Literatura

  • Tudo novo de novo

    O início de ano, quando há troca de gestão municipal, não surpreende ninguém. E quando há troca de gestão estadual e federal, não é diferente. São comuns os discursos tarimbados, com argumentos fantasiosos e copiados dos governos anteriores (nunca cumpridos, de fato). São mais comuns ainda as votações de projetos polêmicos em ampla aceitação justamente nos dias em que ninguém está com paciência para a política.

    Então, ano sim ano não, a gente acaba passando pelo mesmo tipo de raiva. Não indico remédios, embora os conheça (alguns, inclusive, um nocaute), não indico nenhuma atividade além do saco de pancadas e do ódio, por mais infantil que pareça. Eu diria, inclusive, que sentir ódio da política brasileira é como a gripe: todos teremos um dia. Umas fortes, outras fracas, umas retornam depois de um tempo, outras são curadas rapidamente, mas basta um nariz entupido para o incômodo reaparecer e as lembranças poluírem a nossa memória. Com a política é também assim.

    E, de fato, a mudança de gestão é uma festa. A ala vencedora promete honestidade e transparência. A ala perdedora se cala, tenta um estreitamento de laços e, talvez, uma vaguinha como cargo comissionado, afinal, eles sempre podem precisar de um favor aqui ou acolá. Dois meses antes, se ofendiam mutuamente em debates na rádio ou na televisão, agora discursam em tom harmonioso. Isso é absolutamente normal, porque, como diz o jargão dos anos oitenta ou noventa (não sei, exatamente), a política é suja. Não há como discordar. E esse encardido não sai de jeito nenhum.

    Legislar em causa própria parece ser um dever tão importante quanto prometer melhorias para a saúde e para a educação durante a campanha. Passam meio ano dizendo que precisamos de alternativas, defendendo uma nova forma de fazer política, sugerindo que apenas com eles teremos uma saída para um mundo melhor, sem corrupção e, deveras, desenvolvido. Após a eleição, antes mesmo de assumirem os seus tão almejados postos, conseguem (de que maneira, não sei) angariar apoio e aceitação para votarem em regime de urgência o aumento dos próprios salários. Culpa da inflação, claro.

    Quando nós estamos pensando em descansar, planejando as festas de fim de ano, organizando a ceia de natal, o reencontro com familiares, as férias ou possíveis viagens, eles, nossos amigos vereadores (inclusive os que não se reelegeram ou não tentaram a reeleição), por sua vez, estão votando rapidamente o aumento dos seus honorários.

    Prefeitos, vices e secretários são também lembrados nessa barca, por obviedade. Eu sempre me perguntei por qual motivo os vereadores merecem salários tão altos, visto que, as sessões das câmaras municipais ocorrem, geralmente, à noite, e eles não precisam deixar os seus empregos para cumprir sua função política. Até entendo que, muitas vezes, viajam pra lá e pra cá, buscando apoio, emendas parlamentares e seja lá o que for; no entanto, ainda acho que o pagamento de diárias para esses translados já bastaria (embora recebam o valor da mesma forma, em adição ao salário). Além disso, as sessões, por vezes, não duram sequer uma hora. Então, poderíamos considerar que um vereador de cidade média ou pequena, recebe o equivalente a quatro ou cinco salários mínimos, quando pouco, para participar de quatro ou cinco horas de sessão por mês. Não parece estranho para vocês?

    Não ficarei aqui comparando o custo de cada vereador, nem calculando o salário dos vereadores com o do cidadão comum, tampouco dividirei esse montante por horas trabalhadas. Não gostaria de causar constrangimentos (na verdade, gostaria). Por isso, quero apenas expressar a minha desvelada indignação com os aumentos dos nossos representantes, que chegam, em alguns casos, a dobrar o salário dos ilustres.

    Não preciso lembrar que isso tudo sairá do nosso bolso, cada vez mais vazio. Sinceramente, me revolta saber que calculamos os centavos para pagar as contas, enquanto os impostos que nos consomem acabarão engrossando o feijão daqueles que tão humildemente vieram nos pedir votos e prometer renovações políticas, aqueles que, aliás, nunca mais apareceram. Me revolta ainda mais o fato de fazerem essas votações nos inícios de gestão e rirem quando questionados, defendendo a necessidade de tal acréscimo por conta da inflação, do acompanhamento do mercado ou da equiparação com cidades do mesmo porte.

    Gostaria de dizer um foda-se na cara de cada um que votou a favor do próprio aumento salarial, por mais rechonchudinhos e polidinhos que sejam seus argumentos. É inadmissível pensarem nisso em primeiro plano, quando as cidades enfrentam problemas sociais e ambientais, problemas de mobilidade urbana e segurança pública, problemas de habitação e saneamento básico, problemas com a educação e com a saúde, dentre tantos outros. Mas fazer o que, não é? Rir e desejar um feliz 2025, que seja um ano de muitas realizações, maravilhoso mesmo.


  • VALDIR E FONSECA

    Valdir e Fonseca trabalhavam na mesma empresa. Estavam na casa dos 50 anos bem vividos, um talvez mais do que o outro. Eram também vizinhos, o que não significava que eram amigos. Todos os dias saíam no memos horário, mas Valdir nem sempre voltava para casa antes do Jornal Nacional. Tinham algumas outras tantas diferenças. Valdir era quase mau humorado. Quase. Alto, magro, parecia estar sempre com fome. Mas preservava a cabeleira intacta, motivo de inveja de Fonseca. Quem o conhecia bem, dizia que era uma dama. Mas tinha cara de poucos amigos, talvez para se defender de puxas saco ou de gente chata mesmo. O que dá no mesmo. Ninguém sabia muito da sua vida particular. Muito não, quase nada. Nem mesmo Fonseca.

    Fonseca era quase o oposto. Estatura mediana, um pouco mais gordinho, quase careca. Era casado e achava que não precisava se cuidar muito mais do que um banho de manhã e outro antes de dormir e fazer a barba todos os dias. Não entendia como o vizinho estava sempre bonito e arrumado. E solteiro. Mas o que mais intrigava Fonseca era porque Valdir nunca lhe oferecera carona. Saíam religiosamente no mesmo horário, trabalhavam no mesmo local e provavelmente fariam o mesmo trajeto se Fonseca também tivesse carro. Se. Mas Fonseca ia de metrô, lotado, esmagado, suado, todos os dias. Se casou cedo, teve filhos logo, e, entre estar em casa com a família e estudar ou viajar para aproveitar as oportunidades que a empresa oferecia, preferiu a primeira opção. Não se arrependia. Gostava de ser um homem de família, com uma rotina fixa e a oportunidade de ver os filhos crescerem. Mas agora, com eles crescidos e a mulher cheia de hobbies que não lhe incluíam, sentia falta de algo mais.

    Já Valdir era diretor, só faltava ser presidente. Tinha galgado todos os degraus, de acordo com a cartilha da empresa. Fez todos os cursos, foi para todos os cantos que mandaram e hoje, ia com seu carro reluzente para a empresa. Era um modelo antigo, clássico e charmoso. Não tinha filhos e Fonseca não se lembrava se um dia ele fora casado. Parecia um lobo solitário. Mesmo assim, com todas as diferenças, eles se cumprimentavam todas as manhãs e cada um partia para o seu destino à sua maneira. Enquanto Valdir entrava no seu carro reluzente, Fonseca caminhava 3 quadras até o metrô, pensando o porquê desse comportamento do colega de trabalho. Seria timidez? Não queria se misturar com a ralé? Ou seria puro egoísmo mesmo?

    Resolveu puxar conversa na hora do cafezinho. Trabalhavam também próximos e resolveu esperar o vizinho sair de sua sala para tentar uma deixa. Ao chegar na copa onde todos se reuniam para tomar café, Fonseca atacou sem piedade:

    — Dia quente, hoje, hein?

    — Muito! Nem parece que não estamos mais no verão.

    — Pois é… o metrô estava lotado. Parecia uma sauna!

    — Imagino…

    E Valdir terminou seu café com a mesma cara de poucos amigos de sempre, deu meia volta e foi para a sua sala, sem antes dizer a Fonseca:

    — Até amanhã!

    — Até!

    Mas era muito cara de pau mesmo! O sujeito não tinha nem pena do ser humano que se espremia no metrô lotado. Não podia ser mesmo boa pessoa! Quem seria tão frio assim? Custava oferecer uma simples “caroninha”?

    Fonseca passou o dia todo com raiva de si. Chegava a ficar furioso toda vez que se lembrava da tentativa de amizade frustrada. Amizade não, carona. Chegou em casa praguejando:

    — Você acredita, Janete, que o sr. Valdir se acha muito bom para andar comigo?

    Nessa altura do campeonato, Fonseca já tinha formulado uma história na qual Valdir se achava superior e não consideraria ser amigo dele.

    — Que gritaria é essa, Fonseca? E que Valdir é esse?

    — O nosso vizinho, que trabalha comigo. Está se achando demais!

    — Eu, hein? Muito me admira você querer ser amigo dele. Aquele homem é muito estranho…

    — Estranho como?

    — Nunca reparou? Ele sai sempre no mesmo horário que você, mas nunca volta no mesmo horário. O apartamento fica com as luzes acesas até de madrugada e sempre tem barulho de música ou conversa até tarde. Mas ele nunca aparece com ninguém. Sei não…

    — Como você sabe disso tudo?

    — Às vezes eu acordo de madrugada com o seu…Quer dizer, tenho insônia, e vou beber alguma coisa. Sempre tem movimento por lá, isso as 3, 4 horas da manhã.

    Janete ia dizer que acordava com o ronco do marido, mas preferiu deixar para lá. Fonseca já estava nervoso demais.

    — Mas se ele vai dormir tão tarde, como acorda tão cedo?

    — Deve ser um zumbi! Janete levantou as mãos para dramatizar a sua opinião e Fonseca se benzeu de maneira instintiva:

    — Vade retro, Janete! Para de falar besteira!

    Mas aquilo ficou martelando na cabeça de Fonseca. Seu vizinho era, no mínimo, muito estranho. Não falava sobre a família – se é que tinha alguma – não ia nas festas da firma, não oferecia carona…não fazia nada de normal. Ele, Fonseca, ofereceria carona se tivesse um carro, por que não?

    No outro dia, no escritório, depois de mais uma saga no metrô, Fonseca resolveu tirar aquilo a limpo:

    — Você sabe por que o Valdir não oferece carona para ninguém?

    — Como assim?

    Fonseca ficou obcecado com o tema Valdir. Começou a achar que tinha mesmo algo estranho com o seu vizinho zumbi e resolveu perguntar para os colegas mais chegados o que eles achavam do chefe. Dona Telma, que era secretária de Valdir desde sempre, com certeza poderia esclarecer:

    — Ele já me deu carona uma vez, sim. Mas já tem algum tempo. Por quê?

