderia tratar-se de uma troca de folhas necessária: caem as folhas como caem os dias. E a relação das plantas não ser outra que a organização preferida por seu cuidador, que brinca de ser Deus até na narração de tantas possíveis estórias.


  • Entrevista de Itararé (com o Barão Idem)

    Apparício Torelly, conhecido como o Barão de Itararé, foi um famoso jornalista que atuou na imprensa brasileira nas primeiras décadas do século passado. Notabilizou-se pelo espírito crítico e o humor ácido, expressos em tiradas como as que constam na entrevista abaixo. Fi-la (ele deploraria essa ênclise!) extraindo passagens da sua obra, que tem servido de estímulo e inspiração a muitos humoristas brasileiros. Vamos então às perguntas:

    P – O senhor promete dizer tudo neste bate-papo? Não vai esconder a verdade?

    R – Sou um homem sem segredos, que vive às claras, aproveitando as gemas e sem desprezar as cascas.

    P – Falemos primeiro de política. O Brasil discute agora o seu regime de governo. Muitos querem o presidencialismo – pelo futuro não do País, mas do presidente de plantão. Que pensa o senhor sobre isso?

    R – A moral dos políticos é como elevador; sobe e desce. Mas, em geral, enguiça por falta de energia …

    P – Por falar em política, o senhor tem alguma sugestão para o pagamento da nossa dívida?

    R – Tempo é dinheiro. Vamos então fazer a experiência de pagar as nossas dívidas com o tempo.

    P – E como ficam os credores internacionais?

    R – Quem empresta, adeus …

    P – A mudança no regime de governo deve alterar o processo de escolha dos homens públicos, Barão?

    R – O voto deve ser rigorosamente secreto. Só assim, afinal, o eleitor não terá vergonha de votar no seu candidato.

    P – Falemos de outras coisas. O senhor considera que exista alguma regra para comer e beber?

    R – Comer até adoecer, beber até sarar.

    P – Verdade, Barão? E o fígado?

    R – O fígado faz muito mal à bebida.

    P – O álcool às vezes, realmente, é um consolo para os misantropos. Ou para os misóginos…

    R – Quanto mais conheço os homens, mais gosto das mulheres.

    P – Mas isso o levaria, por exemplo, a se casar?

    R – O casamento é uma tragédia em dois atos: um civil e um religioso.

    P – Ora, dizem que os homens inteligentes dão bons maridos.

    R – Que tolice! Os homens inteligentes não se casam.

    P – Mudando de assunto. Como o senhor vê certos frutos modernos do engenho humano – como por exemplo a televisão?

    R – A televisão é a maior maravilha da ciência a serviço da imbecilidade humana. Com o progresso, um ignorante pode somar maquinalmente.

    P – Ah, então o senhor é um passadista. Acredita, como Comte, que os vivos são governados pelos mortos.

    R – Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mais vivos.

    P – Dou-me por satisfeito, Barão. Muito obrigado.

    R – O “Muito obrigado” é sempre um pagamento módico.


  • Paraíso também fica nublado

    Não foi difícil achar essa cadeira de frente para o mar. O sol, que estava poderoso desde as primeiras horas da manhã, cansou da função e foi se esconder atrás das nuvens. Os turistas, ou melhor, os outros turistas porque também não sou daqui, bateram em retirada e se espalharam pelos bares e lojinhas.

    De onde estou, na ponta da praia, ouço distante o murmúrio da música. Nada que me agrade e por decoro estético e consideração com as pessoas que gentilmente me atendem na pousada não vou mencionar o gênero. Mas fica combinado que nem no meu enterro é para ser tocada.

    Um vento suave passa pelo meu rosto, braços e pernas. A saída de praia me cobre quase por completo. Sobre o mar, gaivotas aproveitam e descansam no ar quase imóveis, me lembrando Tom Jobim e seu Jereba.

    Suspiro. Início de ano. Sozinha. Ou melhor, sem ninguém para trocar uns sorrisos e fechar os olhos a dois. Mas nada que me faça ter palpitação. Depois de dois maridos, vários namorados e casos que não fico contando porque não é elegante posso dizer sem exagero que meu coração segue forte.

