Crônicas Cariocas

  • #08 – A Ilha

    .

    A ilha com seu silêncio
    me comunica a morte
    dos seres espectrais
    que nela vivem ou já viveram.

    A ilha cercada por mangues
    é um poço de lama e óleo.

    Os pescadores da ilha
    me comunicam o fim
    dos pescadores da ilha.

    Os pescadores da ilha
    me apresentam a pesca de um dia,
    nada.

    A ilha com sua morte
    me comunica o silêncio
    dos seres superiores
    que a mataram e matam.

    A ilha abandonada pelos banhistas
    é um deserto de espuma e água.

    Os frequentadores da ilha
    me comunicam o desastre
    das praias da ilha.

    Os frequentadores da ilha
    me apresentam o bronzeado de um dia,
    petróleo.

    A ilha com sua sorte
    me comunica o crime
    dos seres continentais
    que seguem impunes.

    Os pescadores da ilha
    me comunicam o fim dos peixes
    e voltam tarde para casa.

    O Acaso das Manhãs

  • Tâmaras, vinho branco e gatos

    Há algumas semanas a bandeja de tâmaras – com caroço, tal qual informava a identidade visual da embalagem – repousava paciente sobre a bancada da cozinha, no aguardo do momento especial que tanto se preparava Theobaldo. Amante de história e das descobertas da gastronomia dos tempos passados, planejava dar à fruta uma espécie de protagonismo em um quitute da Roma Antiga. Mas faltava-lhe o mel e as nozes, e com sua atual situação financeira não conseguia juntar todos os ingredientes ao seu carrinho de compras essenciais. Em um sábado à noite deste janeiro desconcertadamente quente, deu mil desculpas diferentes aos amigos, recusou educadamente um convite de festividade de aniversário e se deu ao luxo de matar a garrafa de vinho branco, um Chardonnay 2018, resfriado dentro de seu frigobar retrô. Theo ficou na ponta dos pés, com algum esforço, e alcançou a prateleiras das taças, no alto.

    Passou uma água rápida no delicado vidro, ajeitou-o sobre a bandeja de madeira e cortiça – herança do enxoval dos pais -, pôs a bandeja de tâmaras e a garrafa de vinho, já consumida além da metade. Apagou a luz, acendeu um abajur e um incenso de odor madeira do oriente, escolheu uma playlist de “músicas tradicionais japonesas” no celular, pareou com sua caixa portátil de som e sentou-se em seu decrépito sofá, pernas esticadas e apoiadas em um escabelo improvisado, de frente ao ventilador – que girava e girava, de um lado para o outro, incessantemente, desconcertado, ele também, com a quentura daquela noite.

    Com as mãos, rasgou a embalagem plástica de fina espessura e sentiu o peso daquele romance japonês, primeira publicação em português de renomada escritora oriental, e sorriu – ao fundo, tambores e flautas embalavam o momento infinitamente poderoso que é o de um leitor abrindo o portal do mundo de um novo livro. Rasgou também a película protetora das tâmaras, e levou tal fragmento de sol concentrado – e enrrugado – à boca.

    Eu sou um gato. Ainda não tenho nome.

    As duas primeiras sentenças impressas em papel de pólen estalaram na mente como onsabor da fruta pousou na língua, um segredo antigo, uma textura que desliza e adere – metáfora também para a movimentação própria dos felinos -, quase um veludo caramelado, mas com a resistência sutil de algo que já foi vivo e pleno.

    Um gole do vinho e a língua brinca com as sensações; a estória não é pura e simplesmente sobre um gato, mas uma narrativa pela perspectiva de um. Outra tâmara: o paladar, de pronto, é invadido por uma doçura profunda, quase envergonhada de si mesma, como se fosse uma afronta ser tão doce e, assim, guardasse um toque de terra no final, um sussurro de suas origens áridas.

    [Pausa para esticar pernas e braços, já que o vinho chegou ao fim; uma rápida caminhada até a bancada da cozinha e a garrafa é preenchida com água gelada, sem que o resíduo da bebida anterior fosse descartado – uma espécie de água saporizada].

    Tóquio é a paisagem trazida pelas palavras que ganham vida através da conexão mente e olhos; os dentes recebem a tâmara com um pequeno estranhamento inicial – há maciez, sim, mas também uma firmeza discreta, um lembrete de que algo precisa ser rompido antes do banquete. E então gato e seu mestre entram em uma van prata, simbólico objeto de seu encontro, e iniciam uma viagem por vias expressas, mar, plantações e diferentes cidades, aventura de evolução e descobertas de desventuras que não afetaram a leveza de vida de um solitário japonês adulto, cuja única companhia é a de seu gato, batizado então por Nana, que significa 7, o literal formato de seu rabo.

