Crônicas

  • Guizos, cafés e indelével tinta da vida na pele: dia das mães

    2024 revolucionou a minha forma de encarar a vida.
    O Dia das Mães de 2024, para ser mais precisa.

    Todos os preparativos — que já eram esperados — estavam engatilhados: as tradicionais flores do campo que o Rodrigo já aguardava o “alô” do papai (sempre reservando umas últimas borboletas decorativas que eles já nem colocam mais, mas têm sempre uma para pôr nos bouquets que são para a minha mãe); presentes- surpresa; a chegada à casa da mamãe com um “eu te amo, mamãe, eu te amo mesmo! Feliz Dia das Mães, parabéns!!” — com direito às vozes infantis minha e da minha irmã, eternizadas num porta-retratos pequenino que gravava uma mensagem de áudio de 10 segundos (achadinhos maravilhosos, no melhor estilo do meu pai de presentear quem ele amava); os cartões que são sempre esperados…

    Só que a madrugada me passou apertada no peito.
    Chorei, rezei e não dormi quase nada. Estava preocupada.

    Às 7h, minha mãe me liga com a voz pesada:
    — Temos que levar seu pai ao hospital.

    O coração engasgado na garganta. A confusão de chegar e vê-lo fraquinho, sem ar, quase não conseguindo falar — mas ainda assim, sem dispensar um sofrido “oi, filha… tá tudo bem… tudo bem…”.

    Pegar remédio. Vê-lo lutando com todas as esperanças. Correr atrás da ambulância. Ir colada nela, furando sinais de trânsito. Estar de pé quando os enfermeiros abriram as portas. Sorrir para ele e acenar. Ver o olhar brilhante de vida ali, paradinho, mas me olhando.

    Fizemos o percurso derradeiro: de cadeira de rodas, jogando beijos e dizendo com palavras quase sussurradas — para que ele fizesse a leitura labial —, entre um sorriso de dentro da alma: “Eu te amo, pai.”

    E então, esperar. Até restar o corredor. Somente o corredor, na minha retina, depois que os enfermeiros correram com ele para a UTI.

    Minha irmã vinha do Rio com o namorado e a Summer (minha afilhada de quatro patas). Não sabia que já estávamos no hospital. Dali, os enfermeiros nos informam: ele não sai mais.

    Liguei para avisá-la. Mamãe, preocupada em como ela viria pelas estradas: — Venham em segurança e com calma. Mas estamos aqui, ah, Bubu…

    Zeca, meu filho de quatro patas — e irmão de sangue da Summer —, ficou na minha casa.

    Minha irmã chegou duas horas depois. Eu a recebi na porta de vidro da recepção do hospital, que estava em obras. Entramos abraçadas. Já nos esperavam. Mamãe estava aos soluços.

    Nos deram um último momento com ele no CTI.
    Mas ele já não nos responderia.

    Meu pai saiu de casa com 20 de saturação, depois de ter passado toda a madrugada com dificuldade de respirar, preocupado em estragar o Dia das Mães da minha mãe. Ficaram os dois conversando. Mamãe tentando acalmá-lo, ajudá-lo a respirar melhor. Eu, involuntariamente e sem saber, tentando mandar a minha respiração para ele.

    Nos envolveram em todos os plásticos protocolares de segurança e adentramos a unidade intensiva. Intubadinho. Meu pai.

    Eu, minha irmã e minha mãe choramos. Fizemos carinho. Minha irmã segurava uma das mãos. Minha mãe tentava abraçá-lo de todos os jeitos.

    Eu acariciava a pele sob o lençol, onde dava.
    Todos juntos no Dia das Mães — fisicamente, pela última vez.

    Ele apertou levemente a mão da minha irmã. Ainda teve força para essa despedida. E quando ela nos contou, surpresa, uma última lágrima verteu do olho direito do meu pai.

    Tivemos de sair.
    Minha mãe pediu para ficar mais um pouco. Aguardou para voltar.

    Minha irmã levou a Summer para almoçar e ia pegar o Zeca para fazer o mesmo. No caminho, pedi que buscasse o bouquet.

