Martina, quando pequena, adorava pegar a seringa de brinquedo e dar injeção nas
bonecas. Aprendeu com seu pai que, quando crescesse, seria médica.
Sua família incentivava, com gosto, a brincadeira da menina. Sabiam que, se a fantasia
ganhasse espaço na realidade, o futuro estaria garantido.
Estudiosa, a filha não era. Tinha dificuldade em matemática e português, e preguiça
para os deveres. Mas desde quando os sonhos respeitam os limites da verdade? Seu pai
já havia determinado: se espelharia no seu tio-avô. Renomado e rico.
Ano a ano, na cabeça dele, a história ganhava enredo: Martina estudaria medicina na
federal, seria assistente do tio Aldomiro, trabalharia na clínica dele. Embora fosse neta
de um pintor falido, conquistaria o status que seu avô não foi capaz de alcançar. “Nunca
mais serei o primo pobre”, repetia o pai em seu secreto pensamento.
No aniversário de doze anos da filha, de forma solene, a presenteou com um jaleco
branco e nome bordado em dourado. Nessa época, Martina não via mais graça em dar
injeção. Seu novo divertimento era desenhar vestidos e acessórios. Também amava
experimentar suas roupas e desfilar pela casa fazendo pose. Deu esse destino ao jaleco.
Usou-o com cinto, lenço, salto alto da mãe.
O pai insistia no sonho. Tinha por hábito, ao chegar do trabalho, perguntar:
— Onde está a Dra. Martina Albuquerque?
O silêncio invadia o ambiente como uma advertência do futuro.
A mãe tentou alertar ao marido que a medicina era uma fralda suja de infância. A
menina, agora mocinha, demonstrava interesse e talento inato para as artes.
Pela primeira vez, a mãe da garota sentiu, na maçã do rosto, a ira dos inconformados.
Martina, horrorizada com a cena, nunca mais desenhou.
Aceitou, com resiliência, a missão de reparar as frustrações e recalques do passado
familiar. Ingressou na faculdade de medicina. Prestes a se formar, adoeceu do sangue.
Pobre Martina!