Dentre todas as anomalias enfrentadas no consultório durante esses trinta e seis anos, a mais estranha foi a de Faustino. Jamais encontrei alguma lógica no seu transtorno, nem sequer cheguei a compreender o processo de cura. Um caso realmente complexo e sem registros na literatura médica. Cheguei inclusive a debater o assunto com um professor da Faculdade de Medicina no Turfe, embora não gostasse de falar sobre os pacientes fora do trabalho. Apostei errado aquele dia. Ele também nunca ouvira falar de doença parecida.
No início cogitei escrever uma tese sobre o assunto. Achei que tivesse descoberto uma nova patologia para batizá-la com meu sobrenome. No entanto, como até hoje não encontrei uma explicação plausível, fui obrigado a abster meu ego da imortalidade.
Fiquei tão absorto naquela anomalia que me desliguei das mais simples atividades diárias. Deixei de fazer a barba por semanas, vestia-me com desleixo, dava duas ou três garfadas em cada refeição e recorria ao álcool diariamente. Os demais pacientes me enfastiavam e, no fim das contas, pareciam crianças tolas e simplórias querendo atenção. Aos poucos, uma espécie de desânimo tomou conta do meu corpo. Minha esposa obrigou-me a visitar um colega a quem sempre tive demasiado apreço. Só então é que lentamente voltei a tomar as rédeas da minha vida, com breves recaídas, no entanto.
Até hoje me pego pensando em Faustino. Mesmo após tanto tempo, ainda recordo o momento em que entrou no consultório com expressão desesperada, usando calça jeans e camisa vermelha. Inquieto, balançava desordenadamente as pernas e mirava o relógio a cada trinta segundos. Ainda que a aflição fosse comum no nosso dia a dia, Faustino tinha algo mais sombrio e trazia consigo um aspecto assustador. As enfermeiras o evitavam. Depois daquelas quatro ou cinco consultas, jamais tornei a vê-lo.
Faustino enxergava apenas o próprio umbigo. Não conseguia distinguir o rosto de ninguém, nem sequer o seu, quando em frente ao espelho. Nenhum ser humano lhe era perceptível. Tudo o que via era o próprio umbigo. Aconteceu numa terça-feira.
Quando acordou, o seu rosto não estava no espelho, o rosto do porteiro do seu prédio não estava na janela da guarita, os rostos dos colegas de trabalho não estavam nos lugares devidos. Todos eram múltiplos do seu umbigo. Faustino sabia perfeitamente que aquele era o seu umbigo porque só ele poderia conhecê-lo tão bem.
Pensou estar delirando. Poderia ter ingerido algum alucinógeno por engano, comido algo estragado ou vencido, afinal, não conferia os alimentos da dispensa antes de prepará-los. A ansiedade o corroía a cada novo acordar porque acreditava que uma boa noite de sono encerraria tal pesadelo. Sua angústia só aumentou.
Uma semana depois teve uma crise de pânico no supermercado e decidiu me procurar. Não sei por que me escolheu. Talvez fosse o único com horários em aberto no dia. O sofrimento de Faustino era comovente. Ele dizia me conhecer pela voz, pois via o seu umbigo sobre o meu pescoço, sobre o pescoço da secretária, das enfermeiras, dos outros pacientes e médicos na clínica. Não fosse pela voz, poderia ser atendido a cada consulta por uma pessoa diferente.
Busquei referências médicas para aquele problema. Procurei na prosopagnosia, consultei especialistas, mas não havia relatos de pacientes que enxergavam só o próprio umbigo. Um dos especialistas chegou a rir quando mostrei o histórico de Faustino e me deixou constrangido. Pesquisei em publicações estrangeiras e comprei até um compêndio sobre medicina oriental. Não encontrei uma só linha sobre o assunto nas publicações científicas de então e, arrisco dizer, até hoje não há.
Na consulta seguinte, expliquei-lhe que não havia referência para o seu transtorno. Inconformado, Faustino teve uma crise nervosa e ergueu a camisa aos gritos para mostrar-me o umbigo que via multiplicado, dezenas, centenas, milhares de vezes em todo e qualquer lugar. Já nessa consulta eu estava absorto no caso. Pouco pude fazer e o dispensei sem uma única palavra de conforto. Temi por sua segurança.
Dias depois, adentrou abruptamente ao consultório enquanto eu atendia uma jovem acompanhada da mãe. A secretária não conseguiu contê-lo, tamanha a excitação em que estava. Faustino correu para me abraçar, agradeceu efusivamente inúmeras vezes e, em lágrimas, media-me como a querer fotografar meu rosto. Saiu falando alto e agradecendo aos funcionários no corredor.
Aquela cena esdrúxula me rendeu alguma distinção e desde então a minha agenda passou a ficar abarrotada. A jovem que atendia no momento tratou-se comigo por uma década e seguidamente recordava do paciente emocionado que havia invadido a sua consulta.
O repentino prestígio apareceu justamente quando o meu autocuidado estava em baixa. O que me intriga nesse caso não é a cura, afinal. O problema não é esse. Às vezes os pacientes adoecem e melhoram sozinhos, não é segredo para ninguém. O problema que até hoje me deixa cismado é outro. Quando Faustino ainda enxergava apenas o próprio umbigo e ergueu a camisa naquela crise nervosa, o umbigo não estava lá.