    Hummmm…Então o vizinho zumbi oferecia caronas para mulheres e não para homens. Podia ser uma pista. Ou era só mais um clichê: chefe dá carona para a secretária na hora do almoço e acaba indo parar no motel. Não, era muito cliché, mesmo para Valdir.

    — Seu Lupércio, me responde uma coisa: O que o senhor acha do Valdir?

    — Seu Valdir é uma dama! Por que o senhor quer saber?

    — É por quê…Porque vamos fazer uma festa surpresa para ele e estamos pensando no que ele gostaria de ganhar. Alguma sugestão?

    — Para o senhor Valdir? Ele merece muita coisa! Pode contar comigo para o presente!

    Agora essa. Nem pegava carona com o dito e agora ia ter que fazer uma festa surpresa. Nem ao menos sabia a data do aniversário de Valdir. Vizinhos há quase 30 anos e nunca se parabenizaram por nada. Nem quando Fonseca se casou, teve filhos…Por que nunca foram próximos? A voz de Janete parecia ressoar no fundo da sua mente: É porque ele é um zumbiiiiii!!!!!!!

    Teria que dar uma olhada no mural da empresa, lá com certeza tinha o aniversário de todos os funcionários. Chegou até a letra V: Vagner, Valentina, Valdir…02 de março de 1964. 02 de março de 1964? Eles faziam aniversário praticamente no mesmo dia, Fonseca era do dia 04. Que coincidência. E nem assim eles eram amigos? Aniversário aproxima as pessoas, ora essa. Fonseca estava sentimental. Poderiam ser irmãos gêmeos praticamente. Precisava corrigir isso. Ia fazer uma festa surpresa para Valdir. Foi para casa cheio de ideias:

    — Janete, vou precisar de sua ajuda. Vamos fazer uma festa surpresa para o Valdir!

    — Ah, pronto…Agora que o homem endoidou de vez!

    — Não escutei, Janete!

    — Nada não, meu marido…Do que você precisa? – Tem horas que é melhor não contrariar.

    — Bolo, balão, salgadinho, brigadeiro…Será que ele gosta de brigadeiro?

    — Alguém não gosta?

    — Tem razão Janete. Todo mundo gosta de brigadeiro. Vamos fazer uma festa de arromba para Valdir.

    Janete só resmungava: Eu, hein?

    No dia seguinte, no mesmo horário, os dois se encontraram como de costume na porta do prédio. Valdir, todo elegante e cheiroso — chegava exatamente assim no escritório, sem nada fora do lugar — e Fonseca com ar de criança travessa, falando apressado:

    — Tá chegando, hein?

    — O que que está chegando?

    — Deixa pra lá…Rs… Melhor não estragar a surpresa!

    Valdir deu de ombros, um pouco confuso com essa mudança repentina do vizinho, enquanto Fonseca caminhou suas três quadras rotineiras de uma maneira quase eufórica. Se sentia leve, como se estivesse prestes a um grande feito. Tinha certeza de que seriam, afinal, grandes amigos. Com direito a carona!

    Dona Telma já estava de prontidão quando Fonseca chegou no escritório. Ela estava responsável por encomendar os salgadinhos e docinhos e queria algumas sugestões:

    — Kibe ou coxinha?

    — Eu adoro os dois!

    — Eu também, mas o Valdir é vegetariano. Talvez uma empada de palmito?

    — Vegetariano? Desde quando?

    — Sei lá. Só sei que é.

    Um zumbi vegetariano? E lá vinha a voz da Janete: Ele é um zummmmbiiiiiiiii!!!!!

    — Chega!

    — Eu, hein? Tá estressado Fonseca?

    — Não, desculpa, dona Telma. Vamos escolher empada de palmito. Mais alguma coisa?

    — Refrigerantes e sucos já forma comprados e deixei na geladeira do refeitório, todas com etiqueta para ninguém mexer.

    — Não vai ter uma cervejinha? Afinal, já será no fim do expediente…

    — O Valdir não bebe, Fonseca! Eu, hein? Por que você quer fazer uma festa para alguém que você nem sabe se bebe ou não?

    — Isso não importa Dona Telma. Mais uma coisa…O Valdir já foi casado?

    — Não acredito, Fonseca. Valdir é viúvo, já tem muito tempo. Sério mesmo que você não sabia nem disso?

    — A senhora há de convir que o Valdir é um tanto reservado, né? Mas depois dessa festa tudo vai mudar, a senhora vai ver. Nós não somos amigos ainda. Mas vamos ser!

    — Tem certeza?

    — Claro, Dona Telma. Seremos melhores amigos, a senhora vai ver! Seu olhar era quase vidrado. Pobre Fonseca.

    Mas o que ninguém sabia, muito menos Fonseca, era que Valdir, nessa vida, não gostava de 2 coisas: aniversários e de dar carona. Não gostava de festa, ficava ranzinza, se achava mais velho e não fazia questão nenhuma de ser lembrado da idade que avançava a cada ano. E a carona…Era mania mesmo. Tinha um carinho especial pelo carro: foi nele que ensinou a esposa a dirigir, aos trancos e barrancos. Ela não gostava, ficava tensa, mas no fim riam de suas inseguranças e da sua total falta de atenção. Como ela sabia rir de si mesma! E como era sensível…Uma vez quase atropelou um cachorrinho e chegou chorando em casa.

    — Mas foi quase, querida, ele não morreu!

    — Mas podia ter morrido Valdir… Não iria me perdoar nunca!

    E ele a consolava em seus braços e nada mais parecia importar. Sua sensibilidade e bom humor eram suas maiores qualidades e conquistavam Valdir todos os dias. Então, ele nem poderia imaginar alguém maculando aquele carro. Além disso, era uma negação pela manhã. Tinha verdadeiro horror, falta de paciência mesmo para conversas matutinas. Dormia pouco, pois adorava ver filmes até tarde – seu único prazer depois de ter ficado viúvo – e se achava péssima companhia pela manhã. Evitava que o outro também lhe achasse chato e ainda preservava seu carro de caronistas que teimavam em bater as portas sem a menor sensibilidade. Não era um zumbi. Era um cricri. Mas também uma dama, segundo seu Lupércio.

    Em casa, Fonseca ficou pensando na mulher de Valdir. Não se lembrava dela, nunca tinha visto uma foto no escritório de Valdir. Estranho…

    — Janete, você se lembra da mulher do Valdir?

    — Mulher do Valdir?

    — Sim. A secretária dele, Dona Telma, me disse hoje que ele é viúvo. Você se lembra de algo?

    — Agora que você falou, acho que a vi algumas vezes. Ana…não, Ângela. Mas isso tem muito tempo…O que aconteceu, eles se separaram?

    — Não, Janete. Ela faleceu.

    — Faleceu? Gente, mas…Fomos à missa, ao enterro?

    — Não lembro, Janete. Isso não é estranho? Será que somos tão insensíveis assim? Nem me lembro do rosto dela. E no escritório do Valdir não tem nenhuma foto, nada que lembre a mulher.

    — Isso sim é estranho… Zuuumbiiiiiiiiiiii!!!!

    Claro que Valdir tinha uma foto de sua Ângela. Uma foto linda, de close, tirada na lua de mel em Veneza. Os melhores dias de sua vida. Ela ficava estrategicamente guardada na segunda gaveta a esquerda da sua mesa de trabalho. Ninguém precisava vê-la além dele. E eles se viam várias vezes durante o dia. Sempre que algo novo acontecia, quando Valdir estava preocupado, sem saber como resolver um problema ou quando queria apenas fofocar. Sim, eles fofocavam muito:

    — Você acredita, Ângela, que a Telma insiste em voltar para aquele tal de Roberto? Já avisei que ele não presta, mas ele parece que não me ouve. Ah, se você estivesse aqui, com certeza saberia como falar com ela. Sinto tanto a sua falta…

    Valdir sorria um sorriso triste e Ângela lhe sorria de volta, como sempre. Seu melhor sorriso, registrado na sua melhor foto. Talvez por isso permanecesse no escritório até altas horas, entre conversas com sua amada e os problemas do dia a dia. Gostava do silêncio pós expediente, conseguia pensar melhor. Era um mundo só dele, como todos os outros. Em casa ou em qualquer outro lugar, era um homem absolutamente só.

    Pela manhã, no escritório, o clima era tenso. Muitos estavam se perguntando por que fazer uma festa para aquele chefe que não gostava de festas, não dava carona e não tinha amigos no escritório. Ou melhor, só tinha um: Seu Lupércio. Ele era o mais animado com os preparativos, junto com Dona Telma, que já tinha até pegado uma carona com Valdir. Vai saber o que aconteceu naquela carona! Chegaram a questionar Fonseca:

    — Por que essa festa em cima da hora para aquele chato do Valdir?

    — Quem disse que ele é chato? Ele é meu amigo, respeito é bom e eu gosto! – Rebatia Fonseca batendo no peito com orgulho.

    — Amigo? Nunca vi ele te dando nem ao menos uma carona…E sei que vocês são vizinhos!

    De novo aquele maldito assunto da carona. Por que raios o Valdir era daquele jeito? Não é possível que não tivesse nenhuma qualidade. Resolveu apelar para seu Lupércio, que insistia em dizer que “Valdir era uma dama.”

    — Você não sabe, Fonseca? Sr. Valdir é um homem muito bom, muito culto…Quando entrei para empresa, era um simples faxineiro. Ele conversava comigo todos os dias, perguntava sobre os estudos, sobre a minha família…Um dia, disse-lhe que gostaria de fazer uma faculdade de administração para ter alguma chance de crescer, melhorar de vida. Ele pagou o meu cursinho e a minha faculdade. Hoje, já sou gerente e pude dar ao meu filho a melhor educação, a que eu não tive. Quando meu filho entrou na faculdade no ano passado o Sr. Valdir fez questão de lhe dar um belo presente. Devo tudo a ele!

    Isso tudo deixava Fonseca ainda mais intrigado. Se ele era uma pessoa tão boa, por que fazia questão de andar de cara fechada e não dar muita bola para ninguém? Para Dona Telma ele dava, ah se dava…

    As perguntas de Fonseca sobre Valdir foram repercutindo na empresa e a insatisfação geral com esse puxa-saquismo repentino dele também. Claro que, mais cedo ou mais tarde, aquilo ia acabar chegando nos ouvidos de Valdir. E chegou.

    — Nunca vi ninguém fazer festa nessa empresa, e de repente o doido do Fonseca inventou de comemorar aniversário do Valdir. Justo daquela “mala”!

    — Pelo amor de Deus, nem me fala! Pior que todo mundo vai ter que ir, vai ser no horário do expediente… Até isso!

    Valdir sentiu um calafrio percorrer sua espinha ao ouvir essa conversa. Estava chegando na salinha do café quando dois colegas acabavam de ter o diálogo. Eles se entreolharam rapidamente e tentaram disfarçar, falando sobre o jogo do Botafogo na noite anterior, que andava mal das pernas, mesmo com o novo técnico e um elenco estrelado. Mas o mal já tinha sido feito. Ele escutara tudo, mas fingiu que não tinha, digamos, entendido:

    — Vergonha, né? Tanto dinheiro investido e o Fogão não ganha uma!