    Foi minha irmã chegar à casa dos meus pais, a oncologista tentar transferi-lo para um quarto — para que pudéssemos ficar com ele até o último segundo — e ele se foi.

    O sol estava lá.
    O frio estava lá.
    E papai, já não mais.

    Mas ele não deixou de estar conosco no Dia das Mães. – E também não deixou de estar com a vovó, como madrugada todo ano para vê-la e voltar para o nosso café da manhã.

    Nunca mais essa festividade vai ser a mesma.
    Mesmo que só complete um ano amanhã, segunda-feira, dia 12, o segundo domingo do mês vai ser sempre um lugar de saudades ainda maiores.
    E de mais motivo para se comemorar a vida.

    A minha família de quatro pessoas e doze patas (a Mia se foi oito meses antes, com a mesma metástase do papai, descoberta já no fim) é o melhor modelo de amor que eu conheço. E sou muito honrada de fazer parte disso.

    De ter crescido envolta em magia, graças — principalmente — ao papai. Ele sempre acendeu nosso lado lúdico, nosso acreditar. Nosso não desistir.

    Um Natal desses, entre os presentes e os cartões-surpresa que o Papai Noel ainda deixava escondidos, papai deu a mim e à minha irmã duas caixinhas de joias. Dentro de cada pequeno invólucro aveludado: um guizo para cada uma. Para que nossas crianças interiores nunca deixassem de acreditar.

    O mundo é um lugar melhor porque o meu pai existiu.
    O mundo é um lugar melhor porque a minha mãe e o meu pai existem, e se fizeram eternos em mim, na minha irmã, e nos filhos de sangue que — quem sabe — ainda iremos ter.

    Nesta semana, eu e minha mãe tatuamos em nossos braços uma homenagem a ele.

    As iniciais dos dois, os anos que concentram os 44 anos de amor recíproco e inspirador dos meus pais, eternamente no punho esquerdo da minha mãe.

    Em meu braço direito, em tons verdes, sombreados e delineados em preto, dois ramos de folhas de café — o que a minha família mais ama, e que simboliza todos os nossos momentos juntos.

    Ao invés de grãos dessa maravilha líquida e fumegante: guizos.

    Meu pai vive em mim.
    Eu sou ele.
    Minha irmã é ele.
    50% em mim e nela. (Pela matemática, quando estamos juntas, ele está aqui, 100%).
    Mamãe é ele.
    Ele somos todas nós.

    O Dia das Mães de 2025 vai ser nós quatro ao redor da mesa.
    Quatro lugares à mesa.
    As flores.
    Oito patas pelos cantos da casa.
    Três corpos físicos.

    Minha mãe, por ser ele — o amor faz disso, transforma um no outro, sem que ambos se deem conta —, agora é mãe e pai.

    Feliz seu dia, mamãe querida.
    Eu te amo infinitamente.

  • Posto, logo existo

    Recentemente, assisti à peça O Figurante, com Mateus Solano, e saí do teatro com uma pergunta martelando: somos protagonistas ou apenas figurantes da nossa própria história?

    No monólogo, Solano interpreta um figurante profissional — alguém que sonha em viver um personagem com voz, rosto, presença… mas nunca sai do fundo da cena. Invisível.

    Esse teatro me fez pensar na vida real. Quantos de nós nos sentimos assim?

    Com as redes sociais, surgiu um novo tipo de invisibilidade. Há os que estão dentro da rede e os que permanecem fora, invisíveis ao mundo cibernético.

    Para fazer parte desse universo virtual, criamos versões idealizadas de nós mesmos, guiadas por um roteiro imaginário em que sempre somos bem-sucedidos, felizes, viajando, cercados de pessoas e conquistas — tudo para postar, compartilhar, viralizar e, assim, escapar do anonimato. É como se só existíssemos se postarmos algo. “Posto, logo existo.”

    Nos espelhamos em influencers, novos “semideuses digitais”, e vamos nos afastando de quem realmente somos.

    Fica a reflexão deixada por Solano na peça: “Na ânsia de fazer parte desse mundo, acabamos por nos afastar de nós mesmos a ponto de não saber se somos protagonistas ou figurantes de nossa própria história.”