    Confesso que eventualmente sinto falta daquela arritmia que uns chamam de amor e eu, a partir dos meus poucos cabelos brancos, prefiro entender como momentos para compartilhar a curtição. Sim, porque o descompasso cardíaco também acontece nas pequenas situações, no olhar sedutor, nos cumprimentos gentis e nas palavras bem escolhidas.

    Pode durar pouco, é verdade. Mas se conseguiu acelerar a circulação, pode contabilizar na coluna dos bons momentos vividos. Não foi uma fantasia sua, existiu de fato. Mesmo efêmero, mesmo sem condições de ir adiante.

    Vale o momento, por que não? Para sentir-se bem, com o coração cantando, não é preciso ter uma estória de amor com música francesa, vinho e coisa e tal. Por muito menos, já dá para remexer o corpo e sorrir em sintonia com alguém que valha à pena. Não para a vida toda, mas para aquele momento especial que um foi posto diante do outro.

    Como saber que instante mágico é esse? Basta você prestar atenção.

    Porque a vida é assim e diante do mar não tem como deixar de lembrar de Lulu Santos. Um ir e vir infinito, de ondas, afetos, amores. Uns me marcaram, outros eu marquei. Alguns passaram sem deixar lembrança, em outros fui eu quem não deixou vestígios. Faz parte, sempre faz parte.

    O que não estava no roteiro era esse tempinho feio em pleno verão. Se continuar assim vão achar que passei as férias na Groenlândia vestindo burca.

    Porque sei que ninguém vai acreditar que o paraíso também fica nublado.


  • Abrir uma janela para a alma!

    Quando falamos na busca para a cura de problemas emocionais, um dos diferenciais para pensar melhor nossas vidas é utilizar uma teoria aberta que inclua diversas ideias diferentes, e permita uma discussão de opiniões distintas nessa árdua existência. 

    Uma dessas teorias é a logoterapia que utiliza uma abordagem psicoterapêutica reconhecida internacionalmente, e se baseia na premissa de que a principal força motivacional de um indivíduo é encontrar um sentido para sua vida. 

    Segundo Nietzsche, “quem tem por que viver aguenta quase todo como”. 

    Nessa área não podemos esperar uma resposta pronta porque não existe, e não cabe a nenhum psicólogo dizer ao indivíduo qual o sentido da sua vida.

     Seria sem desventura nenhuma nossos dias de perseguição e luta pelo prazer, e o encontro com a felicidade, se não dependessem muito de nosso interesse.

    O Dr. Viktor E. Frankl, um neuropsiquiatra 

    austríaco, foi o fundador da Logoterapia e Análise Existencial. 

    Ele ficou mundialmente conhecido após descrever sua experiência dramática em quatro campos de concentração nazistas, em seu best-seller 

    internacional: “Em Busca de Sentido”.

    Ele foi libertado somente ao fim da guerra quando tomou conhecimento de que sua mulher faleceu de esgotamento, e seus pais e o irmão, haviam morrido no Holocausto nazista. 

    Uma das pérolas que Dr. Viktor nos deixou é que “A vida é sofrimento e sobreviver, é encontrar sentido na dor. Se há, de algum modo, um propósito na vida, deve havê-lo também na dor e na morte”.

    Essa visão aberta da logoterapia traz a possibilidade da disseminação de múltiplas formas de felicidade e a discussão promovida na mesa, é a base do crescimento coletivo.

    O gatilho que mostra a felicidade em uma curva possível durante a busca, na verdade promove uma nova chance com dor e lágrimas, porém, capaz de proporcionar que sigamos em frente mesmo sem saber para onde ir, porque o durante, é onde se concretiza a experiência. 

    O andar desmonta o pesar e os sobreviventes serão os experientes de amanhã, que saberão empunhar novas armas para usar nesses quinhões de desafios. 

    Como definiu Dostoiévski, o ser humano é um ser que a tudo se habitua.

