Crônicas

Ladrões de tempo

Há um instante na vida — e ele chega sem avisar — em que o elástico do tempo começa a encolher. A gente passa tanto tempo acreditando que ele se estica infinitamente, que leva um susto ao perceber que a ponta já está ali, bem mais próxima do que parecia.

Para os otimistas, os esperançosos, os que ainda querem aproveitar o máximo do plano terreno, só resta puxar esse elástico com jeitinho, torcendo para que ele não dê uma estilingada inesperada e se despedace. E, se tiver que se romper, que seja lá no finzinho da linha — o que, convenhamos, já seria uma benção.

Esses dias, lendo A contagem dos sonhos, de Chimamanda Ngozi Adichie, me deparei com uma expressão que ficou zanzando na minha cabeça: “ladrões de tempo”. No livro, ela fala de amores que não valem a pena, relações que atrasam a vida amorosa das protagonistas. Mas fui além.

Não pensei em amores antigos, nem em nós do passado. Foi o presente que me cutucou. Quantos tipos de ladrões de tempo existem por aí? E quantos estamos deixando entrar pela porta da frente, com tapete vermelho e cafezinho?

Alguns são quase impossíveis de evitar. A burocracia, por exemplo, é um clássico ladrão. Quem nunca perdeu horas preciosas enfrentando a famosa URA — aquela Unidade de Resposta Audível que promete atendimento e entrega desespero? Seja para falar com o banco, a companhia elétrica, o plano de saúde ou qualquer outro órgão onde o tempo vai escorrendo sem dó. E não vamos nem começar a falar das filas, dos congestionamentos, da papelada sem fim. Já pensei até em criar um “cronômetro da perda de tempo”, tipo o impostômetro. Mas desisti: imagine a crise existencial?

Esses são ladrões conhecidos, e com criatividade dá até para reciclar o tempo que eles roubam — ouvir uma música, mandar mensagens, ouvir um podcast, ler umas páginas, divagar sobre a vida. Um pequeno protesto poético contra o sistema.

Mas o que realmente me preocupa são os ladrões silenciosos. Aqueles que a gente convida sem perceber. Os pensamentos negativos, por exemplo, são verdadeiros assaltantes da alma. Sugam o tempo interior, roubam a leveza do dia, encurtam a vida emocional em câmera lenta.

A sabedoria, dizem, vem com o tempo. E talvez ela esteja justamente em aprender a proteger o nosso elástico — envolver a linha com cuidados, risos, fé e pequenos bálsamos que o mantenham flexível. Porque a vida já corre por si só. Se a gente não cuidar, quando piscar… ela estoura.

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Ana Helena Reis

Ana Helena Reis é paulistana, pesquisadora e empresária, com extensa produção de textos acadêmicos. Em 2019 começou a se dedicar à escrita literária e à ilustração de seus textos em prosa: contos, crônicas e resenhas, relacionados a fatos e situações do cotidiano. Publica em seu blog, Pincel de Crônicas, em coletâneas, e revistas eletrônicas. Em 2024 lançou seu primeiro livro solo, Conto ou não conto, pela editora Paraquedas/Claraboia, e, em Espanhol, Inquietudes Crónicas, pela editora Caravana/Caburé.

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