Crônicas

Treinamento para habilitados

Dois dias atrás, o carro da frente do meu exibia uma placa: Em Treinamento para Habilitados. Achei fantástico esse serviço – dar um treinamento para os já habilitados. Isso pressupõe que, mesmo tendo sido considerada apta para a função a que se propõe, a criatura não tem domínio do assunto.

Incrível, não? Como será, então, que foi considerada apta a exercer essa atividade? Quando se trata de carteira de habilitação de condutor, a nossa tão conhecida CNH, é fácil de entender – o candidato a condutor passa por um curso rápido em que decora algumas regras de trânsito, e faz, se não me engano, umas 40 horas de treino sobre como se portar ao entrar no veículo: regular os espelhos, o banco, a partida, freio de mão, as setas, etc. Aí vem o percurso, a baliza, sair na ladeira (que é o mais temido) e, salvo alguma barbeiragem muito grande, a esperada aprovação.

Orgulhosamente com seu atestado na mão, o novo condutor começa a enfrenta a vida real – trânsito, cruzamentos, se aventurar a mudar de faixa visto que tem que entrar à direita logo mais, estar preparado para os sinais que mudam de repente, enfrenar alguém que corta a frente subitamente, ficar calmo diante da pressão de outro que buzina para que ande mais depressa, enfim – o estresse de qualquer iniciante ao volante.

Alguns tem pendor nato, logo dirigem super bem, com tranquilidade e segurança. Outros vivem um verdadeiro martírio ao enfrentar esse desafio. Para esses, foi criado o curso de treinamento para habilitados – super louvável, apesar de que não acredito muito que o resultado seja transformar patinho feio em príncipe.

Esse assunto ficou, de alguma forma, na minha cabeça. À noite tive um sonho delirante – esse serviço poderia ser aplicado a um outro certificado de habilitação – a certidão de casamento. No meu devaneio noturno, as coisas aconteciam assim:

Os candidatos a sacramentar uma união passavam por uma prévia para aprender algumas regras de como se comportar ao volante de sua nova vida: regular os espelhos para não enxergar o outro de forma distorcida, escolher um banco que seja confortável e suficiente para os dois; não fazer questão de dar a partida, deixar espaço para o parceiro iniciar o contato; puxar o freio de mão quando vem aquela raiva; dar setas para que o outro perceba quando é para mudar o rumo da conversa etc. Aí vão para o percurso, tentando acertar a baliza, sair na ladeira quando o clima esquenta (que é o mais temido) e, salvo alguma barbeiragem muito grande, chegam para pegar a esperada certidão.

Certos de que já estavam habilitados, começavam a enfrentar a vida real a dois – trânsito com congestionamentos desgastantes; cruzamentos que provocam colisões; insegurança para pegar a direita e retornar quando a conversa foi na direção errada; dificuldade para captar os sinais de alerta se o humor muda de repente; sabedoria para driblar um triângulo amoroso que corta o caminho subitamente; paciência para manter a calma quando a sogra buzina no ouvido pedindo que apareça um filho mais depressa … Resultado – uma crise de estresse do casal iniciante, que ainda não tinha competência para lidar com a situação.

Diante disso, será que um treinamento pós habilitação ao casamento funcionaria? Acordei rindo, com essa pergunta no ar.


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Ana Helena Reis

Ana Helena Reis é paulistana, pesquisadora e empresária, com extensa produção de textos acadêmicos. Em 2019 começou a se dedicar à escrita literária e à ilustração de seus textos em prosa: contos, crônicas e resenhas, relacionados a fatos e situações do cotidiano. Publica em seu blog, Pincel de Crônicas, em coletâneas, e revistas eletrônicas. Em 2024 lançou seu primeiro livro solo, Conto ou não conto, pela editora Paraquedas/Claraboia, e, em Espanhol, Inquietudes Crónicas, pela editora Caravana/Caburé.

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