    Mas afinal, quando se encerra o drama de quem por vezes não sabemos quem somos.  

    Chorar ajuda, é uma maneira de abrir uma janela para alma e deixar esvaziar o sangue dolorido.


  • Tatiana está sangrando

    Era perto do meio-dia quando Tatiana saiu correndo da escola. Ela tinha ainda que almoçar antes de se encontrar com a Ju. Estava atrasada, e isso a fazia suar mais. Passou no meio dos meninos a tempo de escutar “A gorda tá com pressa?” Olhou para a frente e correu mais. Não dava tempo de chorar. “Corre mesmo, gorda, pra ver se perde meia tonelada”, ela ouviu antes de cruzar o portão e ganhar a calçada. Subiu no ônibus e procurou um assento no fundo da condução, onde ninguém a visse. Olhou pela janela e aí, sim, chorou um pouquinho. Decidiu não ir na Ju, depois ligaria para a amiga. Faria sozinha hoje.

    Entrou em casa, gritou “Cheguei!” e foi direto para o banheiro. Trancou-se, pegou o estilete na mochila e começou. Doeu tanto, tanto, no corpo e no coração, mas vai cicatrizar. Tatiana sabe que todas as feridas cicatrizam mais cedo ou mais tarde. Fica a marca por um tempo, depois some — um fio de sangue que corre pelo joelho, uma trilha que nasce no ponto do corte e busca, pela gravidade, alcançar o chão. Uma gota maior e mais robusta dilata o fio vermelho e morre no meio da gaze que a mão aperta contra a pele, estancando a hemorragia. A água fria da torneira termina de limpar o resto, só permanece aquele tom avermelhado e difuso, a mancha que denuncia a mutilação, a identidade do flagelo imposto por ela própria.

    Tatiana sabe que isso está errado, mas não consegue parar de errar. A mãe chama “Almoço pronto. Tá morta aí dentro?” Tatiana quis gritar “Tô”, mas só disse “Já vou”. Não queria ver ninguém naquele momento, não precisava de testemunhas na hora de lavar e expiar o que os outros consideravam pecado. Tampouco precisava que mais uma vez, outra vez, a julgassem e lhe apontassem com o dedo. Seca as pernas com papel higiênico e puxa a saia para baixo, escondendo os sinais.

    Semana que vem, quando a marca de hoje já estiver velha, uma nova será feita, porque ela precisa de ajuda e, na hora da ajuda, ninguém aparece. Só aparece a Ju, tão gorda, tão vesga, tão infeliz como ela.


  • O NARRADOR

    Nós, humanas criaturas, contamos, desde sempre, histórias. Histórias para ninar, histórias para assustar, histórias de amor e outras sem fim, histórias de nós mesmos e histórias para divertir… O fato é que não importa a finalidade, contamos histórias. E elas, as histórias, têm um dono!

    Não falo dos autores, não falo dos editores e tampouco dos que representam a indústria da arte contemporânea. Falo, simplesmente, do narrador.

    O narrador. Este ser criado e imaginado e experimentado por seus criadores.

    O narrador. Este ser entre o real e o imaginário, o ambíguo e o contraditório. Tímido ou panfletário…

    O narrador com pele e ossos e cabelo… Ou apenas uma voz que nos orienta.

    O narrador e o seu olhar sobre as coisas. A sua fala. As suas falas.

    Somos capazes de acreditar no que ele diz. Somos capazes de odiá-lo e amá-lo!

    Ao acabar o seu texto, o autor morre. O narrador não. A palavra é sua. As verdades e as mentiras, as nuanças de cor e as dúvidas que encerra. Tudo o que disser, sendo ele personagem ou não, sairá da sua boca como se fosse vida.

    Em Grande Sertão Veredas, o desesperoamorpaixão de Riobaldo por Diadorim é o desespero amoroso do narrador. As falas monossilábicas de Fabiano, em Vidas Secas, são a aridez e a contenção do narrador. O riso, a crítica, a língua e o olhar de João da Ega, em Os Maias, para além de Eça, pertencem ao olhar e à língua do ferino narrador.

