Crônicas

  • POEMA #26: AVALIAÇÃO NOTURNA

    Este pedaço de céu
    que me foi permitido entrever
    entre os edifícios,
    assemelha-se a uma parte de mim
    que ainda se resguarda
    para nada.

    Areia (À Fragmentação da Pedra)

  • Gestuais domingueiros

    Inequívoco:

    É pleno e gélido outono, o sol perpassa a concentração de nuvens brancas, total unificação de cor, reflexo intacto da luz no rebatedor que se faz teto do dia. Olívia espreguiça e se deixa ficar, é domingo, ela pode ser toda preguiça. O amanhecer vem calmo em quase tudo.

    Quase.

    Pouco a pouco, as árvores exibem seus galhos desnudos, pelados; as janelas das casas perdem privacidade – e vizinhos levantam-se despreparados para os olhares um tanto desatentos, hoje, das ruas.

    Os aromas confundem o hálito azedo do acordar; cheiro de café passado, cheiro de bolo de fubá no forno. O pão recém assado na padaria, ali perto. Alguém passou pelas ruas com um emaranhado de essências: perfume em demasia e teor alcóolico, sinal de um sábado que teima em se concluir. Todas as notas sobem em câmera lenta, uma dança invisível.

    Rompem as barreiras de portas fechadas, cortinas, narinas.

    Inequivocamente, nem tudo é imobilidade.

    Certamente não na arvoreta-menina, solitária, bem na esquina. Encarcerada em um quadrado de terra, limitada à expansão de suas raízes para os fundos do concreto rotineiro e sem vida, seus fartos e imbebes
    galhos vão desenhando braços aturdidos e atrevidos. Galhos de parca sombra, a desabrochar flores a partir de botões maduros, generosos e abundantes botõezinhos. É pleno outono. Até os pássaros concluem – para uma felicidade em forma de revoada – que, inequivocamente, presenciam uma das mais belas forças de resistência.

    Resistência de vida. De não lamento. De esperança.

    Num piscar de olhos, os aromas ao entorno de Olívia, são os mesmos. Ela se demora por entre as cobertas. Olívia pisca, um botão estoura; seus olhos teimam em se abrir, a árvore revela pétalas brancas. Uma flor rosa pende da árvore e se lança ao rés do chão, seis pétalas em formato de coração. As folhagens outonais de todas as outras árvores, verdes adoecidas, ganham nuances de possibilidades. Olívia brinca com o temporizador dos alarmes. O domingo é uma tela verde pigmentada de vida.

  • CORDEL MAIS ENROLADO

    José e Marta. Mas qual Marta? Ainda um nome frágil. João e Maria. Simplista. Vida bruta e comedida. Olho no olho e um arranhão. Árvore de amendoeira. Prisão. José e Marta, ambos, enrolados no chão. Frio, Muito frio com José e Marta. João e Maria, não.

    O céu nublado, José e Marta na calçada, roxos de frio. Pensei em João, pintor nordestino e falador; pensei em Maria, Maria das Dores, moça prendada, também nordestina, recatada, muito nova ainda.

    Um arranhão. Olho no olho e a amendoeira molhada. Triste fim a prisão. O que é uma pessoa abandonada? Frio. José e Marta, então…

    Céu nublado, João e Maria na casa, roxos das brigas. Pensei em José, balconista de pequeno armazém; pensei em Marta, pobre ninguém! Não tinha um quarto pra dormir. Há mesmo um lugar pra ir?

    Marta sem quarto. José balconista. Não conhecem João, pintor de parede, tampouco Maria das Dores, muito moça ainda. Coitada! Vivem como se nunca soubessem do sofrimento alheio.

    Sucedeu certo dia, a fruta deliciosa e madura, brilhava nas mãos de José e Maria das Dores queria apenas a maçã. Recebeu um beijo ardente, um bilhete, um olhar apaixonado. Maria, faceira, disse que não, muito obrigada. Recebeu outro beijo e um agrado.

    Não demora veio a chuva. Baita chuva. Grossa como a desesperança. Não se trata de criança! Soube João. Virou uma fera! Mal-agradecida da Maria. Vai ver o que espera.

    José e Marta não se falavam mais. Amor, um nome escrito na amendoeira, já gasto e quase ilegível, frágil… João brigou, passou a faca e o vestido de flor murchou-se de vida. Olhou nos olhos de Maria a desfeita ocorrida. A polícia sem demora prendeu o marido traído e o quarto agora era um mar vermelho, moça vermelha, flores vermelhas de um amor não resolvido.

    A calçada acaricia os corpos frios e desiludidos de José e Marta. Não se olham. Não se amam. Ela não sabe de Maria, Maria não sabe de João, João não sabe de José e o amor não sabe de ninguém.

  • Quando foi mesmo?

    Minha mente vive de espantos e porquês. Até hoje, na sétima década da minha vida, me declaro aprendiz.

    Faço perguntas e me vejo em busca de respostas que nem sabia procurar. E nesse apego às dúvidas e incertezas passo dias pensando, lendo, comparando e pesquisando sobre o que eu desconheço, ou o que me intriga.

    Não tenho predileção por temas… o que tenho, de verdade, são perguntas: como, quando, por quê. E vou além, porque além de observar, eu busco exemplos, comprovações mesmo!

    Gosto dos números, pois eles me orientam em tudo. Até para saber se a igreja está mais cheia que o normal. Sei que temos cento e vinte lugares (já contei) e, assim que entro no recinto, minha calculadora mental dispara e anota que, aproximadamente, estamos com mais um terço de pessoas. 

    Por que eu faço isso? Não sei…

    Ainda em relação a essa predileção percebo que vejo a vida baseada em números, datas, estações. “Tal ano, minha irmã começou a costurar; em 1900 e bolinha, foi o batizado da minha primeira filha; no ano em que passava determinado filme, decidi deixar de ser dona de casa e ir trabalhar. No verão seguinte constatei que não tinha qualificação e resolvi estudar. Formei-me em julho do ano em que houve tal evento.”

    Ao falar do “quando” eu abstraio o porquê…

    Como se as datas preenchessem os motivos, os sentimentos, as razões e emoções do que ocorria em minha vida.

    Constato, então, que conversar comigo é um exercício complicado.

    Qual foi a conclusão a que isso me levou? Primeiro, que o axioma “Só sei que nada sei” faz todo sentido. E que datas devem interessar ao coletivo, ao mundo, aos eventos grandiosos, aos historiadores, aos cientistas, talvez. Nesse contexto o tempo cronológico significa segurança, verdade, esperança, e também temores e incertezas.

    Para nós, meros mortais, não faz diferença saber nem em que ano nascemos! Para que? Acaso existe uma data que determine quando deixaremos de viver? Ou de ainda nos surpreender, ou de passarmos a gostar de inverno, ou parar de detestar frutos do mar?

    Acredito que a busca pelo que há de bom e belo faz parte do ser humano de forma intrínseca e intuitiva, em qualquer época e data da vida.

    As lembranças, sensações, propósitos e realizações devem ser arquivadas em nossas mentes, não por datas exatas, mas pelo valor das palavras, dos atos e emoções vividas.

    Essa deve ser a nossa meta, como seres humanos.

    Afinal, a jornada chamada vida, não acontece de forma exata e linear e nisso está o seu encanto.

    Qualquer que seja a data!

  • Matando o tempo

    “Tempo, tempo, tempo, tempo, és um dos deuses mais lindos”.
    (Caetano Veloso, Oração ao Tempo)

    Quando criança, eu observava fascinado as mutações do tempo. Não me refiro ao tempo como período dos acontecimentos, medido pelo relógio, mas como condição meteorológica. Enquadrava-se o tempo no rol dos enigmas além de nossa compreensão, assim como o infinito ou o mistério da vida. As alterações do tempo, imaginava eu, dependiam dos humores dos deuses, a quem cabia a incumbência de reger a dança dos ventos, o ribombar dos trovões e o movimento das nuvens. Determinavam as divindades se o tempo seria chuvoso, ensolarado, frio, quente. E nós, humildemente, acatávamos. Quando inspiradas, brindavam-nos elas com um deslumbrante arco-íris, que só podia mesmo ser obra celestial.

    O comportamento errático do tempo era intrigante.  Fazia calor em épocas em que a disposição do planeta levaria a crer que deveria fazer frio. Passavam-se, sabe-se lá por que cargas d’água, meses sem chover, reduzindo ameaçadoramente o nível das represas e colocando em xeque a presteza das torneiras de jorrar o precioso líquido o tempo todo e sob qualquer tempo. Nossa capacidade de interferir nos propósitos das nuvens que, teimosas, recusavam-se a colaborar, era nula. Para superar os contratempos do tempo, só mesmo rezando pela intercessão de São Pedro. Restava abastecer-nos com trajes e acessórios apropriados como capas, guarda-chuvas, botas, casacos, cobertores das mais variadas espessuras, para nos precaver dos desígnios do tempo.

    Apesar de tais oscilações, havia certa regularidade nas intermitências do tempo que nos trazia uma sensação de alívio. Na cidade de São Paulo, por exemplo, a umidade do ar nunca seria tão baixa quanto a do deserto do Saara e a temperatura jamais cairia a ponto de a água virar gelo. As tênues variações que vinham ocorrendo sequer nos fizeram perceber que, de repente, na “cidade da garoa” parou de garoar.

    Hoje, quando escuto falar em ‘mudanças climáticas’, sinto um arrepio na espinha. Como assim mudanças climáticas? Quer dizer que o tempo vai deixar de obedecer às determinações divinas conforme vinha ocorrendo desde os tempos de Adão e Eva? O que mais vai mudar? Não teremos mais primaveras e outonos? O céu vai também deixar de ser azul?  Os raios do sol deixarão de brilhar pelas manhãs?

    Quando os telejornais passaram a incluir, além de tediosos boletins meteorológicos diários, eventos climáticos catastróficos com temperaturas extremas nunca vistas, tufões devastadores, secas, incêndios e enchentes cada vez maiores, nossa reação era dar os ombros e dizer “o tempo ficou doido”, ajustando o ar condicionado para adequar artificialmente as condições climáticas dentro de casa. E assim íamos tocando a vida, sem nos preocupar quem era o responsável pelas anomalias do tempo ‘lá fora’.

