Literatura

  • Pink Flamingo, o mergulho

    Quando a segurança abriu a porta, senti como se entrasse num ventre da noite.

    A Pink Flamingo tinha um borogodó raro: homens de bermuda acima do joelho, corpos de Zeus, gringos loiros, negros cariocas, certinhos, caretas — todo mundo no mesmo caldeirão da carençolândia, como diria Xico Sá. Uns de camisa da moda marrom, outros de jeans e pochete. Se os “gurus da moda” dizem que não pode, lá tem alguém usando com orgulho e pose.

    A música era um delírio pop das antigas: Spice Girls, Backstreet Boys, Madonna, Britney, Cher, tudo embalado por fumaça vermelha, luzes estroboscópicas e drinks fluorescentes nas mãos dos convidados.

    No banheiro unissex, meu amigo carioca voltou esbaforido:

    — Puta que pariu!

    — O que foi?

    — Tinha uma mulher retocando o rímel no mictório.

    Entrei. Lá estavam ela, uma travesti altíssima e um homem bonito dividindo o espelho com a naturalidade de quem compartilha segredos num confessionário. Pensei: esse banheiro merecia uma crônica só pra ele.

    No salão, curiosamente, quase ninguém se olhava. O flerte parecia fora de moda. As pessoas dançavam, bebiam, vibravam com as drags — poucas e deslumbrantes. Uma delas, pendurada no teto como um anjo barroco, dublava *Toxic* com a segurança de quem poderia substituir Britney num Super Bowl. Outra, de vestido dourado, desceu do palco e me sussurrou no ouvido:

    — Vou mijar.

    Saí rindo.

    — Cara, aqui é ótimo pra trazer as namoradas — disse meu amigo carioca.

    — Por quê?

    — Porque ninguém mexe.

    Mas havia exceções, claro: uma mulher beijava “o único hétero do rolê”; um cara, de camisa social e olhar perdido, se aconchegava no colo de uma travesti no canto do salão — como se ela fosse o colo do mundo. Um grã-fino, lindo como um galã de novela, passeava de mãos dadas com duas gatas num trisal cinematográfico — de causar inveja. Ou melhor: de admirar, porque ter inveja é feio.

    Mas o que mais me encantou foi um velho, setentão, saindo de lá com um negro de beleza fulminante. *Love comes to everyone*, como dizia George Harrison. Esse casal merece uma crônica só pra eles.

    Tudo ali me fez constatar o óbvio: eu adoro os gays. Que gente bonita, livre, alegre. O mundo podia ser uma grande Pink Flamingo — um hino à liberdade, ao amor e à ousadia.

    Quer saber se fiquei sozinho? Não. Porque ninguém é de ferro. Mas por hoje, a crônica termina aqui.

  • Ladrões de tempo

    Há um instante na vida — e ele chega sem avisar — em que o elástico do tempo começa a encolher. A gente passa tanto tempo acreditando que ele se estica infinitamente, que leva um susto ao perceber que a ponta já está ali, bem mais próxima do que parecia.

    Para os otimistas, os esperançosos, os que ainda querem aproveitar o máximo do plano terreno, só resta puxar esse elástico com jeitinho, torcendo para que ele não dê uma estilingada inesperada e se despedace. E, se tiver que se romper, que seja lá no finzinho da linha — o que, convenhamos, já seria uma benção.

    Esses dias, lendo A contagem dos sonhos, de Chimamanda Ngozi Adichie, me deparei com uma expressão que ficou zanzando na minha cabeça: “ladrões de tempo”. No livro, ela fala de amores que não valem a pena, relações que atrasam a vida amorosa das protagonistas. Mas fui além.

    Não pensei em amores antigos, nem em nós do passado. Foi o presente que me cutucou. Quantos tipos de ladrões de tempo existem por aí? E quantos estamos deixando entrar pela porta da frente, com tapete vermelho e cafezinho?

    Alguns são quase impossíveis de evitar. A burocracia, por exemplo, é um clássico ladrão. Quem nunca perdeu horas preciosas enfrentando a famosa URA — aquela Unidade de Resposta Audível que promete atendimento e entrega desespero? Seja para falar com o banco, a companhia elétrica, o plano de saúde ou qualquer outro órgão onde o tempo vai escorrendo sem dó. E não vamos nem começar a falar das filas, dos congestionamentos, da papelada sem fim. Já pensei até em criar um “cronômetro da perda de tempo”, tipo o impostômetro. Mas desisti: imagine a crise existencial?

    Esses são ladrões conhecidos, e com criatividade dá até para reciclar o tempo que eles roubam — ouvir uma música, mandar mensagens, ouvir um podcast, ler umas páginas, divagar sobre a vida. Um pequeno protesto poético contra o sistema.

    Mas o que realmente me preocupa são os ladrões silenciosos. Aqueles que a gente convida sem perceber. Os pensamentos negativos, por exemplo, são verdadeiros assaltantes da alma. Sugam o tempo interior, roubam a leveza do dia, encurtam a vida emocional em câmera lenta.

    A sabedoria, dizem, vem com o tempo. E talvez ela esteja justamente em aprender a proteger o nosso elástico — envolver a linha com cuidados, risos, fé e pequenos bálsamos que o mantenham flexível. Porque a vida já corre por si só. Se a gente não cuidar, quando piscar… ela estoura.

  • CASO SÉRIO

    – Pai, urge que o senhor aumente a minha mesada.

    – “Urge”?!  O que é isso?

    – A professora de redação ensinou que a gente deve dizer “urge”. Tem mais força do que “é preciso”, “é necessário”. Parece, tipo assim, o rugido de uma fera. URRRGEEE!

    – Calma, tudo bem. Não precisa me morder. E pra que é que você quer mais dinheiro?

    – Vou fazer o Enem, não vou? Preciso ler, me informar. Destarte…

    “Destarte”?

    – Sim. Destarte, dessarte… A professora falou que é melhor do que “então”, “logo”, “diante disso”. Ela quer que a gente arrase na prova. E quer, outrossim, um pouco de fama para ela também, claro.

    – “Outrossim”?

    – O senhor não conhecia?

    – Não. Conhecia “outro não”. Era o que eu ouvia de sua mãe toda vez que lhe pedia um beijo. Ela dizia: “Outro não, Valfredo. Por hoje basta.”.

    – Ah, pai, o senhor é mesmo ignorante. Não é “outro sim”; é “outrossim”, entendeu?

    – Não estou vendo diferença, mas entendi. O contrário, então, deve ser “o mesmo sim”. E não outro!

    – Caramba! Achei massa essa história do beijo. Então ela lhe dava um fora… Que sádica! E o senhor, entrementes, o que fazia?

    – “Entrementes”? Deixe eu ver… Primeiro preciso saber o que é “entrementes”. É alguma coisa como “escorraçado”?

    – Nada a ver. Significa “nesse espaço de tempo”.

    – E por que você não falou isso?

    – Porque a professora disse que “entrementes” impressiona mais. 

    – Nesse caso, pode entrementar à vontade. O importante é que você arrase na redação.

    – Esse é meu desiderato.

    – Como?

    – “Desiderato”, “vontade”, pô! Também o senhor não saca nada da língua portuguesa!

    – Desculpe, ando meio desatualizado. Embora, aqui pra nós, esses termos que você está usando sejam um tanto serôdios.

    – “Ser” o quê?

    – Serôdios! Sua professora não mandou você usar essa palavra no lugar de “antigos”? Se ela ainda não fez isso, vai fazer. Com certeza.

    – Epa! Nada de “com certeza”! É “indubitavelmente”. E sabe de uma coisa? É mister que eu não converse mais com o senhor.

    – “Mister”?!

    – Isso mesmo. E não fale mais da minha professora, viu? Não quero ouvir. Se fizer isso, que seja à sorrelfa.

    – “Sorrelfa”!? Essa também veio da professora?

    – Negativo. É contribuição minha mesmo. Pesquei no dicionário para fazer uma surpresa a ela.  

    – “Sorrelfa…” Socorro, Alaíde! Vem cá ouvir teu filho. Alguma coisa muito séria está acontecendo com ele!

  • Aos sonhos, afinal

    Acordou mal. A noite foi ruim. Um sonho, o único que ele lembra, foi o responsável pelo seu estado atual.

    Um sonho ruim onde a dúvida se tornava certeza. Nada mais dela na sua vida, nada mais com ela ou sobre ela. Nada mais.

    Passou o dia angustiado com a mera lembrança do sonho. Piorou quando recordou que à luz da psicanálise o sonho pode ser a manifestação de desejos inconscientes. Pode, no condicional, mas por conta do estado de angústia em que se encontrava tornou-se certeza.

    Desejo é sempre ligado a algo que se quer, lembrou ele ao longo do dia. O sonho revelador seria isso então, um desejo?

    Mas por que sua mente lhe pregara essa peça? Por que desejar o que não nos faz bem?

    Desejar ela longe de si, seria o desejo oculto guardado no fundo de seu inconsciente que nas horas silenciosas da madrugada emergia suave mas decidido? Mas por que essa certeza de não a ter mais seria de fato algo ruim?

