Noite fria, sombria, quieta.
Ele, calado, encolhido, matutando.
Eu, na espreita, alerta, sentinela.
Nós, famintos, sedentos, enjeitados.
Olhos remelentos, húmidos, arregalados.
Corpos esquálidos, caquéticos, patéticos.
Dentes que bambeiam, rareiam, vadios.
Garrafa vazia, gamela vazada.
Burburinho no beco, grupinho do boteco.
Garotada excitada, bebida exagerada.
Sanduba na mão, churrasco no pão.
Passo apressado, casaco amarrado.
Rota traçada, calçada apertada.
Molecada bloqueada, assustada
Carroça encostada, coberta rasgada.
Ele apagado, encolhido, deitado.
Eu agitado, pescoço esticado.
Abano o rabo, procuro um afago.
Vira-lata esfaimado, tá necessitado.
Não tem culpa, merece um sanduba.
Comida de gente, pro cão indigente.
Acordo o parceiro, meeiro, hospedeiro.
Cão de mendigo, pão repartido.
Aninho, carinho, comunhão.
Vida de rua, verdade nua e crua.
Entre um cão mendigo e um mendigo no chão.
O que abana o rabo é que garante o pão.
Poesias
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Arrimo de família
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Poesias de 1 a 99
#01 – ímpetos de reformulação e atitude
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Acendi uma vela, e me veio
De outro plano
que não eu, mas era eu, também
Acender 8
o 8, deitado, é o infinito
8, em pé, conforme as coloquei
tornou-se fogueiraO fogo ardeu, ardeu e
enquanto eu vivia o momento presente
As duas coisas ligaram-se
Dançado ardentemente
Pavios como mãos dadas
Fogo fátuo, feito, fartoDe repente
minha atenção recor-
tou-se em du-as
duas
e eu estava
um olho em algo,
outro na labareda,
e quando
as parafinas
finas de cada vela comprida –
enfim fundiram-se em uma
só coisa ardente
pude ver-me eu
como mãe
de mim mesma
e minha filha – que ainda não veio
e mais um ser,
nós duas em 1
Três
Três
Três chamas que dançavam
como que se conversassem
por horas
Anos
Gerações
E então o ar tornou-se perfume
o perfume das mil velas que queimam
dentro das catedrais
E meu ventre
tal qual um oráculo divino
Escureceu
Não era peso ou dor,
Mas silêncio
um peso nuvem
Um descansoHibernação
Libertação
dentro de uma jornada que se findaAos poucos
Infinitamente
Para Três
Três almas
Três sabores
a vida lançou-se para o infinito
para cima
potência de início –
a chama única dentro do pote de vidro
enegrecido
abraço de fim.
E
Adormeci
Nova
para um novo amanhã
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Poesias de 1 a 99
#03: Paredes
Estou cercado de objetos
sem expressão ou significados
(utensílios para o desempenho
de um trabalho sem utilidade).
Tenho as mãos ocupadas
na tarefa de preencher
o vazio com papéis
de números impressos.
A cabeça gira à procura
de lembranças que possam
desviá-la do tédio
de ver gentes.
Arquiteto planos
sem propósito algum
além de preencher
as horas de um expediente.
Estou cercado pelos
quatro lados de um cômodo
onde recebo clientes
de um banco de dados.
Tudo é muito lento
como o motor ligado
de um ar-condicionado
a esfriar meus pés.
Tenho um olhar cansado
de olhar o silêncio e
estar calado, ouvindo
vozes que não decifro
e tenho medo.
Inventário de Sombras
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Poesias de 1 a 99
002# – AGUACEIRO
A chuva cessou de chover
e já agora eu posso
tirar as mãos dos bolsos
e atravessar a rua.Mas já não tenho mãos
e nem tampouco posso
atravessar esta rua, pois
a água levou-me as pernas.E a rua, embora chovida, está seca.
Eu fui a chuva que choveu e ninguém viu.Milton Rezende in “O Acaso das Manhãs”
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Poesias de 1 a 99
#01: Instante de Pura Poesia
eu ontem, passando na calçada,
deparei-me com uma visão
aterradora de um pássaro
que, ao defender seu espaço
de um intruso invasor, levou
a pior na batalha sangrenta e,
roto e estropiado, na arvorezinha
mirrada, olhando de soslaio,
entre sangues, o espaço mítico
que habitara e cuidara durante
longos anos, agora perdido
para sempre.solidariedade ao pássaro
ferido de morte.Da Essencialidade da Água.