    Não sei para você, caro leitor, mas para mim soa terrivelmente assustador que a interferência do homem no planeta tenha chegado a tal ponto que até o perene e ‘atemporal’ tempo está sendo afetado. Sim, pois o que está ocorrendo no clima não é fruto de praga divina, mas resultado de uma criminosa ação humana. Criminosa, sim. Pois o ato de agredir o meio-ambiente que abriga a vida no planeta deveria ser considerado tão delituoso quanto o de atentar contra o lar, onde residimos com nossa família.

    As condições para a formação da vida estão sendo alteradas obscenamente pelo homem e ninguém se importa. Nossa civilização doentia aceita com naturalidade a agressão impune à natureza. E os infratores são até exaltados por muitos como desbravadores e promotores do progresso.

    Sim, meu amigo, devo pesarosamente informar-lhe: o tempo está mudando. E isso não quer dizer que vai ficar nublado. Mas não se preocupe. A coisa vai ficar ainda pior. Há outras ‘mudancinhas’ em curso enquanto você lê esse texto. Os mares estão sendo infestados de plásticos, os rios envenenados por mercúrio, as florestas devastadas, o ar tornando-se irrespirável, as fontes de água potável estão rapidamente se esgotando e em poucos anos, a maior parte da população mundial não terá como saciar suas necessidades pelo líquido vital.

    O mundo tal qual estávamos acostumados não existe mais. E a maior parte da população está pouco se lixando. Ninguém abre mão sequer da conveniência do saquinho de plástico do supermercado, confiando que, como por milagre, o mesmo ‘progresso’ que gerou essa situação consiga salvar o tempo. A tempo.

    Resta perguntar a nossos filhos se eles concordam com o ‘admirável tempo novo’ que estamos lhes deixando.

  • Falo, logo existo!

    Ponha-se no seu lugar…

    Quantas de nós já ouviu essa frase imperativa sair da boca de castradores natos? 

    Parece óbvio apontar que a ordenança expressa a ideia de que às mulheres caberia um lugar de imobilidade e aceitação silenciosa do destino forjado pelos colonizadores de almas femininas. Insisto em esclarecer o evidente porque eles são mestres em produzir cortinas de fumaça, em tornar natural o absurdo.

    Ponha-se no seu lugar…

    A frase dita à Ministra Marina Silva nos revela dados que não podemos ignorar: muitos homens, e um considerável número de mulheres, acredita que o feminino é um lugar de contenção, silenciamento e submissão. Um buraco fundo cavado no desértico universo masculino, onde atiram-se os corpos rebeldes. Quem és tu que ousas mover-se? 

    A coleira social se presentifica em situações naturalizadas no cotidiano. Seja nas regras de etiqueta e conduta da mulher elegante, na maternidade santificada, na violência física, social e psicológica diária que instaura o medo, a vulnerabilidade e o muro das impossibilidades.

    A mordaça coletiva, a camisa de força tecida ao longo dos séculos pelo machismo estrutural nos ameaça o tempo inteiro. O status, a classe social, a beleza, o poder econômico, o intelecto, nada disso nos salva das armadilhas, achaques e ataques promovidos na minúcia de cada segundo.  

    Somente o amparo feito de identificação e consciência de gênero é capaz de nos proteger de tamanha brutalidade.

    São sutis as formas de controle e desestruturação da resistência feminina: fomento da competição entre as mulheres, valorização do amor romântico como missão primordial da existência, a fragilidade/inferioridade como ferramenta de sedução e conquista. 

    Ponha-se no seu lugar de MULHER e observe as peças que formam a engrenagem que nos tritura a todas nós. 

    Ser mulher é um destino que não se escapa, se impõe. O mundo está cada vez mais hostil e ameaçador com cada uma de nós.  Percebem? 

    Quando dizem que nós, mulheres, falamos demais, entendo que esse é o manejo feito para enfraquecer aquela que talvez seja a nossa arma mais poderosa. A voz, a denúncia, o grito, a escrita, a carta, o bilhete, a canção.

    Falemos de tudo! Falemos pela boca, pelos cotovelos, pelos dedos, pelos olhos. Façamos barulho! Muito barulho. 

    E, ao ouvir uma voz fraca a pedir ajuda, tenhamos a força de ser eco.

    Eles, os tolos, acham que habitamos um lugar estreito e abafado. Coitados, ainda não descobriram que, juntas, somos um Território. De mãos dadas desenhamos as fronteiras. Nossa voz é um canhão a mirar os invasores.

    Ponha-se no seu lugar de MULHER e bata suas lindas asas. Voe alto e para onde quiser!

  • CASO SÉRIO

    – Pai, urge que o senhor aumente a minha mesada.

    – “Urge”?!  O que é isso?

    – A professora de redação ensinou que a gente deve dizer “urge”. Tem mais força do que “é preciso”, “é necessário”. Parece, tipo assim, o rugido de uma fera. URRRGEEE!

    – Calma, tudo bem. Não precisa me morder. E pra que é que você quer mais dinheiro?

    – Vou fazer o Enem, não vou? Preciso ler, me informar. Destarte…

    “Destarte”?

    – Sim. Destarte, dessarte… A professora falou que é melhor do que “então”, “logo”, “diante disso”. Ela quer que a gente arrase na prova. E quer, outrossim, um pouco de fama para ela também, claro.

    – “Outrossim”?

    – O senhor não conhecia?

    – Não. Conhecia “outro não”. Era o que eu ouvia de sua mãe toda vez que lhe pedia um beijo. Ela dizia: “Outro não, Valfredo. Por hoje basta.”.

    – Ah, pai, o senhor é mesmo ignorante. Não é “outro sim”; é “outrossim”, entendeu?

    – Não estou vendo diferença, mas entendi. O contrário, então, deve ser “o mesmo sim”. E não outro!

    – Caramba! Achei massa essa história do beijo. Então ela lhe dava um fora… Que sádica! E o senhor, entrementes, o que fazia?

    – “Entrementes”? Deixe eu ver… Primeiro preciso saber o que é “entrementes”. É alguma coisa como “escorraçado”?

    – Nada a ver. Significa “nesse espaço de tempo”.

    – E por que você não falou isso?

    – Porque a professora disse que “entrementes” impressiona mais. 

    – Nesse caso, pode entrementar à vontade. O importante é que você arrase na redação.

    – Esse é meu desiderato.

    – Como?

    – “Desiderato”, “vontade”, pô! Também o senhor não saca nada da língua portuguesa!

    – Desculpe, ando meio desatualizado. Embora, aqui pra nós, esses termos que você está usando sejam um tanto serôdios.

    – “Ser” o quê?

    – Serôdios! Sua professora não mandou você usar essa palavra no lugar de “antigos”? Se ela ainda não fez isso, vai fazer. Com certeza.

    – Epa! Nada de “com certeza”! É “indubitavelmente”. E sabe de uma coisa? É mister que eu não converse mais com o senhor.

    – “Mister”?!

    – Isso mesmo. E não fale mais da minha professora, viu? Não quero ouvir. Se fizer isso, que seja à sorrelfa.

    – “Sorrelfa”!? Essa também veio da professora?

    – Negativo. É contribuição minha mesmo. Pesquei no dicionário para fazer uma surpresa a ela.  

    – “Sorrelfa…” Socorro, Alaíde! Vem cá ouvir teu filho. Alguma coisa muito séria está acontecendo com ele!

  • Aos sonhos, afinal

    Acordou mal. A noite foi ruim. Um sonho, o único que ele lembra, foi o responsável pelo seu estado atual.

    Um sonho ruim onde a dúvida se tornava certeza. Nada mais dela na sua vida, nada mais com ela ou sobre ela. Nada mais.

    Passou o dia angustiado com a mera lembrança do sonho. Piorou quando recordou que à luz da psicanálise o sonho pode ser a manifestação de desejos inconscientes. Pode, no condicional, mas por conta do estado de angústia em que se encontrava tornou-se certeza.

    Desejo é sempre ligado a algo que se quer, lembrou ele ao longo do dia. O sonho revelador seria isso então, um desejo?

    Mas por que sua mente lhe pregara essa peça? Por que desejar o que não nos faz bem?

    Desejar ela longe de si, seria o desejo oculto guardado no fundo de seu inconsciente que nas horas silenciosas da madrugada emergia suave mas decidido? Mas por que essa certeza de não a ter mais seria de fato algo ruim?

    Talvez precisasse assumir para si mesmo que nada mais de bom haveria de vir dela, ou melhor da relação com ela. Projetar uma reconciliação era fantasia. A distância talvez seja melhor do que a proximidade?

    Sonhar com a certeza, disse para si mesmo, não era de todo ruim. Melhor que viver na dúvida.

    A certeza ruim dói uma vez, ou duas. A dúvida imobiliza eternamente.

    Afinal, disse para si quando voltou para casa, o sonho não teria trazido o desejo de algo ruim mas sim da mudança necessária. Adiada por razões várias, da falta de coragem à esperança fútil. Mudança necessária? E, quem sabe, mesmo bem vinda?

    Sim, definitivamente.

    Nada mais de buscar a mensagem dela que nunca virá, a atenção que ele não recebe mais dela. Livre, afinal. Liberto por vontade própria. Livre para dar outro rumo à sua vida.

    Naquela noite deitou-se ansioso, reconciliado. Que venham os sonhos, afinal.

  • Para ler João Pessoa…

    Existe quem diga que os cronistas não servem para nada. Há também os que atribuem diversas funções a eles, inclusive, apontando contribuições oriundas do exercício desse ofício. Uma delas diz respeito à questão urbana.

    Apreendendo a vida da cidade e a descortinando para os seus contemporâneos e para as futuras gerações, aqueles literatos conseguiriam apresentar um quadro urbano tão preciso quanto a própria realidade, subsidiando a compreensão desta.

    Assim, para conhecer o Rio de Janeiro na Primeira República, não seria necessário se dirigir à Baía da Guanabara, bastaria ler João do Rio. Do mesmo modo, afirmo: para conhecer a capital paraibana, você não precisa ir até ela, leia Gonzaga Rodrigues.

    Nascido em Alagoa Nova, adotou João Pessoa, que também o adotou. Não são poucos os seus escritos que falam da cidade e nos fornecem um retrato vívido dela, retrato que é também leitura desse mundo. Gonzaga é um mestre nisso. Como se carregasse um sítio consigo, o ambiente rural também se faz presente no que ele escreve. Todavia, é o primeiro caso que mais me impressiona.