    É nesse instante que a tâmara revela seu truque: a densidade da sua carne, que não cede de imediato, mas se entrega aos poucos, num misto de resistência e rendição. Como mastigar um poema, cada pedaço é uma linha que se dissolve, doce e incomensurável, até desaparecer.

    E assim, entre o degustar das tâmaras, do vinho branco que humanamente é transformado em água, o romance também vai desaparecendo da brochura, dissolvendo-se na construção da essência de quem o lê.

    Há quem diga que sábado à noite é momento fértil para mudanças. No entanto, nem sempre são as grandes epopeias que nos moldam: pode ser em uma cerimônia íntima, ou ritual de solitude – o abrir de um livro, o degustar de uma modesta refeição – que o doce e a esperteza das coisas penetra a carne e nos devolve ao mundo mais humanos – e, quem sabe, muito mais inteiros.

  • Semancol Homeopático

    Medicamento fitoterápico de amplo espectro, indicado para pacientes que perderam a autocensura e para aqueles que sofrem de compulsão verbal, podendo ser administrado também em pacientes com quadros de perda de cerimônia, falta de educação e traços de inconveniência.

    Ação esperada do medicamento

    Semancol Homeopático se mostrou extremamente eficiente no combate à boca solta, diminuindo sensivelmente a incidência de comentários inapropriados, grosserias, risadas fora de hora, ditos desabonadores sobre pessoas presentes em tom alto, entre outros sintomas.

    Seu efeito se estende também à inibição do desejo de ser íntimo de pessoas que nem conhecem o paciente, de permanecer em uma visita depois que todos já se despediram e da compulsão por furar filas e empurrar os outros para se colocar em primeiro lugar em eventos públicos.

    Há relatos de êxito na aplicação do Semancol Homeopático em casos que o paciente sofre de franqueza rude, tece comentários em momento inoportuno, faz perguntas constrangedoras e insiste em colocar sua posição política ou religiosa como dogmas em redes sociais.

    Indicações

    Semancol Homeopático é indicado para pacientes que apresentem qualquer dos sintomas acima, com uma frequência maior do que uma vez por mês.

    Medicamento de uso adulto e geriátrico, sendo que, nesse último caso, deve ser administrado somente àqueles pacientes que não apresentam quadros de Alzheimer ou Demência senil.

    Apesar de não pertencerem ao quadro de risco, é recomendável o uso de Semancol Homeopático para o tratamento de adolescentes a partir de 15 anos, que já apresentem tendência a desenvolver uma das síndromes acima relacionadas.

    Composição

    Semancol Homeopático reúne em sua fórmula extrato de boas maneiras, emulsão bloqueadora da fala e acetato inibidor de saliva, agindo diretamente no superego repressor do paciente.

    Por ser um medicamento fitoterápico não tem contraindicações, podendo ser ministrado juntamente com ansiolíticos em casos extremos.

    Formas de apresentação:

    Comprimidos de uso oral.
    Posologia: 1 comprimido a cada 6 horas, podendo essa dose ser aumentada para até 1 comprimido cada 2 horas, para pacientes que apresentem uma regularidade de incidentes maior do que uma vez por período do dia.

    Supositório: indicado em casos agudos e recidivos, devido ao seu efeito imediato. Posologia: aplicação imediatamente após o incidente. Recomenda-se portar o medicamento, para que possa ser aplicado em situações fora de casa.

    Precauções e advertências

    Ainda não testado o uso em pacientes do alto escalão político, altas patentes militares, ou cidadãos que subitamente ascenderam a uma posição de poder e apresentam a síndrome da boca solta. Considerando o crescimento de pacientes com essas características, porém, testes laboratoriais com o Semancol Homeopático estão sendo realizados com abelhas rainhas, galos de briga e pavões, com bons resultados.

    Reações adversas

    Em alguns casos, especialmente em pacientes com tendência à obesidade, o medicamento pode potencializar a compulsão alimentar, uma vez que trava a língua, mas não a boca. Nesses casos, o quadro mais comum é de pacientes que se comportam como se nunca tivessem visto comida na frente: passam a se servir primeiro que os outros, atacar os aperitivos em festas, encher os bolsos e bolsas de doces e bem casados em casamentos, entre outros sintomas.

