Quarta-feira

  • Sobre as angústias de um pé-frio

    Tenho muito medo da morte. Um medo estranho, próximo, escuro, paralisante por vezes, e por vezes aterrador. Isso não me obriga a amar demais a vida. Não acho tudo maravilhoso, não faço parte da galera do gratiluz nem gosto de acordar cedo. Geralmente, estimo a vida nas sextas após o expediente e nos sábados à tarde. Mesmo assim, ante o bafo azedo do óbito, até a semana corrida me apetece. Um dos motivos de preocupação e temor quando penso nesse assunto, em particular, é a provável impossibilidade de seguir acompanhando as ocorrências terrenas. Sendo sincero, meu receio, por idiota que pareça, é não saber do Grêmio no pós-morte.

    Sei que há coisas mais importantes, você não precisa me explicar o quanto isso é mesquinho, mas é a mais crua verdade. O fato é que me apavora a ideia de estarmos (ou estarem, no caso) em 2158 sem saber quantos Estaduais, Brasileiros e Libertadores o Grêmio ganhou nesse período. Me apavora não saber quem surpreendeu e quem decepcionou. Me apavora desconhecer a quantidade de Grenais vencidos com facilidade até lá. Espero que todos, naturalmente.

    Tudo isso é uma grande bobagem. Eu sei. No fundo, odeio gostar de futebol. No entanto, sou daqueles que fazem compras nos patrocinadores do time, que evitam usar qualquer item na cor vermelha, que pagam quinhentos reais numa camisa, que tomam calmantes antes das partidas importantes e que choram escondidos quando dalgum revés. Só não perco o apetite porque não misturo as coisas, afinal, futebol e comida são categorias diferentes. Além disso, ainda há o maior problema, o que me causa mais
    desgosto: sou um baita pé-frio.

    Aqui estacionamos num paradoxo complicado. Quero acompanhar o Grêmio mesmo após a morte, mas nunca presenciei sequer uma vitória no estádio, mesmo com inúmeras tentativas. No máximo, assisti uns empates suados jogando feio. Nos últimos anos, o complexo pé-frio se estendeu aos jogos que assisto pela televisão. Meio a contragosto, fico longe dela simulando ocupações, para só depois descobrir o resultado. Mais tarde vejo os melhores momentos, as entrevistas, as análises de cada lance e acompanho as especulações na imprensa especializada, longe da taquicardia, do desespero e do abraço irreparável do azar. Parece que estou sempre ouvindo atrás da porta.

    O Grêmio e eu vivemos numa espécie de gangorra. Sempre que o time ganha eu estou em outro lugar, atribulado com algum compromisso. Jamais permanecemos na mesma linha por muito tempo. Talvez seja coisa do acaso.

    A principal conquista dos últimos anos foi a Libertadores, em 2017. É claro que assisti aos jogos, o estranho foi que durante uma das partidas mais difíceis, contra o Botafogo, nas quartas de final, caiu a luz no meu bairro e só depois do apito final, já no meio da madrugada, retornou. O Grêmio venceu, mas eu não vi.

    Na semifinal, contra o Barcelona de Guayaquil, tive uma crise hipertensiva após aquela defesa histórica do Marcelo Grohe no início do segundo tempo. Jogo tenso, ansiedade incontrolável. Fui parar no hospital. Outra vitória sem mim. E tem mais.

    No primeiro duelo da final eu voltava de viagem. O trabalho também apita nesses acasos. No ônibus, aflito e inquieto, mal conseguia conectar a transmissão. Soube do resultado numas falas entrecortadas do Pedro Ernesto Denardin, da Rádio Gaúcha, em algum lugar entre União da Vitória e Palmas. A partida já havia acabado.

    Durante o segundo jogo eu participava de um Congresso de Literatura, em Pato Branco, sobre a obra de Nelson Rodrigues. O palestrante era o professor Luís Augusto Fischer. Eu realmente precisava daqueles créditos. Na saída ouvi um foguetório e parei no primeiro bar em que encontrei alguns torcedores do Grêmio. Lá assisti aos replays dos gols enquanto bebia canecas e mais canecas de chope. A palestra foi muito interessante, mas o professor Luís Augusto Fischer é colorado fanático. O Grêmio ganhando a sua terceira Libertadores e eu assistindo um colorado palestrar. Às vezes a
    vida é cruel.