    Da vida cotidiana na urbe, emergem várias de suas crônicas. Como um autêntico flâneur, por onde passa, recolhe muito mais do que causos a serem relatados, capta a alma encantadora das ruas. Em uma caminhada descompromissada pelo Ponto de Cem Réis, é capaz de apanhar a dinâmica urbana e, por meio do artifício da palavra, colocá-la pulsando em forma de texto.

    O cronicário do alagoa-novense é repleto de relatos sobre os mais diversos cantos desse burgo, histórias dele que são também as do lugar que se tornou seu. Por meio de retratos de memória, é possível reconstituir um panorama da cidade.

    Através das crônicas de Gonzaga Rodrigues, percorremos as ruas da cidade, conhecemos personagens que a habitam e temos notícia de suas histórias. Tendo vivido quase a minha vida inteira em João Pessoa, foi pelas páginas do nosso cronista-mor que pude ler melhor meu torrão natal. Já quem nunca esteve por aqui, não é necessário recorrer a manuais de turismo e nem a passagens de avião, o caminho já está assinalado.

    Para conhecer João Pessoa, leia Gonzaga Rodrigues.

  • Pérolas Clássicas!

    Mantenho minhas armas em punho durante o dia que corre mais que o vento, não desmanchei minhas trincheiras expostas na sala de estar e no quarto. 

    Bem verdade há muitos anos me preparo para atacar quando necessário, e me defender, quando balas de mau-humor e desinformação cruzam meus ouvidos atentos. 

    Vez por outra meus olhos enxergam o mau se apoderando de um local público, ou testemunho um evento radical voltado ao populismo desmedido.

    Porém, o que mais me importa são as balas e armas que mantenho estocadas agora com mais espaço e segurança.

    São meus livros. 

    Eles me embriagam de conhecimento e tonteiam meus rumos, devido à quantidade de possibilidades em suas páginas. 

    Essas verdadeiras armas contra todos os males, tornam o papel um farol noturno aos olhos cegos e inexatos, que por vezes teimam na busca de ideias fascistas ou sectaristas ao extremo. 

    Em minha cabeceira está o livro “Como a Loucura Mudou o mundo”, escrito pelo professor de psicologia Christopher J. Ferguson, que analisou o comportamento de líderes que já se foram para uma pior, já que por aqui deixaram dor e sofrimento.

    O personagem do capítulo da vez é Calígula, que manteve relações sexuais com as irmãs, e forçou alguns desafetos ao suicídio. Aquela mente perturbada governou Roma e promoveu o medo e a morte como uma das propostas de gestão. Impressionantes heranças consanguíneas mantiveram indivíduos desse calibre no poder. E a Loucura se mantém exposta aos desatentos e desafetos as soluções propostas. 

    Outro livro que me ronda é “Parque Industrial”, um romance proletário de Patrícia Galvão, a Pagu. Um importante documento social e literário, com uma perspectiva feminina e única do mundo modernista de São Paulo. Ele trata da vida dos operários no bairro paulistano do Brás, e relata a hipocrisia que se vale da desigualdade social para subjugar a mulher proletária. Um panorama dolorido e presente nos nossos dias, que ainda insistem ser ensolarados.

     Outro livro muito curioso que me surgiu presenteado é o “Guia de Leitura, 100 autores que você precisa Ler”, de Léa Masina, uma enciclopédia de escritores. Com minibiografias de 3 a 4 páginas dos escritores em destaque, com suas histórias, estilos, melhores livros, elaborado em companhia de críticos, jornalistas, professores e intelectuais da literatura, que contribuíram com seus conhecimentos para dar vida a um aperitivo sobre autores como Albert Camus, Umberto Eco, Thomas Mann, e um de meus preferidos Fiodor Dostoiévski que de Engenheiro a Militar, repousou na literatura, pérolas clássicas que cruzam os tempos.

  • O comando que nunca dei

    Quando abri a porta, meu cão já sabia.

    Ele me olhou sem esperar que eu falasse. Fez aquele gesto de quem antecipa o resultado antes mesmo de acontecer: abanou o coto de rabo, espreguiçou-se com uma elegância despretensiosa — a graça dos que não precisam provar nada — e me seguiu em silêncio. Não o chamei, nem era necessário. Também não fiz aquele som ordinário de estalar a língua ou bater na coxa, como fazem os entendidos. Apenas me levantei e meneei a cabeça com leveza. Para Rex, esse era um discurso inteiro.

    Já morei com gente que não me entendia, mesmo com todas as palavras à disposição. Rex, não. Rex compreende o que não é dito. Talvez porque, no silêncio, eu seja mais objetivo.

    Quem convive com cães por tempo suficiente acaba aprendendo — ou se rendendo — a uma linguagem anterior à linguagem. Aquela que, como diria Wittgenstein, “só pode ser mostrada, não dita”. No mundo dos cães, um gesto é uma frase com sujeito, verbo e confirmação. Um olhar basta. Expressões corporais são analisadas constantemente pelos cães. Um deslocamento de peso, uma hesitação no ar, e tudo está dito. A verdadeira eloquência mora nos detalhes.

    E não se trata apenas de romantismo. A ciência já se curvou a isso. Pesquisadores da Universidade de Budapeste demonstraram que os cães leem nossos rostos, a direção de nosso olhar, os gestos mínimos, assim como quem lê um roteiro. Segundo Ádám Miklósi, referência mundial na cognição canina, os cães desenvolveram uma habilidade rara: entender os humanos como espécie emocional, previsível e cheia de sinais. Um talento evolutivo que nem os chimpanzés conseguiram refinar.

    Mas essa dança silenciosa entre espécies não é automática. Levei tempo — e vários erros — para perceber que, quase sempre, o problema não era o cão. Era a minha pressa. A ansiedade que atravessa o corpo e contamina o gesto. Muitos acreditam que educar um animal é gritar mais alto do que ele. Que é preciso impô-lo à força, como quem vence uma queda de braço. Mas a verdade é que o grito desinforma. A grosseria confunde. A incoerência desorienta. A ameaça vira chacota. E assim, educadores frustrados colhem cães inseguros.

    Há uma elegância em educar um cão sem adestrar a alma. Educar, afinal, é mais sobre o que você é do que sobre o que você diz. Um cão não está interessado se você diz “senta” (ou “stay”), com sotaque de tutorial americano. Ele percebe — e responde — à coerência entre verdade e atitude. Ele lê a dúvida nos seus ombros. Fareja o medo no seu suor. Se você acredita nele, ele acredita em você. Mas se você finge firmeza, ele hesita. E com razão.

    Educar um cão é, antes de tudo, educar-se. Um exercício involuntário de autoconhecimento. Por isso falhamos tanto. Porque é mais fácil culpar o cachorro do que confrontar a própria falta de presença, o nervosismo crônico, o ego em desalinho. O cão não erra, ele quase sempre reflete nossos erros.

    Quando Rex está ao meu lado, ele sabe quando estou inteiro. E sabe também quando sou apenas uma casca funcionando no modo automático. Ele me lê antes mesmo que eu consiga me ler. Talvez por isso tenha se tornado meu melhor espelho. Não daqueles que mostram o rosto, mas os que revelam os gestos e meus desejos mais silenciosos de companhia.

    Naquela manhã, ao abrir a porta e ver meu cão me seguir, não fomos apenas eu e ele saindo à rua. Éramos dois cúmplices de uma linguagem invisível. Ele ia à frente, com a minha permissão, como quem desbrava uma estrada. Eu logo atrás, com o coração sossegado. E, no compasso das nossas pegadas, talvez — só talvez — o mundo estivesse, enfim, no lugar certo.

  • Uma espécie de saudade

    Eu cantarolava uma música antiga ao entrar em casa no fim de tarde. O vento gélido do outono trazia ainda uma satisfação em fechar a porta e sentir o abraço do ar quente do fogão a lenha. A minha avó seguiria o verso assim que eu lhe desse um beijo na testa. Era o nosso mantra. Ela sempre esperava na mesma poltrona, segurando duas enormes agulhas de tricô, com os óculos na ponta do nariz. Só de tempos em tempos eu descobria o que estava produzindo. Não havia uma palavra de boas-vindas, nem uma pergunta sobre o dia. A música exprimia mais do que qualquer frase solta, e no seu embalo, o aroma do café recém-feito dançava na cozinha.

    Há vírgulas tão corriqueiras no nosso dia que só lhes damos o valor devido quando as perdemos. É a sina da memória. Jamais imaginei que hoje, quinze anos depois, ainda varasse as horas de quando em vez relembrando, com olhos marejados, fatos antes tão bobos, tão simples, tão comuns. E a angústia vem, e fica. E a saudade vem, e fica. E também aparecem os questionamentos sobre a origem e o fim da vida, sobre as certezas e as incertezas, sobre as bênçãos e as maledicências, sobre o céu e o inferno. Não importam, no fim das contas, todas essas questões, porque a lembrança que de alguma forma me guia é a avó seguindo os versos daquela velha canção.

    Ela tinha uma aura tranquila que, penso, existe apenas nas avós. Ninguém com menos de sessenta anos atinge tal ponto. Tenho certeza que diante das minhas angústias ela declamaria meio debochada um verso do Renato Teixeira: “Os caminhos todos temos mesmo um dia que passar”, seguiria inclusive o ritmo da música, empostando a voz em “um díiia” e segurando a última sílaba, em “aaar”, até rirmos juntos e encerrarmos o assunto. O mais curioso é que era uma música do Renato Teixeira que compartilhávamos naqueles fins de tarde.

    Sempre que ouço o Renato me sinto na contramão da vida. Embora saiba que “o sentido dessa vida é ir em frente, caminhar”, como sugere a mesma canção, ainda continuo com a impressão de que ando para o lado errado. Deve ser comum entre os seus fãs. É estranho, imagino, para quem não se deixa levar pela sua poesia, para quem não se deixa tocar pela sua música, para quem não se deixa influenciar pela sua simplicidade. O Renato tem alguma coisa de diferente, de sereno, como uma brincadeira inocente entre avó e neto.

    Não sei como seriam as nossas lembranças sem as músicas que ouvimos, sem os versos que declamamos, sem os momentos que compartilhamos. Nem todos sabem aproveitar os avós enquanto ainda os têm. Nem todos se preocupam em criar boas memórias, em contar boas histórias. Hoje penso que, se olhássemos a vida de trás pra frente, seríamos diferentes. E talvez nos importássemos com as pequenas coisas, com os versos simples, com os sorrisos sinceros. E quem sabe entendêssemos que a música é uma espécie de saudade.