  • CRÔNICA CAMONIANA

    Quando dois olhos se olham de uma maneira inesperada e se encontram e se sabem tão íntimos e tão inteiros, sente-se o fogo que arde sem se ver. Quando dois seres se veem próximos o bastante para dizer e celebrar o momento, vive-se o não contentar-se de contente. Quando duas bocas esperam, ansiosas, o suave toque ou o roçar de leve, percebe-se a dor que desatina sem doer. Quando duas almas dançam a canção imaginária dos amantes e ninguém os vê, e ninguém os interrompe porque há um tempo só deles, entende-se o solitário andar por entre as gentes.

    Quando duas histórias se entrelaçam e se fazem uma. Risos, brincadeiras, beijos e abraços, contemplação. O céu não é céu. As estrelas não são estrelas. Tudo é invenção. E inventam-se horas e coisas. Inventa-se a sensação. Quando duas mãos se aproximam e se querem. Quando dois sonhos se cruzam. Não importa o real. Importa a imaginação.

    Quando tudo isso acontece, a gente chama ou acha ou pensa ou diz que é amor. E vemos e vivemos intensamente o mundo inteiro. Os filmes, as músicas, os poemas, os comerciais, os bilhetes e o cartaz. As flores e a cena congelada do beijo entre a mocinha e o rapaz, Tudo é nada e nada é tudo ou tanto faz. Há muitos riscos, há muitos medos, mas queremos mais.

    E quando, enfim, acaba o quase infinito sentimento, o coração está ao chão, despedaçado. Como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo amor?

    Calma! Não há motivos para o eterno sofrimento. Novos capítulos são escritos e novos personagens se inserem à trama. Suor, olhos arregalados e calafrio. Calor, contentamento e desafio.

    Mais uma crônica, mais um poema e mais uma canção…

  • Eu, produto de valor

    Abriu uma nova sorveteria no shopping perto da minha casa. Por estratégia ou atrevimento, a novinha fica em frente à geladinha oficial.

    Disposta a conhecer a gostosura da hora, entrei na imensa fila que se formava. Tentei me distrair com as opções de sabor, designer da loja, mas, na consciência, pesava a culpa da traição. Para agravar a tensão, pertinente ao momento de flerte que não deveria acontecer, me acompanhava o olhar da atendente da sorveteria antiga. Pude ouvir seus pensamentos:

    — Tá fazendo o quê aí, sua falsa? 

    Juro que pensei em desistir. Rejeitar a oportunidade de saborear uma nova experiência e, com o rabo entre as pernas, voltar para a queridinha oficial. Mas o tédio é um encosto nos traidores. 

    O cansaço da rotina desperta o pior de cada um. Pensar nisso, construiu a coragem necessária para rebater os resquícios da minha ética amorosa:

    — Merece o chifre. Enquanto era única na minha vida, nunca fez uma promoção, me deu brinde ou ofereceu um cupom de desconto. Agora, aguenta a dor de me perder. 

    Peguei minha casquinha, ergui os ombros, joguei o cabelo, empinei o bumbum e passei bem devagar na porta da ex.

    A lógica do mercado também rege as relações amorosas. A concorrência sempre favorece o consumidor. 

  • O óbvio como argumento

    Ao escrever, deve-se em princípio fugir do óbvio. Nada irrita mais o leitor do que se deparar com informações que ele já conhece ou pode facilmente deduzir. Elas parece que estão no texto para “encher linguiça” e completar o número de linhas.

    O óbvio está para o conteúdo assim como o clichê está para a forma. É um lugar-comum mental. Indica pobreza de ideias mais do que de estilo e concorre para baixar a informatividade. Dizendo o que todos já sabem, o redator dá a entender que não tem um pensamento próprio. É uma espécie de “maria vai com as outras” (escrito agora sem hífen, em razão dessa esdrúxula reforma ortográfica).

    São óbvias afirmações como as de que “o Estado deve promover o bem-estar dos cidadãos”, “o capitalismo aumenta a desigualdade social”, “o homem precisa continuamente rever os seus conceitos” etc. etc. Informações desse tipo, de tão batidas, nada acrescentam ao que o leitor já sabe.

    Mas nem tudo no óbvio é inútil. A evidência que ele representa pode ter valor argumentativo, ou seja, servir de reforço a um ponto de vista. Existe um nome para esse recurso: argumento de presença. Por meio dele se realça uma verdade indiscutível, um conceito ou ideia que as pessoas devem ou deveriam ter em mente.   