    Já pensou nisso?

  • Uma história de mistério

    Ouve o ruído dentro da noite espessa e se levanta, salta da cama e faz um pedido para si. Não quer encontrar o que quer que seja. Não é nada, um barulho qualquer. É noite e o chão está frio, os pés, o corredor, as mãos… tudo solto no escuro.

    O ruído é baço… não há… ou há ? O quê? O que foi isso? Por que escutar o que não interessa? O coração, aos pulos, impulsiona sangue às veias. Ouve o ruído que aumenta e acelera também como ele… só ele.

    O que foi isso?

    Ouve o ruído e caminha em passos lentos ou trêmulos ou débeis. Por que escutar o que não interessa? Um sono calmo e bom. A camisola é fria como o chão, as mãos e a noite. O corpo quer e não quer avançar no desconhecido.

    Ouve o ruído mais forte e, num impulso, abre a janela e o vento fresco toma-lhe as pernas, a cintura, a espinha o pescoço… um grito.

    Um gato malhado arranha a porta. Alívio. O corpo está relaxado como a rua que vê: nada, nada.

    Deserta a rua, um pinheiro que balança, outras casas.

    Fecha a janela e não ouve mais o gato malhado que arranha a porta e pede comida. Sobe para o quarto e desarma-se num sono puro. Da janela de cima, o vento entra como embaixo, a acariciar lhe os pés, a tomar-lhe a cintura com força.

    Ouve o ruído novamente e novamente salta da cama , agora confiante, o chão está quente, morno. Num instante abre outra vez a janela e espanta o gato. Agora pode dormir.

    Mas.

    Ao ouvir pela terceira vez o barulho, o ruído, o som perturbador, ela não tem calma, corre para a cozinha e pega uma faca, avança para a porta de entrada e, ao abri-la, acerta um golpe no braço de um rapaz moreno, franzino e inocente.

    Acorda suada com a janela aberta e a sirene da polícia a entrar-lhe nos ouvidos. A noite está calma. A televisão é o único ruído da casa, um comercial de alimentos para gatos: Flakya delícia para o seu gato!

    Desesperada, desce para a sala, acende todas as luzes a abre a porta de entrada – não há nada.

    O gato malhado a olha sem entender e ela fecha a janela para subir ao quarto e dormir. Não há mais barulho…

    Tudo é sono.

  • Para quem é colo, amparo e parceria

    Domingo é o Dia das Mães. Por mais que saibamos a influência do comércio na criação e manutenção da data, seguimos envolvidos na programação do evento: o que dar de presente, o que escrever no cartão? Flores? Onde será o almoço? Qual vai ser o menu?

    Embora a mídia queira nos convencer de que tudo é lindo, sabemos que, para muitos, esse dia vem embrulhado de vazios, lembranças e saudades. Para outros, tristeza, mágoa ou rancor. De um jeito ou de outro, somos atravessados por esse calendário socioafetivo. Não é possível passar ileso ou distraído. Somos convocados a lidar com nossos afetos.

    Tem quem prefira esvaziar a importância do evento, argumentando: Dia das Mães é todo dia. Em parte, concordo. Mas não vejo problema em escolhermos uma data certinha para focarmos, mais atentamente, nos mimos de amor.

    Creio ser uma ótima opção para resgatarmos abraços que se perderam na correria dos dias, olhares que não se cruzaram tempo suficiente para trocarem sorrisos, frases esquecidas no “depois eu te falo”. A eleição de um momento específico de celebração não nos impede de desafiar a urgência da vida para demonstrar o amor que sentimos.

    Sempre é tempo de cantar o que vibra em nós.

    O Dia das Mães é domingo, mas hoje quando meu filho me surpreendeu com um pão com ovo e café feito por ele, para meu lanche da tarde, senti o conforto inestimável de ser amada nos detalhes do cotidiano. Mas adoro a ideia de que domingo tem mais!

    Que possamos todos nos apropriar desse dia para dedicar atenção e carinho àqueles que são colo, amparo e parceria em nossas vidas, independente do cargo ou função que ocupem.

