
O último reduto da boa prosa
O último reduto da boa prosa é o bar. E quem discorda é clubista, é demagogo, é coach dos bem mequetrefes. Não adianta procurar argumentos contrários. O último reduto da boa prosa é o bar. E ponto. Simples assim. Sejamos razoáveis, em que lugar ainda encontramos uma prosa destituída de mimimis, de blablablás, de ramerrames? Uma prosa despreocupada com a opinião da vizinha lacradora com milhões de “seguimores”? Uma prosa afastada da prévia censura do politicamente correto?
Aqui, ninguém está preocupado se a história tem um pé no fantástico. No bar, quanto maior a mentira, mais interessante a história. Mérito do mentiroso, ou melhor, do narrador. Ninguém se importa se ele não domou de verdade aquela onça quando criança. Ninguém se importa se ele não pescou um tubarão no rio, a quatrocentos quilômetros da costa, nem se o soltou para não ter de provar que o fisgou ali, naquele
mesmo local. As histórias de pescador, aliás, são as mais atraentes. E, sendo sincero, o melhor relato é o que não tem fotos para confirmá-lo. É no gogó. É no papo. É na lábia. No bar, o sujeito tem de saber contar uma boa história para ser levado a sério. Do contrário, perde o prestígio. Pode até enrolar a língua, tropeçar numa palavra ou noutra, só não pode perder o fio da meada. Na rabeira dessa conversa, me seria lícito afirmar, inclusive, que certas pessoas, você sabe quais, carecem de uma chegadinha num ambiente desses; no entanto, é óbvio que não o farei. Seria algo extremamente descortês e inapropriado de minha parte. Uma grosseria sem tamanho.
Mas não se iluda. Também não sou de ficar afagando Mafagafos. Não estou falando do bar da modinha que você frequenta com a sua turma. De maneira nenhuma. Se liga, meu. Não é aquele lugar inflacionado onde vocês filosofam sobre assuntos que só interessam a inteléctuales engajados que nunca arrancaram a tampa do dedão no asfalto num clássico contra a rua de baixo. Também não é o bar que dispõe de inúmeras recomendações na rede social. Nem perto disso, pelo-amor-de-Deus!, um pouco de noção, né? Nem aquele que faz propagandas de quarenta e oito lanches produzidos com temperos do baixo oriente, aquele mesmo com cadeiras ornadas em lã de vicunha e com garçons preparados para atender em seis idiomas. Pois é.
O último reduto da boa prosa é o bar que oferece comida em conserva. O bar que tem Rollmops. O bar com aquela velha mesa de bilhar, sustentando riscos e marcações das mais diversas, que só ajudam aos jogadores experientes, numa viciada cumplicidade difícil de explicar. O bar com dezenas de cachaças no outro lado do balcão, algumas estacionadas nas prateleiras há anos, impregnadas de um pó que naturalmente faz parte da receita de qualquer aguardente mais escura vendida por ali. O bar com mesas
dobráveis dos anos noventa, com desenhos apagados da Skol-desce-redondo e da Brahma-desde-1888. O bar que exala um cheiro de cerveja seca já de manhã e que fede à gordura antes mesmo dos salgados saírem da cozinha. O bar em que o dono atende com uma toalhinha encardida sobre o ombro, de serventia múltipla: limpa o balcão e as mesas, seca os copos, as mãos, a testa, abranda um espirro de quando em vez. O bar que abriga um canto sóbrio para a mesa da Canastra. O bar que oferece cerveja gelada a qualquer hora do dia ou da noite, do jeito que a gente gosta. Um brinde à cerveja gelaaaada!
Aqui, meu jovem, aqui está a boa prosa. Nem gaste tempo procurando em outro canto. Agora puxa uma cadeira, pede uma cerveja e ouve a história que o seu João vai contar, da vez quando Luís Cuiúba comeu seis ou sete veranistas. Depois a gente faz uma fezinha na mesa do canto, pra hoje tenho palpite no Pavão. E vai ser no milhar. Só não esquece, quando disserem que um sujeito é bom de prosa, pergunta logo quais bares frequenta, porque a vida é assim, no fim das contas, me diga com quem andas… E não tem jeito, o último reduto da boa prosa é o bar. Agora, cala a boca e escuta…