  • Poema #25: Becos e galerias que se bifurcam em T & L

    A paixão
    é a antessala
    de uma paranoia
    na qual entramos
    com um sorriso largo
    de quem não sabe
    que penetrou num túmulo.

    A Sentinela em Fuga e Outras Ausências

  • As joaninhas é que nos humanizam

    De tempos em tempos, uma joaninha aparece perto de mim. Não importa aonde eu esteja: dentro de um carro, sempre ao meu lado, em uma viagem qualquer; imersa em um centro de cidade, onde esse tipo de vida parece improvável; dentro de casa – apartamento citadino que insisto, feliz, em preencher com plantas, em todos os cômodos, incluindo banheiros, cozinha e área de serviço. Para humanizar o lar, arrefecer a urgência do mundo.

    Humanizar. Palavra, tão comum e gasta, usada à exaustão no meio arquitetônico, por vezes inviesada demais para justificar discursos em redes sociais como um linguajar básico de ser um humano contemporâneo. A ideia do humanizar ignora e vai contra o que a que a própria humanidade faz: afasta-se, cada vez mais, de tudo o que é natural.

    Ser humano é sinônimo de alterar. Refazer. Testar. Desbravar.

    Somos inconstantes – não sei quem foi que disse que precisamos de rotina.

    Somos nômades antes, até, de sermos humanos. Construímos abrigos desde de as primeiras andanças de nossos vancestrais. Destruímos o status quo. Dobramos a natureza com as mãos sujas de barro, corações cheios de intenções. Quando inventamos um modo de reproduzir o fogo, com pedras, nos sentimos poderosos demais, vencendo a escuridão das noites. Invencíveis. Mudando a rotina dos sonos, espantando animais dos quais éramos presas.

    O fogo foi a primeira das invenções. A primeira tecnologia. Muitas coisas em um único gesto:

    Não apenas iluminava, esquentava; seduzia; convidava, espantava animais. Seu crepitar criava instantaneamente presença – do nada eis a luz, o som e o movimento. Uma dança em si. Arte. Inventamos um lugar, no invisível de ser nada, antes. Do nada, o simbolismo nasceu.

    Dos agrupamentos quase fixos que a natureza tratou de dar semelhanças físicas em prol da sobrevivência, o lugar portátil. Carregamos pedras em preciosas bolsas de couro junto ao corpo. Ganhamos o mundo. Esterelizamos tudo o que era natural. Cozinhamos nossos medos, mantimentos… e o bicho.

    O fogo era poder e destruição. Encantamento e medo. Possibilidades, criatividade, a continuidade dos dias. A primeira tecnologia: domamos a fome. Afastamos a morte.

    Fogo se tornou potência.

    E caos.

    Depois, o fogo passou a ser combustível para os deslocamentos. Inventamos a roda uns 1.300 anos depois do fogo, e, aliados, a propulsão fez incríveis modificações por todo o planeta.

    O fogo forjou ferramentas. Desenvolveu navios, armas, munições. O fogo nos fez atravessar o universo, na década de 50 do século passado.

    O fogo é faísca. Chama fátua. Luminescência.

    Embora tenhamos avançado substancialmente em nossa humanidade, o fogo continua existindo em sua forma primordial: ainda é possível evocarmo-lo com a fricção de duas pedras. Mas em casos de extrema necessidade ou vontade. Ele evoluiu, foi moldado, domesticado. Hoje pode surgir manso a partir de um botão. Habita as bocas adormecidas dos fogões elétricos, vive embutido em celulares, sobrevive através de tomadas. Pode ser carregado apenas pela luz solar – que, pasmem, é o princípio de todo fogo.

    O fogo é nosso maior reflexo, expressão da vida humana.
    Domado.
    Mascarado.
    Nunca extinto.

    É sopro vital e a sentença de extinção de toda a vida. Se se rebelar contra nós, a partir de nós, nos engole.

    Então, à revelia do fogo, seguimos arrancando plantas de seus habitats naturais e as limitando-as em pequenos compartimentos repletos de terras adubadas, húmus disso e daquilo. Terras corrigidas. Para humanizar o que, de fato, humanizamos.

    Humanizar como ato?
    Humanizar como uma necessidade de retorno às origens para, enfim, existirmos como humanos de verdade?

    Fala-se muito sobre estarmos maquinificando o mundo. Mas tal expressão não seria melhor exemplificada se a reescrevessemos como humanizando o mundo? No sentido mais visceral, é o que estamos fazendo: interferindo, movendo, construindo, transfigurando, corrigindo, destruindo, tentando de novo.
    Enganando.

    Nos iludimos plantando vida por onde queremos que ela floresça. Assustamos e domesticamos animais. Trocamos os dias pelas noites iluminadas, confortavelmente acesas com dispositivos que controlam a intensidade e até a temperatura das luzes. Assumimos confortável e egoistamente o papel de deuses sobre todos os outros seres.

    Todas as vezes que uma joaninha me encontra, me sinto especialíssima. E, por um breve instante, me esqueço de humanizar qualquer coisa.
    Apenas existo.
    Respiro.
    Respeito.

    Admiro.

  • Reborn

    Quem não brincou de boneca o suficiente em criança não deve perder a oportunidade agora, incluindo os meninos a quem não foi dado esse direito. Compre um bebê reborn e vá à luta. É a sua chance: dificilmente aparecerá ocasião tão propícia para resolver um problema de infância que demandaria anos de terapia, uma solução bem mais cara que o boneco.

    Para uma experiência mais completa, esses bebês poderiam ser ainda mais realistas: chorar no meio da madrugada, exigir troca de fraldas em horários aleatórios e impedir os ‘pais’ de sair porque estão com febre. Como aquelas mascotes Tamagotchi que precisam de atenção e ‘morrem’ se você deixa de alimentá-las ou cuidar delas. Se o bebê ‘morrer’, nada de pânico: basta encomendar outro.

    Outra sugestão para quem quiser aprofundar a experiência: trocar de bebê a cada aniversário, acompanhando o crescimento da ‘criança’ até que ela se torne adulta. Obviamente, adolescentes reborn seriam programados para dar muiiiito trabalho antes de se transformarem em jovens bem sucedidos. É improvável que alguém insista além desse ponto, mas nunca se sabe: velhos reborn podem virar febre no futuro, a fofura dos bebês substituída pelos achaques da idade. Tem gosto para tudo e o lobby das farmácias não dorme no ponto.

    Em vez de criticar os bebês reborn, pense nos aspectos positivos: lucram as fábricas, as produtoras de festas, criam-se empregos. Que mal há nisso, fora a loucura? Só espero que não seja contagiosa. Será?

  • A Praça das Agulhas Silenciosas

    1. O Observador
    Da sacada do sobrado em frente à praça, meu posto de observação favorito, assisto aos rituais diários que ali se repetem com precisão quase matemática. Entre fornadas de tortas para entrega — meu trabalho enfadonho —, distraio-me inventando histórias para os visitantes anônimos do lugar. Mas nada me preparou para o enredo que estava prestes a se desenrolar diante dos meus olhos. Victor é o primeiro a chegar. Meia-idade, roupas gastas, semblante sempre apreensivo. Um jornal debaixo do braço, que parece carregar com a mesma seriedade de quem segura um relatório confidencial. Senta-se sempre no mesmo banco, como se tivesse reservado pelo celular. Começa pela seção de classificados. Circula alguns anúncios com caneta vermelha, outros em amarelo. Quinze minutos depois, vai embora, deixando o jornal ali, aparentemente sem qualquer apego.

    2. A Professora de Bordado
    Às nove em ponto, ela chega. Meia-idade também, luto visível na roupa preta e no rosto sereno. Duas alianças no dedo anelar denunciam o passado de esposa e o presente de viúva. Para mim, é Natália. Carrega uma bolsa com material de artesanato, um guarda-chuva e um chapéu. Vai até a mesa de concreto com bancos ao redor e começa a preparar sua aula. Panos, linhas, rendinhas, caderno de anotações. Tudo meticulosamente organizado.

    As alunas vêm uma a uma. Jovens, graciosas, mas com um certo ar de urgência — talvez econômica. Cada uma permanece por cerca de quinze minutos, borda alguns pontos nas amostras e vai embora levando um pequeno embrulho feito com o jornal que Victor deixara.

    O detalhe não me escapou: sempre o mesmo jornal, sempre aquele deixado no banco. E as garotas? Nunca trazem os trabalhos prontos na semana seguinte.

    3. O Homem de Terno
    Assim que a última aluna parte, chega um senhor elegante, de terno escuro. Vai direto ao banco ao lado da mesa de Natália. Não se cumprimentam, não trocam palavras. Mas os olhares? Dizem tudo. Há familiaridade ali. Talvez romance, talvez conspiração. Dei-lhe o nome de Vladimir.

    Ele fuma devagar. Ao final, joga o maço vazio no chão — um gesto grosseiro, mas que Natália sempre corrige. Antes de partir, ela recolhe o maço, junto aos restos de linhas e panos, e o descarta na lixeira. Quase um ritual. Quase um código.

    4. A Teia Invisível
    Enquanto sovo massas de torta e sonho com meu futuro restaurante nas montanhas — o Samantha’s Bistrô, cozinha autoral especializada em caças e aves —, passo a enxergar o trio com outros olhos. E se Victor, Natália e Vladimir estivessem ligados?

    Foi quando a faísca acendeu. Victor circula anúncios para codificar mensagens. Deixa o jornal no banco. Natália recolhe, embrulha material com ele, e as alunas — agentes disfarçadas? — levam o conteúdo para fora da praça. Vladimir entrega o próximo comando no maço de cigarros, discretamente depositado e discretamente recolhido.

    5. A Confirmação
    Minha mente fervilha com a descoberta. Estaria eu presenciando a ação de uma rede de espionagem? Uma célula operando à luz do dia, debaixo do nariz de toda a cidade?

    No dia seguinte, corro à banca antes de Victor chegar. Compro o mesmo jornal que ele costuma usar. Comparo. Estudo. Tento decifrar. Então, horas depois, como uma bofetada do destino, a verdade vem no título do jornal do dia:

    JORNAL O GLOBO
    PRESA EM SÃO PAULO NATÁLIA BUTINA, A VIÚVA NEGRA
    Treinada pela Sala Vermelha, organização com laços com a antiga KGB, recrutava jovens para atuar como espiãs e assassinas.

