Literatura

  • As cartas

    Ela estranhou quando o carro parou em frente à sua casa tão cedo. Não costumava receber clientes naquela hora do dia. O homem que desceu do veículo tinha o semblante assustado e, ao vê-la no alpendre, lhe fez um aceno. Ela foi até o portão; antes de abrir, notou as olheiras de quem parecia não ter dormido. 

    – Entre, moço – falou, sem perguntar de que se tratava. Não era preciso. A fama que acumulara fazia com que a procurassem sobretudo por uma razão: desfazer algum temor ligado ao futuro. 

    Ela o fez atravessar o pequeno alpendre rumo a uma saleta onde havia uma mesa forrada com um pano verde sobre o qual estava um baralho já gasto. Sentou-se e fitou o rapaz com um ar doce e compreensivo. Aprendera, com o tempo, que essa expressão acalmava os que a vinham procurar. 

    – O que o atormenta, meu jovem?

    Ele baixou a vista e, com algum esforço, falou as primeiras palavras: 

    – Daqui a pouco vou encontrar alguém. Quero saber se corro algum risco.

    Disse e ficou mudo. Ela esperou que continuasse. Depois ponderou que, se lhe desse uma ideia de que adivinhava o motivo da sua inquietação, despertaria nele mais confiança. 

    – O que é que no comportamento dele lhe provocou tanto medo?

    “Dele”. Então ela sabia que se tratava de um homem! E, de fato, era o marido da colega de trabalho com quem vinha saindo há alguns meses.

    – Como sabe que é “ele” e não “ela”?

    – “Ela” ocupa sua mente, mas de outro modo – respondeu com um olhar malicioso, dando à expressão um ar conivente que o confortou.  

    A senhora é perspicaz – ele disse, com um suspiro que fez os olhos dela brilharem ainda mais. 

    Explicou-lhe então que vinha se encontrando com uma mulher casada. Os encontros ocorriam com a máxima discrição, claro. Chegara a ponderar que o que fazia não estava certo, mas se sentia incapaz de resistir. Desejava-a, tinha paixão por ela, e sabia que era correspondido.

    Fez uma pausa, levemente emocionado com o que acabara de dizer. Em seguida explicou que mal conhecia o marido, por isso estranhou o telefonema pedindo-lhe um encontro para falar “da situação profissional da esposa”. Ficou com a mosca na orelha. E se ele soubesse de tudo e pretendesse lhe fazer algum mal?

    Depois de ouvi-lo, a mulher pegou o baralho e começou a misturar as cartas. 

    – Vamos ver o que elas dizem. As cartas não mentem jamais.

    Esse lugar-comum lhe soou como uma verdade profunda. As cartas pareceram infalíveis e certamente o orientariam sobre o que deveria fazer. A mulher pediu que tirasse uma delas, depois outra, juntou as duas e olhou por cerca de meio minuto a combinação. Depois levantou a vista e o fitou com um sorriso entre cúmplice e triunfante.

    – Tranquilize-se, meu filho. Ele não sabe de nada.

    – Tem certeza de que ignora o que há entre nós?

    – Absoluta. Siga em paz e viva com intensidade essa paixão, pois a vida é curta. 

    Sorriu, aliviado, e lhe perguntou quanto devia.

    – Dê o que o seu coração mandar.

    Abriu a carteira e lhe passou uma quantia generosa. O alívio que as palavras dela lhe trouxeram não tinha preço. Ao se despedir, apertou a mão da mulher e agradeceu com uma humildade que a surpreendeu. Ela é que devia se mostrar humilde diante daquele homem elegante e de uma classe social bem superior à sua. Mas o que dá a cada um a medida da sua importância é a situação que está vivendo, e ele se sentia frágil em razão da dúvida que o afligia.   

    Depois que saiu, ela contou as notas. Era um montante considerável, que lhe permitiria consertar o ar-condicionado e comprar uns objetos com que vinha sonhando.

    Depois do jantar, sentou-se diante da TV para assistir ao noticiário local. Ficou curiosa ao se deparar com a primeira manchete: um marido que se soubera enganado matou com três tiros o amante da esposa. Em seguida vinham detalhes do crime e a foto da vítima. Tomou um susto ao ver que era o homem que tinha vindo consultá-la pela manhã. A mesma roupa, o mesmo cabelo, e nos olhos vidrados um ar de perplexidade.

    Por um instante sentiu remorso, mas logo tratou de banir do espírito esse sentimento. Qual fora a sua culpa? Não tinha concorrido para o crime. Deixara o rapaz confortado como podia ter feito o oposto. Se confirmasse as suspeitas dele e estivesse errada, poderia pôr fim à vivência de uma grande paixão. 