    Esse paradoxo tem me angustiado. Meu pé-frio é evidente e comprovado, os amigos sabem disso. Me excluem dos churrascos durante os jogos para garantir mais chances de vitória do tricolor. Ultimamente, por conta dos sites de apostas, eles só falam em probabilidades. Isso nos distanciou ainda mais. Não sei se a morte resolverá o problema e também não estou disposto a descobrir. No entanto, se no pós-morte o meu pé-frio acabasse, talvez a temesse um pouco menos. Orgulhoso, então diria:

    —  Não dá, hoje tem jogo do Grêmio.


  • O Luto na Visão dos Cães

    O luto, no olhar humano, é o vazio que se instala após uma perda. Uma ausência que ecoa e se faz presente em cada instante de saudade. Mas, se o luto é tão humano, como explicar que o cão também sofra quando seu dono se vai?

    Talvez isso se deva ao mistério do vínculo que une nossas almas às deles. Diferente de nós, os cães não filosofam sobre o que foi ou sobre o que virá, nem se perdem em pensamentos sobre a ausência. E, ainda assim, quando seu dono parte, algo neles se transforma para sempre. Como Hachiko, o cão que esperou incansável pelo dono que nunca retornaria, os cães têm seu próprio e singular jeito de viver a perda.

    Eles refletem nossas emoções, espelham nossos sentimentos, sentem a nossa dor e também vibram com nossas alegrias. Na ausência, os cães absorvem o vazio, percebem a mudança no ar, o silêncio dos passos que não se repetem mais, e o cheiro que gradualmente desaparece. Mesmo sem palavras ou cerimônias, são tocados pela presença que se foi.

    Um cão enlutado pode ficar apático, quieto, perder o interesse pelo que antes o alegrava. Sua conexão com o dono é uma cumplicidade que ultrapassa o toque e a presença física, algo que, de certa forma, transcende. Como uma alma pura, ele sente a perda sem as complexidades culturais ou emocionais que nós temos. É como se o cão soubesse, em sua simplicidade, que algo essencial se perdeu..

    No entanto, assim como nós, os cães possuem uma força de renovação surpreendente. O segredo está em manter a rotina, respeitar seu tempo, e, acima de tudo, não projetar sobre eles as nossas próprias tristezas. Eles não se apegam à dor; para eles, apenas o presente é real, e talvez por isso, gradualmente, eles sigam em frente. Eles não entendem a nossa pena, não precisam de lamentações.

    Diz-se que, para o cão, só existe o momento presente. E talvez isso explique porque, aos poucos, eles reencontram o caminho para a alegria. O luto dos cães não é uma prisão; é uma travessia silenciosa que nos lembra que a dor pode ser abraçada, mas não deve ser eterna.

    Talvez, de vez em quando, ao sentir um cheiro familiar ou uma brisa que traz algo do passado, ele erga o focinho e, em seu íntimo, sorria, sentindo que, de algum modo, ainda estamos presentes. Porque o amor de um cão não se apaga com o tempo ou a ausência; ele persiste, eterno e fiel, como uma chama que nunca se extingue.

    E assim, quando a noite cai e o silêncio domina, ele dorme em paz, com o coração ainda aquecido por aqueles que um dia amou. E nós, de algum lugar, talvez sintamos o mesmo: uma saudade doce, acompanhada da certeza de que um vínculo assim, entre cão e humano, nunca se rompe de verdade. Nessa complexidade de se fazer evoluir, para os cães, cada instante importa, o passado se dissolve na simplicidade do presente. Eles nos ensinam, assim, que amar também é saber soltar. Um novo lar, uma nova rotina, um novo amor… tudo no cão é levado a ser simples.


