Crônicas

A beleza do mundo, hein, tá no Gantois!

Amanheceu e Janaina, cantarolando Dorival Caymmi, se preparou para mais um dia de trabalho na entrada do Casa Espiritual do Gantois. Mais que depressa, arrumou a cesta com os alimentos responsáveis pela manutenção da energia dos orixás e que servem de caminho entre o céu e a terra: os frascos embrulhados de vermelho com azeite de dendê, as trouxinhas brancas onde colocou o vidrinho de álcool e alguns recipientes para o vinho, o mel e o fumo preto. Além disso, delicadas essências carregadas de energia, envoltas nos papelotes coloridos, faziam a ligação necessária com cada Orixá, proporcionando ajuda e proteção para o dia que haveria de ser intenso.

Colocou sua vestimenta branca com barrado dourado e o turbante de crochê azul claro, tecido por uma das filhas de santo. No pescoço, a longa guia de contas azuis e brancas. Azuis para proteção, necessária quando contra os maus-olhados. Brancas, que além de terem caráter refletor do mal, induzem às coisas puras, e boas. Assim preparada, seguiu para a recepção dos que vão em busca das bençãos dos Orixás, sua maior missão no terreiro.

Sentada em seu posto, ela aguardou a chegada dos iniciados, não sem antes espalhar algumas pipocas como oferenda para o orixá Obaluayê. Os alabês já estavam a postos em seus lugares e começaram, com seus atabaques, a chamar os iniciados para a seção da tarde.

Uma pessoa se aproximou. Janaina levantou o olhar e foi invadida por uma grande comiseração ao ver seu estado. Teve a sensação de que a fisionomia era familiar, mas não foi capaz de reconhecer. Estatura alta, tórax muito grande para o tamanho do resto do corpo. Cabeleira vasta, mas com alguns tufos queimados. A pele engelhada. A boca seca, o olhar embaçado, a respiração ofegante. Pensativa, ela observou que era uma criatura ainda jovem, extremamente depauperada. Sua capacidade mediúnica a fez intuir que tinha sido castigada pelos maustratos por parte de quem a deveria ter cuidado, nutrido, protegido.

Se concentrou, fechou os olhos e começou, então, suas rezas: Ó soberana mãe das águas, vinde a mim neste momento de aflição. Com minha fé e devoção, acendo esta vela azul para iluminar meus pedidos e caminhos. Ó minha Ialorixá, intercede por mim à Iemanjá para que ajude a manter vivas as águas que podem nutrir esse corpo desidratado. Que assim seja feita a vossa vontade. Odoyá!

Ó soberano pai da caça, vinde a mim neste momento de aflição. Ó meu Oxóssi que protege os animais e as florestas, lança seu arco e flexa contra os que matam sem necessidade. Ajude a manter vivas nossas espécies em extinção, e a caça como o alimento que esse corpo precisa para sobreviver. Com seu manto verde orvalhado, cubra sua cabeça já tão devastada. Que assim seja feita a vossa vontade. Okê Arô!

Ó soberano pai do vento, vinde a mim neste momento de aflição. Ó meu pai Oxalá, que protege o ar que inalamos ajude-nos, descarregando todas as impurezas jogadas na atmosfera pela ambição do homem. Com suas vestes brancas, lava esse rosto asfixiado, para que seu pulmão volte a respirar. Que assim seja feita a vossa vontade. Êpa Babá!

Para poder anunciar, então, a entrada do visitante no Gantois, onde receberia a benção da Mãe Menininha, Janaina pediu que o visitante dissesse o nome. Ao que ele respondeu: Brasil.

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Ana Helena Reis

Ana Helena Reis é paulistana, pesquisadora e empresária, com extensa produção de textos acadêmicos. Em 2019 começou a se dedicar à escrita literária e à ilustração de seus textos em prosa: contos, crônicas e resenhas, relacionados a fatos e situações do cotidiano. Publica em seu blog, Pincel de Crônicas, em coletâneas, e revistas eletrônicas. Em 2024 lançou seu primeiro livro solo, Conto ou não conto, pela editora Paraquedas/Claraboia, e, em Espanhol, Inquietudes Crónicas, pela editora Caravana/Caburé.

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