    Pensando bem, foi melhor que ele ignorasse o que estava por acontecer e marchasse tranquilo para o fatídico encontro. A sentença já fora providenciada pelo destino, e quem era ela para interferir nos seus desígnios? O que fez, no final das contas, foi dar um pouco de ilusão a quem já se condenara pelos seus próprios atos.

    Com esse pensamento recontou o que o morto tinha lhe dado, antecipando os pequenos luxos que iria comprar.


  • O Luto na Visão dos Cães

    O luto, no olhar humano, é o vazio que se instala após uma perda. Uma ausência que ecoa e se faz presente em cada instante de saudade. Mas, se o luto é tão humano, como explicar que o cão também sofra quando seu dono se vai?

    Talvez isso se deva ao mistério do vínculo que une nossas almas às deles. Diferente de nós, os cães não filosofam sobre o que foi ou sobre o que virá, nem se perdem em pensamentos sobre a ausência. E, ainda assim, quando seu dono parte, algo neles se transforma para sempre. Como Hachiko, o cão que esperou incansável pelo dono que nunca retornaria, os cães têm seu próprio e singular jeito de viver a perda.

    Eles refletem nossas emoções, espelham nossos sentimentos, sentem a nossa dor e também vibram com nossas alegrias. Na ausência, os cães absorvem o vazio, percebem a mudança no ar, o silêncio dos passos que não se repetem mais, e o cheiro que gradualmente desaparece. Mesmo sem palavras ou cerimônias, são tocados pela presença que se foi.

    Um cão enlutado pode ficar apático, quieto, perder o interesse pelo que antes o alegrava. Sua conexão com o dono é uma cumplicidade que ultrapassa o toque e a presença física, algo que, de certa forma, transcende. Como uma alma pura, ele sente a perda sem as complexidades culturais ou emocionais que nós temos. É como se o cão soubesse, em sua simplicidade, que algo essencial se perdeu..

    No entanto, assim como nós, os cães possuem uma força de renovação surpreendente. O segredo está em manter a rotina, respeitar seu tempo, e, acima de tudo, não projetar sobre eles as nossas próprias tristezas. Eles não se apegam à dor; para eles, apenas o presente é real, e talvez por isso, gradualmente, eles sigam em frente. Eles não entendem a nossa pena, não precisam de lamentações.

    Diz-se que, para o cão, só existe o momento presente. E talvez isso explique porque, aos poucos, eles reencontram o caminho para a alegria. O luto dos cães não é uma prisão; é uma travessia silenciosa que nos lembra que a dor pode ser abraçada, mas não deve ser eterna.

    Talvez, de vez em quando, ao sentir um cheiro familiar ou uma brisa que traz algo do passado, ele erga o focinho e, em seu íntimo, sorria, sentindo que, de algum modo, ainda estamos presentes. Porque o amor de um cão não se apaga com o tempo ou a ausência; ele persiste, eterno e fiel, como uma chama que nunca se extingue.

    E assim, quando a noite cai e o silêncio domina, ele dorme em paz, com o coração ainda aquecido por aqueles que um dia amou. E nós, de algum lugar, talvez sintamos o mesmo: uma saudade doce, acompanhada da certeza de que um vínculo assim, entre cão e humano, nunca se rompe de verdade. Nessa complexidade de se fazer evoluir, para os cães, cada instante importa, o passado se dissolve na simplicidade do presente. Eles nos ensinam, assim, que amar também é saber soltar. Um novo lar, uma nova rotina, um novo amor… tudo no cão é levado a ser simples.


  • Pressupostos e subentendidos

    Boa parte do que o texto significa não se mostra explicitamente. Quando escrevemos deixamos implícitas algumas informações, e cabe ao leitor completar as lacunas.

    Os implícitos são basicamente de dois tipos: pressupostos e subentendidos. Os pressupostos estão inscritos na língua; não há como fugir ao sentido que eles determinam. Já os subentendidos dependem de interpretação.

    Se alguém diz a uma visita: “Finalmente você apareceu”, pressupõe-se que o interlocutor havia tempo não dava as caras; o advérbio que introduz a oração indica isso. Caso ele acrescentasse uma observação do tipo: “Deixou o orgulho de lado”, estaria formulando um subentendido. A ausência do outro teria sido interpretada como soberba. O subentendido sempre envolve um julgamento, um juízo de valor, e por vezes leva à distorção da verdade.