    Celebre os seus!

  • As mulheres da nossa vida

    Eu tive avós. Na minha infância, eles eram a autoridade máxima da família. Austeros, respeitados e, por vezes, até temidos. Se filhos e noras já os tratavam assim, imagine nós: aquela penca de irmãos, primos, afilhados e agregados?

    A figura moderna dos avós é bem diferente. São os que mimam os netos, presenteiam em qualquer data, levam ao shopping, pagam terapeutas e se colocam quase como amiguinhos das crianças. Mas esses também já começam a se tornar raridade. Estão, como os antigos, em extinção.

    Ainda bem. Sou avó de dez netos. Sim, quase uma dúzia. Altos ou nem tanto, fofos ou nem tanto, achegados ou apenas educados. Cada um a seu modo. Fazem parte de mim, filhos dos meus filhos.

    Nesse pensar lento e silencioso, no tempo necessário para que as ideias se acomodem, compreendi o que tem me causado certa estranheza: são os ecos das realidades. As dos tempos atuais e as de que me recordo. E elas não pedem comparações, tampouco julgamentos. Apenas ecoam.

    Houve o tempo em que, embora  sem entender, obedecíamos. Porque o que diziam pais, mães, avós, nos dirigiam… Éramos crianças, mas sabíamos que aquelas palavras, o tom da voz, até o silêncio entre as frases, era amor. E um dia fariam sentido.

    O tempo se encarregaria disso. E tudo se tornaria claro em beleza, verdade e permanência daquilo que nos foi ensinado.

    O mesmo não  podemos afirmar sobre as novas gerações. Basta olharmos as redes sociais, onde a procura de aprovação a qualquer custo geram amor e ódios instantâneos.

    O mundo virtual substituiu as conversas e trocas de ideias. Um emoji “vale mais que mil palavras”. As certezas são instantâneas e as verdades absolutas.

    Personalidades construídas sobre alicerces frágeis não se sustentam, pois uma opinião contrária é capaz de provocar revoltas, rupturas ou até a perda do sentido da vida.

    Mas a memória leve de uma risada, de uma presença silenciosa, de um afeto firme e sem alarde sempre há de nos dar  a convicção de sermos pessoas fortes, capazes de enfrentar a vida e mudar de rumo quando necessário, sem nos perder.

    É o Dia das Mães…e escrevi sobre avós, famílias e valores… Sobre aprendizados e escolhas… sobre força e alicerces… sobre amor…

    Será mesmo que não falei das mães?

    Feliz Dia das Mães!

  • Manter viva nossa espécie!

    Sozinhos ou em boa companhia, envelhecemos de qualquer forma, mas por vezes nossas almas clamam tanto, que necessitamos sufocar esse sentimento com uma dor física, que pode ser espetar agulhas abaixo de nossas unhas. 

    Nas línguas derivadas do Latim a palavra compaixão significa que não se pode olhar o sofrimento do próximo com o coração frio; em outras palavras: sente-se simpatia por quem sofre, que poderia ser por nós mesmos. 

    Até os insetos criam proteções específicas. No deserto, eles têm espinhos que servem de escudo e local para armazenar água, que a região inóspita exige á sobrevivência. 

    Somente as crianças sofrem por ausência de proteção sem força para se defenderem quando são agredidas de alguma forma. 

    Como ocorreu com uma menina de 10 anos, moradora da cidade de Teresina no Piauí. Ela foi estuprada, ficou grávida, e o filho nasceu. 

    Aos 11 anos ela foi novamente estuprada, e corre na justiça seu direito ao aborto. 

    Um corpo de menina nessa idade não está preparado para uma gestação. Essa criatura de Deus sofre emocionalmente uma carga descomunal, que torna insuportável seu momento de vida. 

    Por vezes se repete o conceito inferior, que sociedades discriminatórias permeiam as relações com as mulheres, com status degradado, como foi na antiga Grécia, onde a homossexualidade era prática comum entre os homens, e as mulheres ficavam exclusivamente reduzidas às funções de mãe, prostituta ou cortesã. 

