O fim da fila
Andei tendo pesadelos com filas — fila do cinema, fila do caixa do supermercado, fila de embarque no avião, fila no atendimento do banco… eu ali, imprensada, empurrada, as pessoas passando na minha frente sem a menor cerimônia, ignorando que se tratava de uma pessoa idosa.
A cada dia, uma nova imagem dessas me atrapalhava o sono e, num sobressalto, eu acordava. Ao abrir os olhos, respirava aliviada ao perceber que era só um pesadelo. Afinal, eu vivia em um país em que os maiores de 60 anos têm um privilégio garantido por lei — o Estatuto da Pessoa Idosa, de outubro de 2003, assegura prioridades que nos ajudam a envelhecer com um pouco mais de dignidade.
Com o tempo, os pesadelos sumiram, e eu me vi aproveitando, feliz, os pequenos privilégios da “melhor idade”: o prazer de encontrar uma vaga exclusiva em um estacionamento lotado, de entrar primeiro no avião e me acomodar sem atropelamentos, de sentar tranquila no transporte coletivo. Compensações merecidas pelos percalços do envelhecimento, eu pensava.
Outro dia, no entanto, fui assistir a uma peça de teatro e me deparei com uma cena inesperada. Ao me dirigir à entrada reservada aos idosos, fiquei desnorteada: onde estava a fila? Em vez de uma ordem civilizada, havia um aglomerado de cabelos brancos e cabeças carecas que se acotovelavam num tumulto para marcar seus bilhetes de entrada.
Olhei ao redor e compreendi: praticamente todos ali já tinham passado dos 60. Se fosse para haver uma fila especial, ela deveria ser para os “não idosos”.
Naquela hora, lembrei dos meus antigos pesadelos. Eles não eram delírios, mas premonições. Nossa população está envelhecendo, e não vai demorar muito para que o privilégio mude de lado. Talvez passemos a ver filas exclusivas para os menores de 60 — mais ágeis, mais rápidos, mais conectados —, enquanto nós, os da “melhor idade”, vamos amargar as filas comuns, onde tudo demora.
Porque um esqueceu o documento, outro não consegue abrir o QR code no celular, um terceiro precisa desmontar a mala na esteira para encontrar a tesourinha esquecida. Sem contar aquele senhor na minha frente que mal consegue subir as escadas do ônibus e, por isso, a porta acaba se fechando antes de mim.
Segundo o IBGE, em 2070 o Brasil terá cerca de 75,3 milhões de idosos — quase 40% da população. Bem… pelo menos eu não estarei entre esses milhões de ex-privilegiados.
Já é um consolo.