    Esse tipo de argumento aparece, por exemplo, nesta passagem da redação de um aluno: “A adolescência é uma idade de conflitos e insegurança, por isso o adolescente deve ser orientado em suas escolhas”. O que ele afirma na primeira oração não é novidade. Psicólogos, pedagogos, terapeutas (e os pais, pelo que experimentam em casa!) sabem que os conflitos e a insegurança em boa medida caracterizam o universo mental dos adolescentes.   

    Geralmente quem formula o argumento de presença não o faz apenas para “dizer de novo” o que já se sabe. Procura associá-lo a outros recursos argumentativos. No exemplo que acabamos de mostrar, a verdade enfatizada pelo estudante serve de reforço ao apelo que ele faz na segunda oração (no sentido de que se devem orientar os indivíduos nessa faixa de idade).

    Por que precisamos trazer à tona o óbvio? Porque o ser humano comumente se alheia de princípios que não poderia nem deveria esquecer. Isso o leva a negligenciar deveres, distorcer valores, praticar injustiças contra si ou contra os outros. Repetir antigas verdades é sempre uma forma de chamá-lo à razão.

  • Ouse ser Sábio!

    A solidão está no noticiário como uma dor social frequente, e acabou indo a público através da imprensa, que despertou atenção desse problema de saúde nos EUA. 

    O sr. Vivek Murthy, Ex-cirurgião geral dos Estados Unidos, publicou um relatório de 82 páginas que chama atenção para esse tema. 

    O documento intitula-se “Nossa epidemia de solidão e isolamento”, com o subtítulo “Os efeitos curativos da conexão social e da comunidade”

    O que choca é saber que a falta frequente de conexão social, pode prejudicar a saúde física de forma tão perigosa quanto fumar 15 cigarros por dia. 

    Quando a vida é vista pelo ângulo da juventude, parece um teatro de marionetes à distância. Mas quando vista pelo prisma do adulto, parece estar dentro do palco, com detalhes reais e desgastados. 

    No entanto, as ligações sociais tornam mais leve o conviver com os pregos e parafusos, o óleo esparramado no chão, e as portas abertas sem tranca, que poderiam esconder a intimidade e nos proteger dos perigos.

    No contexto das relações de trabalho, é onde o homem cria suas habilidades sociais e a capacidade de interagir, o que não conseguiria desenvolver trabalhando somente em home office

    Desde 1990 o número de homens que relatam não ter amigos próximos saltou de 3% para 15% e suas redes sociais encolheram mais do que as das mulheres.

    A raiz do problema é profunda e longa, mas atualmente deve-se em parte ao colapso dos “terceiros espaços” que costumavam sustentar as amizades. 

    Os lugares como bares, academias, parques e igrejas, permitem desenvolver amizades profundas porque não envolvem status, poder e competição, como em um ambiente de trabalho muitas vezes estressante. 

    Na solidão do home office surgem pensamentos do tipo “porque certos absurdos acontecem somente comigo” e não com os outros ao meu redor? 

    Este é o momento que devemos realizar um acordo com esse absurdo e encontrar paz e sentido em nossas vidas e passar a entender que mesmo um dia carregado de desafios seja compreendido como feliz.

    Assim devemos procurar novos laços em outros ambientes. Como disse o pensador Michael Foucault, para que isso ocorra, é necessário ter um gesto de grande força para se separar do seu eu doentio, e não comprometer sua vida.

     Portanto “Sapere aude” que significa “atreva-se a conhecer”, termo utilizado pelo filósofo Immanuel Kant, mas que também foi traduzido de uma forma vaga como “ouse ser sábio” e “tenha coragem de pensar por si mesmo.

  • A difícil arte de aceitar afeto

    O homem com a cicatriz no rosto viu quando ela ia descalça e mancando pela estrada. Parou o carro e a pôs no banco de trás, encolhida feito um novelo. Ela tremia de frio, ele a cobriu com uma manta. Dirigiu o mais devagar que pôde, nenhum solavanco a perturbasse. Não trocaram palavra. Em casa, deu-lhe banho quente, segurando-a pela nuca, como a um defunto. Observou que ela tinha novas tatuagens, gostou de algumas, não de todas. Preparou-lhe um mingau suave de aveia, para não machucar seu estômago, sabe-se lá desde quando não comia. Meteu-a na cama em silêncio, cuidando para não tirá-la do torpor em que estava imersa. Foi até o jardim e queimou as roupas que ela vestia. Eram roupas de homem. Enormes, como as dele.