    — O senhor gosta de futebol, Sr. Valdir?

    — Pode me chamar de Valdir, amigão!

    Amigão? Valdir nunca tinha dado nenhum tipo de intimidade para ninguém no escritório. Os dois sorriram meio sem graça e, ainda desconfiados com a amizade repentina, continuaram a conversa com o “amigão.”

    — Então, amigão, estamos combinando de ir ao FLA x FLU no final de semana. Vamos?

    — Mas é claro! Contem comigo!

    Valdir não sabia de onde essas palavras tinham saído. Não ia a um jogo há anos e não sabia nem onde comprar um ingresso. Mas depois que foi praticamente crucificado pelos dois colegas, se sentiu na obrigação de tentar reverter essa impressão. Será que todos pensavam o mesmo? Meu Deus, estava tão envolvido em mostrar autoridade e ser competente, que tinha se esquecido do social. Desde que sua esposa morreu, tinha se esquecido também de si.

    — Dona Telma, preciso falar com a senhora urgente!

    — O que aconteceu, Valdir?

    Dona Telma era sua secretária desde que ele tinha chegado ao cargo de gerente e o acompanhara na ascensão à diretoria e à nova sala, muito maior e elegante. Eles se conheceram quando entraram para a empresa, há quase 30 anos, e se tornaram grandes amigos, confidentes até. Valdir foi o ombro amigo de Dona Telma quando ela perdeu os pais, o seu primeiro gato e depois de todos os foras dos canalhas que ela insistia em namorar. Depois de tanta decepção, resolveu, por fim, adotar outro gato e está feliz e solteira desde então. Da mesma forma, foi Dona Telma que esteve ao lado de Valdir quando a esposa morreu, cuidando de todos os trâmites cabíveis e, também, do coração do amigo, que se despedaçou de tantas formas que até hoje ele não tinha conseguido colar.

    — A senhora sabe que as pessoas me odeiam?

    Dona Telma fez uma expressão que ele conhecia bem: franziu a testa, levou a boca para o lado esquerdo e abaixou a cabeça. Se virou, fechou a porta e voltou-se para ele séria. Começou a frase com um sussurro:

    — Não é que eles te odeiam, Valdir…

    — Você sabia disso e nunca me disse nada? – gritou Valdir exasperado.

    — Fala baixo, pelo amor de Deus.

    — Falar baixo por quê? Eu sou o chefe dessa joça!

    — Valdir, olha só…

    — Conheço o seu “olha só”. Não quero saber de olha só!

    — Não é que eles te odeiam. Na verdade, acho que ninguém aqui te conhece bem. Você não vai aos happy hours, não oferece carona, não conversa muito…Até o Fonseca, que está preparando a festinha surpresa do seu aniversário, não sabia que você era vegetariano, por exemplo. Talvez, se vo…

    — Como é que é? O Fonseca está organizando uma festa surpresa para mim?

    Naquele instante, quem gelou foi Dona Telma. Ela mesma havia se esquecido que o seu chefe e grande amigo DETESTAVA aniversário, muito mais festa surpresa. Tentou se justificar:

    — A culpa é sua! Ele veio com uma conversa estranha se você oferecia carona, depois descobriu que o seu aniversário é colado no dele e agora resolveu que vocês serão grandes amigos depois da grande festa que ele está organizando. Quem mandou ser assim?

    — Telma, eu não acredito que você deixou isso chegar nesse ponto!

    — Ou era isso ou eu teria que contar que você é uma dama, que me deu carona várias vezes para eu visitar o meu pai no hospital e aí a sua fama de mal ia para o brejo. Qual vai ser?

    Valdir respirou fundo. Contou até 10…100…Parecia que ia explodir. Dona Telma fechou os olhos institivamente esperando a bronca homérica que estava por vir. Mas Valdir foi se acalmando quando chegou no 99. Seu rosto voltou a cor normal e o sangue parecia ter voltado a circular pelo resto do corpo. Estava em uma verdadeira encruzilhada da vida. Aquele momento em que você precisa tomar uma atitude drástica: Ou se mantinha durão e antipático, ou se tornava um chefe descolado e sociável, com direito a dar carona e a sorrir na festa surpresa.

    Quando finalmente abriu a boca para falar, nem mesmo Valdir se reconheceu. A fala veio mansa, suave, e ele disse:

    — Ajude Fonseca a fazer uma bela festa. E vamos pensar em uma maneira dos vizinhos darem carona uns aos outros. É isso.

    Dona Telma foi abrindo os olhos devagar, tentado enxergar aquilo que seus ouvidos não acreditavam. Parecia pronta para receber um grande impacto, mas seu corpo todo foi saindo da defensiva e voltando ao estado normal. Ainda sem acreditar, apenas respondeu:

    — Pode deixar.

    E saiu da sala ainda querendo entender o que havia acontecido lá dentro.

    Finalmente, o dia da grande festa chegou. Fonseca não se aguentava mais, quase havia deixado escapar para Valdir alguma pista nas várias vezes que se encontraram na hora do café, mas respirava fundo e dizia apenas:

    — Tá chegando!

    Esse “tá chegando”, que antes havia deixado Valdir apenas confuso, hoje lhe dava cólicas de aflição. Por já saber da festa, teria que fingir a surpresa, e mais: fingir que havia adorado a surpresa. ADORADO, como aconselhara Dona Telma, para que ele mudasse a sua má fama na empresa. Até treinar na frente do espelho Valdir estava treinando. Mas o seu maxilar parecia ter se esquecido de como era sorrir. Cada tentativa parecia mais falsa do que a outra e ele tinha medo de que a sua expressão se congelasse e ele nunca mais pudesse se mexer. Era como um botox eterno. Por que precisava tanto da aceitação do outro? Tudo estava tão bem do jeito que ele já estava acostumado!

    O dia foi passando normalmente. Valdir almoçou sozinho como de costume e, ao escovar os dentes, treinou mais algumas expressões que pudessem alegrar Fonseca. Teve medo daquelas caretas e tentou relaxar, dizendo um “Seja o que Deus quiser’. Tentou se concentrar nos problemas da empresa que não eram poucos, mas o relógio parecia ter se tornado seu inimigo: As horas se arrastavam da maneira que ele tanto havia pedido em outros momentos da sua vida. Quando descobriu a doença terminal da mulher. Quando escutava seu riso já fraco. Quando seus lábios não queriam se desgrudar e o abraço se fazia ninho. Como queria ter mais um minuto ao lado dela. Como sentia falta da sua companheira de vida!

    — Vamos?

    Era Dona Telma, toda faceira, despertando Valdir de suas lembranças. Ela estava toda arrumada, parece que a festa ia mesmo ser boa.

    — Tem certeza que preciso mesmo ir?

    — A festa é para você, tem graça se não for, né?

    — Delicada, hein?

    Eles riram juntos daquela cumplicidade boa. De repente, Telma parou seu sorriso com as mãos e disse:

    — É isso! Faz assim que será perfeito.

    — Obrigado amiga. E me lembra de ligar para a oficina depois, tenho que buscar meu carro.

    — Sim senhor! Ela esboçou uma continência, ele lhe deu um abraço. Foram juntos para o salão nobre da empresa, que já estava todo enfeitado.

    Assim que se aproximaram, Fonseca abriu a porta de repente e gritou:

    — SURPRESA!!!!!

    Talvez tenha sido a cara de felicidade de Fonseca ou o primor que tudo tinha sido feito. Mas a questão é que Valdir conseguiu dar um belo sorriso. Daqueles que veem do coração mesmo. Dona Telma enxugou uma lágrima teimosa.

    — O senhor gostou?

    — Está uma maravilha!

    Fonseca não se aguentou e partiu para o abraço. Aquilo era a glória. Meio desajeitados, acabaram preferindo um aperto de mão.

    — Excelente trabalho Fonseca, parabéns!

    — Parabéns para você, amigão! Na cabeça de Fonseca, já eram íntimos.

    E todos começaram a bater palmas e se aproximaram do chefe para cumprimentá-lo. Era uma bela festa, e Valdir realmente estava gostando. Era como um sopro de alegria em tantos anos de uma quase clausura. Finalmente parecia achar graça em algo que não tinha a ver com a sua casa e as suas lembranças da esposa. Desde o seu falecimento, só queria saber de trabalhar e rever os filmes que tinham visto juntos. Ele gostava de imaginar que ela estava ao seu lado, dando sua risada gostosa ou chorando das cenas bobas. Falava sozinho, tentava lembrar do que ela havia dito em cada cena, ria da mania que ela tinha de adivinhar em qual filme aquele ator italiano tinha atuado. Como sentia falta desses momentos…

    — Continue sorrindo assim que amanhã muitos já vão te adorar!

    Era Telma novamente o aconselhando. Mal sabia ela o motivo dos seus sorrisos. Mas é claro, estava se sentindo bem com toda aquela atenção e sabia que poderia ser uma pessoa melhor ao se aproximar dos seus colegas de trabalho. Resolveu começar por Fonseca:

    — Muito obrigada por essa festa, Fonseca. Realmente não tenho palavras para lhe agradecer. Faço questão de te dar uma carona hoje. Somos vizinhos, afinal!

    Fonseca mal se conteve na frente de Valdir. Lhe deu uns tapinhas nas costas e foi correndo para o banheiro. Chorou um choro de menino, aquele que finalmente teve aprovação do pai, mas ao mesmo tempo não quer que ele lhe veja emocionado.

    A festa fez tanto sucesso que entrou noite adentro. Alguns compraram cerveja, pessoas de outros setores acabaram dando uma passadinha, tudo ia às mil maravilhas. Valdir circulava entre todos, sempre ao lado de Dona Telma, que lhe dava um resumo rápido antes dele se aproximar de alguém:

    — Esse é o Ricardo, do Financeiro. Acabou de ter um filho.

    — Ricardo, parabéns! Ser pai é uma grande alegria, aproveite!

    E Valdir convertia mais um. Dona Telma seguia firme:

    — Essa é a Carolina, começou há pouco na empresa e já tem se destacado.

    — Carol, já estou sabendo que você está bombando!

    E recebia um ou outro beliscão de Dona Telma quando passava do ponto:

    — Carol, Valdir? Que intimidade é essa?

    — Me deixa, Telma. Sou iniciante nessa arte!

    E eles riam e voltavam à missão de fazer Valdir ser um ser social.

    Depois de vários abraços, comentários amigáveis e excesso de socialização, Valdir estava pronto para voltar ao seu refúgio. Não sem antes chamar Fonseca para a tão esperada carona.

    — Vamos Fonseca? Te deixo em casa!