    Talvez precisasse assumir para si mesmo que nada mais de bom haveria de vir dela, ou melhor da relação com ela. Projetar uma reconciliação era fantasia. A distância talvez seja melhor do que a proximidade?

    Sonhar com a certeza, disse para si mesmo, não era de todo ruim. Melhor que viver na dúvida.

    A certeza ruim dói uma vez, ou duas. A dúvida imobiliza eternamente.

    Afinal, disse para si quando voltou para casa, o sonho não teria trazido o desejo de algo ruim mas sim da mudança necessária. Adiada por razões várias, da falta de coragem à esperança fútil. Mudança necessária? E, quem sabe, mesmo bem vinda?

    Sim, definitivamente.

    Nada mais de buscar a mensagem dela que nunca virá, a atenção que ele não recebe mais dela. Livre, afinal. Liberto por vontade própria. Livre para dar outro rumo à sua vida.

    Naquela noite deitou-se ansioso, reconciliado. Que venham os sonhos, afinal.

  • Uma espécie de saudade

    Eu cantarolava uma música antiga ao entrar em casa no fim de tarde. O vento gélido do outono trazia ainda uma satisfação em fechar a porta e sentir o abraço do ar quente do fogão a lenha. A minha avó seguiria o verso assim que eu lhe desse um beijo na testa. Era o nosso mantra. Ela sempre esperava na mesma poltrona, segurando duas enormes agulhas de tricô, com os óculos na ponta do nariz. Só de tempos em tempos eu descobria o que estava produzindo. Não havia uma palavra de boas-vindas, nem uma pergunta sobre o dia. A música exprimia mais do que qualquer frase solta, e no seu embalo, o aroma do café recém-feito dançava na cozinha.

    Há vírgulas tão corriqueiras no nosso dia que só lhes damos o valor devido quando as perdemos. É a sina da memória. Jamais imaginei que hoje, quinze anos depois, ainda varasse as horas de quando em vez relembrando, com olhos marejados, fatos antes tão bobos, tão simples, tão comuns. E a angústia vem, e fica. E a saudade vem, e fica. E também aparecem os questionamentos sobre a origem e o fim da vida, sobre as certezas e as incertezas, sobre as bênçãos e as maledicências, sobre o céu e o inferno. Não importam, no fim das contas, todas essas questões, porque a lembrança que de alguma forma me guia é a avó seguindo os versos daquela velha canção.

    Ela tinha uma aura tranquila que, penso, existe apenas nas avós. Ninguém com menos de sessenta anos atinge tal ponto. Tenho certeza que diante das minhas angústias ela declamaria meio debochada um verso do Renato Teixeira: “Os caminhos todos temos mesmo um dia que passar”, seguiria inclusive o ritmo da música, empostando a voz em “um díiia” e segurando a última sílaba, em “aaar”, até rirmos juntos e encerrarmos o assunto. O mais curioso é que era uma música do Renato Teixeira que compartilhávamos naqueles fins de tarde.

    Sempre que ouço o Renato me sinto na contramão da vida. Embora saiba que “o sentido dessa vida é ir em frente, caminhar”, como sugere a mesma canção, ainda continuo com a impressão de que ando para o lado errado. Deve ser comum entre os seus fãs. É estranho, imagino, para quem não se deixa levar pela sua poesia, para quem não se deixa tocar pela sua música, para quem não se deixa influenciar pela sua simplicidade. O Renato tem alguma coisa de diferente, de sereno, como uma brincadeira inocente entre avó e neto.

    Não sei como seriam as nossas lembranças sem as músicas que ouvimos, sem os versos que declamamos, sem os momentos que compartilhamos. Nem todos sabem aproveitar os avós enquanto ainda os têm. Nem todos se preocupam em criar boas memórias, em contar boas histórias. Hoje penso que, se olhássemos a vida de trás pra frente, seríamos diferentes. E talvez nos importássemos com as pequenas coisas, com os versos simples, com os sorrisos sinceros. E quem sabe entendêssemos que a música é uma espécie de saudade.

  • Pink Flamingo, o devasso e o certinho

    Peguei o táxi na Visconde de Pirajá como quem vai saltar de paraquedas — eu, sedento pela farra, e o poeta carioca ao meu lado, trajando cachecol marrom e sorriso aberto, pronto para qualquer desvio de conduta. No rádio, Caetano entoava seu inconformismo poético:

    “Vaca das divinas tetas
    derrama o leite bom na minha cara
    o leite mau na cara dos caretas”

    E eu, espremido entre banco e sede de noite, absorvia cada verso como promessa de libertinagem, enquanto o carioca soltava um riso baixo, fingindo anotar tudo num diário imaginário.

    O mineiro acomodado ficou no hostel, reclamando que só queria pizza, redes sociais e cama cedo. “Vai lá e depois me conta”, disse ele pelo whatsApp, sem imaginar que a noite carioca nos devoraria vivos.

    Quando o táxi estancou em frente à Pink Flamingo, cumprimentamos a hostess com um aceno torto — convite formal para o desenrolar da loucura. Em seguida, descemos a calçada e fomos comer uma pizza ali perto, vapor subindo em redemoinhos dourados:

    — Tira foto da minha bunda pra mim?

    — O quê?

    — Uma foto da minha bunda. O jeans tá muito justo.

    O casal chileno da mesa ao lado, estupefato, se entreolhou em silêncio, incapaz de decifrar a pepita de humor brazuca — um homem fotografando a bunda do outro numa pizzaria, só em Copa mesmo.

    O carioca, metódico que nem relógio suíço, tirou do bolso uma folha de papel e começou a riscar cada centavo: táxi, ingresso, pizza, deslocamento do Méier a Ipanema. Tudo anotadinho para a planilha do Excel no fim do mês — certinho com o botão de camisa engomado; eu, já com o cartão pronto pra estourar e a alma pronta pra esgotar quaisquer limites.

    Recarregados pela fome saciada, fomos a pé de volta à Pink Flamingo. A chuva miúda fazia do asfalto um espelho trêmulo, realçando o letreiro cor‑de‑rosa no fim da rua. E foi ali, sob aquele brilho artificial, que vimos a drag Cútis Negra descendo de um Uber, batom borrado e aura de quem invade um palácio. Outras drags se amontoavam, homens de mãos dadas cochichavam segredos e mulheres de saias curtíssimas sacudiam o quadril como lei. Ali, percebi que o escárnio e o êxtase formavam uma única batida — e era nela que eu buscava redenção.

  • Poema #25: Becos e galerias que se bifurcam em T & L

    A paixão
    é a antessala
    de uma paranoia
    na qual entramos
    com um sorriso largo
    de quem não sabe
    que penetrou num túmulo.

    A Sentinela em Fuga e Outras Ausências

  • Reborn

    Quem não brincou de boneca o suficiente em criança não deve perder a oportunidade agora, incluindo os meninos a quem não foi dado esse direito. Compre um bebê reborn e vá à luta. É a sua chance: dificilmente aparecerá ocasião tão propícia para resolver um problema de infância que demandaria anos de terapia, uma solução bem mais cara que o boneco.

    Para uma experiência mais completa, esses bebês poderiam ser ainda mais realistas: chorar no meio da madrugada, exigir troca de fraldas em horários aleatórios e impedir os ‘pais’ de sair porque estão com febre. Como aquelas mascotes Tamagotchi que precisam de atenção e ‘morrem’ se você deixa de alimentá-las ou cuidar delas. Se o bebê ‘morrer’, nada de pânico: basta encomendar outro.

    Outra sugestão para quem quiser aprofundar a experiência: trocar de bebê a cada aniversário, acompanhando o crescimento da ‘criança’ até que ela se torne adulta. Obviamente, adolescentes reborn seriam programados para dar muiiiito trabalho antes de se transformarem em jovens bem sucedidos. É improvável que alguém insista além desse ponto, mas nunca se sabe: velhos reborn podem virar febre no futuro, a fofura dos bebês substituída pelos achaques da idade. Tem gosto para tudo e o lobby das farmácias não dorme no ponto.

    Em vez de criticar os bebês reborn, pense nos aspectos positivos: lucram as fábricas, as produtoras de festas, criam-se empregos. Que mal há nisso, fora a loucura? Só espero que não seja contagiosa. Será?

  • A Praça das Agulhas Silenciosas

    1. O Observador
    Da sacada do sobrado em frente à praça, meu posto de observação favorito, assisto aos rituais diários que ali se repetem com precisão quase matemática. Entre fornadas de tortas para entrega — meu trabalho enfadonho —, distraio-me inventando histórias para os visitantes anônimos do lugar. Mas nada me preparou para o enredo que estava prestes a se desenrolar diante dos meus olhos. Victor é o primeiro a chegar. Meia-idade, roupas gastas, semblante sempre apreensivo. Um jornal debaixo do braço, que parece carregar com a mesma seriedade de quem segura um relatório confidencial. Senta-se sempre no mesmo banco, como se tivesse reservado pelo celular. Começa pela seção de classificados. Circula alguns anúncios com caneta vermelha, outros em amarelo. Quinze minutos depois, vai embora, deixando o jornal ali, aparentemente sem qualquer apego.