    Fico paralisada. Natália. A mesma. A mulher que ensinava bordado na praça, que sorria às suas alunas. Que recolhia lixo como quem cuida do planeta.

    E Victor? E Vladimir?
    O jornal não diz. Mas eu sei. Eu vi. A praça nunca foi tão silenciosa. Nem tão
    perigosa.

    Fim.

  • Parece que foi ontem

    Hoje o universo escolheu tirar o dia para me cutucar. Já pela manhã, enquanto caminhava no play, quase pisei num boneco de plástico atirado pela varanda por alguma criança entediada de cimento.

    Não era um boneco qualquer, o danado era idêntico ao que eu tinha no consultório. Protagonista de tantas brincadeiras cheias de simbolismos e significados. O outrora soldado valente, agora, jazia ali como representante lúdico de tudo que acaba.

    As lembranças feitas de fragmentos de ontens afivelaram um cinto apertado na minha garganta.

    Quanta saudade de mim…

    Horas mais tarde, procurando a carteira de vacinação na gaveta de documentos, achei a foto de uma moça jovem, bonita e sorridente que teimava em dizer que era eu. Como pode? Só não insisti na contestação porque temos sobrancelhas muito parecidas. Que saudade de nós…

    O sol já se despia quando liguei o rádio do carro e senti a última cutucada do universo através da voz inesquecível de Belchior: “Falaremos para a vida: vida, pisa devagar, meu coração, cuidado, é frágil. Meu coração é como um vidro ou um beijo de novela.”

    Ah, que saudade de mim. Daquela que fui em tempos idos e partiu em tempos vindos.

    Envelhecer carece de um adestramento das memórias. Caso contrário, elas não cessam de latir, morder, atacar o hoje com seus dentes afiados, suas unhas cortantes. 

    O desafio é grande, porque o passado é soberbo, se julga insuperável. Desdenha dos colegas de conjugação.

    Ai que saudade de mim…

  • Camaleão

    Todo mundo conhece ou já conviveu com um camaleão: aquele bicho que parece, mas não é! Pois, então: eles convivem em seu ambiente, se tornam seus “amigos”, sabem dos seus sonhos e expectativas, e se chamam colegas, colaboradores, equipes, parceiros, confidentes e afins.

    Tome cuidado! Nem sempre o que parece é, pode haver um camaleão oculto aí, bem perto de você.

    Pessoas que agem como se fossem o que não são: eficientes, profundo saber, indispensáveis. Muito próximos, prestativos, camaradas. Podem ser vistos como inocentes, ou distraídos, assim como os conhecidos disseminadores de informações extra-oficiais, os famosos “rádios-peões”.

    No entanto, são muito mais perigosos, pois frequentam os espaços dos chefes e líderes, onde passam a conhecer as pessoas, os processos, as minúcias do que acontece ao seu redor. Os seus alvos podem estar ali.

    Trazem consigo uma característica peculiar, inerente e indefensável: são falsos. São invejosos, pois acham que pertencer a determinados estratos sociais farão deles algo maior do que são.

    Nascem assim ou, sem perceber, vão criando camadas até se tornarem o que são?

    Sua maior habilidade? Ser puxa-saco, bajulador. Eu, você e todo mundo conhece alguém assim, já que ele pode estar nos mais variados lugares, em diversas camadas da sociedade. Podem estar no seu trabalho, na igreja, no grupo de pais ou na sala de aula. Agem “inocentemente” servis, declaradamente devotos, mas na realidade, são baba-ovos.

    Usam frases de efeito, discorrem sobre o que ouviram falar, na leitura da manchete e não no conteúdo. Estão sempre prontos a colaborar, trabalhar nos finais de semana, substituir, elogiar e inflar o ego dos superiores.

    Só encenação.

    Parecem diligentes, capazes, interessados, mas o objetivo é colher informações aqui e ali. Seu intuito é saber da vida e dos pontos fracos dos colegas. Não para ajudar, e sim para tirar proveito no momento oportuno.

    E, então, conquistam aquilo que sempre desejaram: o Pequeno Superpoder, com títulos variados: assessores, “braço-direito”, vice, e por aí vai. O conteúdo é raso como um pires, mas a pose é de eficiência.

    Tornam-se a segurança do chefe: cuidam da sua agenda, do cafezinho, elogiam e não cansam de surpreendê-lo positivamente. Adoram quando ele viaja e, mesmo sem serem substitutos oficiais, passam a dominar o ambiente. Com isso vão se mantendo e moldando a sua forma de ser de acordo com o que pretendem auferir.

    Podem até subir na vida, mas só alcançam o rodapé. No máximo, o primeiro degrau. E dali não passam. Exceto se forem da área política. Ali podem galgar muitos degraus. A única forma de lidar com esses indivíduos é com franqueza, sem temores! Ignorar ou tirar a máscara.

    Será que vale a pena?

  • Questão de ordem

    O poeta inglês Samuel Taylor Coleridge definiu prosa como “as palavras na sua melhor ordem”. Sem ordenar bem o que se diz não há como dar clareza ao discurso, conforme se percebe nestes dois exemplos retirados de redações escolares:

    1 – “Com o advento da Revolução Industrial, as mulheres começaram a participar do mercado de trabalho, assim como as crianças.”

    2 – “Contrariando os evolucionistas, Contardo Calligaris afirma que a mulher é tão infiel quanto o homem em seu texto ‘Por que somos infelizes em amor?’” 

    Os fragmentos em negrito estão inadequadamente deslocados. “Crianças” deve vir junto de “mulheres”, constituindo possivelmente outro núcleo de um sujeito composto; e a menção ao texto de Calligaris fica melhor após o verbo “afirmar”, pois constitui um adjunto que modifica esse verbo. Com isso, os períodos se tornam mais claros:  

    – “Com o advento da Revolução Industrial, as mulheres e as crianças começaram a participar do mercado de trabalho”.

    “Contrariando os evolucionistas, Contardo Calligaris afirma em seu texto ‘Por que somos infelizes em amor?’ que a mulher é tão infiel quanto o homem.”

    A má ordenação se revela na dificuldade inicial com que os períodos são lidos. É preciso no mínimo uma segunda leitura para que se compreenda o que os alunos queriam dizer. Essa não é a característica de um texto bem escrito; se o leitor precisa reler, alguma coisa falhou.

    Existem as quebras estilísticas, que destacam determinados segmentos da frase, e existem as que decorrem de imperícia ou comodismo. A essas não escapam nem redatores experientes, como se vê nesta passagem:

    3 – “O objetivo da quadrilha, de acordo com a Polícia Federal, era a obtenção de lucros através da execução de obras públicas, organizada e estruturada para a prática de variados delitos, como fraudes em licitações, corrupção passiva e ativa, tráfico de influência e lavagem de dinheiro.” (Folhapress)

    É preciso esforço para perceber que a parte em negrito se refere a “quadrilha”. A distância entre essa palavra e os particípios (“organizada” e “estruturada”) chega a comprometer a unidade do parágrafo e desorienta o leitor, que procura reorganizar o que parece truncado.

    Os três exemplos desta postagem mostram que a melhor ordem é aquela em que se mantêm juntos os termos sintaticamente relacionados: núcleos de uma mesma função sintática (exemplo 1); adjuntos com os verbos ou substantivos aos quais se referem (exemplos 2 e 3).

    Fugir a esse princípio, só por razões estilísticas. É o que ocorre na hipálage, um deliberado deslocamento do atributo em relação ao substantivo que ele modifica. Por exemplo: “‘O professor recebeu o caderno aplicado do aluno” (em vez de “o caderno do aluno aplicado). O deslocamento faz com que o adjetivo amplie o seu raio de ação. Mas esse não é um recurso que se deva perseguir num gênero objetivo e transparente como a dissertação argumentativa.

  • O beijo salvador

    Vida de mãe de adolescente é dureza. Que foi, a namorada de algum deles tá tirando o seu sono ou o dele? Não, nada, nesse campo está tudo calmo. O que foi então? O meu mais velho fez 18 anos há três meses e rapidinho aprendeu a dirigir. Ai ai, agora começa a fase de fazer cara de cachorrinho e pedir “empresta um pouquinho seu carro”? Claro, rsrs, e foi isso mesmo, ele me pediu o carro para ir até a Barra. De dia? É, para ver umas coisas lá do time de volley. Ai, que ótimo quando eles se interessam por esporte né? Verdade, essa dedicação ao time, a disciplina… Fora que faz um bem danado à saúde. Verdade. Mas conta, ele pegou o carro. Sim estava ali no Humaitá quando foi parado por uma blitz. Que chatice, mas ele não tinha bebido, né? Nada, o Rafa é só no suquinho. Ai que bênção, amiga! Pois é, Oxum me guia e guarda meus filhos. E ai? Eu esqueci de pagar o bendito licenciamento. Ai, que mancada!  Acontece, você sabe, não tem nada demais. Verdade é só um papelzinho virtual e nada, nem sei para que serve. Nem eu mas o negócio é que ele foi parado por causa dessa porcariazinha. Xii, e ai? Ai que o policial não quis conversa e guincho nele. No seu filho? Não, no carro né. Ah tá, e levaram seu carro? Vai vendo, ele ligou para o pai. Ah sim, seu ex-marido. E sabe o que o bonitão respondeu? Nem imagino. Não podia sair do consultório para ajudar o próprio filho. Jura? Tô te falando. Ah tenha paciência, né? Minha mãe que tem razão quando diz que na hora de fazer todo mundo quer, mas cuidar que é bom não aparece uma alma. Verdade, mas e como ficou, rebocaram o teu carro? Vai vendo, ai menina, o Rafa na sequência me ligou contando tudo. E você, espumou de raiva? Não né, porque a culpa era minha. Verdade e o que você fez? Eu estava em Laranjeiras, naquela reunião de captação de recursos para a produção daquele filme que te falei que é baseado no livro “Extermínio”. Que livro é esse? Daquele meu amigo que te falei semana passada, lembra?. Ah sim o cara que é…Ele mesmo rsrrss. Bom, mas e aí? Ai, minha amiga, encarnei a Mulher Maravilha sai voando da reunião e praticamente me atirei em cima do primeiro táxi que apareceu. Você deu sorte porque quando a gente não precisa tem mais taxi do que gente na rua. Exato, e sabe tinha um sujeito descendo do taxi, eu peguei ele pelo braço, tirei o homem praticamente de dentro do carro e me joguei no banco de trás. Você é louca mesmo! O cara ficou na calçada com cara de besta e o motorista sentindo a situação só me perguntou: para onde, madame? Ainda tem motorista que chama a gente de madame? Tem e eu só respondi “Toca para o Humaitá como se fosse tirar o seu pai da forca!” Boa! O cara operou milagre para me levar lá. Esse trânsito da zona sul é o caos. Bom ai, pulei do taxi e já vi o Rafa em pé com a cara mais assustada do mundo. Tadinho. Eu cheguei junto do policial que estava guinchando o carro e pedi para ele reconsiderar, afinal era só o licenciamento. E ele? Acho que o time dele deve ter apanhado de algum clubinho pequeno na Copa do Brasil porque ele estava intratável. Nossa, homem fica intratável quando o time apanha. Eu ali naquela aflição toda de repente sinto uma mão no meu ombro. Quem era? Menina, lembra daquela festa a fantasia que a gente foi em Niterói no penúltimo ano do Pedro II? Sim, claro, nós fomos na barca já fantasiadas. Exato. O que é que tem? Lembra de um garoto alto fantasiado de morte, que ganhou o apelido de O Morte? Sim. Era ele. O Morte estava na blitz? O Morte comandava a blitz. Minha nossa! Pois é, fiquei espantada. E ai o que aconteceu? Ele sorriu, perguntou se eu lembrava dele, eu disse que sim, comentamos um pouco daquela festa e ai você não vai acreditar. Conta que eu acredito rsrs. Ele mandou tirar meu carro do guincho e me liberou. Jura? Juro. Assim do nada? Bem, não sei se te contei mas naquela festa eu estava brigada com o Marcus e decidi me vingar. Não creio! Exatamente, e fiquei com ele.  Ah é? É, trocamos uns beijos e tal, na parte de trás do jardim, lembra que era uma casa enorme. Ô se lembro, menina, nossa dá até calor em recordar aquela festa. Enfim, foi só isso. Como só? É, uns beijos naquela noite e nada mais. Mas deve ter sido inesquecível para ele. Ai, menos né, você acha? Claro, afinal ele te viu e, se nem pensou duas vezes, mandou tirar seu carro do guincho, é porque sua boca é poderosa, nheim amiga? Ai, abafa, por favor!

