Crônicas

Matando o tempo

“Tempo, tempo, tempo, tempo, és um dos deuses mais lindos”.
(Caetano Veloso, Oração ao Tempo)

Quando criança, eu observava fascinado as mutações do tempo. Não me refiro ao tempo como período dos acontecimentos, medido pelo relógio, mas como condição meteorológica. Enquadrava-se o tempo no rol dos enigmas além de nossa compreensão, assim como o infinito ou o mistério da vida. As alterações do tempo, imaginava eu, dependiam dos humores dos deuses, a quem cabia a incumbência de reger a dança dos ventos, o ribombar dos trovões e o movimento das nuvens. Determinavam as divindades se o tempo seria chuvoso, ensolarado, frio, quente. E nós, humildemente, acatávamos. Quando inspiradas, brindavam-nos elas com um deslumbrante arco-íris, que só podia mesmo ser obra celestial.

O comportamento errático do tempo era intrigante.  Fazia calor em épocas em que a disposição do planeta levaria a crer que deveria fazer frio. Passavam-se, sabe-se lá por que cargas d’água, meses sem chover, reduzindo ameaçadoramente o nível das represas e colocando em xeque a presteza das torneiras de jorrar o precioso líquido o tempo todo e sob qualquer tempo. Nossa capacidade de interferir nos propósitos das nuvens que, teimosas, recusavam-se a colaborar, era nula. Para superar os contratempos do tempo, só mesmo rezando pela intercessão de São Pedro. Restava abastecer-nos com trajes e acessórios apropriados como capas, guarda-chuvas, botas, casacos, cobertores das mais variadas espessuras, para nos precaver dos desígnios do tempo.

Apesar de tais oscilações, havia certa regularidade nas intermitências do tempo que nos trazia uma sensação de alívio. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a umidade do ar nunca seria tão baixa quanto a do deserto do Saara e a temperatura jamais cairia a ponto de a água virar gelo. As tênues variações que vinham ocorrendo sequer nos fizeram perceber que, de repente, na “cidade da garoa” parou de garoar.

Hoje, quando escuto falar em ‘mudanças climáticas’, sinto um arrepio na espinha. Como assim mudanças climáticas? Quer dizer que o tempo vai deixar de obedecer às determinações divinas conforme vinha ocorrendo desde os tempos de Adão e Eva? O que mais vai mudar? Não teremos mais primaveras e outonos? O céu vai também deixar de ser azul?  Os raios do sol deixarão de brilhar pelas manhãs?

Quando os telejornais passaram a incluir, além de tediosos boletins meteorológicos diários, eventos climáticos catastróficos com temperaturas extremas nunca vistas, tufões devastadores, secas, incêndios e enchentes cada vez maiores, nossa reação era dar os ombros e dizer “o tempo ficou doido”, ajustando o ar condicionado para adequar artificialmente as condições climáticas dentro de casa. E assim íamos tocando a vida, sem nos preocupar quem era o responsável pelas anomalias do tempo ‘lá fora’.

Não sei para você, caro leitor, mas para mim soa terrivelmente assustador que a interferência do homem no planeta tenha chegado a tal ponto que até o perene e ‘atemporal’ tempo está sendo afetado. Sim, pois o que está ocorrendo no clima não é fruto de praga divina, mas resultado de uma criminosa ação humana. Criminosa, sim. Pois o ato de agredir o meio-ambiente que abriga a vida no planeta deveria ser considerado tão delituoso quanto o de atentar contra o lar, onde residimos com nossa família.

As condições para a formação da vida estão sendo alteradas obscenamente pelo homem e ninguém se importa. Nossa civilização doentia aceita com naturalidade a agressão impune à natureza. E os infratores são até exaltados por muitos como desbravadores e promotores do progresso.

Sim, meu amigo, devo pesarosamente informar-lhe: o tempo está mudando. E isso não quer dizer que vai ficar nublado. Mas não se preocupe. A coisa vai ficar ainda pior. Há outras ‘mudancinhas’ em curso enquanto você lê esse texto. Os mares estão sendo infestados de plásticos, os rios envenenados por mercúrio, as florestas devastadas, o ar tornando-se irrespirável, as fontes de água potável estão rapidamente se esgotando e em poucos anos, a maior parte da população mundial não terá como saciar suas necessidades pelo líquido vital.

O mundo tal qual estávamos acostumados não existe mais. E a maior parte da população está pouco se lixando. Ninguém abre mão sequer da conveniência do saquinho de plástico do supermercado, confiando que, como por milagre, o mesmo ‘progresso’ que gerou essa situação consiga salvar o tempo. A tempo.

Resta perguntar a nossos filhos se eles concordam com o ‘admirável tempo novo’ que estamos lhes deixando.

Mostrar mais

Sérgio Sayeg

Sérgio Sayeg é economista e sempre trabalhou nessa área. Resolveu, atendendo a um irrefreável impulso interno, encarar o desafio de escrever um livro de crônicas, aventurando-se por uma empreitada tão antagônica ao que contempla sua formação, “como o de lidar com verbo ao invés de verbas.”

3 comentários

  1. Lembra do “tempo” em que éramos puros, crianças, e olhando para as nuvens víamos coisas concretas como animais ou objetos em suas formas? Hoje quase nunca acontece. Só de vez em quandinho a criança põe a cabecinha pra fora e vê. O adulto preocupado com a sobrevivência, nunca. Trata-se disso. De sobreviver.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo

Adblock detectado

Desative para continuar