    2. A Professora de Bordado
    Às nove em ponto, ela chega. Meia-idade também, luto visível na roupa preta e no rosto sereno. Duas alianças no dedo anelar denunciam o passado de esposa e o presente de viúva. Para mim, é Natália. Carrega uma bolsa com material de artesanato, um guarda-chuva e um chapéu. Vai até a mesa de concreto com bancos ao redor e começa a preparar sua aula. Panos, linhas, rendinhas, caderno de anotações. Tudo meticulosamente organizado.

    As alunas vêm uma a uma. Jovens, graciosas, mas com um certo ar de urgência — talvez econômica. Cada uma permanece por cerca de quinze minutos, borda alguns pontos nas amostras e vai embora levando um pequeno embrulho feito com o jornal que Victor deixara.

    O detalhe não me escapou: sempre o mesmo jornal, sempre aquele deixado no banco. E as garotas? Nunca trazem os trabalhos prontos na semana seguinte.

    3. O Homem de Terno
    Assim que a última aluna parte, chega um senhor elegante, de terno escuro. Vai direto ao banco ao lado da mesa de Natália. Não se cumprimentam, não trocam palavras. Mas os olhares? Dizem tudo. Há familiaridade ali. Talvez romance, talvez conspiração. Dei-lhe o nome de Vladimir.

    Ele fuma devagar. Ao final, joga o maço vazio no chão — um gesto grosseiro, mas que Natália sempre corrige. Antes de partir, ela recolhe o maço, junto aos restos de linhas e panos, e o descarta na lixeira. Quase um ritual. Quase um código.

    4. A Teia Invisível
    Enquanto sovo massas de torta e sonho com meu futuro restaurante nas montanhas — o Samantha’s Bistrô, cozinha autoral especializada em caças e aves —, passo a enxergar o trio com outros olhos. E se Victor, Natália e Vladimir estivessem ligados?

    Foi quando a faísca acendeu. Victor circula anúncios para codificar mensagens. Deixa o jornal no banco. Natália recolhe, embrulha material com ele, e as alunas — agentes disfarçadas? — levam o conteúdo para fora da praça. Vladimir entrega o próximo comando no maço de cigarros, discretamente depositado e discretamente recolhido.

    5. A Confirmação
    Minha mente fervilha com a descoberta. Estaria eu presenciando a ação de uma rede de espionagem? Uma célula operando à luz do dia, debaixo do nariz de toda a cidade?

    No dia seguinte, corro à banca antes de Victor chegar. Compro o mesmo jornal que ele costuma usar. Comparo. Estudo. Tento decifrar. Então, horas depois, como uma bofetada do destino, a verdade vem no título do jornal do dia:

    JORNAL O GLOBO
    PRESA EM SÃO PAULO NATÁLIA BUTINA, A VIÚVA NEGRA
    Treinada pela Sala Vermelha, organização com laços com a antiga KGB, recrutava jovens para atuar como espiãs e assassinas.

    Fico paralisada. Natália. A mesma. A mulher que ensinava bordado na praça, que sorria às suas alunas. Que recolhia lixo como quem cuida do planeta.

    E Victor? E Vladimir?
    O jornal não diz. Mas eu sei. Eu vi. A praça nunca foi tão silenciosa. Nem tão
    perigosa.

    Fim.

  • Questão de ordem

    O poeta inglês Samuel Taylor Coleridge definiu prosa como “as palavras na sua melhor ordem”. Sem ordenar bem o que se diz não há como dar clareza ao discurso, conforme se percebe nestes dois exemplos retirados de redações escolares:

    1 – “Com o advento da Revolução Industrial, as mulheres começaram a participar do mercado de trabalho, assim como as crianças.”

    2 – “Contrariando os evolucionistas, Contardo Calligaris afirma que a mulher é tão infiel quanto o homem em seu texto ‘Por que somos infelizes em amor?’” 

    Os fragmentos em negrito estão inadequadamente deslocados. “Crianças” deve vir junto de “mulheres”, constituindo possivelmente outro núcleo de um sujeito composto; e a menção ao texto de Calligaris fica melhor após o verbo “afirmar”, pois constitui um adjunto que modifica esse verbo. Com isso, os períodos se tornam mais claros:  

    – “Com o advento da Revolução Industrial, as mulheres e as crianças começaram a participar do mercado de trabalho”.

    “Contrariando os evolucionistas, Contardo Calligaris afirma em seu texto ‘Por que somos infelizes em amor?’ que a mulher é tão infiel quanto o homem.”

    A má ordenação se revela na dificuldade inicial com que os períodos são lidos. É preciso no mínimo uma segunda leitura para que se compreenda o que os alunos queriam dizer. Essa não é a característica de um texto bem escrito; se o leitor precisa reler, alguma coisa falhou.

    Existem as quebras estilísticas, que destacam determinados segmentos da frase, e existem as que decorrem de imperícia ou comodismo. A essas não escapam nem redatores experientes, como se vê nesta passagem:

    3 – “O objetivo da quadrilha, de acordo com a Polícia Federal, era a obtenção de lucros através da execução de obras públicas, organizada e estruturada para a prática de variados delitos, como fraudes em licitações, corrupção passiva e ativa, tráfico de influência e lavagem de dinheiro.” (Folhapress)

    É preciso esforço para perceber que a parte em negrito se refere a “quadrilha”. A distância entre essa palavra e os particípios (“organizada” e “estruturada”) chega a comprometer a unidade do parágrafo e desorienta o leitor, que procura reorganizar o que parece truncado.

    Os três exemplos desta postagem mostram que a melhor ordem é aquela em que se mantêm juntos os termos sintaticamente relacionados: núcleos de uma mesma função sintática (exemplo 1); adjuntos com os verbos ou substantivos aos quais se referem (exemplos 2 e 3).

    Fugir a esse princípio, só por razões estilísticas. É o que ocorre na hipálage, um deliberado deslocamento do atributo em relação ao substantivo que ele modifica. Por exemplo: “‘O professor recebeu o caderno aplicado do aluno” (em vez de “o caderno do aluno aplicado). O deslocamento faz com que o adjetivo amplie o seu raio de ação. Mas esse não é um recurso que se deva perseguir num gênero objetivo e transparente como a dissertação argumentativa.

  • O Sótão

    Se desejava chorar, a avó subia até o sótão. Ali cobria o rosto com as mãos para, inutilmente, conter as lágrimas, imaginando que ninguém a escutava. As crianças todas íamos devagar e colávamos o ouvido na porta. Ouvíamos quando ela suspirava, quando assoava o nariz no lencinho, quando ficava em silêncio, esperando que a calma secasse seus olhos. Se algum de nós ficasse com dó e fizesse menção de entrar para fazer um carinho em sua cabeça, a mãe nos impedia com um gesto de “deixe que isso logo passa”.

    Quando queria rir, a avó também subia para o sótão e gargalhava de quase se acabar. Também nessas ocasiões íamos pé ante pé e ficávamos escutando o riso atrás da porta. Mãe dizia que, se o caso era de riso, podíamos entrar no cômodo e rir junto com a avó, mas preferíamos ouvir as gargalhadas ali mesmo, diante da porta fechada.

    Um dia, a avó resolveu que nunca mais iria chorar ou rir, nem que tivesse vontade. Desde então, nós, em dias alternados da semana, subíamos até o sótão para rir ou para chorar. Ignoramos se a avó nos escutava atrás da porta.

  • Nau dos Quintos!

    Com o passar do tempo construímos nossos lares e relações humanas temperadas com expressões correntes populares, baseadas em acontecimentos curiosos, que carregam muita história e verdades. 

    O folclore popular mostrou caminhos que levaram á literatura e modificou o comportamento do povo, desenhando estradas baseadas em vidas passadas, por vezes doloridas e muito marcantes, ao ponto de expressões curiosas se tornarem de uso bastante frequente. 

    Estar de bucho Cheio ou Encher o bucho, significa estar bem alimentado, de barriga cheia. 

    Essa expressão era utilizada mais comumente nas Minas de ouro, tanto pelos escravos quanto por seus exploradores. Na época de sua criação os escravos deveriam preencher com ouro um buraco na parede, conhecido como bucho, para só então receber sua tigela de comida. 

    Entravam tantas “peças” (negros) na mina, e ao final do dia eram contadas quantas não saíram, e lá permaneceram com o bucho vazio, para todo sempre. 

    Era tanto ouro no Brasil que a Coroa Portuguesa viu a possibilidade de quitar suas dívidas com a Inglaterra, e resolveu cobrar imposto de 20% (a quinta parte) do peso do ouro extraído das cidades mineradoras. 

    O Quinto tomou lugar para amaldiçoar uma pessoa, mandando-a para longe, ou para um lugar remoto, utilizando a expressão “Quinto dos Infernos”, que começou a ser usada em Portugal para se referir ao Brasil.

    Também usada para designar um lugar muito longe (“lá no quinto dos infernos”). Porém, sua origem e real significado, são totalmente diferentes.

    O navio que partia de Portugal para recolher esse imposto era chamado de nau dos quintos. 

    Como ele também transportava exilados para a nova colônia, mandar alguém à “nau dos quintos dos infernos” (ou apenas aos “quintos dos infernos”) significava bani-lo a um lugar degradante, o Brasil.