    Deitou-se no sofá da sala e demorou para pegar no sono. Pensou e pensou, mas não conseguia chegar ao que poderia ser a melhor solução para tirá-la do poço em que tinha se metido. Passou a mão pela cicatriz no rosto: não deixaria que ela o machucasse de novo.

    Pela manhã, o homem com a cicatriz no rosto acordou no sofá já sabendo que ela tinha ido embora, certamente vestindo roupas dele, como da última vez. Também sabia que, no espelho do banheiro, escrito com batom vermelho na caligrafia ainda infantil, encontraria o pedido para que não voltasse a socorrê-la: Por favor, não me ajude mais. A mesma súplica que, horas atrás, o homem da cicatriz no rosto tinha ouvido dos lábios dela antes de se deitar no sofá e mergulhar no sono mais profundo de toda a sua vida.

    Nem ele nem a filha sabem prever quando será o próximo encontro entre os dois.


  • Qual o Papel do Adestrador?

    O adestrador não é um encantador de cães, um mestre de comandos ou um mágico que resolve todos os seus problemas num estalo. Um treinador canino é, antes de tudo, um tradutor de almas. Ele observa o que, para muitos, é invisível: uma dança sutil entre o ser humano e o cão, onde cada movimento esconde um significado, cada latido indica um pedido, e cada gesto humano expressa uma intenção, seja ela consciente ou inconsciente. O papel do treinador é como o de um guia silencioso que, em vez de apontar o caminho, revela o mapa que sempre esteve encoberto, à espera de ser decifrado. O olhar de um profissional atento percebe o que só os cães sabem.

    No coração dessa relação está a reciprocidade. O cão, com sua determinação e sua linguagem instintiva, ensina lições que o ser humano só perceberá ao aprender a compreender o que se esconde por trás de cada movimento do seu cão. O adestrador, como um maestro, orquestra esse diálogo, mostrando ao dono que o problema nem sempre está no comportamento do cão, mas no reflexo da rotina, na ausência de presença, nos detalhes, no silêncio que nunca se preencheu.

    Há um segredo que o bom treinador carrega em suas ações: educar um cão é, antes de tudo, conscientizar as pessoas. É um ato de transformação e evolução. O cão aprende a se adaptar ao caos da sociedade, enquanto o humano redescobre o valor do aqui e agora. Nesse vínculo, nasce uma lição filosófica: a de que a paciência não é espera, mas cuidado; a consistência não é repetição, mas sensibilidade; e o amor — ah, o amor — é a chave que tudo conecta e transforma.

    Inspirados por essa jornada, percebemos que o treinador canino não foca seu trabalho em treinar apenas cães, mas em cultivar relações saudáveis e harmoniosas, dentro e fora de casa. Ele semeia confiança em terreno árido e colhe uma conexão que transcende o adestramento. Ao final, desaparece como um guia invisível, deixando no coração de quem aprendeu a certeza de que a transformação nunca foi imposta, e sim revelada. Assim, como ensina Aristóteles, “a excelência não é um ato, mas um hábito” — e nessa constância, cuidado e amor, a verdadeira conexão entre homem e cão encontra sua expressão mais sublime.

    E você, já parou para ouvir o que o seu cão está tentando dizer? Talvez, no silêncio que parece comum, ele esteja convidando-o para olhar o mundo com uma nova perspectiva — mais instintiva, mais autêntica e, quem sabe, muito mais humana.

  • Desde aquele dia

    Em 2010 eu morava em Gaurama e não sabia o que fazer da vida dali pra frente. Aos vinte anos a gente acha que pode tudo e acredita cegamente que as questões da vida têm soluções simples, num otimismo nada mais que adolescente. Eu estava perdido e assim fiquei talvez por mais um ano ou dois, pois tinha abandonado uma faculdade, concluído dois cursos técnicos dos quais pouco aproveitei e seguia vivendo na crença de que teria um futuro promissor como baterista. Embora hoje, década e meia depois, me orgulhe de uma empreitada ou outra, ando com a certeza de que jamais me dediquei tão fortemente a algo como ao instrumento.