    Era tudo que ele sempre sonhara. Foram juntos até o elevador e Valdir apertou o G. Estava mesmo acontecendo. Fonseca ia entrar no carro de Valdir. Iam trocar figurinhas, falar da festa, quem sabe eles não falavam um pouco de trabalho? Não, hoje não, hoje era dia de festa. Falariam sobre coisas amenas. Fonseca iria convidar Valdir para jantar na sua casa no dia do seu aniversário. Jantar não, ia fazer um churrasco no salão de festas, isso. Eles entrariam no carro e Fonseca talvez dissesse que estava pensando em comprar aquele modelo. Valdir lhe daria as dicas, quem sabe até lhe desse um aumento para lhe ajudar? Seria o começo de uma grande amizade, tinha certeza disso.

    Assim que o elevador se abriu, Valdir começou a procurar as chaves do carro. Colocou as mãos nos bolsos da calça, do paletó, da camisa. Pediu para Fonseca esperar enquanto abria a maleta e procurava as chaves dentro dela, em cada cantinho da sua bela maleta de couro. Fonseca achava tão elegante ter uma maleta de couro. Um dia teria a sua, tinha certeza. Quem sabe Valdir não lhe daria uma de aniversário?

    — Meu Deus, onde foi que deixei as minhas chaves?

    — Será que, por descuido, você não deixou dentro do carro?

    — Será? Do jeito que estou distraído ultimamente, pode até ser.

    — Onde ele está estacionado?

    — F1

    — Estamos no E, deve ser logo ali.

    E foram seguindo a direção que o dedo de Valdir apontava.

    — F0, F1… é aqui?

    — É. Ou melhor. Deveria ser.

    — Não tem carro nenhum aqui, Valdir.

    — Sim, estou vendo. Mas não estou entendendo.

    — Como assim? Você me faz vir até aqui, promete me dar uma carona, mas não tem carro nenhum estacionado?

    — Devem ter me roubado!

    — Ah, tá. Você passa a vida toda me esnobando, nunca me oferece carona, e no dia que eu faço uma megafesta para comemorar o seu aniversário, você me vem com uma pegadinha?

    — Que pegadinha, Fonseca? Você realmente acha que eu iria perder meu tempo mentindo para você? Se ofereci carona é porque sabia que meu carro estaria aqui. Ou pelo menos achei que sabia.

    — Ah, conta outra…

    — Meu Deus do céu, Fonseca. Juro que a minha intenção era te dar carona, mas que diabos! E outra: não te pedi festa nenhuma, você fez porque quis!

    — Ah, mas é claro! Estava só faltando essa! Eu pelo menos gosto das pessoas, e se tivesse carro daria carona para todo mundo!

    — Chega, Fonseca. Vou ligar para Dona Telma, perguntar se tem segurança por aqui e ver o que podemos fazer. Já parou para pensar que posso ter sido roubado? Tenha dó!

    — Aham…

    Já arrependido de ter oferecido a tal carona, Valdir liga para Dona Telma:

    — Telma, olha só. A vaga do meu carro sempre foi a F1, não foi?

    — Claro, desde que você se tornou diretor. Por quê?

    — Porque estou olhando para ela e meu carro não está aqui.

    — Claro que não está. Você o levou para a oficina hoje de manhã. Até pediu para que eu lhe lembrasse de ligar para lá amanhã.

    Valdir quis soltar um palavrão, mas ficou com medo da reação de Fonseca. Ele jamais iria acreditar naquela história.

    — Isso mesmo, Dona Telma. A senhora tem toda razão. Vou lá agora mesmo.

    — Ficou doido?

    — Boa noite, Dona Telma. Bom descanso.

    — O que aconteceu? Vai dar carona para Dona Telma e está disfarçando comigo?

    — Só me faltava essa agora, Fonseca. Dona Telma também acha que meu carro foi roubado e devo ir à delegacia dar parte. Vou pegar um táxi até lá, posso pedir um para você também.

    — Não preciso que você me peça nenhum táxi. Vou para casa da mesma forma que venho trabalhar todos os dias, de metrô. E não pense que eu caí nessa história para boi dormir não. Relações cortadas!

    E Fonseca foi andando duro, como se tivesse sido magoado pelo grande amor da sua vida. Pegou o cartão do metrô e encarou o seu destino. Nunca iria andar no carro de Valdir.

    Ainda parado ao lado da vaga, sem saber como pedir um táxi àquela hora, Valdir praguejava:

    — É por isso que nunca dou carona!!!


  • #05 – A Besta de Gevaudan (*)

    .

    “entre os anos de 1764 e 1767 os habitantes da pequena província francesa de Gevaudan, atualmente parte de Lazere, próximo das montanhas Margueride foram aterrorizados por uma criatura lupina que passou a ser conhecida como La Bête Du Gevaudan ou “A Besta de Gevaudan”

    eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha.

    a primeira mulher atacada conseguiu escapar e chegar até ao seu vilarejo, de onde passou a adotar um comportamento estranho e agressivo. Após esse episódio, seguiu-se um tempo de calmaria, mas próximo ao natal o cântaro de água derramou e mais uma pessoa desapareceu e localizaram os seus restos terrivelmente mutilados em uma ravina. Suspeitaram então que um nobre renegado estava por detrás daquelas mortes, transformando-se em um lobo demoníaco em noites de lua cheia. as pessoas do vilarejo foram ficando incomodadas com essa presença lupina comendo a sua comida, remexendo os campos e invadindo as suas propriedades. Montaram então uma expedição de militares com um arsenal de 50 mosquetes, lanças com mais de dois metros de comprimento, armas que disparavam setas de ferro, bombas explosivas de pólvora negra, armadilhas e correntes para capturar o intruso animal. Os homens da expedição usavam armaduras negras de couro batido e metal cheio de espinhos, cabelos moicanos e pinturas de guerra. As suas peles eram besuntadas com os despojos de uma loba no cio para atrair a fera sanguinária. Esses trajes exalavam um fedor nauseabundo. Tudo preparado para fazer o abate, mas a besta atacou antes e matou várias pessoas da tropa. Então os aldeões revoltados se armaram com ferramentas, paus e pedras e um desespero de iconoclastas, e nada. Tudo fracassou e contrataram então um taxidermista de Paris. A nova expedição ou empreitada contava com 40 caçadores e uma dúzia de cães farejadores. Os homens concentraram-se em uma área rochosa, repleta de ravinas e onde se dispunha de água potável ao que tudo indicava ser o covil da fera. Esta última tentativa se enveredou pela floresta tendo como líder um taxidermista especialista em folclore e superstições e que, armado com projeteis e balas de prata que foram abençoadas pelo pároco local. Chegaram num bosque próximo de Gevaudan onde recitaram uma série de orações e cantigas místicas. E logo a fera, na forma de um lobo, apareceu e então todos dispararam com suas pistolas e os projeteis de pura prata que vararam o corpo da besta que caiu fulminada. Para alguns aquela era de fato a besta carniceira e quando tiraram a máscara de pelos e sangue era um homem com trajes de um maluco monge e assim foi queimado e as suas cinzas espalhadas ao vento. Foi preciso o decurso de algumas semanas até que dessem falta do homem tosquiador e descobriram então que a besta não passava do camponês que tosquiava as ovelhas e se chamava “O Monstro” e a sua descrição batia ipsis litteris com aquilo que eu era na aldeia.

    eu já fui quase do tamanho de um touro ou de um urso, meu braço e dedos direitos, em função de sequelas, pareciam garras afiadas e o conjunto todo era de uma aparência medonha, ectoplasmática.

    Da Essencialidade da Água

    (*) transcrição livre e poética do famoso caso ocorrido na França do século XVIII


  • A primeira crônica do ano

    Esta é a primeira crônica do ano. Um ano novinho cheio de sonhos e projetos para o futuro!

    Esta é uma crônica de início. Uma crônica que cheira o novo, como presente recém-aberto, esperando ser tocado, usado, experimentado pela primeira vez…

    O que imaginamos de um ano que se inicia?

    Que sejamos felizes e tenhamos paz?

    Que conquistemos tudo aquilo que desejamos?

    Que nossos esforços sejam recompensados?

    Na virada do ano, quando os fogos de artifício colorem o céu das cidades, olhamos para cima, extasiados com a profusão de cores e luzes. Nesse momento, fechamos os nossos olhos e desejamos um ano incrível, diferente do anterior (sempre o ano que virá tem a promessa de ser melhor do que o que passou).

    A verdade é que desejamos um ano inteiro todo novo e melhor, mas não mudamos por dentro.

    Desejamos o novo, mas não somos o novo!

    Esta é a primeira crônica do ano e, por isso mesmo, cumpre seu papel de registrar o que fazemos nesse período: desejar coisas boas e querer o melhor!

    Entretanto, esta mesma crônica fica como uma reflexão: cuidemos de nós por dentro para que tenhamos um ano melhor.

    Sejamos melhores e o ano, de bom grado, será melhor também!


  • Humor e Velhice

    Fala-se que, na velhice, a vida perde a graça. Discordo. Quem perde a graça é o velho, não a vida, que sempre está aberta a quem quer desfrutá-la. Uma das formas de evitar que a graça se perca, mesmo sendo avançada a idade, é cultivar o humor.

    O bom humor diante das limitações que a idade impõe é uma forma de resignação ativa. Existe a resignação passiva, que leva à tristeza e a uma espécie de submissão ressentida aos percalços da idade. Não é essa a que o humor propicia, pois quem ri da própria condição mostra que não se submeteu a ela.

    O riso não apenas “castiga os costumes”, conforme a expressão latina; não é só um instrumento de crítica social e um recurso para transformar as instituições. Ele também constitui um meio de aferição das carências individuais. Concorre para que o indivíduo tenha a exata medida do seu valor e, sobretudo, reconheça suas fraquezas e impossibilidades.

    Rir de si mesmo é um gesto grandioso porque vai de encontro ao egoísmo e à presunção de superioridade sobre os outros. Só os grandes espíritos são capazes disso, pois não temem se ver como verdadeiramente são, quer dizer, sem as máscaras com que normalmente atuam na sociedade. “Atuam” é bem o termo, pois o convívio com as outras pessoas tem muito de representação. E ninguém representa o que é, mas sim o que pensa ou deseja ser.

    Rimos do absurdo de certos comportamentos, como o de se deixar filmar vandalizando a sede dos Três Poderes; da hipocrisia dos que no púlpito pregam virtudes, mas na prática são capazes de atos extremos como assassinar alguém; dos que falsamente invocam a pátria e a família para conquistar o poder. O riso atesta um descompasso entre o propósito e a feitura, a expectativa e o fato, a visão do mundo e o que o mundo realmente é.

    Fala-se que os humoristas são tristes, o que em nada surpreende. Se escolhem o humor, é porque há nele a revelação da impotência humana para mudar o que a vida tem de insuficiente e frustrante; os humoristas traduzem como poucos essa dura percepção. Toda manifestação de humor é, no fundo, um gesto de piedade. Só que o humorista não tem o propósito de salvar nada nem ninguém; ri desse ingênuo propósito, que não nos redime da nossa condição.

