Há algumas semanas a bandeja de tâmaras – com caroço, tal qual informava a identidade visual da embalagem – repousava paciente sobre a bancada da cozinha, no aguardo do momento especial que tanto se preparava Theobaldo. Amante de história e das descobertas da gastronomia dos tempos passados, planejava dar à fruta uma espécie de protagonismo em um quitute da Roma Antiga. Mas faltava-lhe o mel e as nozes, e com sua atual situação financeira não conseguia juntar todos os ingredientes ao seu carrinho de compras essenciais. Em um sábado à noite deste janeiro desconcertadamente quente, deu mil desculpas diferentes aos amigos, recusou educadamente um convite de festividade de aniversário e se deu ao luxo de matar a garrafa de vinho branco, um Chardonnay 2018, resfriado dentro de seu frigobar retrô. Theo ficou na ponta dos pés, com algum esforço, e alcançou a prateleiras das taças, no alto.
Passou uma água rápida no delicado vidro, ajeitou-o sobre a bandeja de madeira e cortiça – herança do enxoval dos pais -, pôs a bandeja de tâmaras e a garrafa de vinho, já consumida além da metade. Apagou a luz, acendeu um abajur e um incenso de odor madeira do oriente, escolheu uma playlist de “músicas tradicionais japonesas” no celular, pareou com sua caixa portátil de som e sentou-se em seu decrépito sofá, pernas esticadas e apoiadas em um escabelo improvisado, de frente ao ventilador – que girava e girava, de um lado para o outro, incessantemente, desconcertado, ele também, com a quentura daquela noite.
Com as mãos, rasgou a embalagem plástica de fina espessura e sentiu o peso daquele romance japonês, primeira publicação em português de renomada escritora oriental, e sorriu – ao fundo, tambores e flautas embalavam o momento infinitamente poderoso que é o de um leitor abrindo o portal do mundo de um novo livro. Rasgou também a película protetora das tâmaras, e levou tal fragmento de sol concentrado – e enrrugado – à boca.
Eu sou um gato. Ainda não tenho nome.
As duas primeiras sentenças impressas em papel de pólen estalaram na mente como onsabor da fruta pousou na língua, um segredo antigo, uma textura que desliza e adere – metáfora também para a movimentação própria dos felinos -, quase um veludo caramelado, mas com a resistência sutil de algo que já foi vivo e pleno.
Um gole do vinho e a língua brinca com as sensações; a estória não é pura e simplesmente sobre um gato, mas uma narrativa pela perspectiva de um. Outra tâmara: o paladar, de pronto, é invadido por uma doçura profunda, quase envergonhada de si mesma, como se fosse uma afronta ser tão doce e, assim, guardasse um toque de terra no final, um sussurro de suas origens áridas.
[Pausa para esticar pernas e braços, já que o vinho chegou ao fim; uma rápida caminhada até a bancada da cozinha e a garrafa é preenchida com água gelada, sem que o resíduo da bebida anterior fosse descartado – uma espécie de água saporizada].
Tóquio é a paisagem trazida pelas palavras que ganham vida através da conexão mente e olhos; os dentes recebem a tâmara com um pequeno estranhamento inicial – há maciez, sim, mas também uma firmeza discreta, um lembrete de que algo precisa ser rompido antes do banquete. E então gato e seu mestre entram em uma van prata, simbólico objeto de seu encontro, e iniciam uma viagem por vias expressas, mar, plantações e diferentes cidades, aventura de evolução e descobertas de desventuras que não afetaram a leveza de vida de um solitário japonês adulto, cuja única companhia é a de seu gato, batizado então por Nana, que significa 7, o literal formato de seu rabo.
É nesse instante que a tâmara revela seu truque: a densidade da sua carne, que não cede de imediato, mas se entrega aos poucos, num misto de resistência e rendição. Como mastigar um poema, cada pedaço é uma linha que se dissolve, doce e incomensurável, até desaparecer.
E assim, entre o degustar das tâmaras, do vinho branco que humanamente é transformado em água, o romance também vai desaparecendo da brochura, dissolvendo-se na construção da essência de quem o lê.
Há quem diga que sábado à noite é momento fértil para mudanças. No entanto, nem sempre são as grandes epopeias que nos moldam: pode ser em uma cerimônia íntima, ou ritual de solitude – o abrir de um livro, o degustar de uma modesta refeição – que o doce e a esperteza das coisas penetra a carne e nos devolve ao mundo mais humanos – e, quem sabe, muito mais inteiros.