Ensaios

Um Exercício de Escrita – O Rio e o Pescador

Como contar um conto? Uma pergunta instigante para mim, sempre viva e colorida no ato de escrever. Contar um conto é construir uma armadilha; pegar um pássaro raro e ouvi-lo cantar; por fim, alegrar-se pelo feito e comemorar. Um conto é um mundo, um mundo repleto de vozes, gestos, sombras, folhas e musgo; um trabalho inquieto de mãos atarefadas e nervosas na arrumação dos detalhes, detalhes imprescindíveis.

Um dia, nessas leituras cotidianas, recordei-me de Umberto Eco quando, justamente, falava a respeito da criação de uma história. Dizia o italiano que “é necessário construir um mundo, o mais mobiliado possível, até os últimos pormenores…” e assim Eco exemplifica seu pensamento: numa folha em branco (sempre um vazio habitável para o futuro) constrói um rio, duas margens, um pescador, um nome, um motivo para que aquele homem esteja no local da ação e, finalmente, um temperamento e uma atitude do ser criado.

Pensei muito sobre o mundo criado pelos autores, explicado ou não, descrito ou não pela boca de algum narrador. Quando lemos uma história, observamos um mundo, perfeito ou imperfeito; personagens e nomes se misturam e a nossa imaginação voa longe. Pensei em construir uma história sobre o pescador, e, primeiramente, dei-lhe o nome de Serafim; um nome sugestivo que denunciava, a meu ver, a possibilidade do desfecho, mas contudo, continuava ambíguo: será ou não o fim? Serafim. Exatamente pela sua ambiguidade a ideia da história não saía da minha cabeça. Um pescador chamado Serafim; em seguida um temperamento rude, um sujeito duro e denso, assim como o rio, como um pescador deve ser; uma parte do rio.

Contei, dessa maneira, um conto. Criei um mundo após a sugestão de Umberto Eco; um certo dia, nos vazios do dia, no ócio criativo, nos intervalos do cotidiano…

Eis o exercício de contar um conto:

Uma mão envelhecida e amarelada abre a primeira página e sorri, é a vida lida pelo tempo. O sol, irônico e lustroso, custava a passar. Serafim olhava o rio, paciência. Paciência teria, mas até quando? Um bom tempo esperando os peixes, desgraçados peixes que não vinham. A fome apertava e o dinheiro sumia e os olhos em desespero diante da raiva e da impaciência. Paciência não teria. Chutou o pequeno balde para a água barrenta e com gestos largos falava para o ar, gritava a revolta da espera inútil. Retomou o seu lugar no barco, fez pequenos movimentos com os remos e isso o trouxe de volta à margem esquerda (sempre o lado marginal). Desceu com os pés descalços e inchados na terra mole, empurrou a pequena embarcação para junto de uma árvore e amarrou-a com firmeza e raiva. É preciso dizer que havia muita raiva. Paciência não teria. Impaciência.

Paciência com a sua impaciência.

Olhou mais uma vez o rio. Naquele dia não tinha pescado um peixe sequer. Fugiram todos de suas mãos nervosas. Por que o Teodoro reclamava do preço? Estava acertado, era o justo. Ele, Serafim, nunca gostou de dedo na cara e ameaças. Os outros que tivessem paciência. Serafim não. Não mesmo. O preço certo, a pesca certa, tudo combinado. Mas não, o homem teimou em mudar de ideia, achou que estava caro demais; abaixasse ou não compraria peixe algum. Teodoro mostrou-lhe um dedo sujo e uma voz rouca e desafiadora. Serafim, homem direito, impaciente, porém, direito, não quis saber de desrespeito e esmurrou o comprador com força e impaciência. Paciência não teria. Peixe ruim, gosto de morte e lembranças tolas. Por que mudou de opinião? homem burro. Sabia que era um ignorante, no entanto direito. Todos deveriam também ser direitos. Não eram. Esse fato o irritava ainda mais. Paciência, paciência… 

Decerto os peixes sentiam sua raiva bruta, incontida e, ao menor movimento dos seus braços, fugiam para longe. Comprador sujo. Sujo como as suas mãos e seu dedo quebrado. Sim. Serafim quebrou-lhe o dedo, o nariz, a mão. Tinha medo do resto que nem sua consciência havia visto. Momentaneamente cego. Cego pelo preço, pelos peixes, o dedo em riste na cara barbada. Burro. Teodoro burro. Não o matou. Tivera vontade. Uma vontade absurda de acabar com aquilo de uma vez. Pensou, no pouco tempo que dedicava a isso, em tudo o que vinha nos seus pensamentos e decidiu não matar. Era homem impaciente, duro, ignorante, mas não assassino. Não matou. Deixou o covarde chorando e gemendo.