    Aos velhos, para os quais tendem a se fechar as possibilidades de viver plenamente, o humor é uma espécie de volta por cima. Um meio de superar as limitações de um corpo no qual mínguam os recursos vitais. Nessa quadra da vida, propícia ao cultivo do espírito, o riso aparece como um saber que consola – com a vantagem de reduzir a pressão e aliviar as coronárias. É preciso desconfiar dos velhos que não aprenderam a rir.


  • Clementina

    Este ano toca plantar e colher milho, já deram a ordem. Antes já foi feijão e trigo. Milho agora. A gente ouve, a gente cumpre. Mas não vai chover uma gota, disseram. Outra colheita perdida. Apesar de tudo, Clementina segue na lavoura, cavucando a terra seca com a enxada sempre à mão, fazendo valas, eliminando as ervas daninhas, arrancando cogumelos e caracóis, preparando o terreno.

    Edimburgo, que preciosidade, como veio gordinho e perfeito! Clementina viu a foto do pôr do sol na vitrine de uma agência de viagens antes de entrar no mercado para vender seus legumes e frutas. Estava para cumprir os nove meses e Edimburgo veio uma semana depois, que a natureza sabe agir como deve. No dia seguinte estava em casa e todos bateram palmas. O menino dormia.

    Clementina se lembra, seu casamento foi feito às pressas porque logo ia chegar a temporada dos tomates, depois a das azeitonas e em seguida seria o tempo dos morangos, e tempo era o que ela não podia perder. Foi quando Tereza chegou. De sete meses e meio, apesar dos três quilos bem pesados e de quase arrebentar a balança — era isso o que a avó fazia questão de contar naqueles tempos, sempre que via a neta arrumadinha para a escola. Depois Clementina percebeu que Tereza tinha vindo antes do tempo para abrir e apressar o caminho. A fila já estava preparada, era só descer.

    Foi um por ano. Marcelino, Isaura, Tomás, Percival, Marrocos, João Clemente e Célia Maria, sem contar os gêmeos, que chegaram feito duas folhas de papel transparente e até se via cada uma das veias das perninhas. Clementina quase nem percebeu, eles escorregaram de seu entrepernas quando ela estendia as roupas no varal. Não vingaram. Enterrou os dois lado a lado no canto do quintal, onde nunca falta flor.

    Clementina está cerzindo meias, entretida nesses pensamentos. Daqui a pouco vai fazer o cálculo de quantos braços dispõe para oferecer mão de obra ao dono da terra e incrementar o orçamento da casa. Célia Maria, apesar de muito nova, pode cuidar do Edimburgo, que é bebê ainda. Os demais, cada um já ganhou de presente a sua própria enxada. Não tem homem, não tem mulher: é todo mundo, sem distinção. Disseram que não vai ter chuva, mas o trabalho será feito. Clementina é quem garante.


  • Sílvia Maria

    Toda noite o barulho dos saltos de Dona Sílvia estalava no assoalho de madeira. O ritual era sempre o mesmo: ela conversava alguns minutos ao telefone, abria uma garrafa de vinho, tomava um banho demorado, se arrumava e esperava o próximo chegar. Ele tocava o interfone, ela calçava os saltos e saía apressada para abrir a porta. Parecia recuperar o fôlego antes de dar o primeiro “Oi!”, e o que se passava depois era sempre abafado por barulhos de beijos e outros um pouco mais comprometedores. Tudo durava no máximo duas horas e aí outro ritual começava: o rapaz se despedia, ela guardava as taças, abria a porta, talvez o beijasse, e descalçava os saltos no meio do corredor. Ligava a TV, abria mais uma garrafa de vinho e chorava vendo algum filme meloso até o dia raiar.

    Nunca vi Dona Sílvia sair de casa antes do meio-dia. Os motivos eram meio óbvios, mas ela estava sempre radiante no meio da tarde. Viúva, bonitona, ia sempre à academia, e talvez pela endorfina, parecia até estar de bem com a vida. Parecia. Dizem que nunca esqueceu o marido e todas as noites chamava um rapaz diferente para, digamos, conversar. Não sei exatamente se era falta de carinho ou mesmo de sexo. A questão é que ela era uma mulher realmente solitária. Os filhos quase nunca a visitavam e pareciam não aprovar essa nova forma de diversão da mãe. Mas, essa forma seria realmente nova?

    Menina bem-criada, educada em um conceituado colégio interno, aprendeu a tocar piano, sabia bordar como ninguém e se casou com aquele aprovado pelo pai. Não era só por amor, mas também por conveniência. Uniam-se sobrenomes, fortunas e filhos de maneira prática e constante naquela época.

    Como eu sei de tudo isso? Bem, isso é quase – ou bastante – constrangedor, mas um dia precisei entrar às pressas no apartamento dela. Digamos que algo saiu um pouco do controle e Sílvia se machucou com um dos rapazes. Como sou o vizinho mais próximo, acabei ganhando a missão de levá -la até o pronto socorro e trocamos algumas palavras – por educação, a princípio – mas nas visitas que lhe fiz, também por educação, fui me encantando com aquela mulher e seu modo de viver nada tradicional. Como consequência do ato impensado, Dona Sílvia quebrou o braço direito, o que a impossibilitava de fazer a maioria das atividades domésticas. Ela não me pediu diretamente, mas fez parecer que estava me fazendo um favor aceitando a minha presença em sua casa diariamente. Como eu estava tralhando em um livro e não tinha horários fixos – muito menos rígidos – para sair ou fazer algo na rua, podia dar a ela o privilégio da minha presença. Ou vice-versa, como ela colocou desde o início. O que poderia ganhar em tão insana companhia?

    No primeiro dia que fui ajudá-la encontrei a porta aberta e um cheiro doce de café e algum quitute que parecia estar sendo feito na hora. Dona Sílvia cantarolava uma canção e não parecia nada impossibilitada, mesmo com o gesso no braço direito. Sua casa era repleta de lembranças do que pareciam ser os seus áureos tempos. Além de várias fotos, provavelmente de filhos e netos, na parede principal da sala um quadro imponente se destacava. O homem retratado era tão imponente quanto e, tanto a moldura dourada quanto o semblante rígido traziam uma aura quase imperial. Quem poderia ser? Móveis pesados contrastavam com a leveza das cortinas e o colorido das almofadas. Tudo parecia requintado, caro, menos as imagens de Nossa Senhora que surgiam em diferentes estilos e tamanhos. Uma devota, com certeza. Sílvia também era Maria e naquela tarde ela vestia um robe salmão de cetim e parte do seu corpo podia ser vista entre uma e outra conferida no forno. Não me entendam mal, não poderia ter nenhum tipo de atração por aquela senhora que muito bem poderia ser minha mãe ou uma tia mais velha. Mas devo admitir que, para seus anos de experiência, ela estava mesmo em forma.

    – Você gosta de broa de milho? – Ela me perguntou entre uma estrofe e outra de alguma música de Maria Bethânia. Ou era do Roberto Carlos?

    – Adoro. Lembra as tardes da minha infância!

    – A mim também! Mas tenho certeza de que você nunca comeu nada igual à minha broa.

    Pode parecer loucura, mas percebi uma certa malícia na palavra “broa”. Ok, eu poderia estar delirando, pelo total marasmo sexual que se tornara a minha vida.

    – Esta receita é de uma beata que sempre fazia broa para os lanches de domingo na igreja que eu frequentava na minha terra. Era o primeiro quitute que acabava… não sobrava nem farelo!

    Realmente, nunca tinha provado nada igual. A broa de milho do Rio é seca, apenas com milho e farinha. A de Dona Sílvia vinha recheada de pedaços de queijo minas e ainda tinha raminhos de erva -doce. Ela derretia na boca e enchia todos os sentidos com novos cheiros e sabores. Acompanhada do café fresquinho, era quase um orgasmo gustativo. Ok, vou parar de fazer comparações sexuais. Dona Sílvia podia ser minha avó!

    – Nem sei como agradecer a sua presença, querido. Não sei o que faria sem você!

    – Pelo visto, a senhora está se saindo muito bem sem poder usar o braço direito!

    – Claro, querido! Sou canhota!

    Ardilosa, aquela mulher.

    – E, na minha época, ser canhota era como ser bruxa. Ou até mesmo o próprio belzebu. A mão esquerda sempre foi tida como coisa do capeta. Na escola, amarra- vam a nossa mão “errada” e nos forçavam a fazer tudo com a mão direita. Acabei aprendendo a usar as duas e nunca tive dificuldades em usar ambas. Ou cada uma delas da maneira que fosse preciso. Você sabia que até mesmo fazer o sinal da cruz com a mão esquerda era pecado? Nem sei se ainda é… Ainda se faz isso?

    – Sinceramente, não sei, Dona Sílvia…

    – Sílvia! Pelo amor de Deus! Não é porque tenho idade para ser sua mãe que você precisa me tratar como uma viúva italiana. Acho que devo fazer mais sexo do que você… Não tenho ouvido muitos ruídos vindos do seu apartamento!

    Sinceramente, não sei se estava comendo a broa ou tomando o café naquele momento, mas me senti tão envergonhado que só me recordo de ter cuspido alguma coisa… Ou ambas. Dona Sílvia, que poderia tanto ser minha mãe como uma das minhas professoras do ginásio, falava sobre sexo com a ousadia de uma ninfeta ninfomaníaca. Como assim, não escutava ruídos do meu apartamento? E a noite em que… E a que… Bem, venhamos e convenhamos que as coisas estavam um pouco paradas, eu estava concentrado no livro – que ainda estava no primeiro capítulo – mas ser humilhado por uma quase anciã era demais!

    – Dona Sílvia… – ou melhor, Sílvia –, me desculpe, mas eu não falo muito sobre esse tipo de assunto com pessoas com quem não tenho muita intimidade. Na verdade, acho que nunca falei sobre esse tipo de coisa com ninguém!

    – Meu Deus, mas por quê? Temos todos a mesma origem, somos seres sexuais, gostamos mais ou menos das mesmas coisas. Ou você não gosta de transar? Tem gostos bizarros?

    Minha cabeça parecia que iria explodir a qualquer momento e sentia um calor febril nas faces. Devia estar muito vermelho e gostaria apenas de sair daquele apartamento.

    – Realmente não entendo essa frescura toda quando o assunto é sexo. Se seu pai e sua mãe não tivessem feito nada disso, você não estaria aqui. Apesar de que, na minha época, a mulher transava mesmo para procriar. Você sabia que ninguém se importava se a mulher gozava ou não? E não tinha esse negócio de preliminar, não! Nosso corpo era como um santuário: não podia ser explorado, apreciado, revirado… Quanta bobagem, meu Deus! Algumas camisolas que usávamos na noite de núpcias tinham apenas uma
    abertura na… Bem, você sabe onde. Todo o resto do corpo ficava coberto, não tinha função. Fui descobrir as delícias de uma boa chupada no peito depois de viúva. Dá para acreditar? E é um manjar dos deuses, pode acreditar! Ainda atônito com a imagem de meus pais me concebendo, fiquei imaginado como uma pessoa poderia conjugar no mesmo parágrafo tanto Deus com um quase nome do órgão sexual feminino. Desculpem, mas me recuso a falar buceta. Que seja, então. Estava tonto demais com tanta informação.