  • Os signos da crítica

    Costumo ler em voz alta quando estou em casa. Peguei esse hábito da minha mãe, que todo sábado à tarde distribuía na mesa da sala uma penca de cadernos e livros para corrigir trabalhos, ler e reler textos, planejar as aulas da semana seguinte, tudo em alto e bom tom. Uma resma de folhas em branco e o mimeógrafo aguardavam na estante, ali ao lado. Eu podia destruir a casa desde que não relasse naquela mesa.

    Trinta anos depois, não temos um mimeógrafo e nem uma resma de papel por perto, mas mantenho a cultura familiar da leitura em voz alta que, por acaso, tem dado o que falar. Lia há alguns dias uma crítica literária no sofá enquanto minha esposa fuçava numa das gavetas da cômoda. Em algum ponto da argumentação, ela parou para ouvir, prestando uma atenção quase intimidatória; fiquei inclusive receoso com possíveis tropeços ou gaguejos. Quando cheguei ao fim do texto, ela me perguntou quem era o autor e, logo após a resposta, completou: — É taurino. Encerrou o papo saindo para a cozinha. Dois ou três dias depois, em outra leitura, veio a sentença: — É aquariano. Novamente, assunto encerrado sem mais delongas

    Aquilo não fazia sentido. Sugerir o signo do crítico a partir de uma opinião era bobagem, além disso, desmentia a independência intelectual, reduzia as perspectivas, presumia o futuro, mapeava as questões fundamentais da vida. Impossível, apenas impossível.

    Com certa malícia, busquei, sem ela saber a data de nascimento do crítico alvo do último palpite e, para minha surpresa, estava certa. Sorte de principiante, óbvio. Nada mais que isso. Provaria com facilidade se tratar de um chute bem dado e jamais voltaria a refletir sobre o assunto. Naturalmente, não revelei o acerto para não criar uma polêmica conjugal.

    Passei então a ler textos sortidos de diferentes críticos, querendo pôr à prova essa tal sabedoria mística. Tudo iria se mostrar uma baita coincidência, uma eventualidade, afinal, as questões do Zodíaco são achismos, todos sabemos disso. Mas, como em tudo na vida, há quem diga o contrário — uns românticos, alienados. O estranho é que desde então são seis críticos e nenhum erro.

    Wilson Martins foi decretado pisciano trinta segundos após o fim da leitura, mesmo signo de Otto Maria Carpeaux, decifrado sem hesitações. Álvaro Lins foi revelado sagitariano antes do ponto final, faltavam ainda uns dois ou três parágrafos. O aquariano Augusto Meyer também não demorou a ser descoberto, tampouco o leonino Antonio Cândido. Harold Bloom, por fim, não teve chances porque tinha o mesmo signo da Senhora Leidens.

    Eu não sei se há alguma relação esotérica entre as opiniões e os signos dos críticos. O fato é que agora leio crítica literária aguardando ansioso a sentença do outro lado da sala. Talvez ela esteja trapaceando e tenha até buscado os aniversários dos autores perfilados na estante, talvez eu deva esquecer o assunto antes que me contamine. Por certo, não ficaria bem como um jovem místico tardio, ou como um tardio jovem místico, como queiram. Visto melhor o cinismo com calça jeans e tênis.

    Não quero suprimir as opiniões das pessoas, também não quero tabelá-las com base em gnoses obscuras, mas, como uma experiência sociológico-literária, sugiro ao amigo leitor que balize minha dúvida e participe de um experimento científico de descomprovação: se quiseres, me encaminha tua opinião sobre este texto, seguida da data do teu nascimento. Apenas se quiseres, claro, sem obrigações nem mentiras. A ciência depende da tua sinceridade. Me comprometo a fazer uma leitura em voz alta do teu parecer com o intuito de desmistificar o esoterismo literário que me aflige ou, dependendo do resultado, iniciar uma pesquisa mais aprofundada sobre os signos e a crítica. Espero não chegar nesse ponto. Sei que também não acreditas nessas coisas. Que tal, topas?


Back to top button

Adblock Detected

Desative para continuar