  • Nau dos Quintos!

    Com o passar do tempo construímos nossos lares e relações humanas temperadas com expressões correntes populares, baseadas em acontecimentos curiosos, que carregam muita história e verdades. 

    O folclore popular mostrou caminhos que levaram á literatura e modificou o comportamento do povo, desenhando estradas baseadas em vidas passadas, por vezes doloridas e muito marcantes, ao ponto de expressões curiosas se tornarem de uso bastante frequente. 

    Estar de bucho Cheio ou Encher o bucho, significa estar bem alimentado, de barriga cheia. 

    Essa expressão era utilizada mais comumente nas Minas de ouro, tanto pelos escravos quanto por seus exploradores. Na época de sua criação os escravos deveriam preencher com ouro um buraco na parede, conhecido como bucho, para só então receber sua tigela de comida. 

    Entravam tantas “peças” (negros) na mina, e ao final do dia eram contadas quantas não saíram, e lá permaneceram com o bucho vazio, para todo sempre. 

    Era tanto ouro no Brasil que a Coroa Portuguesa viu a possibilidade de quitar suas dívidas com a Inglaterra, e resolveu cobrar imposto de 20% (a quinta parte) do peso do ouro extraído das cidades mineradoras. 

    O Quinto tomou lugar para amaldiçoar uma pessoa, mandando-a para longe, ou para um lugar remoto, utilizando a expressão “Quinto dos Infernos”, que começou a ser usada em Portugal para se referir ao Brasil.

    Também usada para designar um lugar muito longe (“lá no quinto dos infernos”). Porém, sua origem e real significado, são totalmente diferentes.

    O navio que partia de Portugal para recolher esse imposto era chamado de nau dos quintos. 

    Como ele também transportava exilados para a nova colônia, mandar alguém à “nau dos quintos dos infernos” (ou apenas aos “quintos dos infernos”) significava bani-lo a um lugar degradante, o Brasil.

    A cobrança foi uma das principais causas da Inconfidência Mineira, um ato revoltoso sem sucesso, que acabou sendo reprimido pela Coroa em 1789.

    E para evitar as constantes sonegações, que geraram outra expressão famosa, o Santo do Pau-Oco, estátuas religiosas foram utilizadas pelos mineradores para contrabandear o ouro.

    Por isso, em 1750, a Coroa Portuguesa decidiu recolher o quinto diretamente das casas de fundição. A riqueza obtida pelo recolhimento do imposto era levada para Portugal encher os bolsos da corte. 

    O povo explorado sempre buscou caminhos criativos e soluções inovadoras para sobreviver, mesmo utilizando uma graça popular transformou dor em luta, na busca de resultados positivos, encontrados pelos vencedores, durante suas árduas batalhas.

  • A tal da amnésia glútea

    Outro dia me peguei pensando em como tem coisa que a gente simplesmente deixa de usar. Palavra antiga, receita de família, roupa guardada no fundo do armário. Mas o mais curioso é que isso também acontece com partes do corpo. Não acredita? Pois saiba que existe gente sofrendo de algo chamado amnésia glútea.

    É, parece nome de doença rara, mas é mais comum do que se imagina. E não tem nada a ver com esquecer datas, nomes ou senhas de e-mail. A amnésia, nesse caso, é das nádegas mesmo. Literalmente. Ou melhor, da função delas. O que acontece é que os glúteos simplesmente “esquecem” de trabalhar. Ficam ali, inativos, como funcionários desmotivados à beira da aposentadoria. Aí vem a falta de firmeza, ou mesmo a tendência a apontar mais para baixo que para trás, o que é motivo de desespero para a maioria das mulheres e cinicamente criticado pelos homens que não se olham no espelho.

    Dizem por aí que é um mal da vida moderna. Sedentarismo, cadeiras ergonômicas demais, horas a fio sentados encarando telas. O traseiro se acomoda — no sentido literal e figurado — e para de cumprir seu papel evolutivo de nos empurrar para frente, manter o equilíbrio, dar firmeza aos passos. Passa a viver de aparência. Fica ali, meio caído, meio esquecido, sustentado apenas por leggings milagrosas ou filtros do Instagram. Passa a existir apenas como volume decorativo.

    Lá fora, os especialistas deram até nome bonito: dead butt syndrome. Aqui, como sempre, fomos direto ao ponto: “bunda mole”. Grosso? Talvez. Mas preciso.

    O mais engraçado — ou trágico, dependendo do ponto de vista — é que pouca gente admite que sofre disso. É vergonhoso. Então culpam a genética, a postura da infância, o colchão, o formato da cadeira. Nunca é a própria falta de movimento. Nunca é o fato de que caminhar virou exceção, e não rotina.

    O corpo, coitado, vai se ressentindo. Vêm as dores nas costas, o desequilíbrio, a sensação de cansaço constante. E ninguém desconfia que talvez a origem de tudo esteja… atrás.

    E nem pense que ficar postando vídeos sensuais ou fazer poses em espelho resolva o problema. Rebolar não é tratamento. O glúteo quer ação de verdade: subir escadas, caminhar, viver. Ele foi feito para empurrar o corpo adiante, não para angariar likes.

    Então, se você anda se sentindo meio torto, meio mole, meio arrastado, talvez esteja na hora de prestar atenção nele: seu esquecido, negligenciado, mas essencial traseiro.

    Levante-se da cadeira. Dê uma volta no quarteirão e ative a memória de sua bunda. Antes que ela esqueça de vez que está aí para servir — e não só para sentar.

  • Nossa vida entre vermes e insetos

    A vida acontece entre o instante em que respiramos aliviados pelo fim de mais uma jornada de estudos ou trabalhos e uma falha na observância dos nossos planejamentos financeiros, estratégicos de vida, de sonhos, de status de relacionamento. A vida acontece literalmente no ato de respirar.

    Às vezes, coisas terríveis acontecem com pessoas maravilhosas. Em outras, coisas maravilhosas acontecem com pessoas maravilhosas. E também com pessoas nem tão maravilhosas assim.

    Como bugs em sistemas informacionais, hiatos na vida podem nos sublinhar chances de vivermos algo incrível. Repletos de insetos brilhantes, borboletas, libélulas, abelhas, esperanças. A maior parte desses pode transportar pólens para formar frutos, sementes, flores.

    Polinizar nossos corações, através de uma vida inteira de insetos que encontramos, eventualmente ao acaso, de tempos em tempos como destino; este último, tão elegante, nos vem com a certeza de um ordenamento certeiro do mundo. Aquele, caótico, repleto de improvisos, abre espaço para todas as possibilidades, ao mesmo tempo. E aqui, nada e/ou ninguém pode, até, fazer sentido. Insetos e vermes estão sempre ao redor. A vida não é somente um punhado de minutos ou um punhado de vermes. Mas tenhamos sempre em mente que minhocas desempenham importância vital nos ecossistemas da Terra.

    Nutrir e fazer crescer. Crescer o bem ou o mal, entender o nascer do dia, mesmo que nublado, ou dormir e só perceber a escuridão do anoitecer – sem perceber o brilho das estrelas, reflexos de energia que já não existem mais, anos luz de distância.

    A polinização de nós mesmos depende de como resolvemos cuidar do nosso jardim interior, de como revirar as nossas terras, adubá-las, semeá-las; da frequência com a qual molhamos e acompanhamos o desenvolvimento do que plantamos. Mesmo cansados, um besouro, particularmente, pode aparecer na janela de nossos quarto à noite, todo luminoso.

    Se estivermos cansados demais, talvez o ignoremos; mas se um pouquinho da arte que habita o coração de quase todos nós estiver ali, em desenvolvimento, esse inseto pode fazer cócegas nos monstros debaixo de nossas camas. E então, todo amanhecer será colorido, brilhante, estonteante. Mesmo que os olhos, aparentemente, só percebam dias chuvosos e sols aparentemente ausentes.

  • PROVOCAÇÕES: Crônica das nuvens

    Provocar algo. Provocar alguém. Provocar em alguém algo. Provocar algo em alguém. Simplesmente provocar.

    Para mim, provocar é o instante em que as coisas, as coisas que de fato interessam, acontecem. Provocar o riso. Provocar a conversa. Provocar o namoro. Provocar o texto. Provocar o interesse!