    – E você? O que mais gosta na cama?

    Entendi como uma deixa: percebi que era hora de ir.

    Perguntei se ela precisava de mais alguma coisa, agradeci o lanche e deixei meu telefone para qualquer emergência. Nem meu terapeuta havia tentado invadir a minha intimidade com tamanha fúria. Levei um pedaço de broa para o café da manhã – ela insistiu – e ainda tentava esquecer a imagem de meus pais em atos obscenos quando cheguei em casa.

    Mas não foi exatamente essa imagem que não me deixou dormir. Tentava descobrir quem era aquela nova Dona Sílvia. Sílvia. Sabia que ela recebia seus amantes, que não era muito bem vista pelas outras mulheres do prédio, mas nunca imaginei que ela teria tamanha naturalidade ao falar sobre assuntos que me envergonhavam até em pensamento. Com certeza ela não teve uma criação liberal, não na época em que nasceu. Havia se tornado hippie? Era adepta do amor livre? Tinha uma vida secreta que escondera dos filhos e do marido? Quem era realmente Dona Sílvia? Ou melhor, Sílvia Maria.

    Esse era o nome que constava na conta de luz que usei como desculpa para rever a minha misteriosa vizinha. Toquei a campainha com a conta e uma vasilha com outro pedaço de bolo, esse comprado na confeitaria da esquina. Posso não ser um lorde, mas aprendi algumas coisas com minha mãe. E uma delas é que nunca se devolve um prato ou uma forma de bolo sem alguma coisa dentro. Comestível, de preferência.

    – Ei, menino! Que bom que voltou! Acho que te assustei um pouco ontem, não foi? Desculpa, mas fico muito tempo sem ter com quem falar e acabo extrapolando.

    – Imagina, Don… Sílvia. Gostei muito das nossas conversas. Talvez não estivesse mesmo preparado, mas…

    – Prometo que não vai se repetir, meu caro. Obrigada pelo bolo e pela conta.

    E fechou a porta. Como se algo urgente lhe esperasse do outro lado, como se minha presença fosse dispensável – de fato era – como se sua total independência houvesse voltado. Me senti um grande idiota. Um idiota careta, o que é pior.

    Alguns dias se passaram e não conseguia achar uma desculpa para voltar à casa de Dona Sílvia. Queria ouvir mais, falar sobre os meus dramas, os porquês da minha cama e de as páginas do meu livro estarem sempre vazias. Pensei na minha falta de inspiração e como ela poderia me ajudar. Resolvi ser sincero, me retratar. Talvez outro bolo me ajudasse. Ou uma broa de fubá.

    – Boa tarde, Sílvia. Tudo bem? Acabei de voltar da rua e não resisti ao cheiro dessa broa… Será que ela chega aos pés da sua?

    Ela sorriu de um jeito como quem não precisa de mais explicações e disse:

    – Só há um jeito de saber!

    Da cozinha vinha aquele cheiro familiar de café – parecia ter adivinhado a hora do lanche – e Sílvia Maria cantarolava uma nova música. Essa parecia ser de Gal.

    – O segredo da broa está no recheio. Esse pessoal novo não sabe disso. Broa, na minha terra, tem excesso de queijo, e queijo bom, fresco. Não queijo de supermercado, dentro de plástico. Queijo precisa respirar…

    Eu, como bom carioca da gema, nunca havia tirado leite de vaca, muito menos sabia como fazer um queijo.

    Mas Sílvia parecia ser uma expert no assunto:

    – Por exemplo: você sabe a diferença do queijo frescal para o curado?

    – Curado? O que é isso?

    – É um tipo de queijo, menino… Ele tem mais sal do que o frescal, é mais firme, mais amarelado…

    – Interessante. – Não consegui demonstrar nenhuma empolgação.

    – Mas você parece que não veio aqui falar sobre queijo, não é?

    Ela me olhou da mesma maneira maliciosa do dia da broa e – juro – eu não estava vendo coisas. Fiquei ruborizado e apenas mudei de assunto.

    – O braço da senhora está melhor?

    – Está tudo melhor, meu filho! Eu me sinto ótima, pronta para outra!

    – Por favor, Sílvia. Não vá se machucar novamente!

    – Se for da mesma maneira que da outra vez, vou adorar!

    Senti novamente aquele incômodo, e ela percebeu.

    – Me desculpa, querido… Não quero te constranger, mas não sou muito boa com as palavras… Sempre falei mais do que devia, fiz o que não podia e me dei mal quase todas as vezes.

    – Você não parece ter se dado mal na vida, Sílvia.

    – Ser mulher não é uma coisa fácil, meu filho. E para uma mulher que não se encaixa nos padrões, é muito pior.

    Sofri muito por ser diferente, por gostar demais das coisas ditas “erradas”. Hoje vejo que os errados são os outros, os que fingem sentimentos, escondem as emoções e passam pela vida alimentando mentiras. Nunca fui assim, mas não me arrependo de nada.

    – Mas a senhora parece ter tido uma vida tão normal… Foi casada, teve os seus filhos…

    – E logo, logo, serei avó…

    – Avó?

    – Na minha época, a gente se casava muito nova. Faz as contas, Carlos: tive o meu primeiro filho ainda menor de idade. Então, com 54 anos, já posso ser avó!

    Fiquei pensando que o seu corpo não condizia mesmo com a sua idade. Ela devia malhar ou aquilo tudo era fruto de uma excelente genética. Mas me desfiz dos próximos pensamentos, e continuei:

    – Que coisa boa! Está vendo, não tem como ser mais… comum!

    – Vamos deixar de ser hipócritas, Carlos. Você sabe muito bem o que eu faço todas as noites. Você me levou para o hospital depois de me ver na posição mais não-ortodoxa do Kama Sutra. Talvez nem você mesmo tenha experimentado a “Toda Poderosa”. É claro que eu não sou… comum!

    Quando ela me chamou pelo nome, me senti como se minha mãe estivesse me levando para o castigo. Mas esse sentimento desapareceu assim que ouvi a palavra “Kama Sutra”. Não sabia como tratar essa mulher. Não me sentia homem suficiente perto dela. Não era filho, não era amante… Seríamos amigos?

    – E eu até entendo esse espanto todo, pois com certeza você nunca ouviu uma mulher da minha idade falar sobre esses assuntos com tanta franqueza. E sabedoria, claro! Na minha época, a gente não tinha vez nem voz.

    Éramos apenas enfeites, seres não confiáveis, carnes penduradas no açougue para serem compradas. Só tínhamos valor se acompanhadas de um homem, fosse pai, irmão ou marido. Se não tivesse marido, depois de certa idade ficava para cuidar da mãe, porque não tinha outra serventia. Já imaginou?

    Claro que eu já tinha ouvido histórias assim, mas nunca de alguém tão próximo a mim. Apesar de ter nascido em plena revolução sexual, meus pais não eram de falar muito sobre esses assuntos e o máximo de conhecimento que obtive foi em filmes e documentários sobre algumas mulheres notáveis e o movimento feminista. Era chocante!

    – Só que eu nasci na época errada, entende? Nunca abaixei a cabeça para o meu pai; questionava todas as ordens que me eram dadas; tinha uma curiosidade feroz. Nunca aceitei não como resposta e era muito atrevida. Nossa empregada, uma senhora doce e sábia, neta de escravos, sempre dizia que o meu nariz empinado era sinal de que ninguém iria me domar. Se fosse hoje, eu acreditaria. Na época, apanhava sempre que me negava a obedecer. Um dia, talvez cansado de me bater ou de brigar, meu pai resolveu me mandar para o colégio interno com a esperança de que voltasse domada e pronta para me casar.

    Ledo engano. No primeiro dia de internato, machuquei as mãos na queda em um balanço e não conseguia me fazer entender. As freiras, francesas, viam minhas mãos sangrando e fingiam não ter como ajudar. Desesperada e com dor, fugi pela mata que circundava a escola. Me acharam toda suja e me levaram de volta. Fiquei uma semana de castigo por desobediência e lambia as mãos para acalmar o ardor das feridas. Quer mais café?

    Eu ainda sorvia as últimas informações e o derradeiro gole de café. Aceitei mais, para continuar a conversa e experimentar a tal broa que eu mesmo levara.

    – Claro! Está uma delícia! E vamos comparar as broas? Mas você acha que todas as freiras são ruins?

    – Você tem alguma dúvida de que a minha é melhor?

    Mas vamos experimentar a sua…

    Enquanto servia fatias generosas daquela broa que, com certeza, não tinha nada de queijo no recheio, ela continuou:

    – Sinceramente, acho que foi aí que começou o meu pavor por freiras. Bem, claro que nem todas. Durante um inverno muito rigoroso, meus lábios estavam muito rachados e não tínhamos acesso a quase nenhum remédio. Eu passava a língua, mas quanto mais a saliva entrava em contato com as freiras, mas meus lábios sangravam. Uma dessas freiras, bem novinha… – Não, ela ainda era noviça, ou seja, não havia se tornado freira – … pegou um pouco do óleo que alimentava as luminárias da igreja em que rezávamos e passou de maneira abundante na minha boca. As rachaduras sugaram aquele manjar e, em dois dias, eu já estava curada. Mas ela não precisava ser freira para fazer uma boa ação. Quem disse que para ser fiel a Deus temos que fazer voto de castidade? Quem disse que sexo é pecado? Você realmente acha que Jesus era casto?

    – Bem, diz a Bíblia que sim…

    – Bobagem, meu filho! Ele seria casto por quê? Na época dele não existia a tal Igreja Católica com todas essas regras sobre todas as coisas. Você acha mesmo que Deus nos daria tantas possibilidades de prazer se não pudéssemos usufruir delas?

    – Esse é um ponto interessante…

    – Mas é claro! O pecado está na cabeça de cada um. Errado para mim é proibir alguém de ser feliz. Imagina quantos padres não devem ter deixado de viver suas paixões por outros homens ou mulheres por acreditarem que era pecado? Muitos entravam para a Igreja porque as famílias eram pobres e não tinham como arcar com uma educação de qualidade. Na minha cidade mesmo tinha um que sempre almoçava nas casas das famílias mais abastadas. Minha mãe, carola que era, fazia questão de convidá-lo e sempre que ele ia embora, ela lhe emprestava um livro da coleção Saraiva. Eu era encarregada de buscá -los, mas não podia sair sem meu irmão mais velho. Em uma dessas idas até a casa paroquial, ele pediu que eu buscasse outro livro e deixasse meu irmão lá. Quando voltei, ele estava nu e meu irmão lhe acariciava o pênis. Fiquei tão chocada que deixei o livro escapar e os dois se assustaram com o barulho. Saí correndo e nunca contei a ninguém. Sabe por quê? Porque ninguém iria acreditar em mim. Também nunca perguntei se aquilo era consensual ou não para o meu irmão. Acho que prefiro não saber.