    A cobrança foi uma das principais causas da Inconfidência Mineira, um ato revoltoso sem sucesso, que acabou sendo reprimido pela Coroa em 1789.

    E para evitar as constantes sonegações, que geraram outra expressão famosa, o Santo do Pau-Oco, estátuas religiosas foram utilizadas pelos mineradores para contrabandear o ouro.

    Por isso, em 1750, a Coroa Portuguesa decidiu recolher o quinto diretamente das casas de fundição. A riqueza obtida pelo recolhimento do imposto era levada para Portugal encher os bolsos da corte. 

    O povo explorado sempre buscou caminhos criativos e soluções inovadoras para sobreviver, mesmo utilizando uma graça popular transformou dor em luta, na busca de resultados positivos, encontrados pelos vencedores, durante suas árduas batalhas.

  • A Calcinha de Ipanema

    Ela estava sentada com as amigas em uma mesa de um bar ali na Joana Angélica, esquina com a Vieira Souto, perto do Posto 9, e entrou no banheiro. Quando saiu de lá, tinha cara de quem tinha achado um poço de petróleo no calçadão. Foi logo anunciando a boa nova:

    — Olha aqui, gente… tá novinha!

    Exibia, triunfante, uma peça íntima branca e preta, imitando o desenho ondulado do calçadão de Ipanema.

    — Amiga, você tá louca? Onde achou isso?
    — No banheiro.
    — Credo, amiga… roupa íntima dos outros?

    Elas falavam alto, gesticulavam, e a peça passava de mão em mão. Garçons, clientes gringos na mesa ao lado, casais e outros grupos de amigos… todos envolvidos no mistério do objeto perdido. Ou teria sido abandonado?

    — Gente, quem será a doida que deixou isso no banheiro?
    — Uma gringa que experimentou o baile funk.
    — Deve ser uma turista, dessas que acham que estão em novela.
    — Amiga, mas pensa só: a mulher entra no banheiro e deixa isso lá. Pode isso?
    — Mas você esqueceu que toda mulher tem uma peça reserva na bolsa?
    — Ah, tá. Às vezes ela até guarda alguma impressão digital, né?

    O garçom trouxe mais uma taça de vinho e colocou uma bandeja com frutos do mar. Mas o mistério da peça perdida permanecia indissolúvel.

    — Amiga, devolve isso pro garçom?
    — Deve ser de alguém aqui.
    — Quer que eu vá de mesa em mesa? Ô, gente.
    — Para, amiga. Que vergonha.
    — Então, quem achou a peça fica com ela.

    Nenhuma delas se opôs.

    Ali, elas ficariam tomando vinho, sentindo a brisa do mar, jogando conversa fora. Sabiam que, no Rio, até uma peça perdida encontra seu dono — além de ser fonte de boas histórias.

  • Poema #24: RETORNO AO FINAL

    “meu Deus, porque me abandonaste?
    se sabias que eu não era Deus,
    se sabias que eu era fraco”

    Drummond

    protagonista
    de minha vida pregressa
    hoje sou coadjuvante
    de ruinas.

    nas águas do rio
    fiz algumas tentativas
    mas acabei afogando
    na correnteza.

    mudei de fase:
    virei pescador
    de sonhos frustrados
    à beira dos barrancos.

    galopei como quem
    sonha por estradas
    poeirentas de Minas
    Gerais, sozinho.

    empinei pipas e
    papagaios em céus
    nevoentos de minha
    infância distante.

    virei (ou tentei virar)
    compositor de vanguarda
    e fiz parcerias utópicas
    com célebres defuntos.

    amante de belezas glacias
    as mulheres passaram
    por minha vida como
    barcos à vela naufragados.

    fui poeta das condolências
    em velórios de interior
    quando o defunto era
    o que menos importava.

    candidatei a representante
    do povo, mas não tinha
    propostas viáveis no bolso
    da algibeira rota e furada.

    Da Essencialidade da Água

  • Espelho, espelho meu

    Ontem foi dia de conhecer um exemplar da nova humanidade. Estava almoçando com meu filho, num restaurante da zona sul, depois de um exame em que fui acompanhá-lo (ação corriqueira para mães das proles de antigamente) quando ele me interpelou: “Aquilo ali é um bebê reborn?” 

    Discretamente, acompanhei seu olhar e me deparei com uma moça aconchegando o bebê em seu colo enquanto andava para lá e para cá. O movimento era parecido com o ninar das mães/cuidadoras de crianças feitas de poros, mas com algumas diferenças, talvez, inalcançáveis para quem não vivencia a corda bamba da maternidade feita de cheiro de fralda suja e beijo babado:

    1. o balançar do colo não tinha aquela apreensão inerente ao ato de ninar um bebê: é sono? Fome? Dor? Gases?

    2.  A tranquilidade de quem não corre o risco de levar uma golfada.

    3.  A paz absoluta dos que não precisam ter medo de errar, de não perceber ou intervir a tempo, de falhar.

    4. A solidão de um olhar que não encontra testemunho de afeto.

    Tudo sob controle, milimetricamente previsível, controlável. Por alguns instantes, admirei a maternidade reduzida a sua função de cuidados mecânicos. Mas, em poucos segundos, o sorriso esvaziou, senti falta da temperatura, do cheiro, da gargalhada, do choro feito de lágrimas, das mãozinhas puxando o cabelo. 

    Voltei para o meu filho e respondi: “Com certeza é um reborn. Não há dúvidas.” 

    Quando coloquei no teto do quarto um papel de parede cheio de estrelas, achei lindo, mas sabia que não eram estrelas. 

    Por mais que digam que, para toda mãe, os filhos serão sempre crianças, desejamos que cresçam. E essa é a graça, ver o amor ganhar contornos, a intimidade desenhar nuances, a relação se reinventar no tempo.

    As rosas de plástico enfeitam a casa, mas não perfumam.

  • Uma história de mistério

    Ouve o ruído dentro da noite espessa e se levanta, salta da cama e faz um pedido para si. Não quer encontrar o que quer que seja. Não é nada, um barulho qualquer. É noite e o chão está frio, os pés, o corredor, as mãos… tudo solto no escuro.

    O ruído é baço… não há… ou há ? O quê? O que foi isso? Por que escutar o que não interessa? O coração, aos pulos, impulsiona sangue às veias. Ouve o ruído que aumenta e acelera também como ele… só ele.

    O que foi isso?

    Ouve o ruído e caminha em passos lentos ou trêmulos ou débeis. Por que escutar o que não interessa? Um sono calmo e bom. A camisola é fria como o chão, as mãos e a noite. O corpo quer e não quer avançar no desconhecido.

    Ouve o ruído mais forte e, num impulso, abre a janela e o vento fresco toma-lhe as pernas, a cintura, a espinha o pescoço… um grito.

    Um gato malhado arranha a porta. Alívio. O corpo está relaxado como a rua que vê: nada, nada.

    Deserta a rua, um pinheiro que balança, outras casas.

    Fecha a janela e não ouve mais o gato malhado que arranha a porta e pede comida. Sobe para o quarto e desarma-se num sono puro. Da janela de cima, o vento entra como embaixo, a acariciar lhe os pés, a tomar-lhe a cintura com força.

    Ouve o ruído novamente e novamente salta da cama , agora confiante, o chão está quente, morno. Num instante abre outra vez a janela e espanta o gato. Agora pode dormir.

    Mas.

    Ao ouvir pela terceira vez o barulho, o ruído, o som perturbador, ela não tem calma, corre para a cozinha e pega uma faca, avança para a porta de entrada e, ao abri-la, acerta um golpe no braço de um rapaz moreno, franzino e inocente.

    Acorda suada com a janela aberta e a sirene da polícia a entrar-lhe nos ouvidos. A noite está calma. A televisão é o único ruído da casa, um comercial de alimentos para gatos: Flakya delícia para o seu gato!

    Desesperada, desce para a sala, acende todas as luzes a abre a porta de entrada – não há nada.

    O gato malhado a olha sem entender e ela fecha a janela para subir ao quarto e dormir. Não há mais barulho…

    Tudo é sono.

  • A frase morreu?

    Alguém já disse que acabou a era das grandes frases. Escrever bem, hoje, é sinônimo de escrever simples. Em nome da comunicação sacrifica-se o torneado fraseológico, que antes era perseguido com volúpia narcísica.

    Cada autor parecia ver na frase retumbante uma ampliação gráfica do próprio ego.

    Atualmente as virtudes mais requisitadas são a simplicidade e a transparência. Vários motivos podem explicar isso, entre os quais o dinamismo da vida moderna e o pragmatismo de uma sociedade de resultados.

    Estamos mais atentos aos fins do que aos meios. Não há tempo para se perder horas a fio pensando na melhor maneira de expressar um juízo, um conceito, um sentimento. 

    Outra razão para o desprestígio da frase estaria na influência da linguística textual. Esse ramo da linguística valoriza o texto, vale dizer, o conjunto ordenado e coeso de palavras, frases e parágrafos. O que conta nessa organização solidária, em que os componentes têm praticamente o mesmo valor, é o papel do conjunto.