    Ao final do século XV, milhares de mulheres foram queimadas vivas na fogueira, como efeito da repressão sistemática que durou quatro séculos de “caça as bruxas”

    O conhecimento e abnegação femininas incomodavam a igreja e os poderosos daquela época. Elas foram as curadoras populares, parteiras, e detinham saber próprio que lhes era transmitido de geração em geração. 

    Por isso os tribunais da Inquisição foram cruéis e varreram a Europa torturando e assassinando em massa as pessoas julgadas heréticas ou bruxas. 

    Talvez em nosso universo paralelo, que é a essência do eterno retorno, já se encerraram os ataques ao sexo feminino.

    Hoje as bruxas são uma legião do século XX, que não podem ser queimadas vivas, constroem pela primeira vez no mundo masculino do patriarcado, seus valores virtuosos. 

    Resgatam o prazer, a não competição e a conservação da natureza, nos permitindo manter viva nossa espécie por mais tempo, e assim vingar as bruxinhas da idade média.

  • Viver para Contar

    Chegaram à Rua Joana Angélica com uma mala por cabeça e outra, invisível, cheia de expectativas. Um queria o mar. O outro, o cardápio — pediu antes mesmo do check-in. O terceiro viria do Méier de Uber, com o cronômetro interno calibrado no “se a gente se organizar direitinho, dá tempo”. Hospedaram-se num hostel de nome esotérico e cheiro de maresia, onde gringos debatiam futebol em francês e pediam cerveja como quem reza. Os três queriam morrer de prazer — cada um à sua maneira.

    Na primeira manhã, o anfitrião carioca apareceu de bermuda, chinelo e disposição. Levou os dois pra Ipanema. Um mar tão azul que doía nos olhos. Um sol que cobrava taxa pra sair nas fotos. Corpos esculturais — que Ipanema conhece de vista e de assobio. Entre um tibum e outro, cerveja gelada, espetinho de milho, camarão. O faminto saiu perguntando por tropeiro aos ambulantes. Os amigos riram. O vendedor, com paciência beneditina, ofereceu mate, Globo, pastel de camarão e sacolé de caipirinha. Era o que tinha — e era muito.

    Ao longo do fim de semana, o roteiro se repetia: cerveja no bar do hostel, Parque Lage, Mosteiro de São Bento, praia. À noite, mudava o tom — boate em Copa, drinks fluorescentes, drag queens em cena, fumaça nos olhos, Spice Girls na pista, azaração sem CEP. Dormiam um pouco. E de manhã, os dois boêmios puxavam o amigo pra algum passeio: “Vai ter comida, juro.” Cumpriam. Bares na Lapa, cafés na Farme, almoço na Teixeira de Melo.

    Andaram, riram, se perderam no metrô. Dormiam cada dia num horário, comiam o que queriam e quando dava na telha. Na Travessa de Ipanema, segunda-feira de sol, o cronista arrancou um guardanapo da mesa e rabiscou uma frase do Gabo: “Viver para contar.” Decidiu ali que aquilo viraria crônica. Afinal, viveram. E bem.

    O Rio sentiria falta deles. Eles, do Rio.

  • Síndrome do olhar fixo

    Não sei se isso acontece com mais alguém por aí, mas eu tenho um problema sério com o olhar. De verdade. Ao longo do tempo fui notando esse defeito de fábrica — e já começo a achar que é alguma síndrome ainda sem nome, quem sabe coisa pra psicólogo ou até psiquiatra investigar. O fato é que meu olhar tem vida própria. Não me obedece. Tem vontade, impulso, teimosia — um olhar rebelde, desses que a gente tenta segurar, mas ele vai.

    Já tentei de tudo: pisco, viro o rosto, desvio o assunto, invento pensamentos aleatórios… mas quando percebo, lá está ele, firme e forte, mirando justamente aquilo que eu queria evitar.

