Crônicas

Ficar de repouso

Desconheço três palavras do nosso idioma que, juntas, formam uma pequena sentença de morte. Em vida. Ela me assombra como uma prisão para maus comportamentos que parecem surgir até de vidas passadas. Um castigo para as travessuras, repouso para mim é inferno na terra e ainda me deixa de mau humor.

Essa pequena frase que para muitos pode soar com um alívio no caos consegue me tirar totalmente do sério, apesar de serem necessárias, principalmente depois de uma cirurgia delicada que não foi exatamente como esperávamos. Ok. Mas para uma sagitariana com elemento “fogo no rabo” e ascendente em comichão, ficar de repouso é puro castigo. Com a mente inquieta e o corpo curioso, nada me deixa mais mal-humorada quanto não poder fazer qualquer coisa a toda e qualquer hora. Toda bobagem vira uma luta e as pequenas coisas se tornam um desafio de paciência que chegam a me dar nervoso.

Inocentes vão dizer: aproveite esse tempo para ler e relaxar! Claro! Mas, e aquelas roupas no armário que teimam em se misturarem seguindo uma lógica que não é a minha? E as surpresas pela casa – em obra – que surgem apenas quando estamos por perto e incapacitadas de resolver? Mas, claro, temos uma lista de belos e cultuados filmes que sempre almejamos assistir e precisávamos exatamente desse momento tão reconfortante de repouso absoluto para realizar esse velho sonho. Mais inocência! No primeiro dia até vá, mas nos outros simplesmente perco o bom senso e me inebrio com vídeos de gatinhos e comédias bobas que parecem me acalmar os sentidos e me fazer esquecer o inesquecível: PRECISO FICAR DE REPOUSO.

Resolvo então colocar o papo em dia. Ligo primeiro para os filhos. 10 minutos com um e quase 3 com o outro. Com o mais velho o papo até engrena, ele conta novidades, destila sua fina ironia e termina com um – Adeus! marcando claramente o seu tempo comigo e mostrando que ele tem – graças a Deus – mais o que fazer. O mais novo já atende com aquela voz entediada mostrando que não estava nem um pouco a fim de falar com a mãe. Tudo bem, tudo bem, tempo, planos, o que vai fazer hoje, te amo e tchau. Me contento com pouco. Pelo menos ainda me amam. Resolvo ligar para uma grande amiga que me pergunta sobre um bazar na nossa cidade. Estico a prosa o máximo que posso e ainda tenho uma outra chance: preciso ligar para minha mãe para mais informações sobre o tal bazar. Meia hora falando com a amiga e uma hora falando com a mãe – nunca pensei que fosse gostar tanto das suas redundâncias – já deu para passar o tempo e acalmar o coração.

A noite vem e me inebrio com filmes até dormir no sofá. Na cama, lado certo para dormir, tampão protegendo o olho e a inquietude volta. Porque não conseguimos engatar o mesmo sono gostoso que já nos acalentava no sofá? O corpo deveria ter algum dispositivo que nos fizesse apenas mudar de lugar sem nos acordar. O sono continuava intacto e a mente calma não se abriria para novas possibilidades, como guloseimas escondidas espalhadas pela casa – esconderijos estratégico de chocolate para momentos de fúria ou tristeza – que são explorados a revelia apenas pelo fato deu estar em casa achando que tudo me convém. Disparates de gula na madrugada que cobram seu preço quando o repouso acaba.

Tudo começou com um arsenal secreto para momentos de TPM, iniciativa que julguei ser da mais absoluta utilidade pública, principalmente para a saúde mental do meu marido. Fazia pequenas matulas de bombons e M&M´s e colocava naquele local no fundo do armário da cozinha que a maioria dos homens nem sabe que existe. Mas como toda prática leva a perfeição, comecei a elaborar novos esconderijos, cada vez mais ousados, mas que se mostraram ainda mais eficientes. O óbvio normalmente não é descoberto exatamente por ser óbvio. E me lembrei que havia comprado um pacote daquelas bolinhas mágicas de chocolate ao leite e branco antes da cirurgia. Com muita cautela, fui até o seu esconderijo e me deliciei com algumas tantas delícias vendo o último capítulo de Tieta. Prazeres mundanos que ainda valem à pena.

No outro dia, mais jornais acumulados, revistas separadas, palavras cruzadas empilhadas ao lado da cama, todos à espera desse momento de paz e repouso. Menos eu. Me decido pelo livro do mês do meu clube de leitura e me deixo levar pela história de uma dona de casa italiana que começa a escrever um diário com os acontecimentos do seu dia a dia no pós segunda guerra mundial. Trivialidades da vida de toda mulher, mas com aquela profundidade que só boas escritoras conseguem imprimir. Enquanto isso, no Instagram, a vida acontece, os eventos transbordam, o sol é para todos e o céu azul me convida para mais. Tudo me aflige e me chama para fora. Leio mensagens de encontro entre amigas, cafés no meio da tarde, calçadas novas para explorar.

Mas nego, sem dó nem piedade, me privando de tudo e todos para ficar no tal repouso.

— Não posso fazer nada, doutora?

— Não, apenas ler e ver televisão. Fica como se fosse uma velha.

Já me sinto uma. Quase retruco: posso jogar bingo então? Mas prefiro não piorar a minha situação. Apesar de que, conheço algumas velinhas que são mais ativas que muitos jovens que vemos por aí. Idade é mesmo coisa da nossa cabeça. Mas os 50 ainda estão sendo digeridos por mim.

Aproveita para descansar! Os amigos insistem. Não me sinto com mais tempo para descansar. Apesar de estar adorando algumas regalias que esses dias promovem, como café na cama e a falta de compromisso de dar conta de tudo, conto os minutos para poder fazer tudo que gosto de novo. Esse meio século – bem – vivido parece ter me atropelado, como se ligasse os motores para uma nova era. Os 50 chegaram com tudo e com ele uma sede imensa de mais. Vou descansar dormindo ou na sala de espera do dentista. Quero arte e movimento, expansão e criatividade; quero vida correndo, amor, amigos, filhos, sonhos… Tudo por perto, junto e misturado. Quero sair sem ter hora para voltar – sendo que às 10 já estou dormindo, claro – e emendar um compromisso no outro com sorriso no rosto e vento nos pés. Como o menino maluquinho. Ou uma menina que ainda posso ser.

E, claro, com muito fogo no rabo!

Que seja breve o meu repouso.

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Carol Meyer

Carol Meyer - Curiosa e apaixonada pela arte da escrita, a autora do livro "Ave Marias", obra premiada no concurso Bunkyo de literatura, é uma apreciadora das delicadezas do cotidiano, uma ouvinte atenta, "colecionadora de pessoas e casos." Divirta-se!

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