    Ou seja: a ênfase desloca-se da frase isolada para o “texto” como uma unidade comunicativa completa. Ele é então visto como algo mais do que a soma das frases. Possui propriedades que não podem ser explicadas apenas pela análise frasal.

    Entre essas propriedades estão a coerência (não contradição), a coesão (unidade dos componentes, promovida por conectivos e termos de referência), a situacionalidade (adequação dos elementos à situação comunicativa) e a informatividade (suficiência de informações).

    Nessa perspectiva, a “frase” é vista tão só como uma unidade que contribui para a construção do sentido global do texto, a macroestrutura. A análise da frase isolada, sem considerar seu papel no tecido textual, oferece uma compreensão limitada do significado e da função da linguagem em uso.

    Ao colocar a ênfase no “texto”, a linguística textual busca compreender como as diversas unidades se organizam e interagem para criar um todo significativo, considerando fatores contextuais, cognitivos e comunicativos que transcendem o nível frasal.

    Isso tende a apagar o brilho da frase, que chama a atenção para si. Muitas vezes um escritor medíocre tentava superar sua irrelevância com uma frase de efeito, que ali se encaixava como pepita no cascalho. O escritor tinha consciência disso e compunha seu texto de modo a valorizar esse fragmento luminoso, deixando o resto no escuro.   

    A frase perdeu status porque nos tornamos menos retóricos. Ninguém tem mais paciência com preciosismo ou verbosidade.

    Isso por um lado é bom, mas por outro tem gerado certo empobrecimento linguístico. No jornal, por exemplo, a linguagem de grande parte dos cronistas e articulistas está ficando homogênea, despersonalizada. Percebe-se neles a preocupação com a digestão fácil do texto, o que às vezes redunda em pobreza semântica. Poucos têm uma marca verdadeiramente pessoal de estilo.

    Talvez a morte da frase tenha a ver com isso.

  • Síndrome do olhar fixo

    Não sei se isso acontece com mais alguém por aí, mas eu tenho um problema sério com o olhar. De verdade. Ao longo do tempo fui notando esse defeito de fábrica — e já começo a achar que é alguma síndrome ainda sem nome, quem sabe coisa pra psicólogo ou até psiquiatra investigar. O fato é que meu olhar tem vida própria. Não me obedece. Tem vontade, impulso, teimosia — um olhar rebelde, desses que a gente tenta segurar, mas ele vai.

    Já tentei de tudo: pisco, viro o rosto, desvio o assunto, invento pensamentos aleatórios… mas quando percebo, lá está ele, firme e forte, mirando justamente aquilo que eu queria evitar.

    Desconfio que tudo começou anos atrás, quando uma sobrinha resolveu tatuar as sobrancelhas. A intenção até pode ter sido boa, mas o resultado… bom, digamos que foi marcante. Acho que rolou um erro da tatuadora — ou então a moça já tinha um talento natural para o mau gosto. O fato é que as sobrancelhas viraram duas taturanas pretas e peludas, saltando da cara feito quem quer dominar o ambiente. Ela era uma criatura miúda, de rosto fininho, mas ninguém via mais nada além das sobrancelhas. Passava, e era só aquilo. Eu, então, fiquei hipnotizada. Nunca mais consegui ouvir uma palavra do que ela dizia. Meu olhar grudou nas taturanas como se elas tivessem me jogado um feitiço indígena com nome de planta do cerrado: marandová.

    Desde esse dia, meu olhar nunca mais foi o mesmo. Passou a se fixar sozinho nas coisas mais aleatórias e esquisitas, como se tivesse gosto pelo constrangimento. Eu faço um esforço danado para controlar, mas ele sempre me trai. Tipo volta do nada, feito boomerang de bruxa.

    O caso mais recente aconteceu outro dia, depois da minha caminhada matinal. Eu vinha tranquila pela calçada, logo atrás de uma moça que andava com o filho. Ela era daquelas mulheres bem resolvidas com o corpo e estava toda produzida: calça justa, salto alto, blusinha discreta. Até aí, tudo bem. O problema? A calça. Uma estampa quadriculada. Sabe dessas com costura bem no meio do bumbum, dividindo o xadrez como se fosse a linha do Equador?

    Pois é. E para piorar: a moça tinha uma coisa curiosa na passada. A cada passo, só o lado direito do quadril se mexia. O esquerdo parecia em greve. Então o quadriculado fazia aquela dança louca: desalinhava e realinhava, desalinhava e realinhava. Tum. Tum. Tum. Cada passo era um show de geometria desconcertante — e eu ali atrás, com o olhar preso naquele movimento hipnótico. Parecia mágica. Ou castigo.

    Eu sei que é uma síndrome. Mas, sinceramente? Se a pessoa tem dissonância de quadril, não deveria usar calça quadriculada.

    Concordam comigo ou estou sozinha nesse olhar amaldiçoado?

  • Essa superestranha

    Há poucos dias estava em busca de alguma série ou filme que tivesse como locação a Turquia. Viajo para lá em junho e queria me ambientar antes da partida. Adoro passar pelos lugares e ter o prazer infantil de apontar e dizer: olha ali! Lembra daquela cena? Nessa busca inglória, me deparei com uma novela turca cujo nome, por si só, já me fez dar uma risadinha debochada — A sonhadora. Pensei em desistir, mas acabei deixando de lado as minhas críticas ferinas. “Que coisa brega, deve ser igual à Sabrina, aquela revista tosca da minha adolescência”, “mais uma história de mocinha apaixonada” e apertei o play para o primeiro episódio. 

    Como imaginei, era tudo muito ruim, quase péssimo. Interpretações exageradas, furos de continuidade, diálogos e cenas sem consistência lógica, um sururu sem fim. Para não ser injusta, os protagonistas Can e Sanem embelezavam a tela sempre que apareciam; os cenários coloridos e as paisagens também eram lindos. Mas nada além disso. 

    O esperado era que eu desistisse de perder tempo com aquela besteira sem atrativos intelectuais que eu pudesse exibir para os amigos, mas não! Mesmo achando tudo muito esdrúxulo, questionando o mau gosto e a minha sanidade mental, acolhi inteiramente meu desejo e assumi: quero!

    Que me julguem. Essa também sou eu.

    Resumo da história: fiquei viciada nessa comédia romântica, perdi várias noites de sono para assistir os 160 capítulos da Sonhadora, me afeiçoei aos personagens, reencontrei lembranças minhas, senti brotar inspirações para um novo livro.

    Foram dias intensos. Aguardava ansiosa pela hora de estar no sofá e continuar a aventura de flanar pela trama, dar risadas, lágrimas, suspiros junto com eles.

    A história foi seguindo o caminho do fim. Eu fui seguindo o caminho de mim. Encontrando placas, avisos sobre a imprevisibilidade da existência e os milhões de fragmentos possíveis e inesperados que compõem esse vir a ser que me habita. De quebra, ainda pesquei algumas conclusões sobre quem efetivamente sou até então.

    O amor romântico é uma praga que me cativa inteira; a graça de viver flutua fora da caixa do padronizado; as coisas bobas da paixão me fazem rir com sincronia entre os lábios e a alma. 

    Foi maravilhoso rever essa estranha-familiar que aparece quando tudo some e só restam nós duas: eu e essa menina enamorada pelo poder da paixão na sua raiz mais clichê. Não julguem. O indicado, apropriado, o certo a se fazer numa escolha é circunstancial. Aceitem. Às vezes, o melhor que desejamos não é tão apreciável assim pelos outros. E daí?

    Nada é mais divertido do que ser o que se é, a despeito do que se pretendia ser para atender às demandas sociais.

    Obs: acabo de apertar o play para assistir o primeiro capítulo novamente. Estou viciada nessa alegria. Aceito sugestões de outras novelas e séries. Não precisa ser nada profundo, nobre, intelectualizado, culturalmente valorizado. Basta que seja leve, doce e despretensioso. Bom demais não precisar pensar, avaliar, entender, julgar, criticar, analisar. Só ser, sentir e viver.

  • O oposto da hipérbole

    Sempre que pergunto em classe qual o oposto da hipérbole, a turma responde que é o eufemismo. Não me deparei com esse equívoco apenas em sala de aula – também o constatei em portais de língua portuguesa. 

    A verdade é que o contrário da hipérbole não é o eufemismo. Essas figuras não podem se contrapor, uma vez que se situam em áreas diferentes. A hipérbole diz respeito ao “pathos” (paixão), enquanto que o eufemismo está ligado ao “ethos” (caráter).

    Quem produz uma hipérbole o faz abalado por forte impressão emocional. Exagera para comover ou suscitar empatia: “estou morto de fome”, “ele tem uma vontade de ferro” (hipérbole metafórica), “daria a minha vida por você”.

    Um conhecido exemplo de hipérbole aparece neste quarteto de Augusto dos Anjos:

            “No tempo de meu pai, sob estes galhos,
    Como uma vela fúnebre de cera,
    Chorei bilhões de vezes com a canseira
    De inexorabilíssimos trabalhos.”