    Em uma de minhas aulas de redação provoquei a crônica. A bendita e amada e surrada e provocativa crônica. Escrevi no quadro: “cada nuvem no céu um poema, cada nuvem nos olhos um problema, cada nuvem na vida, uma situação que se encena…”

    Falava sobre a crônica lírica. Na verdade, a poesia intrometida a besta dentro dos limites da prosa. Tudo culpa do Rubem Braga e do Paulo Mendes Campos! Poesia e prosa? Prosa poética, enfim…

    Não sou conhecedor de passarinhos e não transito em Copacabana. Rubem e Paulo, eu não daria conta. Por esta razão, falei de nuvens.

    Primeiro os alunos estranharam. Nuvem! Nuvem? Alguém que sonha. Alguém que bebeu demais. Alguém que não está muito bem da cabeça. Nuvem e gente. Que coisa mais sem sentido!

    Mas.

    Havia sentido. Pelo menos é o que os professores dizem. Havia um significado naquela desassombrada nuvem. Desarvorada. Provocante nuvem.

    Dos lábios dos jovens saíram as metáforas da vida: amor, desejo, conflitos, saudades, descobertas…

    Dos lábios dos jovens saíram mais e outras tantas metáforas e rimas e sinfonias inteiras de nuvens. Nuvem gorda de chuva. Nuvem franzina, de passagem. Nuvem branquinha qual algodão. Nuvem escura e pesada qual premonição. Nuvens adolescentes, cheias de atitude, mas também de compaixão. Nuvens risonhas. Nuvens tristonhas.

    E cada vez que ouvia e lia mais e mais palavras, o teto da sala se abria e o céu ali ficava. Cheinho de nuvens-crônicas. As nuvens? Elas, também, cheinhas… Cheinhas de mistério, de encantamento, de absorção.

    E assim, uma aula se encerrou…

    E assim, várias crônicas nasceram…

  • Espelho, espelho meu

    Ontem foi dia de conhecer um exemplar da nova humanidade. Estava almoçando com meu filho, num restaurante da zona sul, depois de um exame em que fui acompanhá-lo (ação corriqueira para mães das proles de antigamente) quando ele me interpelou: “Aquilo ali é um bebê reborn?” 

    Discretamente, acompanhei seu olhar e me deparei com uma moça aconchegando o bebê em seu colo enquanto andava para lá e para cá. O movimento era parecido com o ninar das mães/cuidadoras de crianças feitas de poros, mas com algumas diferenças, talvez, inalcançáveis para quem não vivencia a corda bamba da maternidade feita de cheiro de fralda suja e beijo babado:

    1. o balançar do colo não tinha aquela apreensão inerente ao ato de ninar um bebê: é sono? Fome? Dor? Gases?

    2.  A tranquilidade de quem não corre o risco de levar uma golfada.

    3.  A paz absoluta dos que não precisam ter medo de errar, de não perceber ou intervir a tempo, de falhar.

    4. A solidão de um olhar que não encontra testemunho de afeto.

    Tudo sob controle, milimetricamente previsível, controlável. Por alguns instantes, admirei a maternidade reduzida a sua função de cuidados mecânicos. Mas, em poucos segundos, o sorriso esvaziou, senti falta da temperatura, do cheiro, da gargalhada, do choro feito de lágrimas, das mãozinhas puxando o cabelo. 

    Voltei para o meu filho e respondi: “Com certeza é um reborn. Não há dúvidas.” 

    Quando coloquei no teto do quarto um papel de parede cheio de estrelas, achei lindo, mas sabia que não eram estrelas. 

    Por mais que digam que, para toda mãe, os filhos serão sempre crianças, desejamos que cresçam. E essa é a graça, ver o amor ganhar contornos, a intimidade desenhar nuances, a relação se reinventar no tempo.

    As rosas de plástico enfeitam a casa, mas não perfumam.

  • O VALOR DA ÁGUA

    Nossa sociedade mantém uma relação “profana” de usurpação com os recursos da Natureza. A água e outros bens naturais são vistos apenas como matéria-prima que possibilita o bem-estar do ser humano. As ciências, nas bases em que evoluíram, sancionam essa extorsiva apropriação.

    Todavia, o real valor da água vai bem além da função que lhe destina o utilitarismo materialista do homem civilizado. Reduzi-la a essa condição é espezinhar outros modos de se relacionar com o bem, associados a diferentes formas de valor. Como elemento ecológico, por exemplo, a água desempenha papel fundamental no equilíbrio dos ecossistemas. É dotada também de inestimável valor histórico, social, cultural, estético e simbólico.

    Muito mais do que nos utilizarmos da água, somos água. A água é 70% de nossa constituição. Essa representação significa que observador e coisa observada são um só e sujeito confunde-se com objeto. Nossa dependência desse elemento vital provém do momento em que fomos concebidos. Mais do que isso, a própria vida no planeta Terra originou-se em seu interior. E até hoje conserva traços dessa conexão primitiva. O contato com a água, além de proporcionar reconhecidas virtudes terapêuticas, resgata ao corpo uma prazerosa sensação de harmonia.

    Em função dessa condição de essencialidade, a água tem sido objeto de ritos sagrados e devoção em todas as épocas por todas as grandes culturas e religiões, associada à fonte da vida, à purificação, à regeneração, à proteção contra o mal e outras qualidades mágicas.

    Ao fazer da água objeto de estudo das ciências físicas, biológicas e sociais, o caminho é o de dessacralizá-la, coisificá-la, arrancá-la de sua condição sublime. Não nos cabe extrair da água sua divindade, e sim irrigar os áridos campos científicos com um pouco da energia vital de que aquele precioso líquido é dotado.

    Degradada a fonte da vida degradou-se também a vida. Mas não foi a água que mudou. É bem verdade que está ela carregada de substâncias cada vez de pior espécie. Porém, em sua essência, continua ela tão H20 como sempre foi. Apesar de bem menos cristalina e mais mal cheirosa, continua ela a correr líquida, solta e indomável, indiferente às reflexões humanas a seu respeito. Tampouco mudou o homem, pelo menos no que concerne a suas necessidades fisiológicas relacionadas com o bem em questão.

    Os conceitos científicos é que parece não estar se adequando mais. Não se pode fazer a água se sujeitar a modelos concebidos para abrigá-la. Ao sair de suas sólidas bases e entrar nesse campo, digamos, mais fluido, as ciências também revelam suas deficiências e fragilidades metodológicas. Efetuar uma análise desse bem de qualidades tão invulgares, e primordiais coloca as ciências diante de um colossal desafio que as obrigará reavaliar alguns de seus fundamentos.

    Deve-se considerar que a água possui também um inestimável valor, cultural, religioso e histórico associada ao nascimento de importantes civilizações (inclusive a nossa, que teve como marco inicial o nascimento da Mesopotâmia, entre o Tigre e o Eufrates), que surgiram às margens dos rios ou à beira do mar. Sob a água, outras teriam sucumbido como Atlântida.

    Em todas as culturas e religiões, ela aparece como símbolo marcante. Nas tradições judaica e cristã, a água simboliza, em primeiro lugar, a origem da criação. Contendo o elemento de regeneração corporal e espiritual, as chuvas e o orvalho trariam consigo a fecundidade e manifestariam a benevolência divina e os rios seriam agentes da fertilização.

    As águas de rios sagrados como o Ganges (para os hindus) e o Jordão (para os hebreus e cristãos) teriam o poder de “lavar” a alma de quem nelas se banhasse. Do batismo a ablução, teria o poder de purificar os homens dos pecados e impurezas.

    O Corão designa a água que vem dos céus como um dos signos divinos. No Novo Testamento, aparece com destaque nas palavras de Cristo: “Quem beber a água que eu lhe darei, nunca mais terá sede, pois a água que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna” (João 4:14).

    Representa a sabedoria taoísta, porque não tem contestações. É livre e desimpedida, corre segundo o declive do terreno: “A água não se detém nem de dia nem de noite” diz Lao-Tsé. Para o I Ching, o oráculo milenar da cultura chinesa, “a água flui ininterruptamente, e chega à sua meta” (hexagrama 29), servindo de modelo de conduta para o homem: preencher todas as depressões antes de seguir adiante.

    Para diversas tribos indígenas, as águas acolhem espíritos e divindades. Para ela são entregues pelos umbandistas as oferendas dirigidas a Iemanjá. Personifica também qualidades encantadas, constituindo-se em morada de ninfos e deuses.

    Possui a água significado mítico e psicológico, integrando o imaginário coletivo, associada a aventuras rumo ao misterioso ou jornadas a um novo mundo. As águas profundas representam o impenetrável inconsciente ou o reino obscuro do desconhecido.

    Sendo ela que permite a vida, é vista também como bênção, elemento sagrado, que teria o poder de curar, purificar e rejuvenescer.

    Em função dessa importância simbólica, a conservação da água em bom estado tem um valor que em muito transcende as necessidades relacionadas com o seu uso. Sua deterioração coloca sob ameaça a própria integridade da vida social e cultural. A poluição é o câncer da água. Todos vêem na água como que o elemento vital primordial: a fonte da vida, que deve ser preservada.

    *Texto adaptado da minha tese “O VALOR ECONÔMICO DA ÁGUA”, escrito em 2002, como tese de Mestrado para o PROCAM – Programa de Ciência Ambiental da USP.

  • Crônica do Dia Seguinte

    Se tem um dia que eu gosto, eu gosto mais ainda do dia anterior e do dia seguinte. Sim, porque há um encanto que mora nas bordas dos acontecimentos, ali nos minutos antes do salto e no respiro depois do mergulho.

    Se é festa, o dia anterior é puro movimento: últimos arranjos, conferência de listas, compras apressadas, almoço engolido às pressas porque o tempo urge, marcar salão de beleza, verificar as roupas das crianças, fazer as checagens finais. É uma pressa que não cansa. Ao contrário, é uma urgência boa, que dá energia, como se a vida pulsasse mais forte nas vésperas.

    Se é prova de faculdade, o dia anterior é biblioteca com as amigas, dicas dos sabidões da turma, coração disparado. É como se o corpo se preparasse para o salto, tomado por uma expectativa nervosa e cheia de adrenalina.

    Se é cirurgia, consulta, visita ao salão, ou o que quer que seja o evento, o dia anterior é sempre um lugar à parte. Um lugar suspenso, fora da rotina. É o dia da expectativa.

    E o dia seguinte?