    Um exemplo disso ocorre nesta passagem de “O pagador de promessas”, a conhecida peça de Dias Gomes:

    PADRE Que pretende com essa gritaria? Desrespeitar esta casa, que é a casa de Deus?
    ZÉ Não, Padre, lembrar somente que ainda estou aqui com a minha cruz.
    PADRE Estou vendo. E essa insistência na heresia mostra o quanto está afastado da igreja.

    Zé do Burro pretende entrar na igreja carregando uma cruz para agradecer a Santa Bárbara o restabelecimento do seu burro Nicolau. Ele é um homem simples, ingênuo, e jamais lhe passaria pela cabeça contestar a ortodoxia cristã. No entanto o padre Olavo interpreta o fato de ele conduzir a cruz como um sinal de heresia. Subentende na resposta do interiorano a intenção de ser um novo Cristo.
    Nos subentendidos refletem-se valores e preconceitos da sociedade. Levei para a classe o seguinte diálogo:

    – Você pretende se casar?
    – Eu tenho juízo!

    Depois perguntei à turma o que se subentende da resposta. Praticamente a totalidade dos alunos afirmou que ela dava entender que só “um doido” se casa. O curioso é que o diálogo também permite que se entenda o oposto. Pode-se interpretar a resposta como uma defesa do casamento, que seria a opção do indivíduo prudente e racional. Por que ninguém considerou esse lado?

    Nesta outra passagem a interpretação ficou mais fácil, pois o que se subentende parte de um dos envolvidos no diálogo:

    – Aquele ali teve sucesso na política.
    – Já sei. Nunca foi pego.

    Está implícita a ideia de que os políticos transgridem a lei.

    Um dos maiores riscos na redação é querer dar aos subentendidos o rigor dos pressupostos. O que se interpreta não pode ser tomado como verdade absoluta. Num texto sobre os novos papéis da mulher na sociedade, um aluno escreveu: “O trabalho da mulher fora de casa prejudica a educação dos filhos, pois ninguém substitui a mãe nessa tarefa.”

    Subentende-se que tal prejuízo possa ocorrer, mas há mulheres que conseguem conciliar as duas funções. O aluno deveria ao menos ter apresentado o seu julgamento como possibilidade. Por não fazer isso, incidiu numa discutível generalização.


  • Conteste ideias, não pessoas

    Muitas vezes, ao argumentar, o redator deve contestar um ponto de vista diferente do seu. É preciso cuidado ao fazer isso. Quando a opinião a ser contestada vai de encontro a valores ou crenças, ele corre o risco de deixar de lado as ideias e investir contra as pessoas.     

    Um exemplo: numa redação sobre “Nível cultural e opção religiosa”, apresentei no suporte o fragmento de uma entrevista com Richard Lynn. Nessa entrevista o pesquisador britânico afirma que os indivíduos inteligentes são mais propensos a se tornar ateus, pois têm acesso a teorias alternativas de criação do mundo. Diz também que no Brasil, devido à miscigenação, há menos ateus e mais religiosos.  

    Um dos alunos tentou contestar o ponto de vista do estudioso dizendo que “essas duas afirmações estão totalmente equivocadas, ele com certeza não sabe nada sobre religião.” Afirmou isto sem explicar em que residiria o equívoco do pesquisador nem por que Lynn, uma autoridade no assunto, não saberia “nada” de religião.  

    Juízos apressados e genéricos não demonstram inteligência, mas birra e intolerância. Dão a entender que o emissor, tomado pela emoção, não está disposto a refletir, debater, avaliar os argumentos do outro. Há neles um predomínio quase que exclusivo dos afetos, que são um obstáculo ao discurso racional.

    Existem maneiras mais inteligentes de demonstrar que não se concorda com as ideias ou as atitudes de alguém. Contestar pessoas, além de ineficiente do ponto de vista argumentativo, constitui o primeiro passo para a intolerância e o preconceito. É o que se vê neste fragmento de uma redação sobre o caso Bruno: “Eliza Samudio não foi apenas vítima. Ela teve o que merecia. Quis dar o golpe do baú e acabou se dando mal. Ela deve ter importunado tanto a vida do ex-goleiro que ele não teve outra saída.”

    É fácil perceber nessa passagem que a precariedade dos argumentos decorre do propósito de julgar a vítima. A afirmação de que Eliza “quis dar o golpe do baú” e “deve ter importunado tanto a vida do ex-goleiro” não se baseia em fatos; é mera presunção. E, mesmo que fosse verdadeira, de modo algum justificaria o que se fez com ela.


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