    Os versos constam do soneto “Debaixo do tamarindo”, em que o poeta confessa o seu amor pela árvore que ensombrava a casa-grande do engenho onde nasceu. Revelam o desespero diante da morte e a esperança de continuidade pela fusão com o organismo vegetal (lê-se no final do poema: “Abraçada com a própria Eternidade/ A minha sombra há de ficar aqui!”).

    A referência ao pranto “bilhões de vezes” chorado e aos “inexorabilíssimos” trabalhos busca traduzir a intensidade de uma Dor que transcende a esfera pessoal. Não é apenas o sofrimento de um indivíduo, mas de toda a espécie humana, com a qual o eu poético se identifica.

    No eufemismo, atenuamos um conteúdo desagradável com a intenção de não ferir nem chocar. O que anima esse propósito é a ética, o recato, por vezes a conveniência social. Podemos dizer de alguém muito feio, por exemplo, que “seus traços não são harmoniosos”. Ou, de uma pessoa estúpida, que ela “não tem um cérebro brilhante”. O eufemismo preserva o conteúdo e suaviza a forma.

    O seu oposto é o disfemismo, que consiste no uso de expressões deselegantes, grosseiras ou chulas. Na versão disfêmica, o muito feio passa a “horrendo”, “um parto”, “um frankenstein”. O pouco inteligente é chamado de “anta”, “burro”, “quadrúpede”. O disfemismo é uma intensificação pejorativa e visa agredir ou chocar.  

    Numa de suas crônicas, Adriano Silva critica os que nada fazem sem escutar a opinião alheia e são capazes de perder o dia caso não recebam um sorriso de aprovação. Ele diz invejar os indivíduos autossuficientes, que “resolvem suas inseguranças (…) sem expor o traseiro nu na janela”. Essa referência ao “traseiro nu” é uma imagem disfêmica; por meio dela o autor critica os que costumam expor aos outros a sua intimidade.

    Qual é então oposto da hipérbole? É a hipossemia, que se caracteriza pela diminuição do conteúdo significativo das palavras. Ela ocorre, por exemplo, quando alguém afirma ter sentido “uma dorzinha” que o levou ao a passar três dias no hospital; quando a mãe ameaça dar “umas palmadas” no filho (em vez de uma surra); ou quando o ricaço diz que deu “um pulo” na Europa para saber as novidades.

    Vejam que nesses casos, ao contrário do que ocorre no eufemismo, não existe o propósito de suavizar um conteúdo desagradável. O emissor minimiza o sentido para reduzir a dimensão do que faz, e não para evitar agredir quem quer que seja. O que determina as escolhas é menos o decoro do que o afeto, a emoção.

  • Dominância imposta é ultrapassada, mas a hierarquia é real e necessária

    Sou da época em que se adestrava cães com base na força, dominação e autoritarismo. Havia um consenso de que o ser humano precisava ser o “alpha” da relação para impor mais respeito. Quase todos os profissionais seguiam esse caminho, ensinando-o com tanta convicção que sequer se cogitava outra possibilidade.

    A própria ciência veio corrigir esse conceito ao mostrar que a dominância não é um traço fixo de personalidade, mas uma construção relacional, que depende do contexto e da interação entre os indivíduos. Estudos mais recentes, conduzidos com observações de lobos em ambiente natural — e não mais em cativeiro — demonstraram que os vínculos dentro do grupo se organizam de maneira cooperativa e dinâmica, baseando-se mais em afiliação e estabilidade do que em confrontos contínuos por poder. Essa revisão ajudou a quebrar os grilhões. Mas, nesse processo de compreender melhor a natureza social dos cães, muitos jogaram fora também o bom senso. Abandonaram o conceito de dominação e, junto com ele, a ideia de hierarquia. A meu ver, erraram por excesso.

    Mas vale esclarecer uma coisa: medo não educa, tampouco promove bem-estar. O medo paralisa, mascara sintomas e instala um estado de alerta crônico nos cães, que acabam reagindo como forma de defesa. Tornam-se explosivos, desconfiados e inseguros. “Não se combate medo com mais medo”.

    A verdade é que cães não precisam ser subjugados, mas precisam ser guiados. Sem hierarquia funcional, não há convivência saudável. Na ausência de uma figura estruturante, o cão reativo cria sua própria lógica: ataque preventivo, defesa do território e controle do grupo. Ele não quer mandar, quer sobreviver. E, para isso, antecipa riscos, testa forças, impõe regras. Muitas vezes, busca se posicionar dentro do grupo da qual faz parte.

    Quando o cão está à beira do abismo emocional, é o passo firme do humano que o salva.

    É nesse momento que surge a necessidade da hierarquia, não como tirania, mas como construção. Um cão perdido se apega a certezas. Se o humano estiver preparado, pode se tornar esse ponto de referência. Não por grito, mas por constância. Não por opressão, mas por coerência.

    Muitos confundem controle consciente com opressão. Mas a dominância, de que se trata, não é ausência de liberdade, e sim presença de clareza. Não é leveza o tempo todo. É profundidade constante. Assumir o controle na relação não é prepotência nem covardia. É se colocar com previsibilidade, coerência e foco, de modo que a liderança se instale de forma silenciosa e se mantenha coesa a partir do alinhamento entre presença e ação.

    E quando o cão ultrapassa todos os limites? Quando já não há mais margem para técnicas suaves? Quando o medo se espalha entre aqueles que convivem com ele? Nesse cenário, sim, pode ser necessário agir com firmeza. O alpha roll — tão marginalizado pelos adeptos do reforço positivo —, quando aplicado com equilíbrio, não é punição, mas contenção. Não é humilhação, mas um modo de estabelecer limites e regras. Os métodos que o condenam, muitas vezes, não compreendem plenamente a ideia do reforço positivo, pois, sob nenhuma hipótese, o cão deve deixar de ser recompensado por algo que você intencionalmente comandou.

    Nietzsche dizia: “Quem tem um porquê enfrenta qualquer como.” No caso dos cães, o porquê é o vínculo. O como é o método. E o erro nunca está na técnica isolada, mas na emoção que a move. Um gesto bruto com raiva destrói muito mais. Um gesto firme, sem pena, transforma além do previsível.

    Treinar não é vencer. Educar não é subjugar. Criar não é libertar sem rumo. É construir uma convivência em que o humano assume a condução e o cão encontra espaço para confiar, ter segurança e obedecer. Não, obedecer não é antiquado. O equilíbrio é um templo onde se possa, enfim, baixar a guarda sem perder a autoridade. Mas isso só acontece quando o humano não cede nas primeiras dificuldades nem recua diante da responsabilidade de guiar.

    Sejamos claros: a dominação imposta está ultrapassada. Mas a liderança real continua sendo indispensável. Um cão que já mordeu não se corrige apenas com petiscos. Ele precisa de direção. E quem não souber oferecer esse caminho corre o risco de se tornar só mais uma voz fraca num mundo que o cão já decidiu ignorar. Porque, no fim das contas, nenhum ser fraco será respeitado por uma espécie diferente da sua.

    Educar é assumir a responsabilidade de guiar com firmeza, mesmo quando o processo é instável. Oferecer uma direção sem anular a essência do outro. Para o cão, isso significa confiar sem medo, porque sabe que alguém finalmente assumiu o comando. Confiar, para o cão, é ter o direito ao descanso. Não por se sentir submisso, mas porque enxerga a liderança humano como um pilar de harmonia e sustentação.

  • A falta que faz

    Falta-nos um Nobel. A tão cobiçada e destacada honraria máxima de que ainda carecemos. Nós, o país mais exuberante. O país do samba, do Carnaval, do futebol. Temos de tudo um pouco e fazemos de tudo um pouco. O Brasil é um mundo particular que ninguém jamais decifrou completamente. Além disso, como sabemos, Deus é brasileiro. Só o resto do mundo ainda não percebeu. A Academia Sueca, então, nem se fala, parece querer constantemente desviar da terra de Deus. E nós continuamos sem um Nobel.

    Conquistamos cinco copas. Somos os maiores da história do futebol. Não interessa se estamos numa fase ruim ou se a Argentina nos humilhou na última partida, as cinco taças são nossas, ainda que uma delas tenha sido roubada. Isso, de fato, pouco importa. O mundo esteve literalmente aos nossos pés em 58, 62, 70, 94 e 2002. E, vamos combinar, a única coisa mais bonita do que as cinco estrelas na nossa camisa é imaginá-la com seis. A Olimpíada, que por muito tempo foi o nosso Calcanhar de Aquiles, conquistamos logo duas em sequência para mostrar quem é que manda. A primeira, por acaso, foi aqui no Brasil. Um capricho dos Deuses do futebol. Agora também voltamos a ter o melhor jogador do mundo. Tudo nos conformes. Do 7 a 1 nem lembramos direito, foi um vacilo momentâneo.