    Ah… melhor que o dia anterior, só o dia seguinte. Quando tudo já aconteceu e a gente pode enfim respirar.

    É quando o corpo agradece e a mente repassa, satisfeita, tudo que deu certo ou tudo que ensinou. É quando percebemos que valeu a pena ter chamado aquela cozinheira, que as meninas estavam lindas, que a prova foi menos cruel do que o esperado, que na próxima consulta a gente já sabe: nada de marcar outro compromisso no mesmo dia.

    O dia anterior e o dia seguinte de uma festa são, pra mim, o que há de melhor. Adoro!

    E se tiver visitas de fora então? Aí sim fica melhor ainda;  a casa se enche de outra energia, outro tipo de urgência, mais calorosa, mais humana. Coisas pequenas ganham importância: o colchão inflável, o café coado com capricho, o tempo esticado em conversas no quintal.

    Estranho… essa sensação sempre me pareceu tão íntima que nunca comentei com ninguém.

    Será que é coisa só minha? Ou será que todos, em silêncio, também têm esse carinho pelos dias que cercam os grandes dias?

    Talvez sejamos todos assim: amantes dos intervalos. Porque é neles que a vida acontece devagar. No antes, mora a esperança. No depois, o entendimento. 

    E o durante… ah, esse a gente quase nunca percebe enquanto vive. Porque é o que faz  pulsar o coração.

  • Cobra no ventilador

    Juro, mas deu cobra no ventilador da minha avó. Mas esse negócio aconteceu lá em Minas, terra da sua avó? Que Minas que nada, isso foi com minha outra avó e aconteceu no Rio de Janeiro, lá no Recreio dos Bandeirantes.

    Ah, que é isso? No Recreio? Zona Oeste do Rio, selvagem desse jeito? Como é possível? Porque naquele tempo era tudo mato não era como hoje, um bairro urbanizado. Era uma casa aqui, outra acolá, a da minha avó, mais outra lá longe e por ai até aonde a vista alcançava.

    Nossa parece estória passada na roça. Mas na minha infância, a roça era o Recreio. Tá bom e o negócio da cobra. Sim, foi minha avó quem descobriu. A cobra estava enrocada no motor de um ventilador pequeno de plástico, azulzinho, acho que a marca era Faet.

    Sim eu lembro, pequeno e tinha um motor forte.

    Esse mesmo. Bom a cobra estava dentro do ventilador. Exato e o ventilador estava na sala. Pera aí, na sala? Como foi que a cobra entrou lá? Não lembrei de perguntar a ela.

    Muito engraçadinho. Continua.

    Bom ai foi um drama. Minha avó pescou o ventilador com uma vassoura e pôs do lado de fora da casa. Aquela tensão no ar, eu e outras crianças de olhos arregalados esperando o desfecho da situação e minha avó com aquela expressão de alguém corroída pela dúvida. Por que?

    Porque a única solução que ela via para resolver o problema era tacar fogo no ventilador. Ai matava a cobra. E minha avó perdia o ventilador. Sério? Sua avó estava em dúvida por que ia perder o ventilador?

    Sério. Minha avó tinha muito respeito pelo dinheiro que meu avô ganhava, eram outros tempos lá nos loucos anos 70 do século XX. Sei, claro, mas e aí?

    Ai aconteceu o inacreditável.

    A cobra saiu do ventilador? Não, surgiu um sorveteiro. Sorveteiro?

    É, um cara com um isopor no ombro cheio de sorvete. Isso era comum. Surgiu do nada? Isso mesmo, do nada. O cara apareceu no portão vendendo sorvete. Minha avó gritou que não queria nada porque tinha uma cobra no ventilador. E o cara?

    Como se fosse a coisa mais natural da face Terra ter uma cobra no ventilador ele nem discutiu nem perguntou nada. Mas disse que se minha avó quisesse ele pegava a cobra sem estragar o ventilador.

    Sua avó topou na hora, pelo visto.

    Claro. Prendeu o Nero, o primeiro pastor alemão que ela teve, e deixou o cara entrar. Ai foi um momento de raro sangue frio. O sujeito pegou um alicate e com ele bateu de leve na carcaça do ventilador. E aí?

    A cobra foi espiar o que era e ele num gesto rápido apertou a cabeça dela. Ponto final. No duro? No duro. O cara puxou o corpo morto da cobra, que minha avó mandou queimar e incensar a casa por fora para espantar as outras cobras.

    E o sorveteiro? Vendeu o isopor inteiro para a minha avó. Olha com todo respeito isso está parecendo conto de realismo fantástico. Por que?

    Como é que surge do nada um sorveteiro naquela roça que era o Recreio naquela época? Você não acha isso possível? Ah bem sei lá, é estranho. Depois, que fim levou o sorveteiro. Foi embora, ora.

    E quem deu a idéia de usar a cobra para defumar a casa da sua avó por fora? Acho que foi o sorveteiro. Ah é? Sei tô achando que esse sorveteiro era outra coisa. O que por exemplo?

    Ah não sei, uma entidade, um orixá, um anjo da guarda, um protetor espiritual.

    Posso te falar uma coisa? Pode. Larga do copo ou me diz o que você anda bebendo porque também quero viajar.

    Xau.

  • Sobre o Beijo

    O beijo é o selo da paixão. Não se concebe sem ele o encontro de duas pessoas que se desejam. Hollywood, em suas produções românticas, consagrou-o como uma marca de final feliz. Para os casais apaixonados, ele é o prólogo de outras entregas. Daí o seu fascínio.

    Nelson Rodrigues escreveu que é com o primeiro beijo que se perde a virgindade. Faz sentido. Quem beija tem a posse não apenas física, como também espiritual, do outro. Ele é uma permuta de haustos que se irradiam a outras esferas do corpo e tocam o espírito. Tanto é assim que as profissionais do sexo não beijam nem se permitem beijar. Quando gostam de alguém, então, esse possível gesto do cliente lhes soa como uma ofensa.  

    Há beijos e beijos, claro. Os pudicos, que envolvem apenas o roçar dos lábios; os de língua, próprios dos apaixonados (esses dão água na boca); e os osculares, que parecem mais um tributo do que uma troca sensual.

    Segundo os especialistas, existem técnicas para se beijar bem. Os lábios não podem estar nem cerrados nem muito abertos. No primeiro caso, a crispação pode sugerir que a pessoa não está receptiva ao ato e levar o parceiro a desistir. Às vezes essa impressão é ilusória, como se vê no beijo que Capitu deu em Bentinho; o abrochar dos lábios dela atiça o desejo do ex-seminarista. Já o segundo caso dá a entender que o beijador não passa de um guloso sem estilo. É preciso certo refinamento para não tirar do beijo a estética, um dos seus atributos mais apreciados.    

    Tudo que é bom tem seus detratores, e o beijo não escapa a essa regra cruel. Li que, durante ele, os parceiros destinam um ao outro parte da “microbiota” de suas línguas. Fui pesquisar essa palavra esquisita e descobri que ela designa a flora e a fauna de uma região. É isso, amigos, nossa língua é literalmente suja e parte dessa sujeira se transporta à saliva do parceiro quando um casal se beija. Para se ter uma ideia, num beijo apaixonado de 10 segundos ocorre a troca de 80 milhões de bactérias. Que dizer então daqueles que, pelo gosto dos apaixonados, deveriam durar uma eternidade?

    É claro que isso não irá demovê-los da prática de um ato que lhes confirma a paixão e abre a rota de outros profundos e fecundos prazeres. É bom que isso ocorra. Ver um casal de adolescentes se beijando num parque, numa praça ou mesmo “no escurinho do cinema” (como era bom!) nos ajuda a ter fé no amanhã. Nos faz pensar na continuidade da raça, hoje tão comprometida pelos genocidas e fanáticos que parecem querer destruí-la.

  • Sempre é tempo de refletir!

    Em visita à antiga capital mineira, Vila Rica, descobri que a história conta suas verdades com sangue e dor, mesmo que o fruto tenha sido dourado.

    Hoje a cidade se chama Ouro Preto, cujo nome teve origem porque uma camada preta de minério de ferro cobria o ouro brilhante, e ao ser fundido, o ferro deixava à mostra o que tinha mais valor.

    O Negro mais famoso da região, veio do Congo, era o Rei Galanga Muzinga, se tornou o escravo mais caro e disputado pelo senhorio da região, para extrair ouro nas minas e comandar seus trabalhadores marcados a ferro. 

    Em Vila Rica ele virou Chico Rei, o homem que ganhou dinheiro para se auto alforriar, e trabalhou com muitos outros para fazer o mesmo, ajudando a todos para que tivessem novas vidas, livres das amarras da escravidão, do chicote, da fome e do senhorio, que os tomaram de suas terras e famílias.

    Em 6 de janeiro de 1747, Chico e todos alforriados comemoraram suas liberdades na Igreja Nossa Senhora do Rosário.

    Mais tarde ele construiu uma capela em homenagem à Santa Efigênia(negra), que foi pintada por muitos artistas por longos anos.

     Chico foi coroado Rei junto a seu povo, num grande evento que se tornou anual na ocasião da festa da Senhora do Rosário.

    Outro Negro famoso naquela região, por seu talento como escultor, era filho de um Português branco, Manuel Francisco Lisboa, com a negra Isabel. 

    Raramente os Portugueses reconheciam os filhos que vinham de sua relação com as indígenas ou as negras, mas Aleijadinho foi exceção e deixou seu legado esculpido como decoração nas ruas de Ouro Preto, Mariana, São João Del Rei, Sabará e Congonhas do Campo.

    A vida imita a arte, e constrói caminhos pra que nossos descendentes desfrutem do prazer de uma existência livre de ausências e dores, rica em esperança e possibilidades, com direito a usufruir de seus sonhos, mesmo com as mãos calejadas de dor, num corpo farto em talento.

    Outro negro alto e forte, o carrasco da época, pediu perdão a um certo alferes antes de enforcá-lo. Esse momento culminou com o fim do filho de Ouro Preto, que se tornou um dos mais populares inconfidentes.

     Joaquim José da Silva Xavier, que aprendeu o ofício de arrancar dentes com seu padrinho, por isso recebeu o apelido de Tiradentes. 

    Sempre é tempo de refletir sobre o que passou por nós, como chegamos aqui, e o que nos espera. 

    Se a renovação é o que desejamos, que sejam fartos os momentos, para que a história de muitos tenha válido a pena ter sido vivida.

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