    A bateria me era uma religião. Estudava como se apostasse todas as fichas numa única jogada e criei uma rotina que ultrapassava dez horas de prática por dia. Lia todas as revistas, buscava referências, bandas e músicos, fazia aulas com os bateristas mais experientes da região e viajava seguidamente para workshops em Porto Alegre e Caxias do Sul. Vez ou outra, além disso, compunha músicas para a banda da qual fazia parte, chamada General Lee.

    Nessas idas e vindas, conheci muita gente e sempre foi comum a surpresa quando falava sobre a minha cidade. Acredito que era, e ainda é, relativamente estranho viajar de um lugar com seis mil habitantes para um grande centro por conta de um workshop de bateria, que tem duração de, quando muito, duas ou três horas.

    Numa dessas o Rubens, baterista que encontrava nos workshops pelo estado e com quem converso até hoje, liga no telefone fixo de casa ao meio dia. Eu almoçava com a minha avó. Jamais soube como ele conseguiu aquele número. O fato é que não tive tempo para me surpreender com a ligação porque ele foi direto ao ponto. Um conhecido músico gaúcho acabara de entrar numa polêmica das brabas e tinha de sumir por uns dias. Gaurama seria o lugar perfeito. Concordei sem pensar e só quando desliguei percebi que não sabia o nome do fugitivo. Ao ser indagado, segundos depois, disse apenas: “vamos esconder alguém”.

    Pelo extinto MSN, combinamos o restante. Na sexta de tarde, eles viriam com um Punto preto, eu aguardaria sua chegada em frente ao posto de combustíveis na entrada da cidade e os guiaria até a minha casa. Soube quem era o tal músico só quando estacionamos. A minha avó era cúmplice e até gostou da história, acabou preparando uma macarronada para o jantar.

    Organizamos um quarto isolado, no sótão, com vários cobertores, pois aquela foi uma das semanas mais frias do ano. Ansioso e um tanto tenso porque, afinal, mal conhecia o Rubens, e, sejamos sinceros, aquilo tinha tudo para dar errado, quase mijei nas calças quando vi o Humberto Gessinger saindo do carro. Trazia uma mochila e uma edição antiga do Crônica da casa assassinada, do Lúcio Cardoso. Ao me ver, no looping de uma surpresa paralisante. gargalhou e agradeceu a parceria.

    A sensação de pânico não me abandonou naquela noite. O Humberto e a minha avó conversavam sobre os mais variados assuntos como velhos amigos. Eu mal acreditava no que via. Na manhã seguinte, mostrei a cidade ao forasteiro que, de touca e óculos escuros, fazia várias perguntas. De tarde descemos ao porão de casa, onde estavam os equipamentos da General Lee. Ele olhou tudo com calma e, ao ver o baixo na parede, pediu de quem era. Eu respondi que era do Joel, o baixista da banda, que geralmente o deixava ali para os ensaios. O Humberto o mirou por mais alguns instantes e, com a mão no queixo, sem virar para mim, disse: “Será que ele se importaria se fizéssemos um som?”. Aquele era um dos raros fins de semana em que não ensaiaríamos e, não preciso dizer que ficamos por horas, Humberto e eu, tirando um som no porão de casa. Só paramos quando a minha avó nos chamou para o jantar.

    Depois, por sugestão dele, fomos ao Maruag Pub. Ele estava de touca, manta e óculos, tapando quase completamente o rosto. Naquela noite, o Pub promoveu o show de uma banda de Passo Fundo, mas teve pouco público. O frio assustava. Assistimos sentados, num canto meio escondido, tomando seguidas latinhas de Coca-Cola, com raros comentários, pois o Humberto não tirava os olhos da banda. Quando a apresentação acabou, o vi escrevendo um SMS no celular, pagamos a conta e voltamos para casa, em silêncio.

    Jamais pensei em revelar essa história, mas creio que o Humberto já não se importe. Ninguém o reconheceu naquele fim de semana e não houve aborrecimentos posteriores. Acho até que o pedido de sigilo tenha jubilado. No domingo bem cedo ele partiu. Autografou alguns discos e pediu para que não contasse da visita a ninguém. A minha avó o convidava seguidamente para retornar enquanto se despedia. Eu via aquele Punto saindo pela estrada sem entender o que havia acontecido, com a certeza de que ninguém acreditaria caso contasse. Pouco me lembro dos dias subsequentes, mas fui alvo de piadas no ensaio da banda por estar feliz. E nunca pude contar o porquê. No fim das contas, a vida é mesmo cheia dessas coisas difíceis de explicar.


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