    Mudemos o foco por um instante. O Brasil tem as maravilhas da natureza. Me desculpem os europeus, os americanos do norte e o baixo clero dos países do médio oriente. Nós temos o Pampa, o Cerrado e o Pantanal. Nós temos a Amazônia e o litoral mais bonito do mundo. Nós temos as Cataratas do Iguaçu e o Cristo Redentor. Nós temos os Lençóis Maranhenses, o Monte Roraima e a Chapada Diamantina. Nós temos o Delta do Parnaíba, as Piscinas de Maragogi e a Gruta do Lago Azul. Nós também temos as cidades históricas de Porto Seguro, Ouro Preto e São Miguel das Missões. Salvador, São João del-Rei e Morretes. Petrópolis, Olinda e Manaus. E muito, muito mais. Não fosse a inflação um tanto descontrolada e o preço caloroso da gasolina, estou certo de que a população do país inteiro visitaria todas essas cidades. O turismo é claramente um dos nossos pontos fortes, mas é sempre bom ficar atento com carteiras, celulares e afins.

    Além dos conhecidos festejos carnavalescos de início de ano, invejados silenciosamente pelos países mais introvertidos, por assim dizer, temos também o Festival de Parintins e a Semana Farroupilha. Cada um com uma música, uma comida, uma história própria. Nós somos o país do forró, do baião e da bossa nova. Do xote, do frevo e do maracatu. E, apesar de estarmos novamente com um ex-presidente preso, no geral, somos boa gente.

    Agora temos um Oscar para chamar de nosso. Quem diria, hein? Até um Oscar conquistamos, numa festa digna de final de copa, com transmissão simultânea em várias capitais. Somos realmente bons na comemoração das nossas conquistas. Quem não lembra das cambalhotas do Vampeta na rampa do Palácio do Planalto?

    De fato, não sei de onde tiramos coragem para viver assim, tão bem, tão plenamente, sem um prêmio Nobel. Até me envergonho um pouco quando penso nisso durante as caminhadas matutinas. Talvez, se tivéssemos um Nobel, poderíamos tentar evitar o provável colapso financeiro dos próximos anos, sobretudo na Previdência. Talvez, se tivéssemos um Nobel, teríamos evitado o mensalão, o petrolão, os mandos e desmandos na pandemia, o desmatamento na Amazônia, os dólares na cueca, as fraudes no INSS. Pois é. A falta que faz.

    O curioso é que o prêmio Ig Nobel não nos falta. Aliás, até nos sobra. Temos oito. E Nobel que é bom, nada! Deus, que, sendo brasileiro, tem piedade de nós, desprovidos de Nobel, também perdoa, por certa conjuntura divina, a Academia Sueca, que não pousa os olhos sobre nós, os brasileiros, seus tão estimados conterrâneos. E Deus sabe o que faz. A Academia Sueca, por sua vez…

    E olha que nem estou falando das injustiças. Ao que tudo indica, Oswaldo Cruz deveria ter sido o primeiro laureado em terras tupiniquins. Não foi, entretanto. Também esqueceram do Carlos Chagas e do César Lattes. É desolador. Mal posso imaginar como seria avultado nosso orgulho patriótico com um prêmio Nobel. Só de pensar já fico alvoroçado. Não que precisemos de avultamentos dessa natureza, óbvio, e nem precisamos provar nada para ninguém. Mas, particularmente, não entendo como, na literatura, Guimarães Rosa não recebeu tal distinção. Nem ele nem a Lygia, a Clarice, o Cony e o Jorge Amado. É realmente constrangedor, Academia Sueca. Mas deixemos os traumas para outra hora.

    Como dizia, Deus é brasileiro e nos ensinou a não desistir. Então, ainda guardo uma fagulha de esperança de que, em 2025, o Brasil seja finalmente contemplado com um prêmio Nobel. O pesquisador Miguel Nicolelis é sempre um ótimo candidato. Há também outros grandes nomes da ciência no país, como Marcelo Labruna, Fernando Cunha e Carlos Barrios. Alô, Academia Sueca, chegou a nossa vez, não?

    Caso nenhuma dessas opções esteja à altura de tal distinção, tenho certeza de que temos ainda muitos candidatos ao Nobel de economia, visto que as livrarias estão empanturradas de publicações contendo infalíveis dicas para o leitor sair do salário mínimo diretamente para o bilhão em meses, às vezes em semanas, quiçá em horas. Dependendo, claro, de pormenores insignificantes. As cartas estão dadas, Academia Sueca.

    Por fim, com um Nobel poderemos deixar o ostracismo e nos tornar uma potência mundial. Num futuro não muito distante, lembraremos aos risos do tempo em que sustentávamos a síndrome de vira-lata. Abandonaremos, enfim, esse vice-campeonato moral para nos tornarmos golden retrievers, do alto da sua elegância despreocupada. No entanto, para isso, ainda nos falta um Nobel.

  • Poema #21: Eu Queria Fazer um Poema pra Você

    Numa ocasião em que eu estava
    (como das outras vezes) prestes
    a me naufragar no abismo do delírio,
    houve um sorriso de dentes postiços.

    Mas eu já não queria mais cair
    na cilada do amor fugaz e preferia
    estar quieto e fugir para longe do
    alcance de uma outra decepção.

    Então eu me internei num hospício
    e amarrei as minhas mãos ao pé
    de uma árvore frutífera de onde
    eu poderia escavar o chão de barro.

    Ao fim do terceiro dia de psicopatia
    veio a diretora dizer que eu deveria
    partir para um lugar que não sabia
    e me deram um endereço e o contato.

    Era um lugar acolhedor e distante
    coberto de grama e cerca de arame
    mas quando fui atravessar a ponte
    um cão vampiro me atacou de noite.

    Sobrevivi como alguém que se esqueceu
    da longa noite passada e caminha como
    se o dia estivesse amanhecendo de novo,
    apesar do rastro de sangue e a boca seca.

    Havia uma casa deserta e eu pensei em
    largar tudo o que eu não nunca tive e
    vir morar aqui no meio dos bichos que
    comunicam-se através de sinais e apitos.

    Lembro de uma escada pintada de verde
    e uma mulher bonita que veio me atender
    com as mãos estendidas e um sorriso
    encorajador para que eu dissesse tudo.

    Não havia o que contar além do fato
    de eu ter andado ausente e perdido
    e que, nesse período, eu havia criado
    enredos irreais para me manter vivo.

    Tudo era então uma simples questão
    de fechar os olhos para os pássaros e viver
    tranquilo como os homens banidos de si
    e que se refugiam no labirinto do amor.

    Ai que delícia que é poder acordar e dizer
    que estou vivo, mesmo não tendo nada
    ao redor a não ser o microfone em que
    digo isso e acompanhar o seu eco no abismo.

    O Jardim Simultâneo

  • Ela morreu

    Sentada à mesa de um restaurante, aguardando uma amiga para o almoço de celebração da nossa amizade, chegou aos meus ouvidos uma frase, com efeito de fogos de artifício, dita por uma voz feminina, provavelmente da mesa ao lado:

    — Eu confiava nela. 

    No momento que decodifiquei o som e o sentido se fez claro, fui tomada por uma tristeza absoluta e uma identificação imediata com a enganada da vez. 

    Sem que nos conhecêssemos ou tivéssemos intimidade, experimentei, por osmose, a dor causada pelo corte profundo da decepção. O sangrar hemorrágico de um fim que se impõe mesmo diante do perdão. Toda falsidade ou traição fere a eternidade do sentimento, a ingenuidade da confiança. Sem isso, ela é outra coisa. Perde o viço, a raridade, o estado nato de berço. Mas tem quem não se importe, quem acredite que uma vez ferida, ela, a confiança, feito lagartixa, se regenera. Quanto engano! 

    Seu ferimento tem dor profunda, pulsante e incurável. Sua cicatriz é feita de queloide. Impossível retornar ao conforto inicial de sentir-se em casa diante do outro. Esse é o maior luto. A certeza de que não se volta ao estado natural de ingenuidade. Impressionante que as pessoas não se deem conta do que perdem com o fim da fé em si. 

    Eu confiava nela. Que triste! 

  • Um escorrego de morfologia

    A frase abaixo foi retirada de uma matéria da IstoÉ sobre um medicamento contra a impotência:    

    “Por ser ingerido diariamente, não é preciso calcular quando ter relação (os outros remédios exigem um tempo para fazer efeito).”

    Li críticas de professores de português à flexão do verbo “ter” nessa passagem. Dizem que a forma correta é “tiver”, pois ele estaria empregado no futuro do subjuntivo. Um dos que defendem esse ponto de vista escreve: “Este (o futuro do subjuntivo) participa de orações iniciadas pela conjunção ‘se’ (condição hipotética futura) ou pela conjunção ‘quando’ (tempo hipotético futuro).”

    A explicação seria correta se o vocábulo “quando” naquele contexto fosse mesmo conjunção. Ou seja: se a oração iniciada por ele se classificasse como adverbial temporal. Não é isso que ocorre.

    Vejamos por quê. O autor da matéria se refere a um medicamento que, ao contrário de outros com o mesmo fim, pode ser usado todos os dias. Essa frequência traz uma vantagem ao usuário: não precisar calcular o momento adequado para ter relação. Tal vantagem não existe em drogas similares, que “exigem um tempo para fazer efeito” e, consequentemente, determinam que os usuários escolham a melhor ocasião de tomá-las.  

