O CACHORRO ENCADERNADO
Tenho uma relação antiga com o livro. E feliz. Eu acredito que ninguém é obrigado a ler tudo. O básico de cada um é o resultado de suas predileções e inclinações. Momentâneas ou não, ditadas por tantas coisas que reúnem um pouco de tudo que se chama você. Mutante por natureza, esponja que absorve e que despeja os excessos pelo caminho.
O olhar muda com o tempo porque é forjado por nossa maturidade. Não ter idade para ler alguém é uma verdade, mesmo que incomode nossa vaidade intelectual. Acontece. As vezes você retorna ao livro mais adiante na sua vida. As vezes ele desaparece pelo caminho.
Nossa estante de livros, a metafórica quero dizer, não é melhor nem pior do que a dos outros. São nossas escolhas, sem competir com ninguém.
Na adolescência uns amigos se tornaram fãs do J.R.R. Tolkien e sua saga “O Senhor dos Anéis”.
Eu descobrira Garcia Marques a partir de “Cem anos de solidão”. Nossos caminhos literários não se cruzavam.
Eles insistiam em me dizer que eu não sabia o que estava perdendo por não conhecer a Terra Média. Lá em Macondo eu balançava minha rede e suspirava.
Influências externas podem te empurrar na direção de uma estante. Ou te afastar dela. Mas o que dizer dos estalos que nos chegam de repente? Sabe quando nosso olhar examina a obra e uma voz baixinha nos diz “acho que vou experimentar esse ai”…
Ser leitor é muito bom.
Houve uma época da minha vida em que levava, por baixo, uma hora e meia de casa ao trabalho. E para voltar também, não tinha refresco.
Pegava duas conduções e na primeira, a de uma hora, eu conseguia viajar sentado. Como sempre pegava o ônibus no ponto final, tanto na ida quanto na volta, era tranquilo. E para ocupar o tempo, eu lia.
Foram mais de seis meses nesse trajeto até mudar de casa. Nesse tempo, Guimarães Rosa me fez companhia. Li “Grande Sertão: Veredas” nessas duas horas diárias de viagem. Lembro até o que eu fiz no dia em que Riobaldo uivou de tristeza. Interrompi a leitura, completamente afogado pelas emoções do jagunço e lancei um olhar perdido na cidade à minha volta. Sertão bruto me cercava. E Riobaldo uivava.