    Desconfio que tudo começou anos atrás, quando uma sobrinha resolveu tatuar as sobrancelhas. A intenção até pode ter sido boa, mas o resultado… bom, digamos que foi marcante. Acho que rolou um erro da tatuadora — ou então a moça já tinha um talento natural para o mau gosto. O fato é que as sobrancelhas viraram duas taturanas pretas e peludas, saltando da cara feito quem quer dominar o ambiente. Ela era uma criatura miúda, de rosto fininho, mas ninguém via mais nada além das sobrancelhas. Passava, e era só aquilo. Eu, então, fiquei hipnotizada. Nunca mais consegui ouvir uma palavra do que ela dizia. Meu olhar grudou nas taturanas como se elas tivessem me jogado um feitiço indígena com nome de planta do cerrado: marandová.

    Desde esse dia, meu olhar nunca mais foi o mesmo. Passou a se fixar sozinho nas coisas mais aleatórias e esquisitas, como se tivesse gosto pelo constrangimento. Eu faço um esforço danado para controlar, mas ele sempre me trai. Tipo volta do nada, feito boomerang de bruxa.

    O caso mais recente aconteceu outro dia, depois da minha caminhada matinal. Eu vinha tranquila pela calçada, logo atrás de uma moça que andava com o filho. Ela era daquelas mulheres bem resolvidas com o corpo e estava toda produzida: calça justa, salto alto, blusinha discreta. Até aí, tudo bem. O problema? A calça. Uma estampa quadriculada. Sabe dessas com costura bem no meio do bumbum, dividindo o xadrez como se fosse a linha do Equador?

    Pois é. E para piorar: a moça tinha uma coisa curiosa na passada. A cada passo, só o lado direito do quadril se mexia. O esquerdo parecia em greve. Então o quadriculado fazia aquela dança louca: desalinhava e realinhava, desalinhava e realinhava. Tum. Tum. Tum. Cada passo era um show de geometria desconcertante — e eu ali atrás, com o olhar preso naquele movimento hipnótico. Parecia mágica. Ou castigo.

    Eu sei que é uma síndrome. Mas, sinceramente? Se a pessoa tem dissonância de quadril, não deveria usar calça quadriculada.

    Concordam comigo ou estou sozinha nesse olhar amaldiçoado?

  • A vida da gente

    É tão estranha a vida na Terra… Acho que a palavra turbilhão define bem essa aventura que é viver! Emoções, sorrisos, lágrimas, risadas, encontros e desencontros.

    A gente erra e a gente acerta! A gente segue!

    A gente sobe e a gente desce! A gente segue!

    A gente retrocede e a gente avança! A gente segue!

    A gente está sempre seguindo!

    A vida, em seus labirintos e estradas, nos oferece paisagens diversas: árvores de todos os tamanhos, cidades grandes e cidades pequenas, montanhas, sol e chuva, dia quente ou dia frio, rostos e cheiros…

    A vida, em suas prosas e em seus versos, nos dá também desencantos, solidão, amargura e preocupação.

    Mas a verdade mesmo é que, apesar de todos os problemas, a gente quer mais é viver!

    Quer escutar aquela música favorita mil vezes! Quer abraçar os amigos e relembrar histórias! Quer experimentar de novo aquele bolo gostoso da mãe, a conversa sobre o futebol com o pai, as falas e conversas altas ao redor da mesa num almoço de domingo…

    A gente se embola e desenrola!

    A gente escreve, pinta, dança e namora!

    A gente tem fé, acredita e tudo melhora!

    A crônica é a testemunha de toda essa história!

    De tempos em tempos, um cronista desavisado sente a necessidade de capturar a vida em um texto! Mas qual pretensão! Ela, na sua complexidade e ânsia de viver, se esvai, se dissolve, se dilui…

    Entretanto, o cronista insiste e escreve. Congela nesse tempo de escrita um fragmento do viver!

    Nesse fragmento estão sentimentos e sensações que fazem e valem cada segundo nosso!