De repente, quando se aproximou da chamada ponte velha, uma tábua grande e disforme que ficava na parte mais estreita do rio, viu algo enorme descendo com a correnteza. Não era peixe. Entrou na água até a cintura. As águas não puxavam tanto. Esperou que, o que lhe parecia um tronco, chegasse até ele. O suor e a raiva davam-lhe força para se equilibrar e num gesto rápido agarrou aquilo que descia o rio. O espanto, o grito e a surpresa que se sucederam naquele instante fizeram do pescador um objeto, um objeto do destino ou acaso, um infeliz objeto do trágico: o que julgava tronco, na verdade era o corpo de Teodoro. Eu não matei ninguém! Não matei ninguém! Insistia para si mesmo. Não matei!. Não e não. Burro. Sujo. Não. Não. Não matei… Por que esse desinfeliz entrou no rio? Burro também ele. A curiosidade de um homem pode ser sua perdição. Uma perdição!

Serafim soluçava de raiva e medo. Impaciente.

Suor, raiva e medo. Com um gesto brusco, devolveu novamente para o meio do rio o corpo do comprador. O que fazer? Deixaria que fosse embora com a lama e o tempo. Não era culpado.  saiu e voltou para a margem, olhou o corpo navegando solto rio abaixo… Bateu no homem, quebrou-lhe o dedo e a mão, mas não o matou. Era homem direito.

Serafim sumiu no caminho… pedras e sonhos, um rio, peixes, muitos peixes…pedras, um corpo navegando solto, ao vento…

Chego ao fim do conto pensando no destino de Serafim: seria preso? Seria morto? Perseguido? Ou antes de tudo, a questão mais importante da história, seria ele culpado? Temos a sua visão dos fatos; somente o que ele viu. Todos os fatos narrados por alguém que se mistura à alma e ao discurso de Serafim. Quem é o narrador em questão? Algo mágico? Uma fragmentação do autor ou a consciência de Serafim?

Através de uma leitura cotidiana, em uma brincadeira de juntar palavras e criar mundos, descubro várias possibilidades de uma história tão simples e curta. Serafim poderia simplesmente ter saído e não ter dado ouvidos ao comprador de peixes, mas, não era o pescador um homem impaciente? O que se espera de um homem bruto e impaciente? A culpa recai sobre a impaciência. Não fosse o gênio intempestivo tudo seria diferente? Alguns apontariam a tragédia como irreversível, outros prefeririam apenas dizer que houve o inesperado.

Por que contar histórias, inventar e, de certa maneira ser tão cruel quanto o homem e a realidade que o cerca? Tive pena do Serafim. O que teria pensado ao longo do caminho?

Serafim atravessava o rio, silencioso e triste, lento e impaciente…

Impaciente como só ele sabia ser…


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Campista Cabral

Campista Cabral, leitor assíduo dos portugueses Camões e Pessoa, do poetinha Vinícius, herdou deles o gosto pelo soneto. A condensação dos temas do cotidiano, assim como a reflexão sobre o fazer poético, parece procurar a sua existência empírica ou, nas palavras do poeta, um rosto perfeito, na estrutura do soneto. Admirador e também leitor obsessivo de Umberto Eco, Ítalo Calvino, José Cardoso Pires, Lobo Antunes, do mestre Machado de Assis e do moçambicano Mia Couto, retira dessas leituras o gosto pela metalinguagem, o prazer em trabalhar um espaço de discussão da criação literária em sua prosa. A palavra, a todo instante, é objeto base dos contos e das crônicas. A memória, o dia-a-dia, o amor, as sensações do mundo e os sentidos e significados da vida estão presos nos mistérios e assombros da palavra.

2 comentários

  1. É, meu amigo. Sem querer, um domingo de experimentos literários de nossas partes. Parabéns, pelo inesperado, pelo cenário cruel da impaciência, pelas dúvidas e o peixe – tudo tão concatenado maestralmente! Serafim..! Fantástico, Campista! Um beijo e bom domingo!

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