    O narrador provoca, atiça, desorienta, como as vozes criadas por Clarice Lispector.

    O narrador brinca, observa, desenha os detalhes e prepara a armadilha.

    No entanto, entre diversos romances, contos, crônicas, dois narradores machadianos merecem destaque: Brás Cubas, o defunto-autor, e Bentinho, o homem traído.

    O Bruxo do Cosme Velho sabia criar narradores!

    O primeiro, do outro lado da vida, dedica: “Aos primeiros vermes que roeram as frias carnes do meu cadáver…” O sarcasmo e a mediocridade de Brás Cubas lhe cabem e lhe pertencem do primeiro ao último parágrafo. Seguimos com ele. Rimos. Confiamos e desconfiamos de Brás Cubas. Machado de Assis observa, apenas observa seu narrador-personagem discorrer sobre a vida e a morte, a mostrar todas as hipocrisias da sociedade de seu tempo. Muitos não compreendem o mistério: um morto que escreve. Mas escreve morto? E como se dá? É o narrador e o que diz: as suas verdades e as suas mentiras.

    Por meio do seu olhar e daquilo que diz, temos um cenário perfeito do Rio de Janeiro do final do século XIX.

    Brás Cubas, depois de morto, já não precisa usar a máscara social e, por isso, revela, com a ironia tão peculiar aos textos machadianos, sua total mediocridade! Brás Cubas é um intolerante, preguiçoso, presunçoso e interesseiro, enfim, um total idiota! Mas, a forma como conduz sua própria história, permite que nos aproximemos e, como mistério, mágica ou estratégia, nos afeiçoamos ao idiota genial. 

    Brás Cubas revela, a partir de si, a condição de miséria do gênero humano.

    Ponto para Machado!

    O segundo, entre o ciúme e a obsessão, a todo instante escreve sobre os olhos de Capitu: culpada! Não… Machado, mesmo que declarasse a inocência de Capitu, não nos convenceria porque Bentinho é incisivo e doentio: culpada! O que restaria ao escritor carioca diante de tão rochoso narrador? Bentinho é contundente, perseverante e, por que não dizer, envolvente! Ela é culpada segundo a versão do narrador. A versão é falsa? Distorcida? Isso não importa! Importa é que os fatos são apresentados por ele: as suas verdades e as suas mentiras!

    Bentinho se protege criando camadas e mais camadas e fechando-se por inteiro. É teimoso! Ensimesmado! É, por isso, o casmurro. Dom Casmurro.

    Bentinho acredita no que escreve! Bentinho fervorosamente acredita no que escreve!

    Não teremos a versão de Capitu. Bentinho não cria a oportunidade. Não quer. Não pode. O que sabemos é que os olhos de ressaca prenunciam Escobar.  O que sabemos é que o choro de Capitu provoca sentimentos e sensações diversas. Entre palavras e sentidos, postos e expostos, induzidos e conduzidos, os argumentos do narrador acusam a traição.

    Mais um ponto para Machado.

    Contar histórias define nossa identidade! Somos o que contamos e ouvimos.

    Reside aí a grande questão de tudo o que se entende como narrativa: as verdades e as mentiras são contadas e recontadas de modo a fazer das verdades, mentiras e, das mentiras, verdades… ou ainda embaralhar bem os dois conceitos para não se saber distinguir o que é verdade ou o que é mentira!

    Assim, todos os narradores contam suas histórias. E acreditamos nas mentiras ou verdades que são contadas através dos séculos.

    Assim, conhecemos uma parte da história de Capitu. Desbravamos as terras e o sertão dentro de Riobaldo. Esfarelamos a terra e sentimos o calor e a fome de Fabiano.

    Enfim, enquanto for possível abrir um livro, muitas vozes, inúmeras vozes se manifestarão. Serão as vozes de todos os narradores iniciando suas histórias e fazendo cada leitor acreditar nas suas verdades e nas suas mentiras


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