    Assim, a palavra “quando” naquela frase não é conjunção, mas advérbio. Introduz oração objetiva direta, na qual exerce função sintática. Considerar a oração indicada pelo “quando” como temporal deixaria sem complemento o verbo “calcular” e sem sentido a frase (calcular o quê?). De fato, o autor não quis dizer que se precisa calcular “alguma coisa” no momento de ter relação; esse momento (ou seja, o “quando”) é o próprio objeto do cálculo.

    Nesse tipo de construção a oração objetiva se diz justaposta, pois é introduzida por um termo que, ao contrário da conjunção, exerce função sintática. Além de “quando”, podem aparecer outros advérbios ou locução correspondente. Por exemplo:

    — “não é preciso calcular como ter relação” (modo)

    — “não é preciso calcular onde ter relação” (lugar)

    — “não é preciso calcular quanto ter relação” (intensidade)

    — “não é preciso calcular por que ter relação” (causa)

    O infinitivo, nesse caso, constitui o verbo principal de uma locução com auxiliar modal implícito (poder ou dever): “não é preciso calcular quando (se pode ou deve) ter relação”.

    Enganos como o acima referido mostram o perigo de classificar vocábulos ou orações sem atentar para o sentido da frase. Resultam de um hábito por vezes comum no aprendizado da língua, que é o de decorar classes de palavras. Quem faz isto parece esquecer que elas se definem de acordo com o contexto.

  • INTERTEXTUALIDADES

    .

    Um escritor nunca escreve sozinho…
    Antes, escreve com todas as vozes
    Que sussurram a todo instante
    histórias e versos
    Acertos e desacertos
    Melodias e ilhas
    Desconcertos…

    Sou Cecília…
    Oswald, Mário, Carlos… Andrades!
    Sou também Bandeira!

    Camões, Pessoa, Castro e muito mais.

    Sou Clarice…
    Veríssimo, Graciliano, Rosa,
    Sou também o cais.

    Jorge e Murilo e  muito mais.

    Sou o que sou: olha só os tais!
    Pouco, muito…
    E até coisas banais.

    E desfaço o ser quando entender…
    e é o que basta,
    mas

    não sou sozinho, sou inteiro,
    sou vários, por vezes inabitável,
    propenso e líquido

    e, ao mesmo tempo,
    uma cidade inteira
    contrassenso

    Sou Mia, Leminski, Milton
    Caetano!
    E não há engano!

    Sou Machado
    E o texto, ironicamente,
    É mais afiado.

    Sou Carlitos, o vagabundo,
    Sou parte itinerante

    Das lembranças do mundo!
    Sou e não sou a cada hora.
    E o relógio não tarda.

    Agora
    Sou todos os textos e canções
    Sou todas as rimas e emoções

    Um escritor nunca escreve sozinho…
    Antes, escreve com todas as vozes
    Que sussurram a todo instante
    histórias e versos
    Acertos e desacertos
    Melodias e ilhas
    Desconcertos…

  • Rebentada

    Caminha ereta, embora isso custe e doa. Os dois meninos, de cabeças enormes e pernas finas, acompanham como podem o ritmo da mãe. Parecem frangos doentes, ciscando inutilmente num terreno seco. Andam os três sobre uma terra rachada e poeirenta. O horizonte continua distante, tão distante quanto no dia em que iniciaram a jornada a pé. O sol permanece no alto, maltratando os olhos, a pele e a esperança.

    O menor dos meninos, vencido pelo cansaço, senta-se numa pedra e curva a espinha para a frente, até que seu peito quase toque o chão. Visto de longe, parece uma fruta que apodrece aos poucos, mas de perto é só um menino cansado, sujo e com fome. A mãe o ajuda a se levantar e o carrega nos braços, como se levasse um punhadinho de folhas secas caídas de uma árvore, embora naquelas bandas não haja árvore, só deserto.

    Levam já quatro dias andando e ainda faltam mais quatro para chegarem ao campo de refugiados. O outro menino, mais velho e mais esperto, sabe que não vai aguentar. Resolve interromper a caminhada e põe-se de cócoras, as mãos sobre a cabeça. Neste caso não há diferença se visto de perto ou de longe: é um menino que desistiu.

    A mãe põe o pequeno no chão e pensa. Avalia que será impossível avançar com os dois no colo, não terá forças. Levanta os olhos para o céu e chora sem lágrimas, rebentada por dentro. Sabe que vai morrer sob o punhal afiado da escolha, mas não hesita. Olha para um, depois para o outro e recomeça a caminhar, puxando só um deles pela mão.

  • Poema #18 – NA PENUMBRA

    .

    Na penumbra
    me faço grande
    como minha sombra na parede.

    Porém a parede
    não é intacta
    como a cerâmica do banheiro.

    Suas imperfeições
    remetem-me para além dela mesma
    e me vejo em cada detalhe
    mal sucedido de sua arquitetura.

    Na penumbra
    me faço gente
    como as presenças que me povoam.

    Porém o sonho
    não corresponde
    à realidade imaginada.

    Os monólogos com a sombra
    remetem-me para além de mim
    e me sinto em cada possibilidade
    de acender a lâmpada
    e não perder o mágico domínio.

    O Acaso das Manhãs

  • Por isso escrevo – parte II

    Estou revisitando meus contos, crônicas e estudos sobre escrita criativa. De vez em quando, tenho rompantes de “chefe”. Deve ser coisa do hábito — afinal, diz o ditado popular “o uso do cachimbo entorta a boca.” 

    Durante anos, fui supervisora na repartição onde trabalhei e, vez por outra, precisava revisar processos. O quê, como, quando, por quê, para quê.

    Agora estou aqui, na curiosa posição de algoz e vítima da minha antiga função.

    Revejo os cursos que fiz, as anotações, os exemplos, as descobertas. Tudo o que estudei, registrei e arquivei ao longo dos anos dedicados à escrita. Algumas descobertas me orgulham; outras, frustram — como em tudo na vida.

    De tudo tenho a certeza que é preciso coragem para deixar fluir minhas ideias e sentimentos, o caos da minha mente, ver o texto tomar forma e soltá-lo no mundo, para que encontre eco e sentido em meus leitores.

    Ainda assim, o saldo é positivo. Fiz muitos cursos, tive diversos mentores, explorei diferentes camadas da arte de escrever.

    Busco encontrar a essência da escrita criativa e nela me desenvolver.

    Sei onde posso pisar com segurança e onde prefiro não arriscar — como escrever romances, seguir roteiros rígidos, usar escaletas.

    Não, essa forma de escrita, não me atrai.

    Quero escrever. Gosto de contar histórias. Criar crônicas que dialoguem com o leitor, provoquem reflexões ou simplesmente narrem o cotidiano.

    Ainda não li o livro de Marcelo Rubens Paiva que inspirou o premiado Ainda Estou Aqui, mas imagino que seja uma história contada com alma. Uma literatura carregada de emoção, escrita por alguém que viveu aquele tempo e cenário, que sentiu na pele medos e dores. Diante disso, a última coisa que importaria seria a aplicação de teorias sobre escrita.

    É isso que quero dizer: quando um autor permite que sua alma fale, a técnica se torna secundária. O valor está na emoção, na verdade que extrapola a forma do texto.

    Isso significa que o estudo não importa? Claro que não! Mas, lá no fundo, gosto de acreditar que a história precede a escrita.

    E, pelo sim, pelo não, sigo estudando. Porque escrever faz parte de mim — de quem eu sou.

  • A coleira do cão e a coleira do homem

    Um homem de “maus bofes” passeia pela rua com seu cachorro de estimação que, apesar do jeito ranzinza do seu dono, vai caminhando ao lado dele alegre, saltitante, interessado, bem mais que o seu dono, nas alegrias do mundo.

    A alegria do cachorrinho é fascinante, parece totalmente livre e independente do péssimo humor do seu dono; homem que, ao contrário do cachorrinho, é quem parece estar numa coleira. Invisível, sim, mas uma coleira de qualquer forma.

    Bom, pessoalmente, gosto de um trecho das Escrituras Sagradas que diz que “Basta a cada dia o seu próprio mal”; o problema é que, preso por uma coleira invisível amarrada ao pescoço, o homem vai imerso nos seus pensamentos, apegado ao seu humor, sua má sorte; ao contrário do cachorrinho de estimação dele, que celebra dos primeiros raios de sol, cumprimenta os desconhecidos na rua com olhos sorridentes, pula, agita-se, late e, para desgosto do dono, puxa a coleira, arranca o dono de seus pensamentos automáticos, seu jeito robótico e aí o homem puxa violentamente a coleira do cachorro, puxa com raiva.

    Ora, a mesma cena vi em outros dias, outras praças quando, cúmplices da alegria do bicho de estimação, outros donos soltavam a coleira e deixavam o cachorro correr livre, olhavam de longe, deixavam o bichinho gastar energia, experimentar a alegria, o sol da manhã. Depois, chamavam o cachorro pelo nome, pegavam a coleira de volta, seguiam o rumo numa amizade tão bonita de se ver.

    Porém (ah, porém), este não é o caso do homem que vai agora na rua. O cachorro e seu dono, visivelmente incompatíveis, seguem o rumo deles até que, já distantes de mim e do amigo que voltava  comigo de um bloco de carnaval, somem das nossas vistas para sempre.

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