    – Mas os seus pais nunca desconfiaram?

    – Pai e mãe nem olhavam direito para os filhos. Imagina. Éramos sete, meu pai ficou viúvo quatro vezes, eu dava trabalho pelos outros seis. A gente nem abria a boca; tinha medo até de respirar mais alto.

    – Mas, e o colégio interno? Conseguiu endireitar à senhora?

    – É claro que não, né, Carlos? Fui expulsa por ter modos lascivos já no primeiro mês. Eu tinha comichão sexual, se é que posso dizer assim. Queria entender o meu corpo, tinha um prazer louco quando me tocava. Mas em um local com 20, 30 pessoas dormindo em camas muito próximas, era loucura se manifestar. Como tudo era pecado, abafava meus gritos no travesseiro e me esfregava no lençol depois que todas já estavam dormindo. Mas eu gozava de maneira abundante e meus lençóis amanheciam sujos e com cheiro de sexo. As freiras começaram a desconfiar e passavam a noite me observando. Me descobriram e me expulsaram.

    – E como seu pai aceitou isso?

    – Ele não aceitou. Me mandou para outro colégio, em outra cidade, pagou uma fortuna para que as freiras me endireitassem e deu ordens expressas de que eu só sairia de lá casada. Não o culpo, coitado. Ele não tinha a menor condição de cuidar de tantos filhos e ainda de uma fazenda. Não existiam pais solteiros nessa época; os homens não eram criados para essa função.

    – E então? Esse outro colégio deu certo?

    – Bem, para o meu pai, sim. Saí de lá casada com um bom moço. Muito bom, na verdade. Meu marido se apaixonou pela minha impetuosidade, mas não sabia o que fazer comigo na maior parte das vezes. Ele estudava em um colégio militar, bem próximo ao meu. À tarde, quando tínhamos permissão de ficar no pátio, alguns dos alunos desse colégio passeavam próximos às altas grades e deixavam bilhetinhos para as suas escolhidas. Se fossem aprovados pela família, os relacionamentos evoluíam – sob os olhares rígidos das freiras – e bons casamentos eram arranjados. Era uma excelente solução para a maioria das famílias, que garantiam filhas virgens e os rapazes não eram desmoralizados na sociedade.

    – Deve ser muito estranho se casar com alguém que você nem ao menos transou.

    – E transar com alguém garante que vocês serão felizes para sempre? É por isso que tudo hoje em dia termina tão rápido. As pessoas já perderam o mistério, não conversam mais, se impacientam rapidamente com os defeitos um do outro. Na minha época, o primeiro beijo era um acontecimento! Pegar na mão tinha a sua magia! Hoje, vocês mudam de parceiros como mudam de roupa.

    – E transar com alguém garante que vocês serão felizes para sempre? É por isso que tudo hoje em dia termina tão rápido. As pessoas já perderam o mistério, não conversam mais, se impacientam rapidamente com os defeitos um do outro. Na minha época, o primeiro beijo era um acontecimento! Pegar na mão tinha a sua magia! Hoje, vocês mudam de parceiros como mudam de roupa.

    – Olha, Carlos, o que eu faço todas as noites não tem nada a ver com amor. E o amor, de verdade, não tem a ver só com sexo. Eu já vivi o tal amor com o pai dos meus filhos. Não éramos exatamente Romeu e Julieta, mas nos amávamos. Construímos uma bela família e tivemos uma vida feliz. Nunca lhe faltou sexo, porque eu gostava até mais do que ele. Gostava não, gosto! Se não tivesse me casado com Augusto, acho que seria puta. Você já foi a um puteiro?

    – Não…

    – É tão alegre e festivo! Claro que nunca entrei em um, aí também seria demais. Mas um dia, voltando da escola – devia ter uns sete anos –, quis saber o que tinha em uma rua sem saída, um pouco afastada da praça principal da minha cidade. Sempre quando passava por lá com a minha mãe, ela se virava para o outro lado e fazia o sinal da cruz. Eu nunca entendia o porquê e morria de curiosidade de saber o motivo. Nesse dia, tomei coragem e entrei pelo beco. As putas ainda estavam se levantando após a noite de trabalho – e prazer – e pareciam seres quase angelicais. Elas estendiam as roupas íntimas nas janelas e lavavam os cabelos com água de alfazema. Era um mundo paralelo, com cores vivas e canções misteriosas, que nunca havia escutado nas missas dominicais. Mas todas, sem exceção, tinham expressões felizes. Muito tempo depois consegui entender o motivo.

    – Não vai me dizer que elas tinham uma vida fácil?

    – Claro que não. Mas eram livres! Exatamente por serem tão marginalizadas e colocadas de lado pela sociedade, elas podiam fugir dos padrões e usar calcinhas vermelhas e cantar músicas de cabaré sem nenhum pudor. Muitas apareciam nuas nas janelas e varandas, mas aquilo não me assustava, porque elas não tinham vergonha do seu corpo. Era tudo natural, livre, como deveria mesmo ser.

    – A senhora acha que deveríamos ficar nus nas janelas?

    – Ai, Carlos! Você é muito literal! Claro que não. Mas o que deveria causar mais vergonha? Um seio nu ou uma criança morrendo de fome?

    – Acho que não estamos preparados para as suas ideias!

    – Nem hoje, nem naquela época. Quando cheguei em casa e fui perguntar à minha mãe por que ela fazia o sinal da cruz quando passava pelo beco das moças alegres, levei um tapa no rosto que me feriu a alma. Entendi menos ainda o porquê de tanta raiva daquelas mulheres e fiquei algum tempo sem conversar com minha mãe. Ela morreu meses depois e não tive tempo nem de me desculpar. Ou de me fazer entender. Hoje, sei que a felicidade das putas era algo que deveria irritar profundamente uma mulher que só fazia parir e obedecer ao meu pai. Será que minha mãe gozou alguma vez na vida?

    – A senhora já?

    Sílvia me olhou, pela primeira vez, assustada. Não imaginava que eu, logo eu, seria capaz de constrangê -la.

    – Sim, Carlos, já gozei. Algumas vezes, com meu marido. Outras, com um belo amante que tive enquanto éramos casados.

    – A senhora teve um amante?

    – Ah, Carlos… Chegamos a um ponto do nosso casamento em que os filhos estavam criados, meu marido estabilizado e eu ainda me sentia inquieta. Chamei Augusto para conversar e acredito ter sido a precursora do tal “relacionamento aberto”. Mas não poderia imaginar que ele só aconteceria para mim. Meu marido ainda era apaixonado pela menina que conhecera no colégio interno e não admitia sentir desejo por outra mulher. Ou, então, fingia muito bem. Mas ele sabia que não poderia me segurar por muito tempo, e como não cogitávamos nos separar – não por comodismo, longe disso, éramos grandes amigos –, fomos até o final. Resolvi propor um acordo. Se eu me sentisse muito atraída por outro homem, proporia a ele termos um relacionamento consensual e discreto, apenas em locais que não seríamos descobertos, muito menos que pudesse expor Augusto de alguma forma.

    – E deu certo?

    – Deliciosamente! Conheci meu amante em um jantar da Sociedade Brasileira de Medicina. Ah, sim! Augusto era cardiologista, renomado. Ao sermos apresentados, esse homem beijou a minha mão de tal maneira que imediatamente criou uma corrente elétrica. Ela percorreu todos os recantos do meu corpo e conseguiu arrepiar a minha nuca. Tive a certeza de que seria ele, e Augusto também notou. Fiquei eufórica a noite toda, tomava champagne sem parar e quase fiz uma bobagem. Era correspondida de maneira eletrizante e flertávamos sem parar. Mas meu marido era um homem muito elegante; me chamou para conversar longe de todos e disse: “Se você quer tanto dar para ele, pelo menos marque em um local que ninguém os conheça”.

    Consegui me conter pelo resto da noite, mas logo pela manhã, com o cartão dele em mãos, liguei. Trocamos poucas e necessárias palavras e já estávamos juntos naquela mesma tarde. Me senti como a Belle de Jour, a própria Catherine Deneuve do filme de Buñel.

    – Quem?

    – Ah, Carlos! Se você soubesse mais eu seria sua…

    Alguns dias até me inspirava nas roupas da Belle de Jour para me encontrar com meu amante. Queria ter aqueles belos cabelos louros…

    Bem, tínhamos tardes tórridas, sempre em locais diferentes e longínquos. Dávamos nomes falsos, algumas vezes cheguei a usar perucas louras e ruivas para despistar algum curioso e, também, satisfazer as fantasias do meu novo homem. Éramos felizes por instantes eternos antes de voltarmos para as nossas realidades.

    – E por que vocês não ficaram juntos? Não se amavam?

    – Não sei se o que tivemos foi amor. Sei que eu precisava do sexo, da aventura. Ele concordava com a situação; também era casado e parecia mais carente do que exatamente com tesão. Tivemos uma atração muito forte no início, como duas almas que buscam a liberdade. Mas era só aquilo, tudo terminava no seu princípio. Não imaginava apresentá -lo aos meus filhos, refazer minha vida com ele. Era uma fuga, um… Momento feliz.

    – A senhora foi feliz?

    – Eu SOU feliz, Carlos. Por mais que todos pensem que sou uma mulher vulgar por pagar para ter prazer, sou uma pessoa totalmente realizada. O dinheiro é meu, faz parte da minha herança, e se posso ajudar alguns rapazes bonitos e me satisfazer, que mal tem? Cansei de lutar contra a minha natureza. Meus filhos até hoje não me aceitam. Acham que sou escandalosa, criticam meus decotes, minha risada alta, meu batom vermelho, minha alegria estampada. Acham que eu não respeito a memória do pai. Como não, se eu dei a ele, em vida, tudo que ele me pediu e mereceu? Se até na hora de trair eu o fiz com respeito? Tínhamos nossas diferenças, mas nunca deixamos de nos amar e de confiar um no outro. Nunca passamos dos limites que colocamos para a nossa relação. Já tentaram me exorcizar, Carlos. Já tentaram me podar de todas as maneiras possíveis e imagináveis. Diziam que eu tinha o capeta no corpo, que nada daria jeito em mim, que ninguém jamais me escolheria do jeito que eu era. Mas fui escolhida, amada e respeitada como merecia. Nunca condenei ninguém, mas sempre me condenaram por crimes que não cometi. Pelo menos, não eram crimes para os meus valores. Hoje, eu canto para esquecer a saudade dos meus amores. Meu marido, meu amante, meu pai, que nunca me entendeu. Se me relaciono com garotos é para fugir um pouco da solidão, sentir um corpo quente no meu, receber um carinho. Meus filhos nem ao menos me abraçam. É muito fácil julgar as pessoas sem conhecer as histórias, os caminhos. Não quero ser exemplo. Só quero ser feliz. Já sofri muito, querido. Não preciso de mais dor nesta vida. Com um suspiro, percebi uma chuva chorosa através da janela. A tarde havia passado e a noite já chegava. Minha cabeça rodava entre desabafos e cenários que fui montando em minhas histórias. Repensei toda uma vida em uma tarde e mesmo assim não sentia cansaço, mas uma vontade louca de encher páginas e páginas dos mais delirantes diálogos. Já Sílvia Maria parecia exausta. No fim da última frase, uma rouquidão surgia e sua voz ficou quase sexy. Juro que não havia nenhuma intenção, apenas uma constatação. Precisava ir embora, mas não sabia exatamente se queria. Ficamos em silêncio por alguns segundos, como se digeríssemos todas as informações.