    É tão estranha a vida na Terra…

  • A Dama e o Vagabundo

    Minha porção mulher, que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é a que me faz viver (Gilberto Gil, Super-Homem)

    A humanidade vem sendo regida há milhões de anos pelo macho da espécie. Chegou a hora de reconhecer: não deu certo! Como genuíno representante do sexo masculino, declaro peremptoriamente que entrego os pontos. Desisto! Nós, homens, já fizemos burradas suficientes. De minha parte, anuncio que passo o bastão às mulheres a quem humildemente me submeto, elegendo-as para cargos de comando e alçando-as a todas as atividades que envolvam exercício de poder. Pior do que está não vai ficar. Sei que não serei acompanhado por outros da minha estirpe pois conheço bem o tipinho que encarno: viril, orgulhoso, não dá o braço a torcer.

    Tenho um argumento infalível para convencer meus iguais. Já que você, ô marmanjo, não tem brio suficiente para admitir sua incompetência, pense nos seus filhos e netos. Se você os ama, dê-lhes ao menos a oportunidade de terem um futuro nesse mundo em frangalhos que sua gestão infeliz produziu.   

    Não imagino, por exemplo, que alguma mulher faria a insanidade de lançar bombas em cidades, assassinar adversários em massa, promover chacinas e genocídios, cultuar armas e perpetrar outras bárbaras atrocidades a seus semelhantes. As exceções que me recordo são as mulheres-bomba, que agiram a mando de… homens.

    Ou viramos a mesa ou o dito “homem” – por extensão, a raça humana, aí incluídas não apenas as mulheres mas as inúmeras categorias sexuais intermediárias emergentes – estará em poucas dezenas de anos extinto do planeta.

    O mundo como hoje conhecemos, vulnerável a vírus letais, ameaça nuclear, tragédia social, apocalipse ambiental, foi uma construção masculina, tem a face grotesca e brutal do inepto bicho-homem. Ou colocamo-lo sob nova administração, ou dito cujo já era.

    Trata-se de uma constatação lógica e me admira que a grande maioria dos indivíduos (especialmente aqueles que se orgulham mais do seu pênis do que do seu cérebro) não tenha ainda chegado a essa conclusão tão evidente.

    Não, não estou me rendendo às teses feministas. A pauta da sociedade igualitária não me fascina. Homem e mulher são seres biológica e psicologicamente distintos. O homem prima pela força física, pela razão, pela lógica. Já o chamado “sexo frágil” (que piada!) distingue-se pela formosura, pela sensibilidade, pela intuição, pela resiliência. Por ter o atributo da força, o gostosão impõe-se à delicada mulher que se submete a seu algoz que usa da bestial violência para ditar suas regras. 200 mil anos de civilização não foram suficientes para revogar a lei do tacape.

    O capitalismo adaptou-se perfeitamente ao patriarcado e definiu o papel de cada gênero no sistema. Ao homem, ‘chefe’ da prole, cabe negociar suas habilidades no mercado de trabalho e com a grana obtida, sustentar os gastos domésticos. A mulher fica em casa lavando louça, limpando a privada e cuidando das crianças, trabalhos ‘inferiores’ sem remuneração, não monetizados pelo mercado. Que sistema hipócrita! Gratifica apenas as atividades que interessam ao capital, exercidas pelo membro empoderado do casal. A fêmea desempenha a incumbência ‘acessória’ de amamentar o bebê e manter estruturado o lar, sendo dependente financeiramente do varão folgado que se embebeda e farreia nos botequins. Sejamos honestos: isso é uma deslavada exploração de mão-de-obra.

    A natureza concedeu à mulher uma função muito mais nobre e, para que ela a exerça com louvor, não precisa ocupar o espaço do homem. Se pleitear isso, estará admitindo que os valores masculinos são superiores. O que é preciso é que seja reconhecida a importância do seu papel, muito mais imprescindível que o do provedor financeiro.

    A mulher para brilhar não tem que ser cientista, filósofa, soldada, enxadrista, jogar futebol, lutar muay thay. Deixe os homens se sobressaírem nessas áreas. As damas têm habilidades muito mais indispensáveis na preservação do equilíbrio social do que as dos vagabundos, inclusive a principal de todas: gerar a vida.

    Por isso, caro amigo e cara amiga, está na hora de corrigir o rumo e mudar as regras do jogo. A começar por redefinir quem deve dar as cartas.

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