    – Já está tarde, Dona Sílvia, eu…

    – Mas é claro, querido. Te prendi aqui tempo demais. Já está tarde. Quase na hora da minha novela.

    – A senhora gosta de novelas?

    – Você mesmo não disse que eu sou bem normal?

    – Rs… Ainda temos que comparar as broas!

    – Volte quando quiser para tirarmos a prova… Mas acho que a minha ainda é imbatível!

    – Volto sim, Dona Sílvia.

    Voltamos a ser como no começo de nossas conversas e nos demos um abraço, como há muito eu não dava em ninguém, e que ela também não recebia. Foi rápido, como em novos amigos, mas suficiente para um bom começo.

    E durante toda a madrugada em que escrevi, com uma inspiração fluida, o meu novo romance, e durante todas as outras tardes e noites que trocamos impressões sobre bolos e memórias, ninguém mais subiu para o apartamento de Dona Sílvia. De uma forma estranha e até meio torta, nos bastamos.


  • O Natal do meu avô

    Natal, para mim, sempre significou o Natal do meu avô, o Natal de nossa família em sua casa e ao seu redor. Mesmo hoje – após a sua partida e o fim do que vivenciei por anos –, é a memória daquele apartamento e daqueles dias que me vêm à mente ao chegar dezembro. Ainda hoje, para mim, esta data continua a significar o Natal do meu avô.

    Antes de chegar a tão almejada noite, eu já a vivia. E a vivia com fervor e cupidez. A sua semana, os dias que a antecediam, era de expectativa e preparação. Fantasiando a respeito de como seria neste ano, ansiava que chegasse logo o momento de eu me entregar às brincadeiras e às delícias da mesa. A preparação imaginativa era ladeada pela preparação dos presentes e dos alimentos, das quais eu participava ou apenas acompanhava com vivo entusiasmo. Dos mais simples dos feitos aos mais notáveis, tudo aparecia dotado de um encanto singular, que só poderia ser vivido nesta época.

    Eis que era chegada a véspera e, assim, dirigia-mo-nos para a casa de vovô Chico, onde toparíamos com nossos velhos conhecidos. Tios, primos, parentes distantes e amigos se reuniam naquele recinto, com os mesmos abraços e os mesmos votos de todos os anos, que jamais fatigaram a criança que a tudo assistia. Era o momento da família se reunir, hora de vermos os que sempre víamos e encontrar os que só anualmente encontrávamos. Era a ocasião ideal para isso. Sem ela, possivelmente, tais contatos não viriam a ocorrer.

    Os parentes mais velhos e as visitas – ou, os adultos, como dizíamos – iam conversar, contar as novas e as antigas e bebericar na varanda, onde não faltava o Old Parr de meu avô e o pistache de meu tio. A felicidade tomava conta das crianças, afinal, teriam colegas para brincar a noite inteira. Reunidos os primos e incorporados os filhos dos amigos da família, folgueávamos pela sala. Depois, era a vez de passarmos aos quartos, procurando nos esquivar dos olhares vigilantes dos pais, que, a certa altura, nada mais vigiavam.

    As idades separavam os convidados, mas a comida sempre os unia. Postos à mesa, todos se entregavam às iguarias, das quais voltaríamos a nos servir no almoço do dia seguinte. E lá estavam a batata gratinada, o famoso salpicão de minha mãe e o indispensável peru, do qual a tradição sempre reservava a coxa ao meu avô.

    Sei que estas lembranças têm algo de idílico, fruto da afetividade dessas memórias ou da cândida visão de uma criança. Em boa parte de minhas recordações, já não estavam todos os meus. Perdi minha avó muito cedo e muito cedo se iniciaram as cisões. Não obstante, durante toda a minha vida, naqueles momentos, sentia a união da família, sentia a minha família.

    Quando vovô se viu doente e já não integrava a festividade como antes, o Natal seguia ocorrendo em torno dele. Com menos convidados, com menos comida e com mais silêncio no meu avô, celebrávamos. Todos os anos, continuávamos a nos dirigir à sua casa e a desejar passar aquela data ao seu lado. Como por uma força inata, ele – passivo e inconsciente – seguia a agrupar a família e a fazer com que prosseguíssemos juntos.

    Porém, dias obliteraram anos. Com sua ida, foi também o seu Natal, foi o nosso Natal. No vendaval que se seguiu, os conhecidos se desconheceram e os afetos que pareciam tão sólidos se evanesceram no crepúsculo familiar. Desde então, as noites do dia 24 passaram a ser menos luminosas, embora a luz de meu avô siga a brilhar na memória do seu Natal perdido.


  • Antes que seja tarde

    A chuva caí forte no solstício de verão. É de tarde. O barulho da água lá fora, junto com os trovões, atiça minha preguiça. Uma luz suave entra pela janela coada pelas gotas grossas do temporal, o primeiro do verão conforme indica o calendário.

    Em 10 dias mais um ano terminará. Penso em quantas pessoas eu não dirigi uma única palavra em quase 365 dias. Muitas mesmo. Com pouco mais de uma semana não será possível compensar essa desatenção da vida moderna.

    Ou seria minha mesmo? Ficar sozinho me agrada porque consigo conviver bem comigo mesmo. Conheço gente que acha que esse é um momento de reflexão. Papo furado.

    Quando estou sozinho não faço nenhum esforço intelectual. Seja sem ninguém em casa, seja envolvido pelo silêncio doméstico enquanto as melhores partes de mim mesmo dormem tranquilas. Silêncio é silêncio.

    Aos meus ouvidos chegam os sons dos passarinhos, o ronco baixo da cidade que não para nunca, só diminui de ritmo; e as teclas tocadas que transformam o que penso nisso que você lê.

    Mas não sou tão eremita como dou a entender. Gosto da companhia das pessoas, eventualmente. Me animo a ir ao encontro de quem conheço e até de desconhecidos, em lugares onde sou um anônimo que, pretensão minha, poderá despertar a curiosidade alheia. Nem que seja de um olhar ligeiro. E sigo.

    Oscilo sempre entre o silêncio confortador e o palavreado animado das conversas leves. A escolha não sei como faço, só sei que faço.

    E com 10 dias ou menos para terminar o ano não têm como falar com todo mundo a quem deveria ter ao menos dirigido uma palavrinha afetuosa.

    Mas sou bem relacionado e conto com essas boas relações para me fazer presente. Me refiro aos pássaros e não as pessoas.

    Dobrarei pequenos cumprimentos, palavras gentis e sorrisos afetuosos e os colocarei nas asas dos passarinhos que visitam minha janela. Rogarei para que eles vão até as pessoas com quem estou em falta para despejar sobre elas meus cumprimentos. Atrasados, mas sinceros.

    Chegarão em tempos distintos porque as distâncias e os temporais atrasarão as entregas.

    Mas chegarão. Antes que seja tarde e com a promessa que em 2025 não deixarei de falar com ninguém. Ou tentarei com mais afinco.


  • Glossário do “fica”

    A minha geração não conheceu esse tal de “ficar”. Isso não quer dizer que fôssemos mais bem comportados ou que, nos namoros e nos noivados, sempre honrássemos os compromissos. Havia as deserções, os desvarios, o imediatismo do desfrute físico. Só que essas atitudes eram a exceção e, como tal, não recebiam uma designação específica.

    “Ficar”, entre os da minha geração, era ficar mesmo – sem meios-termos nem ironias. Quem ficava com alguém escolhia-o como parceiro não apenas de uma noite, mas de anos, décadas, às vezes de toda a vida. O contrário de ficar era sair, deixar, partir para outra. Hoje, quem fica não está nem aí.

    Naquele tempo, ai do marmanjo se a garota soubesse que ele a queria apenas para uns instantes de prazer físico. Para uns amassos, como se diz hoje. Ele seria convidado a dar o fora, e nem sempre de forma gentil. As meninas tinham um nome a zelar e queriam estabilidade nas relações. Abraços e sobretudo beijos, que hoje são uma espécie de couvert do relacionamento, eram um prêmio à persistência e à fidelidade. Só os obtinha o conquistador perseverante e que acenasse com a promessa de vínculos futuros. É isso mesmo, leitor: naqueles tempos severos o sexo não vinha de graça. Era um trunfo, um troféu, um instrumento de barganha muito bem manipulado.

    Há algum tempo, pedi que meus alunos fizessem uma redação sobre “o fica” (assim ele é chamado), que alguns já consideram a nova forma de relacionamento entre os jovens. Queria saber a opinião deles. Para minha surpresa, muitos criticaram esse tipo de relação. As garotas, sobretudo, demonstraram certo desconforto com a natureza efêmera e pouco afetiva do “ficar”. Desejam algo mais sentimental e persistente.

    Mas o objetivo aqui não é comentar o ponto de vista deles. Como para entender qualquer segmento social, ou cultural, é preciso primeiro observar sua linguagem, resolvi a partir das redações compor uma espécie de glossário do “fica”. Achei que isso podia interessar ao leitor. Para mim, que sou de outro tempo e de outro mundo, é tudo novidade. Confiram:

    Balada: agito, festa onde se pratica ou não o fica.

    Fica (s.): o mesmo que ficar.

    Ficante: aquele ou aquela que fica.

    Galinha: rapaz ou garota que fica com muitos parceiros de uma vez (geralmente numa mesma noite).

    Garanhão: rapaz que fica com muitas garotas de uma vez (idem).

    Menino estribado: garoto rico ou famoso com quem se fica.

    Nega: garota com quem se fica; breve namorada que se arranja no fica.

    Queimação: censura, crítica. Aplica-se a quem fica em festa de família.

    Resenha: assédio a uma pessoa (geralmente uma garota) difícil.

    Rolo: fase entre o fica e o namoro. É sinal de que o relacionamento está ficando sério.

    Rodada ou queimada (adj.): garota que já ficou muito ou praticou o fica em local ou ocasião inadequada.  


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